Do calçar

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Repetiu-se o desconcerto do ano passado. Honrei um convite de envernizamento social. Há quem fure, penetre, mova mundos e fundos de modo a farandolar uma horas, raramente gasto tempo em tais passadiços de corte e costura linguístico de exibição de roupinhas cintilantes, sapatos tacão de agulha e quejandos. Às vezes tem de ser. Enrolo o corpo em roupa a condizer, calço sapatos confortáveis. Prefiro os resistentes Sebago.
No ano ido arregalei os olhos a fim de melhor apreciar os chinelos nos pés de estimado amigo, o efeito colhido levou-me a soltar chiste sonoro: “esses chinelos lembram os dos carteiristas, silenciosos e aptos a fugas rapidíssimas!”. Dos sorrisos passámos às gargalhadas quando um ministro do governo passista chegou até nós trazendo nos pés chinelos idênticos, só diferiam na cor do pano.
Desta feita dois dos convivas arrastavam chanatos, não eram outra coisa, lembrei-me de imediato dos lastrados nos pés de reformada profissional da mais antiga profissão do Mundo residente na Boavista (Bragança), a qual dava um toque de classe aos seus porque um deles tinha redondo buraco a permitir ao dedão mostrar-se revelando unha de luto pesado.
A diferença centra-se nos materiais empregues, no lustroso feérico pelo efeito do Sol e das luzes, mas não passam de chanatos, de luxo, chanatos apenas. Um dos visados galhofava acusando-me de terrível conservador, só faltou comparar-me ao Botas de Santa Comba, que tinha o pé boto.
O melhor surgiu depois, rapazão do aparato revisteiro cor-de-rosa exibia a torto-e-a-direito sapatos cujas solas eram vermelhas benfiquistas, tanto as mostrou, que só o receio de enfadar o anfitrião impediu-me dizer ao pimpão para dependurar os sapatos nas orelhas, pois não sendo de abano à Rodrigues dos Santos, não eram ratadas.
Fora do quadrado colorido dos comentários misturados em tem-te em pé e bebidas refrescantes, o visto revela quão grande foi a transformação no vestir e calçar dos portugueses nos últimos quarenta anos, longe vão os tempos (ainda bem) das socas abertas e fechadas, dos socos cravejados de brochas e bota de atanado a defenderem os pés da maioria da população que até aos anos sessenta do século passado em grande parte andava descalça.
Agora ninguém se espanta ao ver luzir faiscantes sapatilhas em pessoas de avançada idade, agora ninguém se benze quando partes generosas dos corpos se revelam nas ruas e cafés, pois bem, para a história da estupidez autocrata ficou a ordem de prisão do estudante de Vinhas, a mando da mulher do governador civil de Bragança. Para a história da bacoquice os olhares de inveja e estultícia de gente tida como assisada ao contemplar o casacão/sobretudo de couro verde e gola farfalhuda de pele, bem vestido pelo Fernando Tozé, no seu regresso de Londres, já no dealbar dos anos setenta.
Enquanto permaneci na velha urbe brigantina, já detentor de fundos a possibilitar tal, calçava sapatos segundo as indicações do Sr. Vitorino (o Vitorino) alma-mater da Sapataria da Moda. Além de atilado vendedor, o Vitorino também conseguia meter na ordem um menino gordo, possuído da doença de S. Vito, (traquina), em permanente desassossego, sobrinho neto do Senhor Alberto Rodrigues.
O menino era parente de formosa rapariga, mal ela assomava à janela do segundo andar do prédio da Sapataria, recolhia olhares admirativos e cobiçosos de homens e rapazes de todos os talantes, sem suficiente talento para a conquistar. O menino cresceu, enveredou pela carreira política, tem sabido manter-se na bancada central. Chama-se Pedro Pinto.
Entre sandálias abertas, à romana, os turistas adoram-nas, é vê-los sentados rente ao Tejo a tirá-las e a enfiarem o indicador de uma das mãos nos intervalos dos bípedes no fito de coçarem o sebo, e os usuais sapatos de atacadores, perpassa cromática miríade de artefactos chamados calçado, a jorrar mais-valias tão necessárias ao revigoramento da economia portuguesa.
O primeiro-ministro foi a Milão participar na sofisticada e extravagante Feira Mundial do calçado. Fez bem. Quanto mais exportarmos melhor. A competição é feroz, especialmente vinda do Brasil. O caso das havaianas rasas.
Num espaço do El Corte Inglês vendem-se havaianas ao modo de pãezinhos nas padarias. Não lhe vejo diferenças relativamente aos chanatos, pior, são ruidosas no arrastar, obrigam-nos a fixar calosidades pintalgadas de surro negro.
Os meninos pobres das aldeias escondiam-nas no pó acumulado nos caminhos. Descalços recebiam frescura enterrando os pés nos torrões desfeitos pelo sol abrasador.
Nunca devemos esquecer as agruras suportadas pelos nossos ancestrais, não nos caem os parentes à lama por causa disso.
Bertoldos sem vergonha têm vergonha do mau passadiço dos pais e avós. Desavergonhados!

Armando Fernandes