Inquisição – lutas políticas – pureza de sangue (1) Vila Flor: Julião Henriques e Lopo Machado

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A divisão da sociedade em cristãos-novos e cristãos-velhos foi talvez a origem das maiores das calamidades que assolaram Portugal. Esta divisão, caldeada com as inevitáveis diferenciações económicas e sociais, proporcionou o aparecimento de “bandos” e “parcialidades” que, em muitas terras, se envolveram em ferozes lutas políticas e autênticas guerras civis.

Porventura em nenhuma outra localidade Trasmontana esse ambiente de guerrilha foi tão intenso e prolongado como em Vila Flor. E talvez não fosse por acaso que a lei da limpeza de sangue, proibindo os cristãos-novos de aceder aos empregos públicos e cargos de governo municipal, começou exatamente por ser aplicada em Vila Flor, em 1571,(1) a título experimental.

Assim, logo na primeira grande investida da inquisição em Vila Flor, em 1558, uma prisioneira explicava aos inquisidores que a sua e as outras prisões tinham causa única nas lutas políticas, dizendo:

— Entende provar que na dita vila os cristãos-novos andavam sempre nas eleições e requerimentos na dita vila e algumas pessoas disso se escandalizavam tanto que, com inveja, difamavam deles.(2)

Intensa luta política e um turbilhão de intrigas. A ponto de o inquisidor-mor, cardeal D. Henrique pegar num dos seus mais próximos colaboradores, o licenciado Jerónimo de Sousa, inquisidor em Évora e mandá-lo para Vila Flor, como abade da igreja matriz. Ele próprio se sentia “desnorteado”, parecendo mais um espião político do que um juiz inquisidor. Veja-se o excerto de uma carta sua para Coimbra, datada de 6.1.1577:

— Ficou tanto olho em mim depois que falei com aquela mulher que não dou volta que me não notem e por isso busquei tempo para não ser sentido; (…) Avise VM ao oficial que cá vier que se não venha a minha casa porque trazem nisso tento e haverá reboliço, que nunca me saem de casa todos os dias, que por isso fui tirar a filha de sua casa e de noite, porque a trazem atrelada, que nunca a deixam.(3)

Por 1620, o “partido” dos cristãos-novos era liderado pela família Eminente e, mais em concreto, o “Eminente Lopo Vaz”.

Em janeiro de 1638, o Dr. Diogo de Sousa, inquisidor de Coimbra esteve em visitação em Vila Flor. De entre as pessoas que perante ele se apresentaram a denunciar, destacamos uma Filipa Nunes, filha do médico Francisco Nunes, a qual disse:

— Haverá 5 anos que começou a servir a Leonor Henriques, cristã-nova, casada com Bartolomeu Lopes Teles, cristão-novo, mercador, que mora nesta vila junto à Fonte, os quais serviu um ano e no decurso dele viu que a dita Leonor Henriques em todas as sextas-feiras varria a casa e lha mandava varrer mais que nos outros dias e mandava acender mais cedo os candeeiros…(4)

Abordamos este depoimento não pelo interesse do mesmo mas para notar o facto de a filha de um médico cristão-velho ser criada de servir em casa de um mercador cristão-novo. É apenas um exemplo de como, naquela época, a “gente da nação” se posicionava no seio da sociedade Vila-Florense.

De resto, em consequência desta visitação seria presa a viúva de Francisco Vaz Eminente (Isabel Pereira) e duas filhas. A propósito, veja-se o excerto de uma carta que Lopo Machado Pereira escreveu para a inquisição de Coimbra:

— Obrigado das injustiças, moléstias e vexações que se me fazem, tudo causado pela gente da nação desta Vila Flor (…) E podem perturbar o dar-se a execução às diligências do santo ofício que V. S. me mandam fazer. (…) Assim, mandando prender a Isabel Pereira e suas filhas, pelo corregedor António Cardoso de Sousa, depois de se fazer a prisão a pouco tempo, indo pousar a casa de um clérigo, por nome Pero Esteves, do lugar de Samões, meia légua desta vila, e dando-lhe o dito clérigo um copo de vinho com o qual morreu logo, apressadamente e sem confissão e desde esse tempo até hoje, a gente da nação, principalmente Julião Henriques, cabeça deles, corre com o dito clérigo e seus irmãos com muita amizade, o que deu muita suspeita da sua morte.(5)

Como se vê, Lopo Machado queixa-se da dificuldade que tinha para executar as ordens do santo ofício, como sejam as prisões de cristãos-novos. Olhe-se um pouco mais da carta que vimos citando:

— Tanto que eu prendi a Diogo Henriques e os mais, logo se fintaram contra mim e todos os que nessa ocasião ajudaram, dando 5 mil réis cada um, sendo que passam nesta vila de 100, fazendo-se o dito Julião Henriques a cabeça deles (…) tudo falsidades de que esta gente usa e se gabam poucamente que pois me hão-de destruir e não hei-de prender outros…(6)

Se bem que apenas a viúva e filhas do Eminente fossem então presas, o inquisidor Diogo de Sousa levou para Coimbra um rol de denúncias que, certamente, originaram a abertura de outros processos, os quais foram sendo acrescentados com denúncias enviadas por comissários e familiares da inquisição, bem como as confissões feitas por prisioneiros.

Neste sentido, foi o vigário-geral da comarca e comissário da inquisição, Dr. Paulo Castelino de Freitas encarregado de fazer novas investigações em Vila Flor, em novembro de 1642. Uma das pessoas que então se apresentaram a testemunhar foi Lopo Machado Pereira. Vejamos um pouco do seu depoimento:

— Disse que é fama pública nesta vila (…) que a gente da nação guarda os sábados em observância da lei de Moisés (…) e quando ele vem pela Rua da Fonte, por ser toda de cristãos-novos e gente da nação e às vezes vem de dia e outras de noite e vê estarem as mulheres da nação às janelas, sem trabalharem nem fazer coisa alguma (…) e é público e notório que a gente da nação celebrou uma festa este setembro passado fez um ano e nesse tempo viu ele as mulheres da nação muito bem vestidas…(7)

Não vamos continuar com o depoimento de Lopo Machado e deixamos para outra ocasião os depoimentos de outras pessoas. Diremos tão só que se seguiu a prisão de vários cristãos-novos, entre eles um filho de Julião, chamado Diogo Henriques e, tempos depois, o mesmo Julião Henriques.

Mas se Lopo Machado, Castelino de Freitas e outros conseguiam que a inquisição decretasse a “leva” de Julião para as cadeias de Coimbra, os cristãos-novos não se ficaram quietos “a lamber as mágoas”. Não tendo influência nos tribunais religiosos, o mesmo não acontecia nos tribunais civis, nomeadamente na vedoria e corregedoria da comarca.

Aconteceu que, em Castela, faleceu o padre Abreu Moutinho, de Vila Flor. E logo Lopo Machado, invocando a qualidade de juiz dos órfãos, se meteu a fazer o inventário dos bens do defunto. Porém, o vedor da fazenda encarregou disso um cunhado de Julião Henriques, chamado Rodrigo Fernandes Portello. Ou porque Lopo Machado não respeitasse a ordem do vedor ou porque na execução do inventário tivesse lesado a fazenda nacional, os seus adversários conseguiram que o rei ordenasse ao corregedor da comarca a instauração de um processo. Em consequência, o corregedor decretou a prisão de Lopo Machado.

Competia ao meirinho da correição executar a ordem de prisão. Este, porém, “não se atreveu a isso”. Então, o corregedor tirou-lhe a vara de meirinho, entregando-a a um filho de Julião Henriques, juntamente com o decreto seguinte:

— Eu, André Barreto Ferraz, corregedor desta comarca de Torre de Moncorvo, por este meu ofício e assinado, dou poder a Luís Henriques, morador na dita vila de Vila Flor para que, como meirinho desta correição, possa prender a Lopo Machado, morador na dita vila, por culpas mui graves que dele há neste juízo, e preso o trará à cadeia desta vila, e poderá o dito Luís Henriques, com este mandado, requerer sobre a prisão, todo o favor e ajuda às justiças desta comarca, a qual lhe darão, da maneira que ele requerer, com pena de suspensão de seus ofícios; e feita a dita prisão, não poderá o dito Luís Henriques usar o dito mandado em outra diligência porque só por esta vez lhe dou este poder, por assim convir ao serviço de Sua Majestade; e para o trazer preso à cadeia desta vila poderá pedir ajuda às pessoas que lhe convier, à custa do dito Lopo Machado. Dado na vila da Torre de Moncorvo, feito e assinado por mim, se minha letra e sinal, aos 30 de Agosto de 1644. Ferraz.(8)

 

Notas:

1 - MORAIS, Cristiano de, Cronologia da História de Vila Flor 1286 - 1986, p. 12.

2 - Inq. Lisboa, pº 2893, de Maria Álvares.

3 - ANTT, inq. Coimbra, pº 536, de Isabel Lopes.

4 - Idem, pº 2903, de Leonor Henriques.

5 - Idem, pº 3869, de Julião Henriques.

6 - Segundo alguns testemunhos, apenas 5 moradores cristãos-novos não contribuíram para esta “finta”. O dinheiro serviria, naturalmente, para contratar bons advogados e “meter cunhas” em Lisboa, na Corte real.

7 - Idem, pº 2903.

8 - Idem, pº 3996, de Jerónimo Guterres.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães