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Alberto Fernandes: in memoriam

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Amicus est alter ego, dizia Pitágoras, na linha de Marcial, Cícero, Séneca, Horácio, Santo Agostinho, Montaigne, D. Francisco de Portugal e tantos mais. Ressinto, pungente, este «outro eu» da amizade, na manhã de quinta-feira, 27 de Outubro, em que vai a enterrar Alberto Fernandes: é uma injustiça; e, se eu desejava estar com Henriqueta, Maria João e Maria Henrique, o mínimo que posso fazer é lembrá-lo, num entendimento de 45 anos.
Entrávamos na juventude, com um pé na insatisfação. Arguto, modulando ironias num sorriso, Alberto respondia aos nossos fervores com uma reserva de quem pisava o chão (vindo de família numerosa), e, mais do que a página que nunca deixou de o acompanhar, sentia a desigualdade social como tarefa urgente a vencer.
Assim, já na Faculdade de Direito de Lisboa, onde se formou, o pós-25 de Abril fê-lo radical de Esquerda – contra certa Esquerda, e a Direita que, em contra-manifestação, o levou ao hospital e à prisão. Sucederam derivas entre Portugal e França, empregos menores que a coragem suportou: quando vivíamos no Bairro Alto, o autocarro madrugador apavorava-o. Descansávamos num filme e nas intermináveis conversas sobre literatura, Lisboa fora.
  Foi quando, vencendo essa visceral reserva, consegui estreá-lo em volume. Acácio Trigo e eu já tínhamos publicado; não ele, nem Victor Rodrigues, que ambos seleccionei sob o título “Março” e “As primeiras mãos”, resultando Março ou as primeiras mãos, assinado pelo quatro. Celebrámos estes versos com jantar na Rua de São Marçal, em 28 de Março de 1981. Em breve, teríamos outro fogacho: Bico d’Obra, uma editora de vida curta. Era maneira de trazer à boa mesa – até à dor de Alberto não poder beber o tinto Cistus, produção de família – amigos como João Manuel Neto Jacob, Hélia Correia, Rui Ferreira e Sousa e Victor Rodrigues, com este vivendo também sob o mesmo tecto, pouco depois. 
Ora, o leitor de clássicos (ainda neste Verão, lia os clássicos antigos), cada vez mais avesso aos génios do dia, era um narrador nato. Sendo o nosso melhor contador de histórias (era um prazer escutá-lo), por mais que eu insistisse, não se dignava dá-las ao prelo. Alguma publiquei em jornal ou revista, todavia, nos anos 80 e 90; e, animado por José Carrapatoso – com quem esteve largos anos nos destinos da Escola Secundária Miguel Torga –, de ambos recebi material notável, e a resposta que Alberto reiterava: «Não vale a pena…» Tenho aqui Farruco e outros contos, do melhor que a prosa de cor transmontana nos oferece: «Dá-se o caso que ao Antero de tal forma lhe tolheu a razão, já pouca, a primeira vez que conheceu mulher, que o caso foi falado por muita distância de povos com brado de milagre ou coisa inexplicável pelo humano entendimento. Assim foi, de facto, lembro-me como se fosse hoje, e ainda não formei juízo, depois de tanto tempo decorrido, sobre tal assunto de pasmar. Mas eu conto, ciente que não haverá nenhum de vós que, sucinto ou por largo, não tenha dele tido notícia.»
Recordo a tarde de 25 de Dezembro de 2001, após o funeral de um irmão do Marcolino Cepeda, também dilecto Amigo: dei uma volta com o Alberto, que trazia Maria João e Maria Henrique – aquela, séria e inteligente no seu sorriso bom; esta, já convivial, malandra («Pai, não inventes!»), ambas significando um futuro que é a grande obra de Alberto e Henriqueta.
Henriqueta pedia outra demora. Resumo-a numa palavra: grandeza. Alberto deveu-lhe a vida, no meio de tanto sofrimento dele, e sacrifício dela. Só assim o pudemos ter connosco – embora um pouco menos do que seria justo.
Às onze da manhã desta quinta-feira, deixo uma lágrima pelo meu Amigo.

Ernesto Rodrigues