Carinhos de ferro

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Boas tardes, boa gente. Que o Outono vos traga saúde, paz e muita castanha. Aqui há tempos foi notícia uma lasciva aventura a três que uns jovens tiveram na carruagem de um comboio da linha da Azambuja ou linha do Norte (de Lisboa). Nao é propriamente uma notícia, é uma decorrência de todo e qualquer um andar com um câmara de filmar no bolso. É o grande irmão das democracias, em que andamos todos sempre de olho no outro, de olho em tudo. São coisas que sempre aconteceram entre as juventudes. Que lance a primeira pedra a geração que nunca fez destas coisas. Hormonas incontroláveis, doses de risco e insensatez sempre andaram lado a lado e sempre assim hão-de andar entre corpos e mentes jovens. A questão é que hoje em dia há sempre uma câmara a fazer filmes que não interessam nem favorecem ninguém. Não favorecem os actores, muito menos os filmadores e nem sequer quem os vê. São coisas que podem acrescentar alguma coisa à felicidade de quem as pratica de bom grado, mas que não acrescentam absolutamente nada na perspectiva da partilha nem a nível de filmografia. Por outro lado, ninguém refere aqui o machismo ainda predominante, mas é sempre a mulher que fica mal nestas coisas quando todos os actores estão em pé de voyeurística igualdade. Os homens talvez até saiam como galifões. A rever esta forma de olhar para as coisas no âmbito da luta pelas igualdades. E ponto final parágrafo em termos de notícias que não o deveriam ser. Escolhi este apontamento porque nesta linha de comboio passei muitas horas da minha vida durante muitos anos, ora nos comboios, ora nas estações à espera deles. Primeiro para a escola secundária, depois para a universidade. Não sei como estão as rotinas agora mas não devem ser muito diferentes. Lembro- -me das mulheres que faziam crochê, dos revisores com quem alguns às vezes tentavam evitar cruzar-se, dos que adormeciam até ressonar, das horas de ponta em que não se cabia, das horas mortas ou do último comboio, quase sempre às moscas. Muitas vezes o último comboio era uma espécie de carruagem prestes a transformar-se num monte de abóboras tal como na história da Cinderela, na medida em que era o horário do último comboio que marcava o final da noite e o regresso a casa. À data não se tinha carro nem dinheiro para táxis. No comboio fazia os trabalhos de casa, entabulava conversas com novas pessoas, viajava sentado ao lado dos vizinhos a caminho das mesmas rotinas, uma vez lembro-me que comecei um namoro, outra vez viajava encostado à porta do maquinista com o combioo à pinha e ele de repente abriu-a de dentro sem ninguém contar, de modo que eu rebolei lá para dentro da cabine, para junto dos comandos da locomotiva. Depois havia sempre os quinze minutos a passo largo para se chegar à estação a horas, às vezes era preciso fazer uns bons sprints para não se perder o comboio. E quando se perdia que remédio se não esperar sentado pelo próximo. Toda uma vida de histórias passadas entre suburbanas idas e vindas. É interessante o facto de esta ser uma realidade por vezes difícil de explicar em países territorialmente muito maiores que o nosso. Por exemplo, aqui na China, em que os comboios não desempenham esse papel de parar a cada 5 minutos para largar e recolher pessoas, num pára-arranca de locais e locaizinhos em que uma pessoa vai indo aos soluços. Aí às vezes o comboio sai da estação, nem chega a dar uma acelaredela e já está a travar para poder parar na próxima. Aqui quando arranca só pára, no mínimo, aos cinquenta quilómetros de cada vez. Essa função suburbana que o comboio tem na Europa, equivale aqui ao papel do metropolitano, por norma com linhas muito mais extensas. Também tem a ver com as cidades em si, não só em dimensão, mas no modo como as pessoas vivem e a cidade se organiza – ou se desorganiza na perspectiva europeia do que é uma cidade e do que são os seus subúrbios. O conceito de subúrbios é bastante diferente nas grandes cidades asiáticas ou sul-americanas em que tudo é uma mesma massa, uma mesma cidade, um mesmo extenso espaço com diferentes zonas. Não há subúrbios marcadamente definidos, em que se percebe pela arquitectura ou pelo ambiente que se está num sítio com uma face e um ritmo diferente, sem grande vida, que basicamente serve para dormir (dormitórios). Lembro-me de ter esta conversa aqui uma vez com pessoal de Barcelona e da Cidade do México e falávamos precisamente sobre isto, sobre esta mudança bastante evidente entre o espaço da cidade e dos subúrbios na Europa que não ocorre noutros quadrantes em cidades muito maiores e mais populosas. Enfim, mudarão as cidades, mudará o transporte, haverá histórias semelhantes, mas quanto ao papel suburbano do comboio não é a mesma coisa, pois é um meio de transporte com características e com uma história única e incomparável. Para acabar, um último apontamento. Uma vez voltava da universidade e vinha a ler ou a estudar algo. Ao passar pela estação de Braço de Prata, junto a Santa Apolónia, pergunta-me um senhor de uma certa idade que estava sentado mesmo à minha frente: “tu que és estudante, deves saber o seguinte: quem é mais rico, Lisboa ou o Porto?” Uma pessoa sabe sempre que estas perguntas atiradas assim trazem água no bico, mas eu lá disse “será Lisboa”, ao que o senhor respondeu: “Errado. É o Porto porque enquanto Lisboa tem um Braço de Prata, o Porto tem um Rio Douro”. Muito bem, disse eu, tenho de continuar a estudar mais para chegar a esse nível de sabedoria. Comboios rápidos, às vezes voadores cruzando países, outras vezes comboios inamovíveis que parecem teimar em não nunca mais chegar onde devem. Os comboios chegam e partem, num cá para lá predestinado de “vai e vens”. Só o tempo avança impassível sem parar em estações nem apeadeiros. Caro amigo, um abraço bem forte para ti porque a vida é hoje

Manuel João Pires