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Mirandela – Bragança: Uma rivalidade bem mais saudável

Ter, 17/01/2006 - 16:35


Por estranho que pareça, pela ligação intrínseca que mantenho com o futebol, por o praticar, no último quartel do século XX, saudavelmente a um nível que não foi além da vulgaridade e da discrição, e mantendo, por outro lado, uma presença quase constante nas bancadas do clube do qual sou orgulhosamente sócio, o Grupo Desportivo de Bragança, assisti uma única vez a um derby entre Mirandela – Bragança, o que aconteceu na solarenga tarde do dia 18 de Dezembro de 2005. Qual a razão?

Futebolisticamente, as relações entre os dois mais prestigiados clubes do distrito sempre foram, ao longo da sua existência, marcadas por uma descomedida e doentia rivalidade, ao ponto dessa mesma cegueira descambar, quando se defrontavam, em desmesuradas hostilidades, como se de dois grupos tribais em guerra se tratasse. Facto que impedia muitos bragançanos, não sendo eu excepção, de dar apoio ao seu clube, quando este se deslocava à capital do Tua, simplesmente pela legítima pretensão de salvaguardar a própria integridade física. Provavelmente estes serão também os argumentos evocados pela outra parte.
A violência no/e em consequência do desporto é uma das realidades que mais envergonha o ser humano, porque a existência deste drama, independentemente da área desportiva em que o indivíduo se evidencia, é, tendo em conta a herança milenar que nos foi legada, um autêntico paradoxo: já os gregos o utilizavam para aproximar os povos beligerantes, para estabelecer e criar laços de amizade entre eles.
Pasmo, portanto, de estarrecida vergonha, porque adepto da sã convivência – se calhar demasiado distraído para não perceber que o futebol, hoje, pouco espaço reserva à consagração de tais valores -, quando vejo os canais televisivos do meu país, sem exagero, caracterizarem, numa espécie de ante – visão, os “clássicos” que opõem os “grandes” do futebol português ( Porto, Sporting e Benfica), como “desafios de Alto risco”.
Admitir-se-ia que um jogo de futebol realizado na Faixa de Gaza, entre israelitas e palestinianos, entre americanos ou iraquianos, ou entre paquistaneses e indianos, fosse rotulado dessa maneira, devido às divergências étnicas, religiosas e políticas que separam estes povos. Conceber, pois, a violência neste recanto da Europa, como um facto iminente, motivada pelo futebol, é aceitarmos, por um lado, a desvairada cultura gladiatória, o que nos leva a uma impensável viagem de regresso ao mais sórdido e animalesco período da Roma Antiga; e, por outro, permitirmos que espaços destinados à cordialidade sejam transformados em verdadeiros santuários onde certos fanáticos exorcizam conflitos interiores, sentimentos mal resolvidos, recalcamentos a nível familiar e profissional, etc.
Retomando a essência do tema que motivou esta crónica, direi que a rivalidade entre Bragança – Mirandela não se fica pelo futebol. A “competição” é encarada igualmente nos aspectos social e institucional. A rivalidade social, expressa pelo vulgo, através de caprichosas trivialidades, não tem, em rigor, uma motivação concreta. É gratuita. O fenómeno obedece a esquemas fundados no mais puro tradicionalismo. É hereditário. Contou-me um amigo de Mirandela, a propósito deste tema, que um seu conterrâneo, figura carismática lá do sítio, há um bom par de anos, se deslocou a Bragança, no Cabanelas, a fim de resolver uns assuntos de carácter pessoal. Como demorou mais do que o tempo previsto, e não levando farnel, e ainda que perante o chamamento das necessidades estomacais, evitou ir ao restaurante, não por sovinice, mas porque se recusava dar dinheiro a ganhar aos “narros” de Bragança. Resultado: jejuou o dia todo, qual mártir redentor. A segunda, a rivalidade institucional, é fruto de vincados sentimentos bairristas. A posição pouco solidária e bastante egoísta do Dr. José Silvano, autarca mirandelense, em relação à pretensa extinção das maternidades do nordeste transmontano, anunciada pelo actual Ministro da Saúde, é o mais puro exemplo de que este género de rivalidade se mantém cada vez mais revigorado. Contudo, a defesa do referido edil na sua dama, por muito criticável que possa parecer, obedece ao mais elementar instinto de sobrevivência: o meu vizinho é muito boa pessoa; mas se um de nós tiver de morrer, que seja ele.
Voltemos, para concluir, ao futebol.
Na minha deslocação a Mirandela, no último jogo de 2005, pude constatar que essa imagem depreciativa que caracterizava o mais apetecível dos derbys transmontanos é coisa do passado. Não assisti, nesse dia, a um jogo de futebol. Tive a imensa satisfação de presenciar, a todos os níveis, um verdadeiro hino ao desporto rei. O ambiente festivo que dentro e fora das quatro linhas se viveu – o estádio estava completamente cheio, pelo que muito contribuiu a presença de algumas centenas de bragançanos – deveu-se sobretudo ao civismo e à forma elevada como os adeptos de ambas as partes se comportaram; inalterados mesmo com a existência de alguns lances que suscitaram alguma polémica e controvérsia. Também os artistas da bola - que fizeram o favor de nos presentear com um futebol que só por ingratidão a vista não o consideraria agradável -, mesmo sabendo que jogavam sob uma certa pressão, própria destas circunstâncias, souberam interpretar literalmente a palavra desportivismo. A claque mirandelense – regra geral, associamos este elemento incitador de ânimo à desordem e à violência –, ruidosa, conveniente e muito interventiva, limitou-se apenas, com extrema correcção, a incentivar os atletas da casa. Pelo que todos estes ingredientes fizeram com que tenha dado por bem empregue o tempo e o dinheiro dispendido.
Uma última observação – um pouco desagradável, ainda que não suficiente para pôr em causa o ambiente festivo – acerca deste jogo: o jogador albi – negro (adjectivo referente à cor do equipamento), que dá pelo nome de Sani, protagonizou um episódio muito infeliz. Este senhor, penso que profissional da bola, aquando dos festejos do segundo golo do Mirandela, esquecendo-se que as pessoas para quem ele dirigiu os impropérios e os gestos obscenos, além de merecerem respeito, deixaram uma quantia significativa de dinheiro nas bilheteiras. Claro que o Virgílio e o Correia, respectivamente presidente e treinador do clube, como pessoas moralmente bem formadas, por quem tenho uma certa admiração, hão-de ter o bom senso de passar o devido correctivo ao atleta insolente.
Quanto a nós: que mais é preciso fazer para que o Estádio do Bragança, ao Domingo, tenha o número de adeptos condizente com o estatuto de clube capital de distrito? Pouco mais de cem pessoas por jogo, contando com as forças policiais, bombeiros e apanha - bolas, é lamentável. A qualidade de jogo que esta época a equipa brigantina apresenta, materializado na posição da tabela classificativa, como resultado de sucessivas vitórias, a corajosa aposta no “sangue novo” e o trabalho notável e sério dos dirigentes que fazem parte do elenco directivo, são argumentos mais do que suficientes para se justificar um cenário a preceito, em termos de afluência de público.