Os rios do nosso descontentamento

PUB.

A seca que afecta todo o território nacional é particularmente deprimente e revoltante em Trás-os-Montes porquanto muitos são os rios, os ribeiros e as ribeiras que, no presente, inutilmente retalham a região.
Tempos houve em que as energias fluviáteis constituíam uma dádiva suprema da Natureza: consolavam homens e animais, fecundavam hortas e pomares e moviam diligentemente azenhas
e moinhos, fosse Verão ou Inverno. Ainda que, não raras vezes, a partilha de águas de rega redundasse em conflitos sangrentos ou as águas do Tua que banha Mirandela, por exemplo, ficassem empestadas quando as populações ribeirinhas botavam o linho a demolhar, a montante. A água era recolhida nas fontes apenas quando dela se precisava, fazendo-se uso de cântaros, de jumentos arreados com cangalhas e de bilhas de barro que a mantinham fresca em pleno Estio. Em contraponto nas adegas sempre havia pipas de vinho para dar de beber aos amigos e vender, fizesse frio ou calor.

Até que apareceu a revolucionária água canalizada e passou a ser suficiente abrir a torneira para facilmente a ter ao dispor, com abundância, para todos os usos e maus costumes.
Foi o tempo em que o provérbio que referia arderem os montes e secarem as fontes, legenda de um sofrido ritual que o povo vivia e suportava com naturalidade, apenas dizia respeito ao mês de
Setembro. Agora não: aplica-se a todos dos meses de Verão e também aos de Primavera e do próprio Outono. Grandes calores e secas aconteciam ciclicamente, muito embora com intervalos dilatados, no quadro de conhecidas variações climáticas. Agora, dizem os entendidos, mais provável será que passem a acontecer ano a ano, não por força das variações mas das incontestáveis alterações climáticas. Também deixou de ter graça e sentido dizer-se que nas aldeias transmontanas sempre havia, em casa, mais vinho do que água, fosse Verão ou Inverno. E que, por
isso mesmo, nunca ninguém morreria à sede.
Ideia que subconscientemente continua a nortear os nossos mal-amados governantes centrais e, por simpatia, os locais, já que, até hoje, nem uns nem outros nada de relevante fizeram para
resolver, ou sequer minorar, este problema recorrente da seca que agora ganha foros de calamidade. Se não têm água que bebam vinho, parece ser o seu espúrio pensamento.
Foi assim que os rios transmontanos, deixados a correr desagovernadamente para o mar, paulatinamente se converteram em rios de desleixo e descontentamento.
Lamentavelmente tudo aponta para que os tais governantes centrais, a que pomposamente se chama ministros, e os locais, que enfaticamente são designados por autarcas, continuarão a discutir e a balancear entre a regionalização inútil e a descentralização fútil, só se interessando verdadeiramente com o problema da falta de água quando deixarem de ouvir as pedras de gelo tilintar nos copos de whisky.
Entretanto malbarataram milhões da CEE nos lodos de umas tantas poças e charcas, valendo, na emergência, as providenciais obras da ditadura que, sem pruridos ideológicos, continuam a dar
de beber a pessoas e a animais e a salvar a agricultura. Já a apropriação polémica que as companhias elétricas fizeram das águas do Douro e afluentes, que agora estão a render lucros
imorais aos seus proprietários, apenas veio comprometer e dificultar o abastecimento de água das populações e a rega das hortas, das vinhas e dos olivais, por mais agradáveis que sejam à vista as albufeiras que originaram. Por demais triste é constatar que, perante tão instante calamidade, continua a não se vislumbrar políticas, projectos ou planos de aproveitamento hídrico de
âmbito regional, adequadamente interligados, coordenados e dimensionados. O que só se compreende porque o Governo, demonstrando deplorável cobardia democrática, neste como em muitos outros casos, se revela incapaz de governar sem a palmadinha nas costas da oposição, ainda que para tanto o eleitorado lhe tenha dado maioria absoluta.

É caso para se dizer que anda completamente à nora e que já nem picado lá vai. Ainda que, desavergonhadamente, não deixe de regar a sua horta. Não será de admirar, por isso, que os montes continuem a arder, as fontes e as adegas a secar e a morrer à sede os que os que bebem e os que não bebem.

Henrique Pedro