NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Gabriel (Salomon) Henriques Raba (1741-04-12 – 1820-06-08)

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Só muito depois de Portugal, Espanha, Holanda e Inglaterra é que a França apostou no comércio marítimo e na construção de um império colonial. E nessa aposta os sefarditas desempenharam um papel de relevo, nomeadamente as comunidades de Ruão, Marselha e Bordéus. Nesta cidade, menção especial para a família Gradis, os maiores armadores de navios na França do seu tempo.
Verdadeiramente exemplar neste movimento de colonização e comércio d´além mar, foi também a família Raba. Mal chegados a Bordéus, dois dos irmãos, António (Moisés) e Gabriel (Salomon) embarcaram para as Antilhas, fixando-se na cidade de S. Domingos, no atual Haiti. A legislação vigente, conhecida por “código negro”, não permitia, no entanto, que os judeus pudessem estabelecer-se nem negociar nas colónias francesas, pelo que os irmãos Raba foram munidos de uma declaração passada por um frade capuchinho que afiançava serem eles bons católicos. (1)
Três anos depois foram juntar-se-lhe outros dois irmãos: Caetano, aliás, David, formado em medicina por Coimbra e Francisco, aliás, Benjamim, com a “Societé Raba Frères”  a expandir os seus negócios abrindo novas delegações em Cap Français e Port-au-France. Escusado será dizer que trabalhavam em rede, uma rede familiar de negócios que integrava a mãe e os 8 irmãos.
Usando uma imagem grosseira, diremos que a riqueza dos Raba corria do Caribe para Bordéus, feita de caixas de açúcar, fardos de tabaco, sacos de índigo, café e cacau, passando pelo tráfico negreiro e comércio da prata, obviamente com venda de produtos exportados de França como vinhos, tecidos e artigos industriais, para além do transporte marítimo em que também investiram. (2)
Na sua estadia em S. Domingos, Salomon ter-se-á relacionado com a família de Joséphine que, mais tarde, viria a ser imperatriz da França, casada com Napoleão Bonaparte. Estranha coincidência: fracassada a primeira invasão francesa, Napoleão ordenou uma segunda, comandada pelo general Soult, a qual deveria entrar em Portugal por Trás-os-Montes. Lógico seria que as tropas gaulesas, vindas por Zamora e chegadas à bacia da Sanábria entrassem por Bragança. Aí interviria Salomon, convidando Joséphine e Napoleão, que estavam em Bordéus, a instalar-se no palácio da família. E terá sido por interseção de Josephine que o imperador ordenou que as tropas de Soult entrassem em Portugal por Chaves, poupando a cidade de Bragança. Não temos confirmação documental desta afirmação que corre de há muito. Apenas a seguinte nota:
- Le samedi 9 Avril (…) Napoléon premier, accompagné par sa garde d´honeur à cheval, visita, là, le fameaux domaine de Raba. Joséphine ayant rejoint Napoléon à Bordeaux, voulut voir la sumptueuse residence de Raba. (3)
Quem melhor do que Salomon Henriques Raba poderia representar em Bordéus a diplomacia portuguesa? A sua nomeação de cônsul foi feita por carta de D. João VI, datada de 9.9.1802. Veja-se um relance:
- D. João … faço saber … que por convir ao real serviço e bem dos meus vassalos que na cidade de Bordeaux haja um cônsul da Nação Portuguesa que facilite o comércio e seja de inteligência e experiência de negócios que ajude o expediente deles … hei por bem nomeá-lo … e rogo à República Francesa e em nome dela ao seu primeiro Cônsul, o cidadão Bonaparte, grande e estimado amigo … o deixe gozar o dito ofício… (4)
Não cabe no âmbito deste artigo analisar a ação do cônsul Salomon Raba, certamente muito meritosa pois que o rei D. João VI o condecorou com as Ordens de Cristo e de Santiago. Diremos que, apesar de escorraçado da sua pátria, ele se revelou um grande patriota e um verdadeiro herói, digno de ombrear com o cônsul Aristides Sousa Mendes. Não seria por acaso que os Nazis roubaram todo o recheio do Palácio Raba e deportaram os membros da família para os campos de concentração de onde apenas regressaria um: André Raba. Da grandeza de alma e seu amor à terra de seus antepassados, melhor do que nós fala o seu testamento. Vejamos um excerto:
- Pode parecer um grande encargo o que vos peço, mas estou certo que vou ter a vossa aprovação quando lerdes todos os nomes daqueles que estão a partilhar a minha generosidade. Meus irmãos, cada um de vós é dono de considerável fortuna, a qual não devem procurar aumentar à custa do grande número dos nossos familiares pobres que vivem em indigência, particularmente depois da guerra em Portugal (…) Tendo a Divina Providência disposto da vida de meu irmão Jacob, de quem me tornei herdeiro de parte da sua fortuna, resolvi depois de madura reflexão e reiteradas cartas que recebi do nosso primo António José dos Santos e de outros parentes infortunados, assim como de muitos israelitas vítimas da revolução que nos escreveram e informaram sobre o prejuízo que as tropas francesas causaram na sua entrada em Portugal (… ) é meu desejo criar um fundo de 87 ou 88 000 francos (…) administrado pelo meu irmão(Benjamim), os seus filhos e assim sucessivamente os seus sucessores, de forma que o lucro líquido que resultar do investimento não terá outro destino senão ser remetido para Portugal (…) porque eles serão apenas depositários dos títulos e não os proprietários… (5)
Repare-se que não se trata de uma simples dádiva, antes da criação de um fundo que vai render juros e esses juros é que serão enviados para Bragança. Outros fundos foram criados e dirigidos a outros destinatários pro , de acordo com o testamento, no qual Salomon escreveu ainda:
- Determino de antemão aos meus herdeiros e sucessores que no prazo de 6 meses, depois da minha morte apliquem no livro da razão da nação, ou seja, na sedaca as receitas líquidas de toda a minha poupança em contas à ordem…
Interessante esta nota porque nos deixa perceber que a “sedaca” funcionava como uma verdadeira instituição bancária cuja rentabilidade e poupança resultava no apoio aos pobres da nação.
Interessante seria olhar para outros destinatários de legados de Salomon, como a escola, a sinagoga, os criados, os indigentes, “sejam católicos ou protestantes”… acrescentando:
- Deus recomenda que sejamos caridosos para qualquer ser humano em sofrimento.
O testamenteiro explica ainda por que prefere a compra de títulos e a criação de fundos de investimento com distribuição dos resultados:
- Isso parece-me a mim mais vantajoso para os pobres do que distribuir entre eles o capital que, de outra forma, seria gasto logo que eles o recebessem.
Patriota, generoso, amigo dos pobres, cidadão exemplar, Salomon foi interinamente substituído, em 1817, no cargo de cônsul, por seu sobrinho Joseph Henriques Raba, que desde há anos o vinha secretariando. E devendo-lhe o Estado Português os ordenados e gratificações de muitos anos, melhor forma de pagar não encontraria do que “sanear” o sobrinho depois da sua morte, atendendo à proposta do cônsul Aurélio Gracindo Tota, então nomeado, datada de 19.06.1822 na qual escrevia:
- (…) Acresce que este homem, bem como seu falecido tio, meu antecessor, foram sempre mal vistos das autoridades e principais pessoas do país, porque reinando aqui um extremo catolicismo, não puderam jamais sofrer que representasse pela nação portuguesa, que de todo o tempo professara a religião católica romana, um judeu que exercia publicamente o culto hebraico… (6)
Repare-se que nesta data já não existia a Inquisição em Portugal! A sua herança, contudo, permaneceu e mesmo hoje ela continua viva em muita gente e muitas instituições do Estado. Felizmente que a injustiça não foi consumada, antes o rei D. João VI “condecorou” Joseph Henriques Raba.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-BERNARDINI, Paolo; FLERING, Norman – The Expansion of European to the West 1450-1800,Providence (RI), Berghan Books, pp 268-286, 2001.
2-CAVIGNAC, Jean – Dictionaire du Judaisme Bordelais aux XVIII et XIX Siécles.
3-ARCHIVES DE BIBLIOTHÈQUE DE BORDEAUX, p. 2879. Cit. CRAVO, António – No Caminho Judaico… p. 189.
4- IANTT, MNE, Liv. . 23, fls 125-126.
5- The National Archives Public Record Office  Will of Salomon Henriques Raba.
6-ANTT, MNE,  cx. 225, Consulado de Portugal em Bordéus 1803-1832. Amável informação da Drª Carla Vieira a quem agradecemos.

Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães