Armando Fernandes

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De Profundis

Repito-me sem tremor na altura do dia de finados. Agora, sem temor porque consegui saltar da barca de Caronte, a queda em consequência do aparatoso salto tem-me custado demorada convalescença e profunda reflexão acerca da finitude da vida.
Milhões de mulheres e homens desaparecem sem deixarem vestígio ao modo dos mortos desprovidos de moedas para pagarem a passagem na referida barca. A Mitologia é acervo de mitos, lendas, gestas e outras reminiscências dos nossos ancestrais, do seu estudo ganho saberes sobre o riso, a ironia, o sarcasmo, a comédia, o drama, a farsa e a tragédia. Todas estas versões teatrais estão impregnadas de dor, de sofrimento, de morte.
Na espuma dos dias de agora esconde-se a morte, o De Profundis é considerado tremenda maçada se dure mais de trinta minutos, a manifestação ou sinal de luto, disso retirei a prova-provada ao colocar em volta do pescoço uma gravata preta durante dois anos e meio após a morte do meu filho mais velho.
Fala-se na construção de um memorial a recordar as vítimas dos incêndios, ainda bem, no Largo do Principal em Bragança ergueu-se um obelisco a salientar os combatentes mortos no decurso da 1ª Guerra Mundial. Poucos caminhantes reparam no dito memorial, menos os que sabem qual a causa da nossa interesseira participação no cruento conflito.
Por obrigação do cumprimento do dever para com a Pátria, ao exemplo de tantos outros integrei um Batalhão de Artilharia no período da guerra colonial. Tive a sorte de regressar, milhares de camaras lá perderam a vida. As esporádicas manifestações de apreço pelo seu sacrifício sepultam na obscuridade o sentido patriótico, enquanto pululam os patrioteiros especialistas na obtenção de mordomias acrescidas de medalhas deixando os mortos ao cuidado das ténues labaredas no Mosteiro da Batalha. Discutir-se seriamente a Guerra Colonial só em Congressos também palco de vanidades, os morto em combate fazem parte da estatística explicada pelo sinistro José Estaline, Zé dos Bigodes da literatura neo-realista.
Em Bragança, em Trás-os-Montes, não faltam elementos iconográficos relativos à morte e a mortos que conseguiram salvar-se do anonimato, as suas representações deviam ajudar os professores a melhor explicarem os programas. Sim, eu sei, consagrar atenção à morte fora do âmbito individual pode merecer críticas, dizer-se ser ideia abstrusa, interessar em primeiro lugar a criatividade óbvia da vida, colocar nos braços dos poetas, dos dramaturgos, dos romancistas, dos escultores, pintores, e tutti-quanti das artes, da sétima, o tema da morte.
Discordo. Já escrevi, gosto de perceber as localidades visitando os cemitérios, uns simples, outros repletos de ostentação e bazófias. E, no entanto, todos nos ensinam.
Também a Antígona nos ensina a honrar os mortos ao tratar do corpo do seu irmão morto pelo irmão, numa luta feroz entre irmãos, cujo móbil era o trono de Tebas (julgo na errar ao escrever que o bragançano Paulo Quintela encenou a peça de Sófocles, e a vinhaense de Sobreiró de Cima, Elza Fernandes (Chambel, apelido do marido) interpretou brilhantemente a heroína capaz de enfrentar a lei dos cúpidos humanos, defendo o direito de enterrar condignamente o irmão que integrava o núcleo dos vencidos.
A História explica as causas de não haver piedade para os vencidos, no cromático México o dia da exaltação dos mortos é estridente, festivo, de «comunhão» com os vivos, para lá do espectáculo os vínculos com os desaparecidos são fortes, daí as garridas convivialidades.
No Ocidente a cultura do efémero não favorece a comemoração de efemeridades dolorosas, os ocupantes voláteis, inevitavelmente, o choque é inevitável, já nem aludo ao das civilizações, refiro-me à consequente perda de identidades levando à natural «desconfiança» entre os de ontem e os de agora. Ora, se as representações simbólicas da tristeza, do luto, da dor, da morte, são postergadas, cria-se uma animosidade muda a favorecer o corte epistémico favorecido pela dicotomia urbano/rural, idoso/jovem, mãos calejadas/mãos níveas, reserva/farândola.
O meu De Profundis principiou antes da evocação dos Finados, deixo neste artigo inquietações geradas pelas tribulações sofridas nos últimos tempos, não são desabafos, são as ditas inquietações a que procuro responder procurando consolo na leitura de meditações e aforismos de múltiplas latitudes e atitudes.
O dia está a esvaziar-se, a televisão transmite imagens de feroz violência numa rua de Coimbra, junto a uma discoteca lisboeta, o meu íntimo constitui o palco onde sou actor impotente contra as selvajarias e espectador de que gostava de tomar a seu cargo a aplicação da justiça e consolar os ofendidos. Debalde, fica a indignação a não turvar a imagem no espelho da consciência. De Profundis.

Rio acima, Rio abaixo

O seu posicionamento ideológico é de um cidadão que assenta com base na razão do estudado num colégio de disciplina e língua alemã, na ordem de um determinado Mundo, que por vezes se cruzam secura no trato e comedimento nos gastos e surgem ideias e formulações que chocam contra interesses, burocracias instaladas e acomodadas, a abstrusas práticas dos aparelhos partidários. Estou a falar de Rui Rio.
Bem sei, dentro do PSD há quem o acuse indeciso, de o sotaque dele ser pronunciado, de ter afrontado e vencido um homem poderoso na altura, conhecido em determinados meios pelo apodo de Papa, concretamente Pinto da Costa, de preferir as boas constas ao «ponha no livro», de os carros nas suas mãos durarem anos a fio.
É verdade, também é, para desgosto meu defensor da regionalização, aprecio o seu empenho na aplicação da justiça de forma célere e rigorosa, a defesa da doutrina social-democrata antítese do espúrio neoliberal de má memória, personalizado em Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque. A continuada aparição das suas imagens na televisão lembrou aos eleitores os cortes nos salários e pensões, eles entenderam castigar duramente os visíveis rostos da pungente austeridade.
Para lá da lógica dos burocratas laranjas, os eleitores de modo geral aguardam uma ruptura decidida com a prática seguida pelo PSD nos dois últimos anos, a não se concretizar o seu emagrecimento eleitoral continuará a proporcionar réditos avantajados a António Costa. E, quem está mais habilitado a romper a inócua prática?
O trumpista versão portuguesa entenda-se o menino na incubadora, o rapaz de lenço na cabeça ao modo dos piratas em iates capitalistas, o playboy das santanetes, o sportinguista militante e fugitivo, o primeiro-ministro do nosso descontentamento, Pedro Santana Lopes não me parece crível. Sim, eu sei, nós sabemos, o caminhante de andar por aí ganhou a Câmara de Lisboa, e antes a da Figueira da Foz, e apetece perguntar: e o que sobrou de tais vitórias? Uns lugares consignados a amigos, tal como a gritante reserva de o cadeirão de deputado a um seu prosélito antigo autarca em Ourique.
Sim eu sei, nós sabemos, tem sido louvado o seu desempenho na Santa Casa, não coloco em causa a exibição, quisesse eu arranjaria cuidados implicativos, o tempo é grande escultor dizia a Yourcenar.
Está em jogo o poder, não discricionário, no PSD. Está em jogo a solvência em alta do Partido interclassista, de raízes populares urbanas e rurais, de veios cristãos e respeito pelos laicos, detentor de lastro nacional, não nacionaleiro, capaz de fazer frente ao Partido Socialista. Caso não consiga e se acentue o seu definhamento o sistema político acabará no modelo mexicano do PRI, com nefastas consequências daí advindas.
Está nas mãos dos militantes escolherem o guia dos seus destinos políticos, a escolha deve e é livre, cabe-lhes sopesar tudo quanto está em jogo, o arrependimento nestes casos e estilo apertar a orelha é ela não deitar sangue, importa que os decisores de base coloquem a paixão na arca e deixem a razão prevalecer.
Há antecedentes de insensatez, recordo um, o modo como Manuela Ferreira Leite foi defenestrada, lembro a sua lucidez na análise da situação económica e modos de obstar à aplastante caminhada em direcção ao abismo, a Senhora não gostava de andar no circuito da carne assada e puré de batata, de distribuir beijos e abraços a esmo, no entanto, tinha razão. O País pagou duramente o não ter sido ouvida. Dizem-nos ter regressado o tempo das vacas gordas, ainda bem, conviria que esse ciclo ultrapassasse os sete anos, conviria darmos plena expressão à terra de leite e mel, conviria nunca mais voltarmos a termos de suportar a agonia da austeridade. Ora, a coexistência de dois partidos sólidos e entregues a dirigentes bem estruturados, afastados dos jogos da corda saltitante e da macaca do pé-coxinho, são imprescindíveis, a não ser assim venha o Diabo quando quiser para gáudio de Passos Coelho.

PS. Barcelona não é só dos independentistas, dos que votaram sem cadernos eleitorais, com trapaça, insultando os adversários catalães do surto da independência. A ganga propagandística aposta na radicalização. Os custos que os paguem os outros! Se vingasse a tese da independência nós íamos pagar muito, com língua de palmo. A vesguice é atroz.
 

O voto é a arma do povo

Esta arma só é bem empregue quando nos convém; Júlia Rodrigues pode, finalmente, salientar a justeza do tiro, António Branco lamentará o não ter sabido defender-se a tempo e horas, certamente, ele nunca leu a A Arte da Guerra e, agora é tarde para o fazer.
Não vou a Mirandela há muito tempo, no último encontro no qual esteve o ora derrotado percebi-lhe a inobservância relativamente aos tiques provenientes do excesso de poder, tais tiques denunciavam alvoroto de ser dele a última opinião, discutia-se o movimento do slow-food, as cidades geradoras de lucros e emprego através das indústrias do ócio, no dia posterior uma possibilidade de introdução de um curso académico cujo mote seriam as artes culinárias segundo o modelo das Universidade John Wallis e Universidade de Florença, a pulsão da «soberania da sua sentença» acentuou-se quando procurei dar sequência ao analisado.
Os anos passaram, pelos jornais recebia indicações de Branco acumular destrunfes inconsequentes numa boa imitação dos posicionamentos de Passos Coelho e seus cortesãos, de soma em soma até à derrota do dia 1 de Outubro, fruto da acutilância e empenho de António Costa.
Num jantar de exaltação do butelo no restaurante da Dona Justa e do Sr. Nobre, fiquei defronte da vencedora. Conversa amena, divertida, até rememorei o apodo de Costa em determinados círculos, para lá do manto diáfano da aparente trivialidade da conversa registei a passagem de forte vontade de a sua mensagem estabelecer os fundamentos necessários a boa colheita de votos na devida altura. Os seus textos publicados neste jornal corroboram a impressão colhida no decurso da aludida refeição. E agora?
Agora, espera-se a concretização das promessas feitas e a consequente autocrítica de Branco, isto se não quiser engrossar a fileira de passistas perdidos no seu labirinto desprovido de húmus político engendrado pelo renunciante Passos Coelho. Noutro jornal, há dois anos anunciei a morte política do clamorosamente derrotado, na altura recebi palavras rancorosas e rançosas dos sins senhores da nomenclatura vinculada à burocracia laranja, ela ainda estava convencida de ir sobreviver à hecatombe provocada pela arma do povo.
Não estou em condições de opinar relativamente aos restantes concelhos exceptuando Bragança, o êxito de Hernâni Dias antecipei-o no artigo intitulado «Prognósticos…», não precisei de ir a Delfos (ilha de mar azul cobalto) consultar a pitonisa, muito menos «ler» nas estrelas na falta da bruxa de Quiraz, o candidato socialista derrotou-se num arrombo de antes de o ser já era, adivinha adivinhada por meninos de cinco anos. A pescada acabava e continua a acabar assada no forno, cozida, frita, grelhada ou guisada, Carlos Guerra salva-se de um qualquer salteado porque a civilização impede a antropofagia alimentar, já no que tange à antropofagia política tumultuosa e barulhenta deve ter começado na jornada nocturna da contagem dos votos a obscurecedora a parafernália do seu currículo.
O Sr. Carlos Guerra pode alegar em sua defesa a entrada no bornal socialista as Câmaras de Macedo de Cavaleiros e Mirandela, somadas à manutenção das restantes cor-de-rosa, sim é verdade, só que nesse colar rosa falta a joia principal – Bragança – concelho a propiciar grávida e grave derrota ao Presidente da Distrital, além de que os vencedores nos outros concelhos ciosamente guardam enfunam os louros dizendo serem sua pertença.
Julgo interpretar adequadamente os resultados se escrever que no Distrito, só existem dois projectos políticos a prenderem a atenção do eleitorado, a arma do povo gasta o grosso das munições nas áreas socialista e social-democrata, as restantes formações partidárias vão vivendo uma ronceira meia-vida alegrada no salão das vaidades nas autárquicas e legislativas.
O nó-Górdio está a estrangular o PSD, se assim continuar estão tem razão um dos responsáveis do seu definhamento quando fala da ruralização do Partido, Miguel Relvas não pode sacudir a água (não chove) do capote, o seu activismo político na prática da teoria do salame afastando todos os militantes não passíveis de se acomodarem ao localismo passista foi tremendo, podendo-se dizer quão benéfico o foi para si próprio (enriqueceu) e protegidos.
O enfunar ideológico neoliberal a ultrapassar a troica em proselitismo levou a um virar de costas dos eleitores laranjas dos núcleos urbanos onde mais se fez sentir a canga da terrível tríade, e, enquanto Passos e Maria Luís surgirem nas televisões pior é, assim o demonstraram os resultados em Lisboa, Porto, Sintra, Oeiras e Setúbal.
O PSD a continuar na senda do desastre irá contribuir para o aumento de influência dos socialistas, irá resvalar na ribanceira da pequenez, irá colocar em perigo os núcleos onde ainda é poder, pois como dizia o autarca do distrito de Viseu, quem não pertencer ao partido do governo não recebe benesses. Ora, o PSD nos últimos tempos tem feito grandes progressos no sentido de ficar relegado desse mesmo poder durante muitos anos. E, a refundação/reformulação não ocorrerá com um qualquer D. Sebastião. Bem podem os saudosistas sonharem, em política o sonho não comanda a vida. Será que os discípulos de Passos não entendem o significado do dito pelo emérito filósofo a respeito de Platão: sou muito amigo de Platão, mas sou mais amigo da verdade.
A renúncia de Passos a recandidatar-se era inevitável, deixa o Partido fragilizado e anémico, só doses cavalares de vitaminas conseguirão recuperá-lo. A acontecer, os socialistas têm de sopesar a gula da maioria absoluta.

Precários

O universo da precarização laboral cresce continuamente, por cá a regularização de alguns milhares de precários existentes na função pública coloca termo a situações escandalosas, no entanto, a árvore não pode, nem deve tapar a floresta. Já escrevi acerca da revolução tecnológica em curso, cujos efeitos no domínio da manutenção do emprego é, proporcionalmente, de custos bem mais elevados dos que gerou a Revolução Industrial.
A Amazon a maior empresa de livros no Planeta sem ser editora, ou a Ali Babá imenso escaparate desprovida de suporte físico, revelam o vai vem das compras desenvencilhando-se de profissionais de várias categorias do «clássico» sistema organizacional do comércio. No caso da comunicação social o problema é mais avantajado, mais bicudo, mais preocupante, isto porque a mola real da sua sobrevivência assenta na publicidade e esta foge continuamente para as redes sociais e canais on-line. O Facebook concentra 80% da publicidade digital sem gerar conteúdos e contratar jornalistas.
Há anos o Doutor Alexandre Manuel, antigo jornalista e editor, agora professor no ISCTE, no decorrer de um colóquio em Bragança afirmou só acreditar na sobrevivência da imprensa regional tendo explicado a causa da sua opinião. Recentemente, o Dr. Balsemão na esteira de outros empresários deixou indicações de pretender alienar várias publicações periódicas, exceptuando o Expresso por antes de ser a joia da coroa, é lucrativo.
Há dias um rapaz ficou sério e mal disposto quando lhe disse ser candidato ao desemprego ao ter escolhido o curso de comunicação social, ele ou anda distraído ou não gosta de perceber a realidade, só em Espanha foram dispensados 15.000 jornalistas nos últimos anos e mesmo o gigante El País enfrenta dificuldades, a venda da TVI é consequência do enorme endividamento do jornal.
A comunicação social das regiões sempre me atraiu, escrever no Diário de Notícias concedeu-me maior visibilidade, porém os jornais de vinculação local têm uma maior tempo de vida nas casas dos leitores, além desta fidelização, para o bem e para o mal, quem os lê joeira em crivo apertado o ponto de vista de quem escreve e se respeita a sua matriz intelectual. Sendo assim, e é, o escrevente não pode debitar sentenças impossíveis de cumprir, menos ainda proposta de actuação ou acção dos poderes públicos irrealizáveis, esbanjadoras, delirantes.
Ora, os despropósitos têm levado ao fenecimento de órgãos de comunicação social aumentando a precaridade redundante – os jornalistas, dos referidos órgãos – empobrecendo a nossa capacidade de expressão do pensamento pois os investidores não estão dispostos a sustentarem bagatelas de nefelibatas desprovidos do sentido da medida.
Sim, eu sei, nós sabemos quão grande é a transformação do Mundo minuto a minuto, dia da dia, em cruel competição a levar à aceitação da precaridade, os recursos são finitos, os candidatos a uma ocupação milhentos, longe vão os tempos dos empregos para uma vida.
Se me é permitido direi que ainda persiste na sociedade portuguesa o desejo de arranjarmos emprego à mesa do orçamento, como quem diz, na teta do Estado.
As clientelas partidárias ajudam à manutenção da referida ideia, daí a projecção das juventudes jotas no círculo dos jovens, apontando-se exemplos, ouvindo-se impropérios dos jotas quando não conseguem um lugar solarengo nas listas candidatas a eleições autárquicas e legislativas. Os contemplados bufam de alegre bazófia prestando-se a executar tarefas eivadas de truques e a transportarem a pasta dos seus «apoderados», muitos deles provindos de fornadas amais antigas de jotas.
A precaridade só se combate através do insano trabalho dos empresários geradores de riqueza, logo de emprego, e no espaço estelar dos jovens quando são competentes, empreendedores e atrevidos no explanar ideias brilhantes nos domínios inerentes à sua formação académica. Neste jornal vou lendo os sucessos de alunos do Instituto Politécnico de Bragança, eles não se deixam derrotar pelo fatalismo, são propensos à paciência de estarem anos no periclitante sistema das bolsas, todavia, em função do seu excelente currículo acabam por ter a «sorte» de obterem o sonho ou desejo que perseguem. Todos sabemos que a sorte dá um trabalhão, um trabalho dos diabos, mesmo no mês de Setembro!

Prognósticos só…

Hoje poucos se recordam do nome daquele futebolista autor da frase famosa – prognósticos só no fim do jogo – a alacridade da evidência tornou-a digna de figurar nos anais do anedotário jocoso, digna de entrara nessa irónica, sarcástica e satírica saída do prelo no início do século XVII, o Anatómico Jocoso. Vale a pena ler a grafia da época, no mínimo empanturramo-nos de riso castigador dos costumas de fidalgos lambuzes e outros que tais.

O acima escrito vem no propósito de, pese possuir parca informação colhida neste jornal e no jornal Mensageiro, escrever o prognóstico relativo ao próximo prélio eleitoral, sem o resultado ser conhecido contrariando o dito pelo jogador.

Penso estar encontrado o vencedor – Hernâni Dias – afirmo-o não por determinações do sentimento de amizade, sim porque por nás e nefas não vislumbrar candidato a colocar em causa a sua vitória.

 Ele prosseguiu a obra encetada por Jorge Nunes colocando o seu cunho pessoal nesse progresso, é afável e de bom trato mesmo nos momentos de confronto, procura conhecer a causa das coisas, ante reclamações não as enjeita, curialmente, explica-as segundo ditames plausíveis de forma o reclamante ficar emaranhado nas suas palavras. Já o vi sair-se airosamente de situações iradas logo irritadas de cidadãos descontentes por via do ruído aqui, do pavimento estalado acolá, do contentor a estalejar de lixo perto da casa dele.

A oposição dos pequenos partidos não lhe tirou e tira o sono, a junção dos contrários partidários é recorrente, as listas ditas independentes representam ressabiamentos, ciúmes, despeitos e invejas. Os resultados de tais representações funcionarão como acicate no próximo mandato. Disso não tenho dúvidas e se parafraseasse o ressuscitado Professor Cavaco Silva, acrescenta – raramente me engano – espero não me enganar desta feita.

A possível alternativa ao PSD era o Partido Socialista, digo era pelas seguintes razões:

  • Ao não debelar e cicatrizar a ferida fruto do gume da navalha a cortar cerce a recandidatura de Mota Andrade nas últimas legislativas levou a permanecer a pulsão de antagonismo interno originando a sulfurosa e silenciosa prudência da escola jesuítica.
  • A candidatura de Carlos Guerra produziu estupor nos íntimos de Mota Andrade, ficando estes a observar o «andar da carruagem» e a ver onde paravam as modas. As intenções concretizadas em decisões de Carlos Guerra levou a o Partido Socialista não ter conseguido construir listas em dezassete freguesias. É obra!
  • Obra negativa explicada nas colunas do Nordeste em sereno, todavia incisivo de Fernando Calado, educado na forma até na elucidação das componentes do seu desconforto, pontudo no decifrar a quebra da cadeia de afectos consolidada ao longo dos anos, destruída num ápice rompante ao modo do quero, posso e mando.
  • Contra factos não há argumentos, soe-se dizer, nesta matéria o não conseguir apresentar listas em quase dúzia e meia de aldeias é sinal de estonteante fraqueza, de frouxidão no trabalho preparatório, de muitas escusas e recusas à espera de melhores dias. Os que nada esperam sabem esperar!
  • O secretário de Estado Jorge Gomes, fiador de Carlos Guerra, deve estar arrependido de ter soltado numa entrevista a frase – O partido Socialista tem a obrigação de ganhar a Câmara de Bragança – na altura o optimismo reinava, depositando o governante grandes esperanças no candidato nascido em Freixo. Ora, grandes esperanças estão sempre ao nosso dispor no livro de Charles Dickens. Não o leram? Ganham se o fizerem.
  • No debate televisivo Guerra não foi feliz, exibiu toques e tiques de sobranceria de alto funcionário, relativamente à matricialidade imaterial vestida de história do concelho aos costumes disse nada numa perspectiva de tão notável património ser utilizado como alavanca de modernidade e desenvolvimento. Arquimedes não teria desaproveitado a ocasião.
  • Nada me move contra Guerra, nunca falámos à excepção de brevíssima troca de palavras no decorrer de uma exposição de produtos de Vinhais realizada há anos em Oeiras. Sei da sua ancestralidade da vila de Guerra Junqueiro, de ter casado numa respeitada e sonante família.
  • No meu parecer enquanto vivificar o antagonismo de António Costa a Mota Andrade nunca será possível reinar harmonia no seio do Partido a nível distrital. O «Zé Mota» soube construir a tal teia de afectos  que escapa a Guerra. No PSD sucedeu cisma igual há largos anos, na altura o bragançano Telmo Moreno soube romper a reia da estratégia da aranha (vejam o filme) e os muros dos antagonismos espúrios.
  • Pelo exposto o mau prognóstico é a vitória de Hernâni Dias, ele cerziu a lista levando em linha de conta o passado há quatro anos, levando em consideração a mudança de paradigma, no desejo de levar a carta a Garcia sem obstáculos de maior. No dia 1 de Outubro veremos se acertei ou me esbarrei fragorosamente.

Armando Fernandes

PS. Como é público e notório tenho vivaz estima por Hernâni Dias e Mota Andrade. Estimando-os, estimo primacialmente a liberdade de pensar e de o expressar.

Ao Deus desconhecido

A seca extrema faz estremecer todos quantos pensam no global, não dessedentados nas esplanadas onde debitam sabenças abstrusas revelando indubitavelmente desconhecer em profundidade, largura e altura as consequências da tragédia caso a secura persista.
O panorama actual trouxe-me à memória filmes e livros nos quais o tema é tratado de modo pungente, dois livros recordo, A Estrada do Tabaco, sensual e violento, de Erskine Caldwell, e, sobretudo, Ao Deus Desconhecido, de John Steinbeck, nessa obra o autor de A Leste do Paraíso, rastreia o desespero de um homem vítima da seca devastadora da plantas e animais, deixando a terra gretada, sedenta, dilacerada, sem préstimo.
Porque vem ao talhe de foice trago à colação o rio Fervença no pináculo do verão, reduzido a um fio de água, pestilento assim escreveu o antropólogo e sociólogo Alfredo Margarido, nascido na Moimenta da Raia (Vinhais) e episódico estudante na cidade do Braganção. Certamente, alguns leitores recordam-se do Fervença estival crivado de pústulas e pequenos charcos de água pestilente povoados de rãs a coaxar, e girinos saltitantes.
As rãs não eram as de Aristófanes, prosaicamente, coaxavam acentuando a estação dos três meses de Inferno, aqui a semelhança relativamente à obra do comediógrafo grego, pois Dionísio desce ao Inferno na intenção de trazer Eurípedes de volta, já que na perspectiva do autor a sociedade apresentava sinais de putrefação.
O Fervença renovou-se através do programa Polis, a seca só pode ser extirpada caindo chuva, não diluviana, bem caída, de modo a revigorar os campos, dar vivacidade aos nascentes, encher as barragens, dar oxigénio aos peixes, conceder alívio às mulheres e homens agarrados à agricultura, a nós próprios refrescando-nos os corpos e os espíritos.
Não quero escrever uma crónica lamechas ao estilo de redacções da época escolar, gostava de prender a atenção dos leitores tanto pelo conteúdo, como pela forma, só que passar em várias regiões do País é registar visões de vales e montanhas de cor negra e cinzenta dada a virulência dos incêndios, é vislumbrar charcas sem pinga de água, verificar a indigência de água nas barragens, obrigando-nos a levantar os olhares e perguntar, interrogar, sobre quantas pragas ainda temos de suportar. 
O homem ao inventar a maneira de conseguir e domesticar o fogo, pura e simplesmente, praticou a maior invenção da história da Humanidade, só que, inúmeras vezes, o criador torna-se vítima da criatura, seja porque brotou espontaneamente, seja por descuido ou insensatez, as chamas quais sarças ardentes repetem-se, gerando prejuízos monstruosos no património das gentes e trágicas perdas de vida. Não sendo especialista em fogos (era-o o malogrado engenheiro silvicultor e bragançano de gema José Matos), muito menos adivinho, porém causa-me a maior das apreensões o cadenciado dos fogos num farfar ritmado e progressivo fazendo crer na existência de uma mão escondida a listar as localidades destinadas a serem palco de incêndios quanto mais devastadores melhor. As labaredas rapam cocurutos e profundezas deixando tremenda e terrível herança e futura desertificação. Será plausível pensarmos um País seco em grandes extensões territoriais, revestido de raízes, espinheiro, e silvas?
Escrevo-o novamente, nós detemos grossas culpas no cartório, reparem nas valetas, nelas vislumbram-se lixos de múltipla espécie, reparem nos detritos deixados no chão após festas e feiras, reparem no despropósito de os contentores babarem exalando aromas desagradáveis até a pituitárias entupidas e carecidas de água e sabonete. Temos o que merecemos? Talvez. 
Muitos podem ter tão mau merecimento, porém, pelo menos os eremitas não o merecem, pode-se clamar já não existirem eremitas, mas ainda existem pessoas dotadas de escrúpulos, praticantes de uma paideia abrangente onde o nosso semelhante é valorizado dentro do estatuído pelo mandamento: não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti.
Caro leitor: tentei não imitar as carpideiras, tentei fugir do discurso do John lamentos da banda desenhada de outros tempos, tentei afastar-me do estilo de Frei Tomás, da prática julgo-me de costas voltadas para semelhante e tão nefasta personagem do imaginário-real da sociedade portuguesa, não sei se consegui o intento, o desejo existiu e existe, a consumação só quem me lê o pode confirmar.

Agosto festivo

Estamos no pináculo do Verão, estamos no epicentro das celebrações festivas, estamos num tempo de plena cantata das cigarras incluindo as humanas, porque se a maioria ganha o pão derramando o suor do seu rosto, há que temperar o sacrifício polvilhando-o de intervalos de folgança concedendo plena expressão à velha sentenças “mais vale um gosto na vida, do que cem mil réis na algibeira”

AS festas e romarias deram azo a milhentas manifestações em larga medida jocosas, como a daquela mulher convenientemente lavada e aperaltada de forma inusual ao ser inquirida acerca da causa de tão especioso ataviamento retrucou impante: “vou à festa com o meu homem”, à noite, no regresso, esbaforida, e o marido cambaleante, respondeu a quem lhe perguntou de onde vinha, azeda vociferou:” venho da festa e esse que vem atrás”.

Para lá desta e de outras facécias as festas eram a frescura das cores infantis e juvenis mais de génese feminina, este amor ao adorno e do ornamento, essa paleta cromática que durante um dia anima as aldeias numa sinfonia de sons gritados de admiração, de afecto, de inveja, de comiseração, de genuína amizade, de exclamação nas comparações entre o aquele ano e o passado presente e quantas vezes repletas de leviandade fugaz de diabrura no vai vem das recordações. É a festa!?

Escrevo é festa. Manda a realidade escrever: agora são os festivais, a ânima festiva resvalou em festivais, a passagem fez-se nos últimos anos a arremedar ritos de passagem vindos de fora, da longe, de língua inglesa, impondo-se nas noites ruidosas ao linguajar portunhol e francófono dos visitantes e emigrantes a passarem as vacanças no terrunho natal, onde tudo parece igual mas não é, subtilmente ali, riscante acolá, na rarefação das gentes nos olhares dos regressados de vez por efeito das reformas, nas alteridades das casas e equipamentos, nos utilitários transportes de matrículas de idade venerável.

Os festivais derramam luz e gritos musicais sobre os campos adjacentes à arena (agora está na moda o termo indicador de outras pugnas) ou terreiro de onde antes da bailação solta na maioria dos casos, as raparigas e rapazes quais possuídos pela doença de S. Vito pulam e voltam a pular soltando de forma audível corruptelas guturais num esfalfamento incompreensível aos ouvidos dos saudosos dos gaiteiros (agora escassos e revivalistas) e das bandas de música e/ou filarmónicas a fenecerem lentamente, ainda chamadas a abrilhantarem cadenciadamente as procissões.

O estiramento da festa em festival obriga aquele que é capaz de ler em voz alta e de compreender plenamente, a não derramar lágrimas sobre o leite derramado do fluir temporal, antes pelo contrário, compete tornar inteiramente sensível aos cinco sentidos o fragor das referidas alteridades, os não dotados de tais atributos tanto se lhe dá, o seu figurino adapta-se à moda em uso, podendo, quanto muito soltar remoques ocasionais no estilo: Maria vai-com-as-outras.

As transfigurações sociais (veja-se a legalização das barrigas de aluguer) obrigatoriamente, tinham de produzir outros olhares e mimetismos na «construção» dos travejamentos capitais do ócio gerando uma indústria de grande valor económico cujo derramamento sobre o enaltecimento dos valores religiosos e sociais nas aldeias e vilas do Nordestino é residual numa odiosa comparação com os gizados e levados a cabo no litoral em geral, e no Porto e Lisboa em particular. No entanto, desses travejamentos brotam fluídos genéticos dos Festivais a concederem vigor aos argumentos de Debord, no seu livro a Sociedade do Espectáculo. Mesmo nos aglomerados populacionais de menor densidade populacional a idosa senhora não desdenha as «modernices», pois velhos são os trapos, o atavismo ao tradicional restringe-se ao sagrado, e aos comeres de antanho de maneira esparsa. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades!

As considerações acima vertidas (de um cuidadoso verter de dúvidas e perplexidades) são-no em face de não poder recuperar o tempo perdido (obrigado Sr. Proust) na má gestão desse mesmo tempo e tentar intuir o futuro numa perspectiva de sermos capazes de preservarmos as raízes da nossa herança cultural centrada no conceito de FESTA pura e dura tão representativa dessa mesma herança de culturas cuja identidade se perde nas brunas da memória.

Os festivais perderam o verniz elitista de chispa da alta cultura, até snob, popularizaram-se, mesmo as coreografias para não falar das programações desceram no patamar das diversas matricialidade, relembro o bailado da companhia Verde Gaio em Bragança, relativamente aos Festivais, alguns deles de corrimão ou vão de escada.

À festa o que é da Festa, o telúrico, ao festival o que é do Festival, o feérico.

A campanha

Será fácil adivinhar que nas próximas semanas vamos assistir ao recrudescer das promessas de boas intenções e melhor governação por parte dos candidatos, envergando as camisolas das várias cores partidárias.

Há largos meses de modo empacotado e encapotado, os candidatos desdobram-se em promessas destinadas a embalar os votantes, isto por um lado, por outro entretêm-se no envio de dichotes destinados a todos quantos são considerados adversários, especialmente àqueles que se posicionam a par e par, e a todo o custo tentam desalojar os já suficientemente conhecidos do eleitorado.

Nesta altura nas sedes dos partidos reina ambiente pesado, cerzir as listas implica paciência de Job ante os desejos e pretensões dos militantes, firmeza no dizer não às pressões e cartas verbais vindas do interior do partido, autoridade para suster as forças de bloqueio dos dispensados, dos desejosos, dos esperançados no chamamento e que não o foram.

Se lermos atentamente os jornais nacionais e regionais, lemos incrédulos soletres manifestações de escárnio maldizer destinadas a produzir efeito nos militantes e companheiros de jornada de cada partido. Façam favor de ler acusações de traição, de duplicidade, de hipocrisia, vindas a lume nos órgãos de comunicação social, sem esquecer as redes sociais onde prevalece o vale tudo no tocante a desqualificações dos opositores.

Naturalmente há sempre pessoas cujo ego supera os Himalaias, tais criaturas julgam conhecerem-se bem e por isso mesmo pensam deter saberes e competências só por si suficientes para merecerem escolha debaixo de uma chuva de palmas e aplausos. E, no entanto, tal como os ídolos de pés de barro caso consigam alcandorar-se ao poder não tarda a enfileirarem ao lado do rei vai nu exibindo confrangedora vacuidade e incompetência.

Poderia dar-lhes de boa vontade, nomes e mais nomes, se o fizesse o leitor de imediato criticaria a lista, não por erro meu, sim porque tinha esquecido fulano, beltrano e sicrano tal é a fartura de exemplos, alguns deles autores de decisões cujo custo ao erário público é de muitos milhões, também peritos no fazer feio o bonito, destros no copianço do estilo bimbo tão do agrado de patos-bravos e seus mentores donos de canudos coloridos e cinzentos.

A escolha de quem nos vai governar a nível das autarquias não copiar a compra de melões, depois de abertos logo se vê a virtude, temos de aquilatar sobre as suas supostas intenções, não as vertidas nos manifestos eleitorais nos quais cabe tudo, sim ouvindo-o, sim obrigando-o a explicar tim-tim por tim-tim o seu conceito de cidade ou vila, a sua visão de futuro, realista, a exequibilidade das ideias por ele defendidas, a atitude em caso de desaire, fica na oposição ou desaparece, o seu futuro para lá do efémero por mais duradouro que seja.

Ao fim de quarenta anos de poder local não é lícito apregoar desdém relativamente a estas eleições de proximidade, podemos abster-nos, no entanto, a recusa de votar em coerência implica a renúncia todo e qualquer criticismo do governo municipal, a entrarmos na toca do silêncio imitando os eremitas no seio do deserto.

Eu não quero ser eremita, muito menos silencioso, eu quero usufruir dos deveres e direitos de cidadania, plenos, por tão claras e videntes razões seria estultícia deixar de escrutinar os interessados na assumpção de responsabilidades municipais, mais a mais num tempo de gritante incerteza a todos os níveis E o leitor? Vai manter-se na ociosidade política? Vai deixar ao cuidado dos outros o seu estatuto de cidadão. Vai demitir-se de si próprio? Deixo as interrogações no desejo de alertar quem lê para a responsabilidade que pesa nos seus ombros. Se um leitor reflectir sobre elas já fico satisfeito!

Tempo de verão

Há um carro de anos o saudoso Carlos Silva improvisava a lendária canção da Ella Fitzgerald no barracão de comes e bebes do Senhor Poças (Bolha) ao final da tarde ou na cave do Flórida no decorrer da noite no salsifré do jogo da moedinha refrescando-se a goela bebendo finos acompanhados de suculento pregos de vitela. Improvisava lindamente o Carlos, ele utilizava a ária da formidável artista embrulhando letras conforme as piadas em voga sempre num tom de crítica à situação social vigente.

Era tempo de verão numa época de guerra colonial, num tempo de horizontes fechados, de cenceno permanente apesar da luminosidade dos dias e a temperança da brisa nocturna. Tal tempo de verão agitado através das quadras dos «baladeiros», do suplemento juvenil do Diário de Lisboa, das lutas académicas na Lusa-Atenas.

Nessas noites a conversa entremeada de vernáculo e sementeira de alhos extravasa para a rua da República e Praça da Sé, ao tempo designada por eira de Espinhosela, discutia-se tudo, Deus, a Igreja comentando-se os textos do Padre Felicidade Alves, os livros do filósofo matemático Bertrand Russell, na altura de soltarmos palavras de azedume político, automaticamente, baixava-se a voz pois as paredes tinham ouvidos, o polícia de giro, sem pressas, aproximava-se soltando as boas-noites em intonação afável e seguia na passada ritmada de quem se obriga a gastar o tempo de turno.

A acutilância verbal de melhor quilate e vibração pertencia ao Carlos, ele emergia certeiro na análise deixando-nos duvidosos dos nossos pareceres e argumentos a escorá-los, sem dúvida, ao tempo entendia-o como guia de referência nos variados campos do meu quotidiano. Era tempo de verão, de leituras apressadas, de balancear a utopia. As utopias.

Não ficávamos isentos de crítica, falávamos de personagens da cidade recorrendo ao acídulo comentário sobre as suas andanças, ninguém era esquecido, clérigos, militares, legionários, bonifrates manga-de-alpaca sem manguitos, burocratas licenciados, professores de diploma e sem possuírem o certificado expresso no diploma, senhoras de bom, e mau porte (estas últimas justificavam particular atenção) incluindo as amásias promovidas a governantas, nesse tempo existiam algumas proprietárias de bustos a rivalizarem com o da sueca Anita na fonte romana. Lembram-se leitores da minha idade?

Não vou retemperar mais vigamentos das ditas noites de verão, as plasmadas neste artigo servem unicamente para acentuar a transformação ocorrida, agora impera a vertigem do telemóvel, o oráculo da Internet, a linguagem cifrada das corruptelas fixadas nas redes sociais infestadas de intrusos atrevidos, nas gloriosas noites estivais não entrava um qualquer, apenas os aceites pelo grupo.

O terem emergido outras formas de comunicação é um extraordinário progresso, no entanto, julgo ter-se acentuado o ascetismo do convívio pessoal beneficiando as relações virtuais, sem esquecer a cacofonia futebolística na maioria dos canais televisivos empobrecedora da salutar e serena autópsia dos diferendos do universo da bola.

A razão animada através do exercício da reflexão leva-me a dizer que ao contrário de Frei Tomás não sou dependente do telemóvel, ainda menos das redes sociais da coscuvilhice apesar de terem algumas virtudes, situo-me entre o escrito nos livros o «Mundo que nós perdemos» de Peter Lasket e o «Admirável Novo Mundo» de Huxley, um a lembrar as virtudes da recuperação do passado, o outro a antecipar um Mundo que ultrapassou largamente o autor, no entanto, não fujo do progresso científico e técnico, antes pelo contrário.

Posso lembrar o Negus do salão do Senhor Adriano (Manco) pai do ágil futebolista Micá trazer ao de cima os cafés nos quais existiam tabuleiros de damas e xadrez, os santuários vínicos especialistas no aprimoramento das famosas masturbações de bacalhau no intervalo de pugnas às vezes virulentas de partidas de sueca.

O tal tempo de Lasket esvaiu-se, não adianta chorar sobre o leite derramado, existe em Lisboa um clube cujos sócios ainda se julgam na época de Dona Maria I, lacrimejam num guisado composto por pragas aos malhados, aos vestidos vaporosos das senhoras e à Igreja inspirada no Vaticano II. Enfim…

 Tempo de verão refrescante para todos. Desejos meus.

DE REGRESSO À CLARIDADE

1. Após algumas semanas nas profundezas bem perto do Hades, mercê de um acto cirúrgico fora do esperado, consegui voltar à claridade. Foi um refrigério, apesar de a convalescença ainda ser longa e neste momento me faltar a legitimação do equilíbrio de forma duradoura e sustentada. Exercício e fisioterapia por mais uns tempos. Voltar à claridade deu-me a exacta noção da nossa pequenez ante um simples dói-dói, parafraseando o desbocamento alar do deputado Amaral.
2. Falando em desbocamentos, fiquei aturdido em face da profusão de especialistas no domínio da protecção florestal, tantos outros no referente às causas da tragédia de Pedrógão e ainda no que tange às formas de poder ter sido evitada, sem colocar em dúvida as dúvidas suscitadas pelas contradições inseridas nos relatórios da burocracia especializada na linguagem de pau e no enterro da culpa que morre sempre solteira e virgem.
3. A par da tragédia, tal como aos antigos folhetins radiofónicos estilo TIDE da minha adolescência, um senhor funcionário antigo «papa» Pinto da Costa oferece aos fanáticos da bola ingredientes de mensagens onde o Benfica surge na pele do grande manipulador dos bastidores do universo do desporto-rei. Na sequência, os palradores televisivos animam horas e horas nas televisões para gáudio de uns e desespero de outros. Assim irá continuar enquanto não chega o campeonato e consequentes tribulações.
4. Os jornais dão conta de traições, raivosos ciúmes, além das inevitáveis proclamações de fé na vitória nas próximas eleições autárquicas, fazendo lembrar a rã a soprar para dentro na esperança de conseguir atingir o volume do boi, ora muitos dos candidatos não conseguem passar de girinos esganiçados a prometerem sol na eira e chuva nabal. O povo moita carrasco!
5. Eu não vi o amplexo entre Marcelo e Jorge Gomes no palco da desgraça, os homens também choram e muito, não lhes fica mal apesar da velha e abstrusa crença no ser sinal de fraqueza os homens chorarem. O escritor Sttau Monteiro escreveu um livro intitulado Um Homem não chora no qual exorciza o mito.
6. No vendaval dos prós e contras, acerca de quem tem culpas no cartório decorrentes dos negregados acontecimentos derivados dos malefícios do fogo não li, nem ouvi safanões à acção de Jorge Gomes o que muito me apraz, sem fanfarronadas, discreto, não corre para ficar em lugar saliente é merecedor de elogio. A sua Ministra de voz ciciada está tremida, no rescaldo veremos se não será imolada porque não se tem mostrado convincente na apresentação dos seus argumentos.
7. Este jornal reproduz declarações de João Gonçalves, ele manifesta incertezas sobre a adesão à Comissão Intermunicipal do Douro, a seu tempo nas colunas de o Nordeste lamentei a falta de coesão levando à desunião no Distrito fazendo prevalecer a ganância sobre a identidade e os liames da unidade, nunca é tarde para arrependimentos veja-se S. Pedro, só que agora a orelha não verte sangue ao menos o Santo cortou uma.
8. Passou mais uma festa em honra do chaveiro do céu na aldeia de Lagarelhos da qual é orago, revejo-o no andor sempre direito apesar dos tropeções dos mordomos sustentáculos do andor, barba cerrada canosa tal como a florescente cabeleira, nas mãos as chaves, o Santo proporcionava colorido dia de festa apimentada pela língua dos jogadores de paus e comparsas, apostavam-se litros de vinho, tentavam-se ajustes de contas lembrando jogatanas antigas. Tenho a obrigação de visitar o Santo de vez em quando, estou em clamorosa falta, espero repará-la na próxima ida á aldeia dos prodígios.
9. Atirado para a obscuridade durante tempo a não desejar a ninguém, no retorno à claridade levanto neste escrito casos e assuntos por demais conhecidos, foi uma forma de recuperar lembranças, de voltar à escrita e agradecer ao Teófilo Vaz os seus cuidados e o toque a rebate a dizer ter chegado a hora de recomeçar. Assim o faço para lá das cautelas e limites de quem a ainda faltam muitas sessões de adestramento dos músculos para estar em pleno. Ao Teófilo o meu obrigado