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Notícias e comentários

E com frequência evocada uma verdade que, sendo verdadeira e verificada, não deixa de ser recorrente com as consequências conhecidas e confirmadas:

A forma como alguns temas são tratados na comunicação social potencia o seu efeito, agravando-o.

É, nomeadamente, o caso dos estivais incêndios florestais, cujo espetáculo ígneo repetidamente transmitido, em direto (e diferido), aumenta a apetência dos pirómanos para dar seguimento à sua impetuosa vontade de forçar a atuação dos bombeiros e correspondente cobertura dos media. Estou seguro que a divulgação de reportagens recentes com residentes a resistirem à intimação de abandono das suas casa em risco, nos dramáticos episódios da serra de Monchique, deste verão, veio fomentar comportamentos idênticos noutros que, de outra forma, poderiam obedecer, sem qualquer resistência às indicações das autoridades. Disso dei conta em crónica publicada há pouco tempo.

Mais recentemente, voltei a erguer o dedo em riste, a propósito da forma como o assunto dos Ensaios Clínicos é distorcido, na opinião pública e dificultado à sua adesão, com prejuízo para todos porque as notícias apenas dão relevo aos casos mal sucedidos e dramáticos. Muitos outros casos se poderiam aduzir, todos referidos e assinalados e nunca desmentidos. E, contudo, nada indicia qualquer mudança, qualquer alteração de relevo, qualquer alternativa consistente. Dei comigo interrogar-me porquê e, curiosamente, reconhecendo a justeza da crítica, não encontro, em boa verdade, sustentação, suficientemente robusta, para uma opção diferente.

Chamar a atenção para o que é evidente, é fácil. Mesmo que o alerta não seja demais, mesmo que a intenção seja (e é) servir o público e o bem-estar comum, os alertas sobre os “pretensos” exageros mediáticos, mesmo que funestos, não podem, de forma nenhuma sugerir que não é igualmente o serviço público que move os muitos e bons jornalistas nas reportagens que, com o maior profissionalismo, trazem ao conhecimento de todos.

Se um incêndio de grandes proporções deflagrou e consome, descontroladamente, dezenas de hecatres florestais... como não o noticiar, na hora e com relevo? Se um ensaio clínico correu mal, seja de que fase for (porque se há-de querer que um repórter seja especialista em tudo o que noticia?) obviamente que tem relevância muito superior às centenas que correm bem e em segurança nas restantes fases. Como pretender que não seja exercida, na plenitude, a missão a que tantos e tão bem se dedicam?

Apontar os possíveis efeitos perversos, repito, é fácil, para mim (mea culpa) e para todos os que como eu, nos jornais e noutros meios de comunicação, se dedicam ao comentário. Nós não temos carteira profissional, não nos regemos por nenhum código deontológico público e escrutinável. Emitimos a nossa opinão e regemo-nos pela nossa própria deontologia. Não relatamos, comentamos. Não expomos factos, exprimimos pensamentos. Não nos distanciamos, pelo contrário, encarnamos os nossos relatos na primeira pessoa.

Contudo, também repito que a forma como os media anunciam e relatam determinados factos, contribuem significativamente para uma imagem negativa, que não corresponde à verdadeira e fomentam comportamentos que agravam situações já de si, suficientemente dramáticas.

Claro que gostava que fosse de outra forma. O meu problema é encontrar o princípio que seja suficientemente válido, definido e caracterizado que dê suporte a uma guinada consistente, noutra direção.

Um jornalista, tal como eu, também tem a sua opinião pessoal, mas é-lhe recomendado (muitas vezes imposto) que se abstenha de a manifestar no exercício da sua profissão. Eu também tomo conhecimento de factos mas não me interessa nem me motivo a relatá-los de forma distante e disciplinada como fazem os melhores repórteres. Talvez haja, entre estes dois mundo, uma zona de contacto e talvez exista nesse espaço a melhor resposta para este problema. Quem sabe se a solução não pode ser encontrada após uma discussão aberta, uma conversa franca e uma reflexão conjunta, entre comentadores e jornalistas?

Um evento desses seria, sem dúvida, motivo para uma boa notícia e um excelente tema para uma crónica: a opinião dos repórteres de notícias e os factos que motivam os cronistas!

Os homens maus

"A menha pesora dise que os homens maus estragão o abiente e matam us animais os homains maus puluaim os rius e atiram muintos pelasticos para o mar e depois us peijes comaim-os e morrein as fabricas deitão fumu para atemusvera e as pesoas respirão u ar e ficaum duendes a milha abó jacinta dis que os fumos dus carus estragau o ar e cagora já não a inbernu e nu brão a muintus fogus i us homeins maus tamain cortaum as arbes das fulorestas”.

Sem tirar nem pôr, a deliciosa composição da iara marlene, uma garota de oito anos vivíssimos que (tirando o exotismo do nome próprio) não pode ser mais nordestina e a meio do primeiro ciclo está já a surfar a onda das preocupações ambientais. E que bem lhe fica! Se eu fosse seu professor ralar-me-ia pouco com a contenda desigual que ela vai travando com as imposições da língua escrita que, diga-se, até me enternece. Porque, bem vistas as coisas, isto de o mesmo som se mascarar com várias letras, de a mesma letra representar diferentes sons, de haver sons tão parecidos que mal se distinguem ou de uma mesma palavra mudar completamente de figura consoante saia da boca do pai ou da diretora da escola, entre imensas outras bizarrias, são coisas que não podem deixá-la bem impressionada e talvez a incompatibilizem irremediavelmente com o mundo dos adultos. Já no tocante à ideia que lhe foi incutida de que as agressões ao ambiente são obra de homens que têm tanto de perversos como de abstratos, aí sim, o assunto, por muito mais sério, exigiria da minha parte inadiável intervenção pedagógica.

Não seria talvez fácil converter tudo numa linguagem clara e acessível de maneira a que ela compreendesse o que nesta questão está verdadeiramente em jogo, mas a didática foi inventada para isso. Poderia começar por adiantar-lhe a ideia de que estamos todos, bons e maus, novos e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres, espertos e burros, sábios e ignorantes, amarelos, brancos, negros e vermelhos, estamos todos, dizia, enterrados até aos cabelos em algo a que se chamou revolução industrial. Que ela tem implicado fazermos gato-sapato da natureza que nos dá o ser e alimenta, ignorando que tudo o que lhe fazemos é a nós próprios que o fazemos. Que essa falta de respeito tem implicado extrair, explorar, transformar, construir, fabricar, transportar, anunciar, expor, distribuir, vender, trocar, comprar, traficar, usar, gastar, acumular, esbanjar, dissipar, exibir, rejeitar, estragar, delapidar, destruir, massacrar, arrasar. Que a insanidade é tanto maior quanto se sabe que, de modo geral, temos tendência a sentir-nos extremamente miseráveis caso não consigamos alinhar nela de corpo e alma, freneticamente, como se de uma fé redentora se tratasse. Que tal conjunto de atividades tem vindo a crescer em proporção aritmética desde que começou há trezentos anos, mais década menos década, sendo indispensável para o levar a cabo uma quantidade prodigiosa de uma coisa chamada energia, obtida a partir do equivalente a milhões e milhões de fogueiras que acendemos diária, continua e afanosamente, produzem os fumos a que ela se começa a mostrar sensível e refere de forma pertinente.

Seguir-se-ia a parte certamente mais chata da minha preleção, após a qual eu próprio me arriscaria a ser considerado um homem mau mesmo a sério: a de lhe fazer ver que neste gigantesco processo há poucos inocentes, a começar pelo telescópio hubble e a acabar nela própria.  É que tudo aquilo que está a usar no momento em que a mãe, apreensiva, me mostra o papel (— Já viste quanto erro dá, manel?), absolutamente tudo, desde a chicla que masca com visível prazer e desenvoltura de boca até ao elástico que lhe prende o rabo-de-cavalo, poderia ter incluído na sua redação para substituir, com muito mais rigor, os homens maus a quem pretende dar a sarabanda.  

Depois talvez concluísse exortando-a a passar esta ideia a todas as iaras, em quem reside a esperança de erradicar a lógica materialista, consumista e predatória dominante e colocar de alguma maneira um travão nas calamidades que aos quatro ventos se anunciam e ela bem explicita já. É que se alguma esperança existe reside inteirinha nela e nos da sua geração, pois com os cotas da minha já não vamos lá. De tão imersos que estamos na fumarada, e não obstante termos começado já a tossicar, não a conseguimos ver.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - João Lopes da Mesquita (n. Viseu, 1650)

Na noite de 10 para 11 de maio de 1671, o sacrário da igreja de Odivelas foi profanado, com hóstias espalhadas pelo chão. O país foi então varrido por uma onda de indignação,(1) seguida de outra não menor, de boatos e falsas notícias. E, competindo ao santo ofício zelar pela fé e castigar os crimes contra a religião, imagina-se como os familiares, comissários e outros esbirros da inquisição andariam numa roda-viva, farejando possíveis criminosos.

Por esses dias passavam por Moncorvo dois homens novos, irmãos, chamados Francisco da Mesquita e João Lopes da Mesquita. Não sabemos como as coisas se passaram mas tão só que os forasteiros foram metidos na cadeia, por suspeitas de envolvimento no caso de Odivelas.(2) Ali permaneceram por 6 meses e meio. 

Vendo-se injustamente preso, João Lopes pensou que o melhor seria falar com o comissário local do santo ofício, dizer-lhe que não tinha nada a ver com o caso do “Senhor Roubado”, explicando bem por quais caminhos andara naquele tempo. E para ganhar mais credibilidade, diria ao comissário que, até então, ele seguira a lei de Moisés. Acrescentaria que a sua prisão, embora injusta, foi uma bênção de Deus pois que, estando na prisão, foi alumiado pelo Espírito Santo, para abandonar a Lei errada em que andava e se tornar verdadeiro cristão.(3) E foi o Espírito Santo que o inspirou a chamar o comissário para confessar seus erros e pedir perdão.

Supomos que o plano foi combinado com o irmão que ali estava também preso, se bem que ele o negasse. Facto é que o comissário Caldeira foi à cadeia da Torre de Moncorvo ouvir a confissão dos dois irmãos, certamente em separado e em outra dependência da casa. Foi muito notada a visita do comissário, pois que, antes, se fez uma faxina completa da prisão.

As declarações de João Lopes foram passadas a escrito pelo próprio comissário que, no fim, lhe disse que ia mandá-las para a inquisição de Coimbra. E também lhe ordenou que, saindo dali, se fosse apresentar no mesmo tribunal.

Saídos da cadeia, os dois irmãos dirigiram-se para a cidade do Porto onde João Lopes teria já contratado casa de morada, pois estava de casamento marcado. No Porto estaria também morando nessa altura um terceiro irmão, chamado António Rodrigues da Mesquita,(4) médico formado pela universidade de Coimbra, casado com Ana Pereira, da vila de Muxagata.

Antes de prosseguirmos, vamos até Vila Flor, cerca de 1640, ao casamento de Manuel Lopes Álvares,(5) e Branca Rodrigues, cristãos-novos. O filho mais velho do casal chamou-se Matias da Silva Pereira,(6) o qual viria a casar com Filipa Gomes. Em Vila Flor nasceram também o Dr. António e o Francisco da Mesquita, atrás referidos.

Ao findar da década de 40, acaso receando ser presos pela inquisição, Manuel e Branca pegaram nos filhos e foram para Viseu.

Em Viseu, por 1650, nasceria um quarto filho do casal, o biografado João Lopes da Mesquita que, por 1672, casaria com Filipa Rodrigues,(7) de Vila Flor. Começaram por se estabelecer no Porto, cedo rumando a Viseu, trabalhando João Lopes com o pai e o irmão Francisco, que eram rendeiros e mercadores de grosso trato. João Lopes dizia-se mesmo “um homem muito rico”.

Ano e meio depois do casamento, Filipa Rodrigues faleceu e João dirigiu-se a Madrid, onde morava sua sogra, então casada, em segundas núpcias, com Diogo Lopes, levando-lhe alguns vestidos de sua falecida esposa. Por Castela terá andado algum tempo e, regressado a Portugal, foi casar em Freixo de Numão, com Beatriz de Matos, filha de João Matos.

Os anos de 1690 foram terríveis para os marranos de Trás-os-Montes, vivessem eles na terra natal ou em outras localidades, pois o sistema de informações e registo de denúncias na inquisição foi pioneiro, em relação às modernas polícias.

Nessa vaga de prisões foi também apanhado João Lopes da Mesquita, em agosto de 1693. As culpas remontavam a 1671, quando seu irmão António se apresentou e disse que fizera cerimónias judaicas com ele. Confissão semelhante fizera seu parente Jorge Nunes Ximenes. Havia uma terceira acusação, feita por seu irmão Francisco da Mesquita,(8) preso em novembro de 1692 e que, em 4.5.1693, denunciou o seguinte:

— Disse que havia 28 anos em Viseu, se achou com seu irmão João Lopes da Mesquita e se declararam…

Estranho, pois que os factos remontavam ao tempo anterior a 1671 em que ele se comprometeu perante o comissário Caldeira a abandonar a lei de Moisés. A partir daí, ele provava, com testemunhas da maior nobreza e seriedade de Viseu, que sempre fora cristão exemplar. Por isso, não descortinava razão para estar preso.

Havia, porém, um pequeno obstáculo. O comissário Caldeira ordenara-lhe que fosse apresentar-se à inquisição de Coimbra, quando saísse da cadeia de Moncorvo, coisa que ele não fez.

Confrontado com a falta, explicou que o comissário Caldeira lhe disse “que mandara a dita apresentação a este tribunal, aonde ele confitente viria buscar a absolvição, sendo chamado”. Como nunca foi chamado…

Tempos passados, João Lopes pediu audiência e perante os inquisidores disse que “dava mil louvores ao divino Senhor, que lhe abriu a sua memória para alimpar a sua alma”.

Contou então que, saindo de Moncorvo para o Porto, ali ficou doente e o seu irmão Francisco não esperou por ele e foi apresentar-se em Coimbra. Depois de curado, foi a Viseu ter com o dito irmão e este lhe dissera que já não era necessário ele ir apresentar-se.

Claro que os inquisidores não acreditaram nele e o mantiveram preso, que “o tempo amadura a fruta”. Efetivamente, não demorou que João voltasse a pedir audiência, a qual começou com esta declaração:

— Quando o prenderam, achara que não podia ser preso senão por via de seus inimigos, e essa logo foi a causa de seu pecado não caminhar direito, que a causa por onde foi feita a sua prisão acha que não foi mais do que o divino Espírito Santo bater nos corações dos senhores inquisidores o mandassem prender e foi para bem da sua alma.

Fantástico: a sua prisão foi um verdadeiro milagre, uma benesse que os inquisidores, guiados pelo Espírito Santo, lhe ofereceram!

A partir de então, começou a confessar que sempre fora judeu, “que segunda-feira fez 8 dias, estando no cárcere, fez um jejum judaico e a razão de o fazer foi por se ver muito atribulado e carregado com as culpas, em tal forma que em uma noite das antecedentes chegou a botar um lenço ao pescoço para se afogar, do que quis Deus nosso senhor livrá-lo”.

Contou que chegara a jejuar 40 dias seguidos, à imitação de Moisés, tomando apenas pão e água, à noite. Descreveu quantidade de celebrações judaicas e denunciou familiares, amigos e outros correligionários. Explicou ritualidades e cerimónias da lei Mosaica e ditou para o processo muitas orações, mostrando um grande conhecimento das escrituras sagradas. E aquelas orações e este conhecimento, tornarão indispensável a leitura do seu processo, num estudo aprofundado da vivência dos marranos de Trás-os-Montes.

 

Notas:

1 - O rei e a corte vestiram-se de luto durante 3 dias e decretaram missas, procissões e preces públicas de desagravo, em todo o país.

2 - Casos semelhantes terão acontecido em outras localidades, nomeadamente na cidade da Guarda onde, em consequência, foi processado e afastado do cargo o comissário Clemente da Fonseca Pinto. ANDRADE e GUIMARÃES – Na Rota dos Judeus Celorico da Beira, p. 50, ed. câmara municipal de Celorico da Beira, 2015.

3 - Inq. Coimbra, pº 6655, de João Lopes da Mesquita: — Considerando seus erros e que estava preso pelo caso de Odivelas, injustamente, e considerando que Nosso Senhor Jesus Cristo o queria castigar, arrependido das ditas culpas, mandou chamar o dito comissário e diante dele fez sua apresentação, deixando os ditos erros e de os haver cometido está muito arrependido.

4 - Idem, pº 734, de António Rodrigues da Mesquita, apresentou-se na inquisição de Coimbra em Julho de 1671, quando os irmãos estavam presos em Moncorvo. Foi mandado regressar a casa e, logo depois, internar-se-ia por Castela, onde andou cerca de 20 anos. Regressado a Viseu, foi chamado ao tribunal onde abjurou, em 31.8.1693. Preso em 2.3.1694, saiu condenado em cárcere e hábito perpétuo e 4 anos de degredo para Angola. Faleceu em 12.10.1704, no cárcere da inquisição de Coimbra, onde estava novamente preso. A sentença foi lida no auto da fé de 25.7.1706, mandando-se desenterrar os seus ossos e queimá-los, juntamente com o seu retrato.

5 - Manuel Lopes era filho de Matias Lopes e Isabel Manuel, aquele de Sambade e esta de Fozcôa. Casaram em Madrid e viveram em Sambade na década de 1620. Voltaram a Castela onde, por 1651, foram presos pela inquisição de Toledo. Reconciliados, foram-se para Labastide Clairence, onde Matias faleceu. Por 1660, a viúva, residia em Bidache. – SCHEIBER, Marcus – Marranen in Madrid 1600 – 1670, pp. 115-116, Verlag Stuttgart.

6 - Matias Pereira casou com Filipa Gomes, também originária de Vila Flor. Residiram em Viseu onde foi tendeiro. Em 1671 residiam em Málaga, Castela.

7 - Inq. Coimbra, pº 5326, de Filipa Rodrigues, filha de Jorge Fernandes e Ana Mendes.

8 - Idem, pº 7322.

O meu nome é Vidal. Marques Vidal

A Dr.ª Joana Marques Vidal é a actual Procuradora Geral da República cujo mandato termina agora em breve. A sua recondução ou a sua substituição têm sido polemizadas na sequência de declarações, algo precipitadas, da Ministra Van Dunem nas quais defendia a sua substituição uma vez o mandato ser único. Era, também, a opinião da Dr.ª Marques Vidal manifestada por mais que uma vez, sendo uma Conferência em Cuba um exemplo. O que é um facto é que no estatuto do Procurador Geral nada diz que o mandato não possa ser renovado e até nem diz quantas vezes. Historiando um pouco para se perceber melhor: em 1997 o Dr. Cunha Rodrigues já era Procurador Geral da República há 13 anos. Na altura o mandato de Procurador Geral não tinha limite temporal. Estava lá enquanto quisesse ou então tinha de ser demitido. E os Políticos agastados com aquela presença tutelar, sempre permanente, quase olímpica e até porque temiam dele ambições políticas, não tinham, no entanto, coragem para o afastar pois o homem, além de ter sido um Procurador absolutamente irrepreensível, tinha imenso prestígio quer no meio judicial quer no académico quer na Sociedade em geral. Então o PS e o PSD (pelo menos estes dois e com Marcelo Rebelo de Sousa Presidente do PSD) negociaram o novo estatuto do Procurador Geral onde o mandato seria longo, 6 anos, e seria único que era uma forma airosa de o afastar. Por uma questão de cortesia o Dr. Cunha Rodrigues faria o 1º desses mandatos e no fim dele cessaria essas funções uma vez o mandato ser único (nem tinha lógica haver renovação do mandato pois assim correr-se-ia o risco de o Dr Cunha Rodrigues se perpetuar na Procuradoria tal como estava a acontecer com o anterior estatuto. Se era para ficar igual não teria, assim, sentido a alteração). No entanto, apesar de ser este o espirito do legislador, o que é verdade é que o redactor, por inépcia ou esquecimento (não quero acreditar na intencionalidade), não verteu isso para português de Lei e assim a Dr.ª Joana Marques Vidal pode cumprir tantos mandatos quantos os necessários até à jubilação, assim o queira o poder político. Rigorosamente o que o novo estatuto queria combater. Mas foi neste “lapso legislativo” que as oposições viram uma hipótese soberana de embaraçar o Governo, já que este pela voz da Ministra falara na substituição de Marques Vidal, obrigatória por pensar ser mandato único. Então começaram a fazer pressão no sentido da sua recondução alegando a excelência das suas prestações, a forma firme e corajosa como fez frente a ricos e poderosos, a dignidade e credibilidade que transmitiu à Procuradoria e isto somado ao péssimo sinal que seria dado aos procuradores e à sociedade em geral se acaso ela fosse substituída. São argumentos um pouco ad hoc que suponho não serem sentidos a não ser em política pura. Assim, no que diz respeito à postura da Procuradoria face aos poderosos, se olharmos para trás vemos que Leonor Beleza, Miranda Calha, Filipe Meneses, Carlos Melancia, Torres Couto, Duarte Lima, Vale e Azevedo, Arlindo de Carvalho, Abílio Curto, Carlos Cruz, Nuno Cardoso, Pinto da Costa foram confrontados com a Justiça sem ser precisa a ajuda, que alguns acham indispensável, de Marques Vidal. Claro que esta e os seus apoiantes exibem Sócrates como uma espécie de Ás de trunfo. Mas em vez de contabilizar as “marcas nas coronhas” mais valia atentar nas palavras de Cunha Rodrigues reagindo a um elogio. Assim:” o Procurador Geral não tem processos, estes são dos Sr.(s) Procuradores”. Ou no dizer de Pinto Monteiro “o Procurador Geral é a Rainha de Inglaterra”. E é verdade pois senão também podíamos imputar a Marques Vidal a investigação ao Ministro Mário Centeno por causa de um bilhete de futebol numa demonstração de “nonsense” e jactância que só uma deriva persecutória podem explicar. Mas se o “caso Sócrates” é no fundo a imagem de marca do mandato de Marques Vidal também há nesse caso muitos apontamentos que não são de aplaudir. Ao lembrarmo-nos da autêntica telenovela que foram as violações sistemáticas do segredo de justiça, às quais a Procuradora Geral não foi capaz de por cobro, vemos prestações que descredibilizam. Também a publicitação dos vídeos do interrogatório a Sócrates que segundo Marques Vidal a deixaram agastada mas num agastamento inconsequente, que não se materializou em nada. Ainda o protelamento sucessivo da data para dedução de acusação a Sócrates foi coisa que descredibilizou bastante o Ministério Publico. Já ninguém acreditava nas datas. Marques Vidal sentiu isso e ainda sugeriu a Amadeu Guerra, superior hierárquico de Rosário Teixeira, que avocasse a si o processo Sócrates. Amadeu Guerra rejeitou essa hipótese por lealdade ou talvez aconselhado pelo anexim: “o menino!?Quem o acordou que o adormeça.” Mas onde se fez sentir mais a mão de Marques Vidal, ou antes, onde se fez sentir mais a ausência da mão foi no caso Manuel Vicente. O caso conta-se em duas penadas: Manuel Vicente, Vice-Presidente de Angola, fez uma compra com dinheiros que a uma dupla de Procuradores pareceram pouco claros. Quiseram, então, ouvir Manuel Vicente mas este gozava de imunidades e não acedeu. A defesa de Manuel Vicente pedia para o processo transitar para Angola. Depois de muita insistência, que já começava a perturbar as diplomacias, num assomo neo-colonialista, perfeitamente deslocado e desbocado, os Procuradores em questão disseram não acreditar na Justiça Angolana. Foi o fim. Houve ameaças de corte de relações diplomáticas com fortes implicações nas relações comerciais. Por fim e contra a vontade dos Procuradores, o Tribunal da Relação aceitou que Manuel Vicente fosse ouvido pela Justiça Angolana. Conclusão: Querer saber da proveniência dos dinheiros de Manuel Vicente quando aceitamos de bom grado os dos Chineses dos “Vistos Gold” parece-me pesca à linha, isto é, parece ter caracter discricionário e/ou persecutório; dizer não acreditar na justiça de um País soberano além da deselegância é uma provocação a que o visado retaliará naturalmente. É mesmo aquilo que não se pode dizer alto; querer aplicar a Justiça a um indivíduo, que além de gozar de imunidades é cidadão de um País que não tem com Portugal acordo de extradição, é uma atitude Quixotesca de uns Procuradores em bicos de pés pois não havia quaisquer condições para a sua aplicação. Manuel Vicente, para a justiça Portuguesa, é como um homem morto, não se pode perseguir. Podiam ter-nos poupado a este chorrilho de disparates que tão graves danos teve para o Estado Português.

A isto tudo assistiu Marques Vidal como a lágrima de Guerra Junqueiro”… ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.”

Um Procurador Geral que tenha da Lei e das atribuições do Ministério Público uma visão maximalista a ponto de não se preocupar com o facto da sua obstinação poder acarretar a ruptura das relações diplomáticas entre Países é tudo quanto não nos faz falta nenhuma.

 

P.S. Se dúvidas houvesse quanto à excelência da ideia do mandato único, o processo que agora se desenrola desfê-las por completo. Porque no caso de poder haver recondução há sempre um nome, o do Procurador que finda mandato, que está em jogo e em relação ao qual os Partidos e consequentemente a Sociedade em geral se posicionam a favor ou contra. Ora, a pretensão dos Partidos em terem voz activa na escolha do Procurador Geral é prerrogativa que não lhes assiste e, aliás, só se pronunciaram por conhecerem um hipotético candidato ao lugar. Se o mandato fosse único nem se pronunciavam porque nem os nomes em questão conheceriam. Por outro lado a fulanização da discussão e a tentativa de apropriação de um órgão de Estado pelos Partidos não têm qualquer sentido de Estado e além disso ensombra a dignidade e a solenidade da entronização do novo Procurador.