Falando de… Manuel Teixeira Gomes, algarvio, escritor. Presidente da República

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Em tempos de puerícia, frequentando o Liceu Municipal de Portimão, no Verão, quando o calor tornava os corpos mais sedentos, passava por aquela sorvetaria onde a troco de uns parcos dinheiros, me deliciava com um gelado que me tornava credor do Olimpo. Eu era feliz e o futuro ficava longe.
Mas aquela rua por onde me habituara a passar, tinha em si uma enorme casa onde tinha nascido um filho da terra. Importante, mas de uma importância que a minha meninice ainda não alcançava. Portimão sempre foi para mim um local de passagem, de passeios que recordo amiudadamente e que procuro reter na minha memória.
Como um deslocado que aspira regressar ao seu agro natal, rememorando espaços, lugares e vivências, dou por mim a ler o cidadão que foi Presidente da República e escritor e que, seguramente, não pensou sê-lo.
Nasceu, ao tempo, em Vila Nova de Portimão, que será elevada à categoria de cidade em 1924. Terceiro filho de José Libânio Gomes Xavier e de Maria da Glória Teixeira, o seu nascimento vem aumentar a prole de um chefe de família que enriquecera no negócio da exportação de figos, onde ganha prémios, e que vive desafogadamente. Manuel Teixeira Gomes virá a liderar a gestão dos negócios da família, interrompida quando obrigações de Estado o levarem a representar Portugal na corte de Jorge V, em Inglaterra, em 1911.
Por vontade dos pais teria seguido a carreira médica. É matriculado no Colégio particular S. Luís Gonzaga, em Portimão, onde frequenta a instrução primária à semelhança do que acontecia com as famílias mais abastadas da localidade. Os estudos no Colégio eram complementados com leituras na biblioteca da família. Lembra ter lido aos nove anos Mil e Uma Noites, numa tradução portuguesa feita por Galland, afirmando que tinham sido joeiradas das principais impurezas lúbricas, tornando-se acessíveis no seio das famílias pudibundas.
Terminada a instrução primária em Portimão, ruma a Coimbra, onde passa sete anos seguidos, i.e., dos dez aos dezassete, sendo cinco no Seminário, o que estava muito na moda e era frequentado pelos filhos da melhor gente do reino.
Passados muitos anos, ao descrever um regresso a Coimbra, recordará os imaginários ou verídicos tormentos pedagógicos, a bárbara autoridade dos mestres, a regulamentação deprimente de estudos ressequidos, despidos de interesse quando feitos de violência. Nem tudo foi mau. Escreveu em Carnaval Literário, no capítulo denominado “De tudo um pouco”:
        O melhor dos meus professores, o Alves de Sousa, tão agarotadamente achincalhado nas Farpas, tinha a inocente mania das mnemónicas cantadas em cuja invenção era fertilíssimo embora pouco original, introduzindo-o em Kant.
Terminado o curso no Seminário, graças à apertada vigilância de uns padres, a cuja leccionação o Bispo o sujeitara, acha-se na Universidade solto e livre aos quinze anos. Não abriu mais os compêndios. Para fazer fosse o que fosse, precisava de aplicação e continuidade no estudo, que não lhe acendia a imaginação. “Resultado: reprovações e anos perdidos; peregrinações estéreis pelas várias escolas do país; conflitos com a autoridade paterna; boémia descabelada, miséria, fome… e literatura”.
O facto de não ter aberto os compêndios, não impediu que não tomasse contacto com Heine, Baudelaire, Rimbaud, Sainte-Beuve, Verlaine, Victor Hugo, Flaubert e Charles Dickens. A Norberto Lopes confessa que começou a ler muito cedo com filósofos, como Leibniz, Schopenhauer, Kant, Nietzche, Hartmann e outros.
Abandonados os estudos em Coimbra, foi para Lisboa, onde conviveu com os intelectuais da época, sendo frequentador assíduo da Biblioteca Nacional, indo depois para o Porto, relacionando-se com artistas e políticos, como Soares dos Reis, Marques de Oliveira que o retratou aos vinte e dois anos e Sampaio Bruno, sendo nesta cidade que publica o seu primeiro livro em 1899, o Inventário de Junho.
Começa a colaborar em periódicos como Folha Nova, Folha, Primeiro de Janeiro, Arte & Vida, A Actualidade, A luta, ao mesmo tempo que se relaciona com João de Deus, Fialho de Almeida, Basílio Teles, Câmara Reis, Columbano,  António Nobre, Queirós Veloso e outros.
É nesta época o seu deslumbramento ante a figura de Camilo. Falará do mestre em Regressos, num excerto que não nos furtamos a citar:
Eu vira Camilo algumas vezes, no Porto, e sempre na rua de Santo António, que ele descia à mesma hora em que eu subia em busca do almoço. Que fotografia sem retoques poderia jamais substituir convenientemente a imagem que dele guardo na lembrança! O aspecto era melancólico, mau grado a sua afectação de ostensiva altivez. Bem aprumado ainda, no sobretudo de gola de astrakan cingido ao corpo; o chapéu de coco cilíndrico e aba larga; a infalível luneta defumada ocultando o olhar; e as mãos finas, dissecadas já com manchas de pano da velhice…
Virando as costas à vida fácil da boémia lisboeta, regressa ao Algarve e a Portimão, tentando o caminho da independência económica. Fez-se negociante, ganhou bastante dinheiro e viajou pela Europa e costas do Mediterrâneo que visitou, segundo afirma, passo a passo. Lisboa e a sua vida social não deixam de fazer parte da existência de Manuel Teixeira Gomes, aí convivendo com o mundo da intelectualidade e da política, como Manuel de Arriaga e Teófilo Braga.
Instalado em Portimão, liga-se a Belmira das Neves, uma jovem substancialmente mais nova, de quem terá duas filhas, Ana Rosa nascida em 1906, e Maria Manuela em 1910. Com a morte dos pais, herda propriedades de certa monta, que principia a governar com entusiasmo, tornando-se um lavrador abastado, o que o leva a perder o fulgor pelas viagens. Produto desta pausa existencial e deste viver mais remansoso, arquitecta e constrói textos que vai dando à estampa. Assim, nascem Cartas sem moral nenhuma, em 1903, Agosto Azul, em 1904, Sabina Freire, em 1905 e Gente Singular, em 1909.
Radicado no Algarve, gere os seus negócios, não deixando de escrever e amando a mulher que lhe vai tolerando e aceitando com estoicismo os seus devaneios amorosos. De origem humilde, operária no fumeiro da família de Manuel Teixeira Gomes, fábrica onde se preparavam os figos e amêndoas para exportação, Belmira das Neves não chega a consumar o casamento com Manuel Teixeira Gomes, dada a sua origem humilde e, consequentemente, as grandes diferenças sociais.
A revolução de 5 de Outubro de 1910, encontra-o em Portimão. Tinha cinquenta anos e nascera-lhe a filha mais nova poucos dias antes; escreverá a João de Barros em 20 de Abril de 1927:
Tudo larguei e fui servir a República no meu posto de ministro em Londres, para onde jamais me passou pela ideia que iria, e terminantemente recusei quando me propuseram.
Fora escolhido para ministro de Portugal em Londres, embora tivesse havido, de início, a oposição de Bernardino Machado, Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Nomeado em 23 de Março de 1911, é o primeiro representante da República depois da longa missão do Marquês de Soveral, amigo íntimo da Família Real Inglesa e último representante da monarquia em Londres.
A situação de Manuel Teixeira Gomes, como embaixador em Londres, não se afigurava fácil. As possíveis maquinações do embaixador cessante e de grande influência, a presença de D. Manuel e de D. Amélia, ligados à corte inglesa, por laços familiares, as intrigas dos numerosos emigrados monárquicos de grande poder económico e financeiro, e ainda a campanha que corria em Inglaterra contra o “tratamento infligido aos presos políticos” em Portugal, alimentado pela imprensa inglesa, dificultavam a actuação de Manuel Teixeira Gomes que trabalhava para além do possível. Debeladas algumas dificuldades, suportadas pela educação que recebera, à sua cultura, ao seu conhecimento cosmopolita e o perfeito conhecimento da língua inglesa, simpatia e amizades conquistadas, abriram caminho para uma permanência que durou cerca de treze anos, quando fora para Londres esperançado em não ficar muito para além do reconhecimento da República.
Em Inglaterra, só passado um ano da proclamação da República, foi possível apresentar credenciais ao rei Jorge V em 11 de Outubro de 1911, sendo a sua carreira interrompida de 25 de Janeiro a 11 de Fevereiro de 1918, por força da instauração da ditadura de Sidónio Pais, que o tendo mandar apresentar em Lisboa, o mandou prender quando se encontrava instalado no quarto nº 153 do Hotel Avenida Palace, em Lisboa. Foi libertado em 4 de Fevereiro, sem que lhe fosse dada a oportunidade de ir a Londres resgatar os bens que lá tinha deixado.
Em 11 de Fevereiro de 1919 é nomeado Ministro Plenipotenciário e Enviado Extraordinário em Madrid. Em 7 de Abril é considerado diplomata de carreira, numa altura em que Sidónio Pais já não governava porque havia sido assassinado em 14 de Dezembro de 1918, na Estação dos Caminhos de Ferro do Rossio.
Em 24 de Abril de 1919 cessa funções em Madrid e regressa a Londres onde permanecerá até à sua nomeação para a Presidência da República em 6 de Agosto de 1923.
Foi em grande parte, através dos esforços diplomáticos de Teixeira Gomes junto da Grã-Bretanha que foi projectada pela Europa a imagem de uma República ordeira e estável, sintonizada com os principais rumos da Europa de então, daí a entrada de Portugal na guerra de 1914-18, tendo em atenção os trunfos que passaria a dispor na partilha de África pelos vencedores. Não contabilizando as desastrosas consequências sociais e financeiras, que vieram pôr a descoberto fragilidades que dificilmente se sararam.
O país navegava num marasmo de ingovernabilidade. Vários foram os governos desde a implantação da República. Cerca de quarenta. Em 1923 era Presidente da República António José de Almeida. Perante as querelas partidárias, as tentativas de golpes militares, era necessária escolher alguém de inquestionável prestígio adquirido fora das lutas partidárias com provas dadas ao serviço do país.
Em 6 de Agosto de 1923 é eleito com 7º Presidente da República, tomando posse em 5 de Outubro. Com grandes dificuldades, face à recusa de alguns políticos de formarem governo, enfrentando sublevações, insubordinações e demissões, tendo dado posse a sete executivos, em pouco mais de dois anos, resolve renunciar ao cargo em 24 de Abril de 1925, retirando o pedido depois do Congresso lhe ter tributado uma calorosa manifestação de apoio.
Em 11 de Dezembro do mesmo ano resignaria ao poder, definitivamente. Estava farto do país. Retirar-se-ia para não mais regressar. As últimas cinco noites passá-las-ia numa sua casa na Gibalta. Partia na manhã de 17 de Dezembro, a bordo do navio holandês Zeus. Instalar-se-ia na cidade argelina de Bougie, depois de ter visitado outras cidades. No quarto nº 13, do Hotel de l´ Étoile, estacionará a partir de Setembro de 1931. Via o mar semelhante ao do seu Algarve. Saíra de Portugal com 65 anos, terminando mais uma fase da sua vida. Partira para o exílio, cortando todos os laços com o passado: amigos, políticos, família e a Pátria, conquanto transportasse dentro de si as memórias de ricas vivências e de um país que iria recordar através da escrita.
Confessará a Norberto Lopes:
Faço uma vida muito especial e muito simples. E tenho uma alimentação muito sóbria. Se não fosse isso já não vivia.
Levanto-me às quatro horas da manhã. Preparo eu mesmo, no quarto, o meu almoço. São as melhores horas do dia, aquelas em que ainda posso fazer alguma coisa: ler, escrever. Ao meio-dia janto. Às duas e meio saio para ir ao correio. Às 4 tomo um chá de tília – e em seguida recolho-me. Creio que é, em parte, devido a este regime alimentar que me vou aguentando. Além disso tenho as cartas, os artigos, os livros… é isto que me prende à vida.
Desistindo de governar Portugal e renunciando à permanência no país, Manuel Teixeira Gomes criou uma situação inédita na primeira república. Não desistiu de viver. Sublimou hábitos.
Afastado da política, com o mar de perto, Bougie, hoje Bejaia, é o seu lugar de exílio a seis horas de distância de autocarro de Argel. Vive num quarto de hotel, no dizer de Mário Soares que o visitou, modestíssimo, sem sequer ter uma casa de banho própria. Só alguns raros amigos o sabiam, embora continuasse a saber toda a correspondência na Posta Restante, hábito que contraíra durante as suas viagens, e que manteve até morrer.
A escrita foi um hábito que não perdeu. Gostava muito de receber cartas de amigos. Quando saíra de Portugal mantinha correspondência seguida com sessenta pessoas, diminuindo-a ao longo da sua permanência do Bougie. Apesar de arquivar uma cópia do que escrevia, dera instruções a sua filha Ana Rosa para fazer desaparecer para sempre numa fogueira todos os seus papéis anteriores à ida para Londres, que se encontravam no seu escritório, à excepção de Sabina Freire.
Vivendo de memórias no isolamento da sua mundivivência em Bougie, saem da sua pena as seguintes publicações, depois de um considerável interregno, porque não desaprendera a arte da escrita: Cartas a Columbano, Novelas Eróticas, Regressos, Miscelânia, Maria Adelaide, e Londres Maravilhosa, postumamente.
Em 18 de Outubro de 1941 no quarto nº. 13, do hotel de l´ Étoile, em Bougie, Teixeira Gomes, quase cego, forçado à imobilidade no leito, despedia-se da vida, exalando o último alento. Pouco passava das 5 da manhã.
O enterro foi modesto e simples, conforme escreve Norberto Lopes. Vestiram-no de casaca. O comissário da Polícia selou o caixão de chumbo. O préstito não teve acompanhamento religioso, sendo constituído por sete pessoas.
Mais tarde, o governo de Salazar, com autorização de familiares, transferiu os restos mortais de Teixeira Gomes para Portimão, em 18 de Outubro de 1950. Jaz em campa rasa no cemitério da cidade que o viu nascer, depois de um atribulado funeral com a polícia a espreitar. Viera no navio da Marinha de Guerra Portuguesa, Dão, tendo a tripulação e outras forças militares prestado as honras da praxe.
Era algarvio, escritor e Presidente da República.
Não for seguido o acordo ortográfico.

Por João Cabrita