Fernando Calado

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Nostalgias do Ano Novo a Nordeste

Entramos sem grande entusiasmo no ano de 2020. Uma nova década e o tempo a limitar-nos o tempo da nossa precária existência. Cai uma chuva miudinha e o vento sopra dos lados da Sanábria onde habitam todos os frios e os seculares nevões. Sinto as mãos geladas e nem o ano novo me traz a novidade, o fulgor de puder dizer aos meus vizinhos:

— Bom ano e boas festas!

Mas esperamos sinceramente que 2020 seja um bom ano e as festas felizes. Abro a janela, mais frio, um dia igual a tantos outros, sem nada de novo. Já não se vislumbra o sorriso da rapariga que se vestia de lavado e penteava o cabelo. No ar sentia-se o cheiro a perfume TABÚ de contrabando, comprado nas aldeias raianas. Os rapazes já não vestem a samarra, nem falam em cabeças de gado, nem em alqueires de trigo que se adivinham fartos para o ano novo. Já não há beijos de novidade à beira da fonte, nem as mulheres passam grávidas escondendo o ventre de futuro e esperança, no longo xaile.

A minha vizinha continua agarrada ao cajado, mancando e gemendo:

— Valha-me Deus, valha-me Deus, há mais de uma semana que a galinha poedeira deixou de pôr, não sei o que se passa!

Um homem velho esqueceu-se de recolher a lenha.

— Nem o diabo faz arder esta lenha molhada, nem o diabo!

Treme de frio, de longas ausências, só a mulher que já morreu espreita ao canto da memória, mas o lume continua apagado!

Sofro as ausências dos que estão doentes, foram para o Lar. As casas caem, os xailes não aquecem.

Três crianças jogam à bola na cerca da escola, num dia igual a tantos outros, frios e cinzentos, com o pressentimento que vão chegar os homens do capitalismo e do poder, que não conhecem um arado, uma relha, uma samarra, um xaile velho, uma pita que deixou de pôr, nem a lenha molhada que não arde, dizer do alto da sua proa e astúcia que todos temos que ser solidários e apostar na coesão territorial. Mas na verdade o que eles quase sempre dizem é que todos temos que contribuir para que o ar condicionado não se desligue, os Bancos falidos não fechem as portas e não parem os carros de luxo, as subvenções, as festanças, os almoços, os fados e guitarradas, as visitas ao fim do mundo e continuem as irrevogáveis mordomias.

— Não se aflija vizinha a pita logo, logo põe! Então homem de Deus, como se esqueceu de recolher a lenha!

— Uma pessoa sem a mulher não é ninguém! Quando a minha era viva havia sempre lenha, caldo e uma camisa lavada!

Caem-me no peito as lágrimas mais honradas da longa noite transmontana. Escuto os vizinhos demoradamente. Ninguém fala de política, de desenvolvimento, de discriminação positiva para o nordeste transmontano. Ninguém fala da novíssima Secretária de Estado da Valorização do Interior que se espera que aproxime Lisboa do Portugal profundo do nordeste. Ninguém sabe. Anoitece. Os vizinhos acendem o lume e cismam, na saudade dos filhos ausentes. Fica só o sorriso dos netos no retrato que guardam ao peito.

Eu irei morrer, os meus vizinhos irão morrer. Quem ficará nas terras bravas transmontanas para garantir o futuro, acender o lume, na esperança do Ano Novo?! 

— Bom dia vizinho!

— Bom dia e boas festas!

Do Interior ou da alegoria da caverna

Nasci e cresci na aldeia à beira do velho tanque. Parece que ainda ouço a mãe, com o seu ar sereno, dizer como quem beija, de mão em riste, numa ameaça que não convencia ninguém: — Se cais ao tanque mato-te!

As juntas de vacas, os rebanhos, os burros, os cães, vinham ao entardecer saciar a sede no tanque amigo. Era verão.

As mulheres enchiam os cântaros na torneira, os homens tiravam o chapéu, vindos da segada e bebiam água tão boa, como se não houvesse amanhã. A criançada da escola regalava-se a aguardar a vez para beber água, ou molhar o amigo descuidado. No Inverno o tanque repousava num longo manto de gelo. E aquele “carambelo” partido aos pedaços sabia que nem trigo com nozes. Tempo de fome e servidão, da meia sardinha para cada membro da família, das jeiras escassas, da casa cheia de gente, da emigração, do medo.

Ainda continuo a viver na aldeia, junto do velho tanque. Nunca fui muito longe para conhecer o mundo. Mas conheço a minha aldeia e quase todas as aldeias do nordeste como se me estivessem coladas à pele, às memórias, ao sentir.

As casas e os casebres continuam a cair, numa derrocada medonha que assusta. Tudo se vai com os donos.

Nalgumas ruas ainda cheira a centeio quente mas o forno já não coze. Fica a nostalgia do pão nosso de cada dia, da segada, da acarreja, das malhas, do medeiro, do moinho, da forja. Tudo está tão presente como o carolo de centeio que sabia a beijos, ao lume aceso, à alheira que amaciava o inverno.

Hoje, em quase todas as aldeias do nordeste transmontano já não há fome. Os poucos habitantes vivem com o mínimo de dignidade nas suas casas. Muitos ainda cultivam a horta, apanham as castanhas, a azeitona e cuidam da capoeira. A magra reforma vai chegando para o essencial. Mas, o que há nas nossas aldeias é uma imensa solidão, idosos que se arrastam ao peso dos anos, doenças, lágrimas, memórias, ausências, silêncios. Todos os dias converso, demoradamente, com estes idosos e sinto o seu sentir. E dói-me esta investigação participada e este abandono.

Há muito que a grande maioria das escolas do primeiro ciclo fecharam pela falta de crianças. Em muitas aldeias já se conta quem será o próximo a morrer e calcula-se com uma previsibilidade assustadora quando a aldeia vai capitular pela partida do último habitante. Raramente nasce uma criança e os sinos poucas vezes tocam festivamente para os batizados, mas tocam com excessiva frequência a finados.

Contudo, abundam as magníficas teses sobre o desenvolvimento e sustentabilidade do nordeste. Com frequência vou a seminários e congressos onde se afirma que o nordeste tem futuro. Doutos oradores dissertam sobre medidas inovadoras para combater a desertificação e promover o povoamento. Às vezes quase acredito que eu vivo na caverna da alegoria de Platão e só vejo as sombras do mundo exterior, enquanto iluminadas personalidades vivem realmente no exterior desenvolvendo magníficas teorias, garantindo os apoios necessários para salvar uma região do interior que morre paulatinamente.

É difícil acreditar no futuro da nossa terra, mas temos que agarrar a esperança, muito mais agora que a investigadora Isabel Ferreira, com centenas de artigos científicos publicados, “que exerceu funções de vice-presidente do Instituto Politécnico de Bragança, foi diretora do Centro de Investigação de Montanha, doutorada na área da Química e licenciada em Bioquímica” é a atual Secretária de Estado da Valorização do Interior. Talvez ela seja capaz de ajudar a enxugar as lágrimas de tantos idosos, a semear sorrisos de esperança, a criar investimento, a transformar a teoria numa prática criadora de riqueza que todos desejamos para que as nossas aldeias, vilas e cidades se povoem de casais, de crianças e jovens com futuro.

Entretanto acendemos o lume, afagamos a esperança nos homens e nas instituições e esperamos que nenhum vizinho morra esta noite de tristeza, velhice e abandono.

Do Abade de Medrões ou do Deputado

O abade de Medrões, Inocêncio António de Miranda foi um constitucionalista destemido e polémico, natural de Paçó de Outeiro, Rio Frio. Um transmontano que antes preferia quebrar do que torcer. Seminarista brilhante, licenciado por Salamanca, foi professor de gramática latina em Algoso, tendo subido ao presbitério em 1794. Paroquiou as freguesias de São Pedro de Sarracenos e Grijó de Vale Benfeito. O seu espírito combativo leva-o a envolver-se numa acesa polémica, por ter sido preterido injustamente num concurso para a paróquia de Quiraz. Desgostoso vai para a corte de Lisboa onde logo dá nas vistas pela sua inteligência, tendo sido escolhido para preceptor do marquês de Fronteira. Dada a sua notabilidade na corte foi-lhe atribuída, por volta do ano de 1812, a paróquia de Medrões, em Santa Marta de Penaguião por ser considerada muito rica e generosa para com os seus abades. Aí paroquiou até ao ano em que regressa a Lisboa como deputado às cortes constituintes de 1821. Deixou a sua marca inconfundível na feitura da 1.ª Constituição. Foi um combatente determinado contra o absolutismo régio. Os seus discursos eram contagiantes em defesa das virtudes políticas da constituição, em oposição às arbitrariedades e despotismos régios. De novo se instala a polémica entre as suas ideias liberais constitucionalistas e os absolutistas que nunca lhe perdoaram a publicação, em 1822, do livro: “Cidadão Lusitano”. Este livro esgotou em apenas oito dias. O padre maçon convivia com outros ilustres maçons do seu tempo o que lhe valeu a perseguição da igreja. O seu livro de conteúdo liberal defendia a abolição do celibato eclesial, contrário aos “sentimentos da natureza”, bem como a abolição de alguns dias santos e romarias que originavam “estragos de bolsas, ruína de famílias, corrupção de costumes, bulhas, desordens, ferimentos e mortes”. Com a queda do constitucionalismo em prol do absolutismo régio, e fazendo jus à fama de obra maldita, o cardeal D. Carlos da Cunha amaldiçoou com excomunhão a leitura do “Cidadão Lusitano”, que entrou para o índex dos livros proibidos, por decreto papal no ano de 1826. Foi uma vida dedicada à reforma da igreja. Envolvido nas politiquices do clero e da corte, gastou-se em polémicas, em publicações infindas. Faleceu em Grijó de Vale Benfeito em 29 de maio de 1836.

Vem isto a propósito da caricatura saloia que muitas vezes se faz dum certo deputado transmontano que a única intervenção que teve foi para pedir a outro deputado o favor de encostar a janela.

Não passa duma caricatura, ou duma exceção, pois logo nas cortes constituintes de 1821 os deputados transmontanos foram escolhidos com rigor, tendo em conta a boa preparação intelectual, o bom discurso argumentativo e o prestígio pessoal, como é o caso do nosso conterrâneo abade de Medrões e de muitos lentes universitários naturais de Trás-os-Montes. Não sei se atualmente será assim.

O deputado é o primeiro representante do povo nos meandros do poder instalado em Lisboa que fica tão longe de Trás-os-Montes. Por isso, o deputado tem que estar preparado para ser reconhecido entre os seus pares como uma mais-valia no governo do País e em particular na defesa dos interesses da região. Tem que ser combativo, ter ideias e impor-se pela argúcia intelectual e pela novidade do discurso. Tem que ser o melhor entre os melhores.

Em breve os partidos políticos apresentarão os seus candidatos a deputados pelos diferentes círculos eleitorais. Ser deputado não é um emprego, nem é um lugar de carreira, é uma missão. A mais nobre. E já que os cidadãos, numa primeira instância, não são chamados a escolher democraticamente os seus deputados, confiando essa tarefa às forças partidárias, que sejam escolhidos os melhores, pois só assim se defendem os legítimos interesses dos cidadãos, só assim se respeita a democracia e os ideais de Abril que em boa hora devolveu a voz e o poder à vontade soberana do Povo.

À beira do café… ou do vício

Levantam-se cedo e vêm ao café. Trazem nos olhos a longa noite bragançana. E falam dos filhos licenciados que a França e a Alemanha acolheram amorosamente. Os filhos regressam sempre pelo natal e de novo partem e somente ficam as infindas ausências. Os da política vendem os sonhos dum país próspero onde corre leite e mel. Os idosos cismam e amaciam solidões.

— A minha mulher era tão bonita! E de novo regressa ao rio Sabor a lavar a roupa. Os filhos aprendem a nadar e a água é tão azul repleta de peixes que brilham nos remansos. Olhos largos onde não cabem todas as memórias.

A nostalgia não adoça o café do desencanto da vida, da precariedade do emprego, da rotina do funcionário público, das infindas partidas da terra que morre à beira dos montes.

Amacia-se a vida no café. Lê-se o jornal. Fala-se da desilusão do futebol sem profundidade, ou da política sem objetivos. Cheira a gel de banho, a champô para a caspa e quase se adivinham os pensamentos em cada mesa, em cada gesto, onde se calam as saudades da aldeia, do toque para a missa dominical, do jogo do fito, da ida à taberna, ou à horta onde se espreita o renovo.

Comenta-se que um velho político foi para Lisboa, no fascínio da capital, tentando agarrar a vida que lhe foge por entre os dedos. Longe, muito longe ficam os montes. O mundo mudou, mas ele, na sua provecta idade, não deu por isso. Ainda ontem na antiga Grécia os idosos eram os sábios, os homens da polis. Mas na antiga Grécia havia os escravos que trabalhavam enquanto os homens livres se dedicavam ao ócio. A filosofia é filha do ócio, da paciência e do vagar de pensar. Os jovens aprendiam com os idosos, com os pais e não havia conflito de gerações. Só era preciso ter jeito para aprender e um dia o paciente aprendiz seria igual ao seu mestre. Hoje, tudo mudou e a escola rapidamente ensina a aprender, dá competências e ferramentas para a sabedoria e com frequência o jovem que pensa e rompe os paradigmas pode ver mais longe que o seu antigo mestre. E as sociedades mudam, as tecnologias mudam e os paradigmas mudam com a rapidez duma estrela cadente. E o jovem entende muito bem que talvez aquela estrela já tenha morrido há milhares de anos e só agora a sua luz chega à Terra e esta é a novidade da flexibilidade do pensamento. Se os “velhos do Restelo” se calarem e regressarem ao aconchego da casa o mundo será mais feliz e próspero! Os idosos com a sua experiência devem ser um incentivo, um apoio sólido para os mais novos e não um entrave, no desejo mórbido de querer persistir num tempo que já passou.

Admiro-me com a inteligência e lucidez dos nossos jovens que fazem dos sonhos certezas, estudam, leem, investigam, inventam, enquanto certos conservadores que sempre foram velhos e têm medo de arriscar, se refugiam no consolo das grandes ideologias, nas inquestionáveis crenças de Lisboa. Arriscar assusta.

O café está cheio. Uma idosa entra agarrada à esperança. É dia 10, recebeu a magra reforma. Disseram-lhe que sai muito dinheiro nas “raspadinhas”. 

— Talvez seja desta, talvez seja desta! Pague o café e dê-me uma “raspadinha”! Diz para o empregado.

A esperança resiste. Gastou o pouco dinheiro que se tinha. Talvez seja desta! Não foi.

A febre do jogo está a empobrecer mais os pobres e os aflitos!

Uma rapariga sorri: — Joguei um euro saíram-me dois! Já não estou a perder… Joga mais: — Não me saiu nada… paciência!

E joga-se compulsivamente, tentando a sorte. Os jogos imediatos como as “raspadinhas” são extremamente viciantes. Dinheiro fácil e rápido. E ninguém diz nada e ninguém faz nada, em nome da caridade. 

— Fica para a próxima! E quase todos empobrecem mais à beira da sorte e do azar. Mais do azar do que da sorte.

A febre do jogo arruína, a febre do jogo empobrece, a febre do jogo mata os sonhos. Haja misericórdia! Mas todos se calam.

Parábola da política e do rebanho

É comodo ser do rebanho. Os pássaros que cantem e façam os ninhos nos ramos altaneiros e contemplem as paisagens mais deslumbrantes. O verde dos campos que seja verde. Os peixes em cardume que descubram os segredos da profundidade do rio, ou fiquem, somente, ao sol nos remansos tranquilos. As rosas, essas que se cansem, todos os anos, de ser rosa e rosas e perfume. É cómodo ser do rebanho, sendo levado para os prados cheios de flores e à tarde ir beber água fresca no leito do ribeiro que canta há milhares de anos. Nem um desgosto! O pastor será o caminho seguro, o pensamento. A ameaça do lobo unirá o rebanho e assim estará tudo bem, justo e perfeito! E até os cães do gado que podiam morder, ladrar, se calam para que a côdea do pão duro não falte no bornal sebento do pastor. Claro que no final do verão o rebanho terá que sofrer as grandes secas, os prados cinzentos de terra dura, comida pouca, mas o pastor lá estará para manter o gado unido. Ele sabe que algumas ovelhas irão morrer de fome, de sede e de doenças. Mas só é preciso esperar e logo surge a promessa de prado verde e água fresca. Não se sabe quando será, mas o rebanho adormecido cala-se, deixa de balir, morre e o pastor já nem se importa.

— Que rebanho é este… até tem medo de morrer!… Diz o pastor. Na verdade poucas ovelhas chegarão à próxima primavera, mas que se há de fazer?! Nada, não se faz nada, o melhor é ficar no rebanho sem a maçada de dizer não, sem o incómodo do pensamento, sem a estranheza apocalíptica da ovelha morder o pescoço do cão. Ficar balindo, balindo e não fazer nada!

O pastor é que gosta de um rebanho assim, amigo do seu pastor, manso, com medo do lobo! É cómodo ser do rebanho!

Mas um dia, há milhares de anos, um sapiens sapiens assustou-se com a novidade do pensamento e a maldição começou. Perdemos o rebanho, ganhamos a revolução, perdemos o paraíso, ganhamos a humanidade e agora já podemos ignorar o rebanho. Conquistamos o dom da divindade, inventamos a filosofia e todos os dias acordamos na intranquilidade do pensamento. Platão anda por perto e cedo abandonou o rebanho e ao pastor e disse não: “O preço a pagar pela tua não participação na política é seres governado por quem é inferior.”

Vem esta deslavada prosa a propósito da recente demissão do presidente da concelhia do PS de Bragança, André Novo. Conheço este jovem há muitos anos. Foi meu aluno. Pensa bem e muito. Na intranquilidade do pensamento descobriu que este não era o caminho para a política bragançana. E porque pensa, aprendeu a dizer não e corajosamente disse um incómodo não à inoperância e à aparente tranquilidade em que vive uma região que morre paulatinamente. André Novo não quer nada da política. Doutorou-se muito cedo, também para servir a política. “Apresentei este pedido de demissão por discordar das opções políticas e só políticas do Presidente da Federação do PS de Bragança, Jorge Gomes.” Diz André Novo. Com esta demissão perde o partido socialista que não soube aproveitar um grande quadro. Também o presidente da distrital do PS, Jorge Gomes sai fragilizado. Não sei se tem fracos conselheiros, ou não valoriza os melhores. Na lonjura de Lisboa, Bragança fica distante. Lisboa seduz. Mas o deputado tem que ser o representante de todos os cidadãos que o elegeram, sem fações, nem sensibilidades. Bragança tem uma longa tradição de dizer não e valorizar os seus e já o primeiro deputado bragançano às Cortes constituintes de 1821, o abade de Medrões, padre Inocêncio António de Miranda, dizia não ao absolutismo, enquanto D. João VI, em plena invasão francesa resolve ir a banhos para o Brasil abandonando o país à sua sorte. O padre Inocêncio nasceu em Paçó de Rio Frio em 1761, frequentou o seminário de Bragança e licenciou-se em Salamanca. Um grande liberal, padre e maçon, daqueles transmontanos que antes preferem quebrar do que torcer. Polemista temido, foi ouvido e respeitado nas Cortes, sendo um dos principais obreiros na elaboração da constituição de 1822. A tradição vai-se manter, a juventude bragançana é promissora. O grande partido socialista, sem dúvida, vai continuar a fazer o seu caminho pois “é na queda que o rio ganha mais força”.

Notícias da aldeia neste mês de Agosto

Agosto chegou. De longe vieram os que tinham saudades da terra, do abraço que se dá, do copo de vinho que se bebe na adega mais fresca junto do ribeiro. Já fizemos a festa, fomos à missa, cumprimos a promessa, choramos com o sermão emocionado do pregador, pegamos ao pálio e dançamos no terreiro, como antigamente, na memória do altifalante que acordava a aldeia. Durante um mês acreditamos que o nordeste tem futuro, que as aldeias se povoam e os jovens que falam várias línguas erguendo a magnífica torre de Babel hão-de regressar para sempre. Depois, terminam as férias e todos regressam às suas vidas e ao amanho das terras do fim do mundo. Os que ficam afagam as memórias, perseguem os silêncios e revivem lugares antiquíssimos que já regurgitaram de pessoas e de vidas.

Esquecemos o inverno que em breve tornará as terras do nordeste mais austeras, frias e carregadas de solidões.

Mas agosto ainda vai a meio e as noites estão quentes. Dezenas de automóveis animam a aldeia e os idosos cismam com os carros de bois carregados de trigo, com as eiras fartas na urgência das malhas, com os rebanhos na demanda dos prados, com as vacas pastando no verde do prado. Os mais novos bebem cerveja no café da aldeia e o vinho é tão bom repousando nas pipas seculares. Memórias. O meu vizinho fala como se mergulhasse fundo no paraíso perdido que se chama nordeste:

— Eu sou um analfabeto, criei-me com uma côdea de pão atrás dumas canhonas, mas sou mais fino que o gajo que manda nos Estados Unidos. Eu corro todo o termo e já não vejo um lagarto, uma cobra, milhares de passarinhos, como antigamente, estamos a dar cabo de tudo com a poluição, os adubos e os pesticidas, eu sei lá!

Faz-se silêncio. Olhos marejados de lágrimas. Destruímos os nossos campos tão verdes, fechamos as escolas, abrimos cinzentos lares de terceira idade, enterramos os idosos e praguejamos neste desencanto de assistirmos pesarosos e impotentes, paulatinamente, a uma morte anunciada.

Regressamos a casa. Noite quente. Ainda se houve o toque das Trindades. A mãe chegou ao portal vinda da fonte, contando os filhos. Memórias dolorosas. Ligamos a televisão. Uma senhora de fino recorte apresenta o seu último livro publicado. Uma história lancinante de alguém no país das sapatilhas. Um casal citadino cansou-se do bulício da cidade e vai para Trás-os-Montes explorar uma casa de turismo rural, numa aldeia miserável sem telemóvel nem internet. A locutora ainda deixa uma nota de rodapé, inteligente por sinal: — Ninguém vai abrir uma casa de turismo rural numa aldeia sem telemóvel, nem internet. A magnânima escritora sorri. Talvez não conheça Trás-os-Montes e embarque no estereótipo que é uma região de ninguém, mergulhada na longa noite dos mitos e preconceitos, povoada de lobos e almas penadas, onde ainda não chegou a internet e muito menos os telemóveis. E a trama do eloquente livro desenvolve-se à volta da tragédia e da psicanálise do casal citadino e principalmente dos seus filhos que estoicamente têm que sobreviver na lonjura da cidade, nos confins do mundo, na noite mais escura da aldeia transmontana, sem internet, nem redes sociais, nem telemóveis.

Eu por acaso vivo numa humílima aldeia transmontana e dentro de alguns minutos irei enviar esta deslavada reflexão ao director do jornal utilizando o normalíssimo recurso a um e-mail. Mas os esclarecidos escritores que têm acesso às televisões é que sabem e muitos dos sensatos e cultos escritores transmontanos ficam na prateleira do esquecimento televisivo. Na verdade a ignorância é atrevida.

Vou-me lá até à fonte mais fresca da aldeia beber da água mais pura e fresca que há milhares de anos nasce do coração da terra. Os incêndios assustam-me neste mês de agosto. O governo foi a banhos e regressa pra nos sossegar que tem imensos meios de combate às chamas avassaladoras, mas a floresta e muitas habitações arderam. Fica uma imensa paisagem cinzenta, fria, medonha. Desgostos.

Desligo a televisão. Uma coruja pia sinistra riscando o silêncio. Finalmente escrevo um e-mail, junto um anexo e a minha “redação” está no jornal. A longa noite transmontana iluminou-se e o futuro é possível. Haja vontade de fazer política para a “polis”, para o povo real e não somente para o populismo. Haja vontade e teremos futuro. Acredito.

Dos livros e dos escritores transmontanos

Nunca se escreveram tantos livros e nunca se leu tão pouco como atualmente. Esta é a minha convicção, sem nenhum rigor de análise, somente pela observação do que se passa à minha volta. A oferta de livros é imensa, a compra reduzida. Há os que compram livros por que gostam de ler, de se informar, pela paixão, pelo romance, pela beleza do poema, pela curiosidade de descobrir o mistério que envolve as palavras na ficção, ou no rigor científico. Há os que compram livros na esperança que um dia vão ter tempo de os ler, ou então, pelo prazer bizarro de enfeitar a estante para dar um ar de intelectual e de interesse pela cultura. Infelizmente o Espírito Santo já não desce do Céu em línguas de fogo, portador do conhecimento e do dom de falar todas as línguas e os livros permanecem na estante adiados, inúteis, acumulando pó e traças nocivas.

Longe vai o tempo em que publicar um livro era uma epopeia. Ou se recorria à edição de autor, pagando este o custo da edição e fazendo a divulgação e venda do mesmo, ou então esperava tempos infindos que uma editora se desse ao trabalho de apreciar a obra e na maior parte das vezes não mostrar qualquer interesse pela sua publicação.

Felizmente ainda existem algumas editoras que perseguindo o lucro, o que é normal, se interessam também pela promoção da cultura. E há mesmo editoras que privilegiam os autores transmontanos, sendo já um mercado interessante.

Mas hoje surgiu um novo conceito de editora, ou melhor de comércio do livro, sem as ditas editoras correrem qualquer risco na edição que é o mesmo que dizer, é tudo lucro.

O autor manda o seu original para as referidas editoras. Passados, não mais de dez dias, recebe uma carta informando que a sua obra foi considerada de interesse e mérito e se insere na linha editorial. O autor rejubila, pois finalmente a sua criação literária foi reconhecida. Honra ao mérito! Só que passado mais algum tempo recebe outra carta informando que afinal, para a sua obra ser editada, tem que comprar um número significativo de exemplares. Resumindo, o autor com a compra que efetua, paga a edição do livro e a editora recebe o lucro sem qualquer risco. Consumado o negócio a editora manda imprimir os livros que o autor irá comprar e presumivelmente mais alguns para a distribuição sem se saber bem a que livrarias chegam.  

Por outro lado, salvo raras exceções, cada vez se torna mais difícil a um autor do interior do país, conseguir colocar os seus livros nas grandes livrarias, ou nas grandes superfícies, mesmo à consignação, porque o espaço custa dinheiro. No caso de Bragança, só em duas, ou três livrarias tradicionais se encontram os livros de muitos autores transmontanos. Então nos CTT que também vendem livros, nem pensar encontrar um livro dos escritores da região. O curioso é que os CTT e as grandes superfícies arrecadam as divisas dos transmontanos, mas pouco contribuem para a divulgação e promoção da cultura regional.

O mesmo se passa com as televisões. Nos programas mais populares da manhã, ou da tarde, com frequência aparecem escritoras e escritores, muitas vezes da “linha de Cascais” que é o mesmo que dizer, os conhecidos doutras águas, a apresentar o seu livrinho de autoajuda, ou biografia, com grande divulgação e com a promessa de voltarem em breve a falar do sucesso editorial. E verificamos, com desagrado, que raramente aparece um escritor transmontano no pequeno ecrã, embora felizmente haja tanta gente a escrever muito bem. E assim vai a coesão do país em que o interior profundo morre paulatinamente afagando promessas. O ministro e o secretário de estado, como lhe compete, visitam a região, apreciam a gastronomia, a cultura, a hospitalidade transmontana, os recursos endógenos e deixam promessas de combate às assimetrias regionais. E nós, pacientemente, esperamos que assim seja. Estamos cansados de ouvir alguns pseudointelectuais da capital e arredores referirem-se à província, com um sorriso palerma, como se fosse o lugar do fim do mundo, onde o homem das cavernas, timidamente, começa a ver a luz da civilização, argumentando que a falta de população não justifica o investimento. Coitados! A ignorância é atrevida. Como diz Fernando Pessoa: “É a hora!”. Transmontanos, é a hora!

Da filosofia e da política

A reflexão filosófica conduz-nos a uma aventura fascinante do devir do pensamento e a um percurso ímpar que vai da família, à aldeia e à cidade. Paulatinamente o mito vai dando lugar à filosofia e à política. Platão fala-nos da cidade ideal. Aristóteles vai alicerçar a génese da filosofia política no poder paternal da família. Várias famílias dão origemA a uma estrutura mais complexa que é a aldeia. Por seu lado as aldeias dão origem à cidade, à “polis” de grande complexidade que já exige um poder político que tende ao bem comum. E assim, com Aristóteles há uma importante sistematização da política como ciência, partindo dos seguintes pressupostos: “Primeiro, procuraremos rever o que foi dito pelos nossos predecessores que investigaram este assunto. Depois, com base na nossa recolha de constituições, consideraremos o que preserva e o que destrói as cidades bem como as respetivas constituições e quais são as causas de que umas sejam bem governadas e outras não. Estudadas estas questões, podemos compreender melhor qual a melhor constituição, como cada uma deve ser ordenada e de que leis e costumes carece.”
E é por isso que cada vez mais me fascina a política enquanto repositório de saberes antiquíssimos que o devir humano vai completando, vai aperfeiçoando, no sentido de tornar a ação política numa prática tendente ao bem comum e ao bom governo da cidade.
Isto é política, a mais nobre ação humana e de novo ouvimos o grego Aristóteles: “o homem é, por natureza, um animal político.” 
Regressando aos nossos dias e à nossa ação política, facilmente se confunde política, com política partidária que sem dúvida é essencial para garantir a democracia, entendendo que, como diz Winston Churchill: “A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todos os outros já experimentados ao longo da história.” E infelizmente a história está cheia de maus exemplos do aproveitamento político-partidário. Todos nos lembramos, horrorizados, como o Cabo Hitler chegou a líder do Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas Alemães e mais tarde acumulou os cargos de chanceler e presidente dando origem à criação do “Terceiro Reich”, da polícia secreta “Guestapo” e ao extermínio desumano, entre outos, de milhares de judeus, ciganos e opositores. “Se existe um Deus, ele terá que implorar pelo meu perdão.” Foi esta a frase escrita na cela por um prisioneiro judeu. Horrores em nome da política.
Claro que hoje a política partidária, aparentemente, no nosso meio, é mais civilizada, mais afetiva, mais pluralista, embora seja no seio dos partidos que muitas vezes renascem os antigos tiranos que facilmente quebram o verniz: Quem não é por mim é contra mim. E assim, fiéis seguidores vão catapultando, numa dinâmica de clubismo, políticos que não estudam e exibem qualificações e títulos que não possuem.
É por isso que dentro do espírito da velha máxima atribuída a Sócrates, o grego: “só sei que nada sei”, continuo a estudar a ciência política com devoção. Participo na vida partidária em liberdade. Aprendi o máximo que pude com os meus antecessores, a quem respeito e venero. Ensino humildemente os mais jovens. Leio Platão e Aristóteles, pioneiros do pensamento político e acredito, convictamente, que a política é o dom maior do homem ético que tende à felicidade.

Quase poema… ou das memórias do nordeste

Ao fim da tarde regressamos à casa das nossas memórias, dum tempo onde todos os sonhos eram possíveis materializáveis nas prendas dum Cristo antiquíssimo que todos os anos nascia à beira do nosso Presépio pobre, construído à imagem e semelhança da pobreza da nossa aldeia transmontana.
Vamos acender lume que aqueceu mil invernos para esquecermos a geada e a neve buraqueira que cobre as telhas velhas que abrigaram muitas gerações.
Já matamos o porco, fizemos as alheiras, os chouriços, os salpicões e os butelos. Salgamos os presuntos e gastamos as noites à espera que o calor da lareira seque o fumeiro que será o aconchego de muitos dias.
Esta noite não veio ninguém para a nossa velada e ainda sobrou meia alheira que assamos em lume brando. Por isso, aqui estamos às voltas com os nossos pensamentos, pensando esta terra brava onde os homens obrigam as fragas a dar trigo, azeite, vinho, como quem troca suor pelos melhores produtos da natureza.
O Nordeste transmontano é sem dúvida esta rusticidade de têmpera velha, onde o tempo parou avaro duma cultura ímpar, cheia de mitos, de lendas, dum saber fazer ancestral onde o milagre da mão tece o linho, fia a lã, molda o barro, coze o pão.
Ligamos a televisão e o mundo é grande e orgulha-se do conhecimento científico, das novas tecnologias, do poder da engenharia genética. Os ricos combatem outros ricos e os pobres continuam a ser cada vez mais pobres. Contemplamos o Planeta sentados no escano da nossa casa, onde o nosso avô dormiu regalado no aconchego da manta velha, e sem saber porquê temos saudades de nós, temos saudades desta Terra a Nordeste que tem que preservar o passado e ao mesmo tempo conquistar o futuro.
Fala-se muito em desenvolvimento sustentado e ainda bem, pois temos que travar um certo crescimento saloio que nos envergonha, que transforma o nosso espaço urbano, cheio de riquezas arquitetónicas, numa amálgama de cimento, de prédios sem alma na ausência do vagar do pedreiro que morreu e levou consigo a delicadeza de afagar as pedras.
Contudo, este relicário transmontano não pode ser o último reduto para estudo duma antropologia que tragicamente vem participar na morte anunciada duma cultura que resiste, dolorosamente, à avassaladora cultura de massas. O Nordeste tem que renascer das cinzas e não podemos assistir serenamente à morte de tantas aldeias, onde há casas, fontanários, caminhos, mas onde o último habitante partiu há muito e para sempre.
O Distrito de Bragança está a atravessar uma profunda crise de sobrevivência e contudo quando lemos determinadas teorias ficamos com a impressão que ainda é aqui que encontramos a dignidade perdida da humanidade, porque existem sinais de esperança, de que ainda é possível encontrar o homem ético capaz de viver em sociedade.
Pela constatação de alguns paradigmas sociais, parece-nos que a nostalgia dum paraíso perdido regressa aos horizontes das nossas vidas. Sonhamos de novo com o homem comunitário, que não se reduz ao sonho perdido das aldeias de Rio de Onor, ou Guadramil, mas que finalmente tem a dimensão da permanência no nosso quotidiano. Para este homem comunitário o bem-estar da sua comunidade está em primeiro lugar e o seu próprio bem-estar é relegado para segundo plano.
Remexemos memórias e de novo encontramos o homem solidário, respeitador dos valores, das crenças, dos mitos, que em comunidade administra a sua propriedade e em comunidade define regras de comportamento e perspetivava o desenvolvimento em função de padrões comunitários.
Contudo, quando olhamos para a sociedade contemporânea onde impera um capitalismo liberal, no pior sentido do conceito, onde o dinheiro se sobrepõe ao homem, onde há cada vez maior pobreza e maiores riquezas, onde existe a exploração do homem e o apelo ao consumismo é constante, ficamos com dúvidas se o homem comunitário das nossas memórias transmontanas não será um paradigma perdido.
Mas, acreditamos que, é necessário agarrar a esperança, nem que seja a última esperança para que o homem transmontano ainda possa viver numa região de velhos comunitarismos, com dignidade e com moralidade.

Notícias da aldeia

Sinto-me na obrigação de dar voz à aldeia que morre paulatinamente “à beira- mágoa” como diz o Pessoa. Muitos de nós tivemos a ideia romântica de regressar à aldeia, reconstruir a casa, erguer o pombal, ladrilhar o forno, semear a horta e esperar pela primavera para ver florir o pomar na promessa de mil frutos. Os anos passam e envelhecemos, os vizinhos envelhecem e esperam dolorosamente que os filhos regressem pelo Natal, em Agosto, ou para os funerais que se anunciam. E assim, a nossa aldeia vai-se tornando num sítio lúgubre, depositário das memórias dum tempo de fome e servidão, mas onde em cada recanto do povoado havia gente, sentia-se a vida, animavam-se os campos, enchiam-se as escolas de crianças que aprendiam pela força da persistência e do flagelo das reguadas. Nas nossas aldeias hoje vive-se bem, se entendermos por viver bem o facto de não haver fome e ter algum dinheiro no Banco espreitando os imprevistos do futuro. Mas com rigor nas nossas aldeias não se vive bem, sobrevive-se neste desassossego de ouvir o sino tocar a finados e prever, sinistramente qual será o último vizinho a morrer ou a abandonar a aldeia no espaço breve de quinze, ou vinte anos. Lá se vai andando, gemendo e mancando. Depois será o silêncio e um vasto deserto para os antropólogos, sinistramente, estudarem o fim duma comunidade que não resistiu ao abandono do Poder central.
E as frases continuam a ser magnânimas e qualquer político que se prese elenca, entre uma visitinha apressada, um copo de vinho e uma posta de vitela assada na brasa, que é urgente salvar o interior desta morte anunciada, potencializar o turismo, apoiar a riqueza endógena destas regiões para que o país caminhe a uma só velocidade, sem a clivagem entre o interior e o litoral. Depois, regressam a Lisboa e tudo continua na mesma; pelo natal mata-se o porco, com sorte virão os filhos ajudar a apanhar a azeitona, chegará o verão, haverá festas e o senhor padre, na sua velhice, celebra missa enquanto puder e continua-se a observar este deserto na ausência das crianças que há muito deixaram de povoar a escola. 
Em boa verdade nem sei para que existem partidos políticos nas terras do interior. Talvez para criar inimizades e conflitos entre os vizinhos que se batem pelo seu partido enquanto alguns de Lisboa se riem no amanho da sua vidinha. A política faz-se em Lisboa onde quase tudo se decide como se as mulheres e os homens da “polis” transmontana não existissem, ou sofressem duma incapacidade provinciana de entender o mundo e as subtilezas do conhecimento científico.
E depois, a inteligência lisboeta fala do interior como se fosse o último reduto duma comunidade longínqua e mística que ainda vive na idade média entre o burro, a vaca, a galinha, os mitos e os preconceitos que vale a pena visitar num passeio turístico, antropológico e etnográfico. Embora, ultimamente, quase ninguém de monta da área do Poder se tenha visto por estas Terras, pois os votos são poucos e será sempre amanhã que se olha para o interior como sendo parte integrante do todo nacional.
De vez em quando a dinâmica político-partidária lá se anima com as eleições das comissões políticas concelhias, ou distritais. Mas é sol de pouca dura, pois em breve, as grandes decisões regressam a Lisboa. E mesmo os candidatos a deputados que são os mais diretos representantes das populações, muitas vezes, são escolhidos pelas estruturas políticas nacionais num total desrespeito pelas estruturas locais e num insulto descarado à inteligência e à capacidade de decisão das populações do interior incapazes de fazer valer a sua vontade, pois o peso do seu voto pouco conta.
Sem dúvida que não há democracia se não houver partidos políticos fortes, atuantes e representativos da diversidade ideológica dos cidadãos. Mas partidos que marginalizam as regiões mais isoladas, não vale a pena. E mesmo os autarcas, não saem dum desassossego, numa luta heroica pelos seus municípios, batendo com insistência à porta do Poder que se entrincheira em Lisboa e muitas vezes assobia para o lado.
Assim não. Já não há paciência. Contudo o sol, por enquanto, ainda continua a nascer radioso lá para os lados da Lombada e a pôr-se no recato da Senhora da Serra. Pelo menos o sol ainda é democrata e é para todos.
Vou-me lá acender o lume e esperar que este inverno gélido não leve muitos vizinhos, pois já somos tão poucos os que resistimos.
Talvez este ano nasça alguma criança.