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Olhar para trás

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Uma voltinha à aldeia, onde atualmente o sol já se deita muito mais cedo, permanecendo o seu brilho um pouco mais tarde na torre da igreja. Não é uma aldeia deserta mas desertificada. A maior parte das persianas encontram-se fechadas dia e noite.
Olhar para trás de si, qualquer que seja a estação do ano, é contemplar, pelo pensamento, um cemitério cada vez mais vasto onde se levantam silenciosamente as silhuetas dos “nossos defuntos”. É repensar na geração dos nossos pais e dos que foram seus contemporâneos. Mas é cada vez mais, com o passar dos anos, compreender que os mortos de hoje são os nossos contemporâneos, aqueles com quem trabalhámos, caminhámos, convivemos, amámos. Estes rostos obsessivos, que já não passam muitas vezes de fotos armazenadas nos computadores, investem-nos e habitam-nos neste período de luz, cor e perfume de outono. Falam-nos da nossa vida em comum, das paixões partilhadas, do clima dos anos anteriores. Das dificuldades ultrapassadas em comum.
Os mortos são os nossos próximos bem definidos. A partir do momento em que partiram, num estúpido dia de agosto por exemplo, vivem e habitam na nossa memória viva onde se instalaram com direito a tiragem permanente. Nunca os afastaremos e como? Se contaram nas nossas vidas, que continuem a fazê-lo depois da morte. São um recurso permanente para nos ajudar a enfrentar, aguentar e transportar os dias: um casal defunto ou um amigo desaparecido nunca concluíram o seu trabalho dentro de nós mesmos. É como se olhassem por nós, com as suas vozes audíveis, os seus sorrisos perpetuados e a sábia forma de nos aconselhar a relativizar as nossas preocupações.
Ficamos contudo perante uma prova que nada tem a ver com a festa americana que não faz mais do que maquilhar a realidade e o medo. A nossa perspectiva é magnífica, mas aleatória. Nos cemitérios todas as inscrições garantem que os nossos familiares (ou desconhecidos) “descansam aqui à espera da ressurreição”. Esta aposta em forma de afirmação encontra-se no coração da mensagem cristã. Perturbante, apesar de tudo, um tal pressuposto. Difícil de atravessar este mistério. Nada se encontra verificado. Mais ainda; ignoramos completamente a forma como poderiam acontecer as coisas no dia em que essa promessa surgiria. Não conhecemos nem a forma, nem o momento dessa reaparição que vai até ao reencontro do corpo! O nosso corpo com que idade? E em que estado? Não o corpo sofredor dos sofredores, seria um castigo injusto, eterno.
“Transfigurados”, respondem os teólogos desde há séculos. Mas da transfiguração em questão não temos qualquer ideia, qualquer representação. Seria uma “alma” revestida de atributos? Um espírito com uma ancoragem carnal mínima ? Uma forma vaga envolvida por uma tal luz em que nenhum pormenor seria percetível nem necessário? Este mistério faz balançar o nosso imaginário, e deixa-nos no turbilhão do incerto e do improvável. Faz rir às gargalhadas os que não crêem nem em Deus nem no diabo.   
Porém, esta famosa “ressurreição” prometida, porquê esperá-la? Porquê colocar-se numa fila de espera que não levará a nada, nada ao fundo? Para quê, sobretudo, suportar as provas que, no fim da vida, se acumulam tão cruelmente? É preciso consentir ao desconhecimento desta espera e dar sentido aos sofrimentos retirando-lhes a carga de puro escândalo. E admitir que esta espera do desconhecido é a nossa única possibilidade de nutrir a bela virtude da esperança. Loucura, finalmente, esta esperança. Loucura sem provas estabelecidas, sem verificação científica ou experimental, triturada dolorosamente com a razão.
Contudo é talvez o que faz a sua força, esta loucura consentida.

Adriano Valadar