Estamos todos fartos disto

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Seg, 13/07/2020 - 23:22


O percurso histórico da humanidade conheceu episódios dramáticos, tremendos, quando o instinto de sobrevivência cegou a racionalidade, não deixando espaço à ponderação nem à compreensão misericordiosa do outro, reduzido a uma ameaça potencial que era preciso aniquilar para sobreviver.
A guerra é o principal cenário dessa violência extrema, que tem encontrado argumentos de justificação nos campos da honra, da dignidade e da defesa do solo pátrio. Mas o sangue também corre além dos conflitos políticos, económicos ou ideológicos que nos fomos habituando a considerar normais, inerentes à nossa condição animal, temperada por essa centelha a que chamamos consciência, sem grandes resultados práticos, apesar de notáveis conquistas filosóficas, morais e políticas que algumas elites lograram atingir, sempre sob a ameaça de retorno iminente à barbárie. 
É verdade que temos conseguido garantir, durante períodos relativamente longos, alguma tranquilidade que parece afastar-nos da dureza da selva, onde arreganhar os dentes continua a ser o instrumento básico de relação. No entanto, multiplicam-se situações em que a crueza natural explode em violência desmedida, semeando a morte, numa espiral que nos pode lançar na brutalidade do inferno.
As ameaças à nossa sobrevivência, pressentidas ou aparentemente conhecidas, desligam-nos dos modelos de relação que temos por aceitáveis. Facilmente nos deixamos enredar na angústia e no medo quando não conseguimos explicar o que acontece à nossa volta. Assim se geraram massacres um pouco por todo o mundo, quando situações epidémicas semelhantes à que agora se vive alastraram, instalando o cansaço e o desespero.
Já estamos fartos de meses a viver uma vida que parece deixar de ter sentido. Seria bom que alguns percebessem que estamos todos fartos. Poucos haverá que celebrem o recolhimento forçado, a ausência dos contactos e dos afectos que nos caracterizam. Mas não vale a pena dar livre curso ao individualismo porque, se dos nossos comportamentos resultar, para os demais, a sensação de ameaça podemos correr riscos muito sérios.
Na região está a crescer um rumor, a precisar de ser estancado, que relaciona novos surtos da epidemia com os estudantes africanos, as festas que vão fazendo e o não cumprimento das regras de confinamento. Sabe-se que não é bom fazer generalizações e que as condições dos seus quotidianos não são comparáveis às dos jovens que aqui nasceram e por cá se mantêm nas suas casas de família, mas seria aconselhável que o IPB, os responsáveis municipais, as autoridades policiais e de saúde e os líderes associativos da comunidade dedicassem esforços para garantir que as contaminações são travadas, para que se possa sair desta tragédia com memória da dureza das dificuldades partilhadas, da entreajuda e do respeito por todos e cada um de nós.
Não devemos iludir a realidade de que a festa num bar em Bragança não foi única. A GNR também travou outra festarola neste mesmo fim de semana, fora da cidade, onde estariam dezenas de pessoas e o surto em Miranda nada tem a ver com estudantes africanos. Estamos todos fartos mas precisamos de agir com consciência.

Teófilo Vaz