Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Pedro de Mesquita (n. Vila Flor, c.1600)

PUB.

Pedro Mesquita nasceu em Vila Flor, pelo ano de 1600. Foram seus pais o Dr. Francisco Vaz, médico, e sua mulher Inês Vaz. Andaria pelos 10/11anos, quando ele e seus dois irmãos foram levados para Castela(1) onde tinha vários parentes, nomeadamente os primos coirmãos Pedro Henriques de Mesquita e Manuel de Mesquita, que o terão iniciado no judaísmo.

Possivelmente foi também com aqueles primos, cujos pais e outros familiares moravam em Pastrana, onde eram fabricantes e mercadores de seda, que se meteu a negociar, a partir de Madrid. As rotas comerciais de Pedro Mesquita estender-se-iam também para o lado de cá da fronteira, trabalhando em rede com seus familiares de Vila Flor onde ficaram seus pais e duas irmãs que ali casaram.(2) Teria até negócios conjuntos com um seu cunhado morador em Vila Flor. A propósito, diria ele mais tarde:

— Que lhe vinham umas sedas e as trazia seu cunhado, marido de sua irmã, ao qual queria mais que às mesmas irmãs, e estava temeroso de lhas tomarem, e dele ser preso, e mais estremecia na prisão deste cunhado de que sua mãe.(3)

E porque as rotas comerciais o traziam para cá da fronteira, quando chegou à idade adulta, regressou a Portugal e a Lisboa para casar com a filha de um cristão-novo, “proprietário” em Montemor-o-Velho chamado Rui Lopes Pinto.(4)

Por 1622, encontrava-se Pedro a morar em Lisboa, na rua do Mata Porcos, com sua mulher, Maria Rodrigues Pinto e, no ano seguinte apresentava-se como um “rico” mercador, com loja de sedas aberta na Rua Nova.

Muito interessante a respeito deste ramo de mercado, é o processo de Pedro de Mesquita que nos fala de uma dezena de lojas de seda da Rua Nova, com identificação de seus proprietários, todos eles da nação hebreia, o que não exclui a existência de outras.

Em 1630, Pedro de Mesquita “quebrou”, ficando embargado pelos “acredores” em 16 000 cruzados (6 contos e 400 mil réis), destacando-se entre estes, Francisco Botelho Chacon e seus parentes Silveira. Os ativos e passivos da loja de Pedro Mesquita foram assumidos por seu sogro e seu cunhado, negociando um plano de pagamento das dívidas aos acredores.(5)

Certamente para acerto da negociação, Mesquita refugiou-se na casa do senhor arcebispo, dali transitando para a “prisão” do Castelo e depois para o Hospital, que funcionava como cadeia. Conheceu ali José Pedroso, cristão-velho, alferes de uma companhia, que estava “retirado no hospital por um homizio de uma morte”. Dias depois, Pedroso apresentou-se na Inquisição de Lisboa, contando que, estando os dois a olhar por uma janela, ele disse: — Como está formosa esta praça e aquela porta da inquisição como está alva! A isto, respondeu Pedro Mesquita: - Sim, sim, arada que seja (a praça) e abrasada (a casa da inquisição)… E ele declarante ficou com o conceito que Pedro de Mesquita era um grande judeu.

Entretanto, na mesma casa da inquisição foi preso um mercador de sedas, com loja na Rua Nova, chamado João Duarte que denunciou Pedro Mesquita por declarações de judaísmo. E estas duas denúncias levaram à prisão do nosso biografado, em 14.5.1630. Depois de preso… surgiram denúncias em série, uma torrente de denúncias, impossíveis de relatar.

Desde logo, em função da linguagem usada por Mesquita, muito desbragada, sendo o seu processo verdadeiramente extraordinário, revelador de um caráter muito irascível. Imagine-se: foi mudado 4 vezes de cárcere, tendo por companheiros mais de uma dúzia de presos de categoria muito diversa e todos eles contaram episódios incríveis, colocando na boca do Mesquita palavras tão insultuosas que eles próprios se recusavam a pronunciar. Exemplo: Pedro da Mesquita dizia que os cristãos tinham santos para tudo e que até deviam ter um santo para o “olho da parte imunda” e se o não tinham que fizessem santo para isso o Conde Redondo!

Particularmente agressiva era a linguagem usada ao falar do papa, dos cardeais e dos inquisidores e quando falava de Cristo e dos santos, apontando para as imagens… A propósito, também este processo é extraordinário pois nos mostra que nos cárceres da inquisição havia quantidade de imagens pintadas nas paredes: Cristo no horto, Cristo na Cruz, Verónica, Senhora do Rosário, milagre da Senhora da Nazaré…

Difícil explicar como é que um homem de 30 anos, preso por crimes contra a religião, continuava dizendo tantas blasfémias e barbaridades, alto e bom som, para os diversos companheiros de cela, incluindo um frade cristão-velho e um ex-carcereiro da inquisição. Era o mesmo que estar a pedir que o queimassem…

Seria um louco) Faltava-lhe uma aduela? Ou, antes, era “soberbo” e amigo de “contradizer”, como os outros o retrataram? E porque se gabava de ter enviado 5 mil cruzados para Livorno e se preparava para fugir e tornar-se ali judeu, como os seus irmãos? Aparentemente era esperto e instruído, a ponto de elogiar a parte do Catecismo de Frei Bartolomeu dos Mártires que falava de Moisés e o resto “estercos, sujidades e mentiras”. E sobre os inquisidores questionava: — Querem ser juízes de nossas consciências, dando-nos Deus livre arbítrio?

Manuel Mesquita, cristão-novo, rendeiro, de Leiria e João Esteves, guarda da inquisição, foram seus companheiros de cárcere e, face à torrente de blasfémias e comportamentos judaicos de Pedro, resolveram-se a escrever uma espécie de diário dos mesmos, para contar aos inquisidores. Veja-se a referência feita pelo ex-guarda, no dia 18.7.1630:

— Rezando o dito Manuel Mesquita e oferecendo a reza a uma imagem de nª sª do Rosário, que na parede estava pintada em papel, o dito Pedro Mesquita se foi por detrás e o empurrou para que desse com os focinhos na imagem, com escárnio e desprezo dela evidente.

 E esta, referida ao dia 24 seguinte:

— O dito Pedro Mesquita disse (…) que fora uma vez a S. Gião, pela quaresma pedir um escrito de confissão a um clérigo por 50 réis,; e que o achara sempre escrito por um tostão de confissão, sem se confessar, por se desobrigar da quaresma…

Pedro e outros prisioneiros de cárceres diferentes comunicavam por código e abecedário feito de pancadas na parede. Assim, ele era conhecido como o Farol da Barra e grave crime cometido por ele cometido no cárcere foi o de tentar induzir outros presos a “dar” no Chacon e outros seus acredores, aconselhando a que as denúncias deviam ser feitas perante o inquisidor Pedro da Silva Faria “que folgava muito dessem em homens ricos”. Em uma das mensagens comunicadas por pancadas na parede, um Fulano Farto que estava noutra cela pediu-lhe: — Dá no Baeça do hábito de Cristo e nos Passarinhos, que já cá estão. A isto respondeu Pedro “pelo ABC, que assim o faria, se eles quisessem dar nos Chacon e que muitas vezes dissera falsamente de muitas pessoas para contentar o senhor inquisidor Pedro da Silva, que folgava muito de darem em muita gente rica e que a gente que nomeara tinha de fazenda mais de 500 mil cruzados”.

Obviamente que a sentença, lida no auto da fé de 2.4.1634, teria de ser exemplar: — Cárcere e hábito perpétuo, sem remissão e em confiscação dos bens e leve mordaça e carocha de falsário e seja açoitado pelas ruas públicas da capital e degredado para as galés por tempo de 10 anos, onde servirá sem soldo.

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 7067, de Diogo Mesquita Muñoz: — O tio Francisco Vaz, já defunto, foi casado com Inês Vaz, cristã-nova de Vila Flor e depois de viúva foi para Madrid, de que tiveram 3 filhos e 2 filhas.

2 - Breve faleceu o pai e, anos depois, o cunhado Manuel Fernandes e, ficando viúvas, a mãe e a irmã de Pedro, foram também para Madrid, ao início da década de 1630.

3 - Inq. Lisboa, pº 9949, de Pedro de Mesquita.

4 - Inq. Évora, pº 6132, de Rui Lopes Pinto. A propósito confessará mais tarde Pedro Mesquita: — Vindo ele de Madrid a esta cidade, de assento, vinham também António d´el-Rei (…) Diogo de Pena, mercador de S. João da Pesqueira ou Chacim (…) e António de Leão, mercador do Mogadouro…

5 - Pº 9949: — Disse que havia quebrado de pouco, com débito de 16 mil cruzados a diversas pessoas as quais se encontram em um rol que lhe foi achado, que começa em Diogo Álvares Pessoa e acaba com Henrique de Sola, em que está a dita quantia, e os que tinham um x na lista tinham já assinado um compromisso que se fez com os ditos acredores para lhe esperarem cada um pelo seu débito 3 anos em cada seu pagamento, ficando por fiadores dele declarante Rui Lopes Pinto, seu sogro e Jorge Gomes Pinto seu cunhado…

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães