Armando Fernandes

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Fernando Faria, Tozé

Esvaía-se a tarde de domingo quando a estridência avisadora chamou. A voz compungida da Xana Fernandes informava-me que o meu excelente, jovial e generoso Amigo que sempre foi, o Fernando Tozé tinha sido sepultado pouco antes. Porque encontrava nas proximidades, passou o telemóvel à Mãe dos seus filhos, a Maria de Lurdes, Milú para os familiares e amigos.

Eu sabia da existência da terrível maleita a corroer o seu corpo, o Alberto Fernandes e o Ezequiel Sequeira informaram-me, a ambos prometi telefonar a este Príncipe hedonista, sempre bem-disposto, incapaz de invejas, estuante de vida recheada de alacridade e movimento ao modo dos seus antecessores da Renascença.

Se cada “homem tem de estudar o seu modo pessoal de encarar as coisas, para reconhecer sem dúvida uma visão própria do mundo e do universo”, o Fernando desde cedo estabeleceu as premissas dessa visão mantendo-se-lhe fiel sem quebras, sem remorsos ou remordimentos.  

Vejo-o tamanino, impecavelmente vestido de branco, de panamá na mão, no palco do Cine-Teatro Camões, a entoar parte de uma canção da famosa vedeta brasileira Carmen nascida em Marco de Canavezes e falecida em Holllywood.

Recordo-o a brincar no passeio fronteiro ao estabelecimento paterno debaixo do olhar risonho a chispar ternura do seu adorado tio Queiroz, tio esse que anos mais tarde, na Póvoa do Varzim, no decorrer das férias de Verão nos apagava as despesas no bar do Casino e facilitava a entrada na boíte ante a complacência do porteiro porque o sobrinho ainda não detinha idade legal para penetrar no espaço mal iluminado onde se dançava ao som de músicas dolentes da orquestra de Xavier Cugat, os violinos de Mantovani e o saxofone de Fausto Papetti.

Revejo-o engolfado num sobretudo de couro ornado por abas compridas e peludas durante as férias de Natal, na Pousada de S. Bartolomeu, estava a estudar na Inglaterra, discorremos durante horas acerca do futuro e não esqueço as palavras a incentivarem-me a prosseguir os estudos.

Lembro-o quando surgiu em frente à minha casa em Santarém, conduzia um Datsun triplo S, ostentando na frente dois faróis de camião. Fizemos uma festa, enquanto permaneceu na Escola Prática de Cavalaria até ser promovido a alferes e mobilizado. Durante semanas cirandarmos na periferia da cidade, bebíamos água-pé, esfusiante vinho capitoso, comíamos fêveras, as famosas caralhotas, tripas enroladas de carneiro e tudo quanto entendemos ser apetitoso.

A benquista Pousada de S. Bartolomeu, foi espaço qual partilhámos conversas bojudas de alacridade, de humor ferino, de non-sense, com a estimada Margarida Cepeda, o José Bouça, às vezes um incauto fariseu ou descuidada zelota entravam na roda à volta da mesa, não tardavam a levantar ferro ou a não repetirem a experiência pois a acutilância no zurzir os pregoeiros das falsas virtudes e vícios privados não suportavam as nossas ironias suportadas por exemplos de vária ordem.

A roda da vida levou-o a exercer funções profissionais em Moçambique e Angola, não modificou a visão acerca do mundo dual – diurno e nocturno –, várias pessoas a dirigirem projectos e investimentos nas antigas colónias sempre me assinalaram as suas virtudes, o acendrado sentido de fazer bem, o apuro nas relações naquelas nações emergentes tão susceptíveis, estabelecendo um amplo leque de relações capaz de varrer ressentimentos e reforçar e refrescar amizades a todo o tempo e em circunstâncias buliçosas.

O Fernando Tozé, sem cedências de nenhum género conseguiu ser amado e bem-amado capaz de atravessar um campo minado de hipocrisias, bajulações interesseiras e babas rançosas de mediocridade e inveja.

Acerado de entendimento detestava a dita mediocridade, a todos quantos lhe mordiam a não, e foram muitos, deixava-os entregues à sua mesquinhez porque no seu modo de ver as coisas a baixeza humana era bem real, não só elemento vital em inúmeros romances e poesias, também fonte invernal a jorrar sofrimento.

No momento de o Alberto ter-me informado da moléstia maléfica prometi telefonar-lhe já que não detenho possibilidades expeditas para fazer grandes viagens em curto espaço de tempo dizem-me os facultativos. Não lhe telefonei. Dizer-lhe o quê? Aumentar a sua dor no reavivar os bons anos passados? Tudo quanto ousámos projectar – a ida às Maurícias, a Madagáscar? Fiquei mudo, suspenso de fala.

Um homem não chora regougam os zorros na serra da estupidez, Sttau Monteiro escreveu Um Homem Não Chora, a zurzir esses zorros.

Vou voltar a chorar tristeza e saudades pelo Fernando. À Mãe dos seus filhos a expressão do meu pesar.

 

PS. Soube que a Tia Mariazinha já faleceu. O seu amor pelo Nando justifica plenamente trazê-la à colação neste triste momento.

A Europa

Em tamanino passei vezes sem conta junto de um senhor metido consigo mesmo, de barba rala e hirsuta, todos lhe chamavam Ché, era natural e viveu a maioria da sua existência na aldeia de Lagarelhos, a terra do insólito e onde ainda respira a centenária castanheira cujo bojo acolhia os meninos nas suas brincadeiras de jogos e folganças fizesse sol ou chuva, por isso mesmo mais requestada quando a chuva puxada a vento vindo da serra da Coroa fustigava sem dó, muito menos piedade. Aquele furoco avantajado no tronco da árvore proporcionava confortável abrigo impregnado de silêncio enquanto o resto do rapazio gritava em busca do último escondido do jogo às escondidas. 

Eu não sei se o senhor Ché alguma vez conseguiu ter tempo para brincar numa época de terrível penúria, muito menos se mordiscou castanhas paridas pela imponente castanheira, sei, isso sim, que a fome era regra nas aldeias nordestinas ao tempo, daí a razão de um dia o rapazote Ché disse à Mãe que ia para a então doridamente conhecida dos expedicionários portugueses na I Grande Guerra, a França dos franceses, não a povoação com o mesmo nome situada nas proximidades de Bragança. A mãe em tom de lástima disse-lhe: meu filho a França é longe e lá não há mãe! O moço resmungou: eu não vou às mães, vou ao dinheiro.

Foi sempre assim, reis e desgraçados, princesas e criadas de servir, políticos e obreiros de tudo, de trabalharem de sol a sol, melhor dito – de ver a ver –, vedetas de futebol e operários sempre consideraram a França (entenda-se a Europa) na perspectiva do aconchego, do apoio, do pão de farinha de trigo, das melhores e mais sólidas condições de vida. A literatura desde oitocentos retrata-nos milhentos episódios a comprovarem o acima afirmado, nos dias vigentes todos conhecemos um ou mais casos de aproveitamento interesseiro dos fundos comunitários, a uns garantindo pingues lucros aos especialistas na matéria, a outros (poucos) multas e penas de prisão.

Um burocrata comunitário disse há anos ser tendência dos portugueses usufruir de todas as condições capazes de satisfazerem o seu afã por dinheiro comunitário destinado a gajas e vinho. O antigo Presidente do Euro-grupo em alarde de condenação em linguagem popular considerou esbanjarmos em putas e vinho verde porque o holandês de peixe e seco e fumado não consegue entender a sentença ancestral que nos anima: vale mais um gosto na vida do que cem mil réis na algibeira.

Se ele conhecesse a nossa história da emigração (dos muitos trabalhos publicados lembro os do nosso conterrâneo Doutor Francisco Terroso Cepeda) verificava quão dolorosa sempre foi ao longo dos séculos uma danação para a maioria num cemitério de viúvas de vivos, de olvidos, de sangue, suor e vales de lágrimas, de doridas saudades, também de traições, de desbravadores de matas cerradas, edificadores de cidades, vilas e aldeias e tutti-quanti nesta matéria. O esquálido compatriota de Rembrandt tinha obrigação de saber quantos benefícios a Europa retirou do trabalho insano dos portugueses passados a seco e a molhado por Passadores até chegarem a França, Alemanha, Luxemburgo e Suíça dos relógios pontuais. Alguns passadores ainda estão vivos, muitos homens e mulheres de tão negregados dias. Os senhores responsáveis dos Arquivos, Bibliotecas e Museus ainda podem registar, guardar e interpretar para memória futura testemunhos de uns e outros pois mesmo os pontos negros da emigração para a Europa nos anos sessenta e ainda setenta do século passado são documentos a documentar do nosso historial de vidas de servidão encapotada que a Igreja Católica prestou ajuda, leia-se o Padre Telmo Ferraz.

A Europa está doente, flácida, o único exército a sério é o da foragida Grã-Bretanha, onde os zombis assustam e os demónios recordam os tenebrosos tempos da subida ao poder de homens nazis, fascistas e comunistas. O horror espalhou-se, eclodiram guerras, saldo final de muitos milhões de vítimas. Se alguém duvidar visitem os cemitérios e antigos campos de concentração.

A Europa devia preocupar-nos, nos próximos dias joga-se o nosso futuro e dos vindouros, a campanha eleitoral tem sido centrada «bate e foge» doméstico, a metralhadora falante Pedro Marques brota dos lábios bolas de sabão, Paulo Rangel está atado no jargão das couves de Bruxelas por mais que negue na sua voz de cana rachada, o Dr. Melo debita feitos ao modo de caçador caçarreta especialista de generalidades, Marisa de voz macia borda utopias fracturantes eivadas de nulidades, o Sr. Oliveira discursa rançosamente sectarismo e assegura ser a saída do euro um futuro maná. O advogado/jornalista Marinho e Pinto é a prova provada do desperdício do voto.

Os dados estão lançados, dentro de cinco dias vamos votar, pese todas as deficiências do Parlamento Europeu é órgão de poder a preservar cabendo aos votantes defendê-lo dos seus inimigos de dentro e fora. Cabe-nos escolher, para lá das convicções de cada um não podemos deixar aos outros a escolha por nós. A Europa é o berço da civilização Ocidental, o amanhecer da tolerância ocorreu neste continente, o ideal democrático também, o saldo é francamente e fortemente positivo, por assim ser votarei alegremente.

Eu não sei se a multidão de candidatos possuem uma ideia de Europa comunitária na sua dimensão geográfica, história e cultura, também desconheço os critérios de selecção da maioria dos partidos, no entanto, apesar de muitos deles serem homens sem qualidades para a função podem possuir o mérito de convencerem os nossos concidadãos a não se absterem. Se assim acontecer, pelo menos, tiveram esse mérito!

Imbecilidades

Um pensador espanhol disse há dias ao El Mundo que a “imbecilidade humana é mais perigosa do que a bomba nuclear”. Fiquei a matutar na afirmação, estriba-se nas vicissitudes grotescas da imbecilidade das multidões e nas atitudes individuais do ser humano que a torto e a direito se compraz em exercitar tal negatividade de modo regular indiferente às consequências.

Como é sabido, os anais registam imbecilidades de grande dimensão, as pequenas como a do juiz Sérgio Moro apenas suscitam comentários vaporosos, a burricada corrupta do Partido Popular pode originar graves transtornos em Espanha a salpicarem Portugal, ao modo do desastre José Sócrates rebentou no nosso bolso e na credibilidade de Passos por teimosamente conseguir ultrapassar em zelo visceral a troika dando vazão ao ressentimento originado pelo forçado retorno à então Metrópole no linguajar do colonialismo. E, não foi só ele a vomitar baba e bílis pense o leitor noutros nomes do executivo passista. Não sou psicanalista, nem de longe, nem de perto, no entanto, os factos falam por si, só um exemplo: “emigrem”, lá fora também se vive!

O grego Empédocles distinguia quatro símbolos, terra, água, ar, fogo, para a representação dos elementos da cosmologia, pois bem, a imbecilidade em curso representa-se na futebolização da sociedade portuguesa, no esquartejamento da nossa língua, no esboroamento das instituições e no atropelo às boas maneiras, e ausência de sentido de Estado por parte de muitos dos seus representantes. Há dias as imaginativas senhoras bloquistas no decurso do desfile comemorativo do 25 de Abril entoaram palavras de ordem a pedirem a ida do Presidente do Brasil para junto de Salazar, antes um assessor do Bloco de Esquerda comparou a nossa PSP a bosta (continua a bolsar abstrusas opiniões acerca do racismo esquecendo sempre o racismo ao contrário), sem esquecer o aumento da dependência do povo dos subsídios tornando-o refém dos detentores do poder estatal. A propósito da proliferação dos subsídios pessoa que muito estimo disse-me há dias estar preocupado com o mimetismo venezuelano ou seja: subtilmente o tal poder dono da caixinha dos fundos fomenta a inércia intelectual, o aumento do «direito» à preguiça que o genro de Marx teorizou e anomia, a crescer em inúmeras comunidades de jovens.

O esquartejamento da língua verifica-se a todos níveis, os vocabulários vão-se reduzindo, as palavras sofrem violenta tortura, as formas de tratamento estão reduzidas ao Você de estrebaria. Seria interessante sabermos com quantas palavras trabalha no dia-a-dia um docente do Instituto Politécnico de Bragança, fazer-se um estudo rigoroso desprovido de cosmética beneficiava a Instituição para lá de todos os criadores de programas educativos e culturais. O estudo das pragas dos castanheiros, do estancamento da produção de lúpulo e das aplicações tecnológicas são importantes, o estudo das matrizes linguísticas e sua utilização nas Escolas (professores e alunos) não o é menos.

Ler é conhecimento, estamos a sapejar neste segmento, o mesmo ocorre na frequência de outros equipamentos culturais no campo da fruição, logo no oposto da utilização forçada seja nos dias festivos, seja na burocracia da procissão do desfolhar do programa. Os museus nacionais no ano passado perderam mais de meio milhão de visitantes!

O futebol transformou-se numa indústria de entretenimento de biliões de euros. Vale tudo, mesmo tirar olhos, a indústria em todas as suas vertentes consegue monopolizar a televisão por cabo de sexta-feira a sexta-feira. Vai velando a RTP 2, pois a 3 também já está contaminada.

De quando em vez (durante meia hora) pratico salto de canais, os cómicos comentadores arranham-se e soltam dichotes abaixo de regateiras de línguas sujas de sarro obsceno. Os índices de audiências mandam na composição do altar das perorações, fazem-se transferências, passarões políticos na enjeitam comentar o impacto da bola disparada à queima-roupa.

A Europa vive entre o futebol as fobias e os escândalos financeiros.

O camarada Fé-fé (Ferro Rodrigues) insurgiu-se contra a política de casos, tem razão, todavia a Casa por ele presidida tem a faca legislativa capaz de fatiar e extirpar os nódulos negros da génese da referida imbecilidade. O discurso caiu bem, porém de discursos está o País de barriga cheia, de artigos deste género também, tal como outrora a Europa, nós fingimos não ver o óbvio por enquanto expresso nos populismos já ameaçadores, no futuro tudo pode acontecer. A História…

O famoso historiador e especialista em Literatura Comparada Paul Hazard escreveu a Crise da Consciência Europeia, o nazismo e o comunismo rugiam exibindo fauces medonhas, dentro de 19 dias realizam-se as eleições europeias, quem me lê caso tenha interesse ganha se ler o livro de Hazard editado pela Cosmos. Na Faculdade de Letras alguns professores concediam-lhe honras de bibliografia prioritária logo essencial. Bons tempos!

A Revolução Possível

Em Novembro do ano passado a Editora Gradiva apresentou ao público o estudo histórico A Revolução Possível da autoria do investigador e professor catedrático Fernando Pereira Marques, meu velho (os anos vão passando sobre os dois) e querido amigo. Estamos prestes a lembrar a Revolução de Abril, por isso mesmo entendi sublinhar a profunda importância do ocorrido no dia 25 de Abril de 1974, trazendo em meu socorro o livro do Fernando porque nele se espelham os disparates, os desastres, os dislates de fardados de civis cometidos no âmbito militar cometidos desde 1910 a 1926, os quais com o péssimo concurso da GNR foram o ovo (recordo o génio de Ingmar Bergman) do salazarismo e do caetanismo durante quarenta e oito anos até ao alvorecer do Dia cuja palavra de ordem foram três DDD, Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.

O autor para lá da bagagem intelectual que possui tem a dupla experiência de combatente pela liberdade e a de preso político durante largo tempo após ser alvo de tortura e isolamento. Militante amigo de pensar e inimigo de todas as espécies de totalitarismo, por isso pegou em armas sofrendo as consequências repressivas em vigor.

Durante a vigência da I República o emaranhado partidário possibilitou toda a espécie de conluios, negociatas e escândalos económicos alavancados pela finança como bem o demonstra Pereira Marques, tudo somado a visões egoístas da sociedade jugularam o regime democrático contribuindo decisivamente para o estrangulamento da liberdade de expressão de pensamento, o refinamento da acção da polícia política, acrescida da repressão continuada e ilimitada mercê da temível lei da segurança saída da pena de um governante bragançano. Se alguém tiver dúvidas consulte os documentos legislativos da época.

Ora, em 2019, nem de perto, nem de longe é passível a comparação entre tão tenebroso passado e o presente, porém parece-me oportuno reflectirmos sobre as moléstias de agora capazes fazerem perigar a saudável Democracia pluralista e plena. Em ano de eleições europeias não ouço, nem vejo motivações capazes de suscitarem a atenção dos eleitores relativamente ao voraz bicho-carpinteiro a corroer instituições da Comunidade, não ouço os candidatos a debaterem os enormes problemas derivados das migrações, da insegurança, dos conflitos regionais e a preocupante epidemia do nacionalismo mais os movimentos estilo jalecos amarelos. Dá que pensar!

Pensemos na ameaça de fragmentação da Espanha, pensemos no aumento da pulsão securitária derivada da ameaça terrorista, pensemos na pulverização do outro lado do Mediterrâneo (Argélia, Líbia, Síria, Tunísia), pensemos nas agressões diárias contra a cultura Ocidental. Muito que pensar e não estou para isso dirá o leitor, então faça o favor de pensar na terrível crise demográfica (os meninos pelo feitio não ficam caros), na proliferação da iliteracia literária e consequente aumento da linguagem de solavancos muito digitalizada nos telemóveis, no envelhecimento da população e o seu consequente sofrimento e angústias derivadas da doença, isolamento e segurança. Verificará o leitor quão distraídos andam os candidatos caso pense no acima expendido.

A Revolução Possível levou-me a tentar perceber o desgosto de homens do calibre de António Sérgio, Jaime Cortesão e José Rodrigues Miguéis entre outros, eles hoje tão esquecidos também sofreram vexames e o exílio pois não se limitavam a serem do «reviralho» agiam, agiram sempre apesar de avançados na idade porque a sua consciência cívica não era de verbo-de-encher.

Estamos a dois dias da rememoração da feliz efeméride, vamos ter as festas do costume, os discursos do costume, o gastar o dia dentro do usual costume. Discutir e analisar o passado democrático e a Ditadura, explicar o pensamento dos combatentes contra a ortodoxia de um qualquer ismo dá imensa fadiga, desgaste mental e no tocante à militância política os exemplos recentes e mais tardios são maus demais para ser verdade. De qualquer modo a democracia apesar dos seus defeitos é o melhor dos sistemas de governação.

Hossanas e louvores ao 25 de Abril. Sempre!

Padrinhos e parentelas

O anexim é claro: quem tem padrinhos não morre mouro. A importância de possuir-se padrinho ou padrinhos, os católicos cumpridores dos preceitos recebem o padrinho baptismal e o do crisma, para além dos obtidos no esfarrapar dos anos. Só os iconoclastas (dos verdes anos) não acreditam na importância dos padrinhos mesmo quando pedem, choram, suspiram abraçados às mães e pais por uma cunha, um jeito, um toque, uma mensagem, um telefonema, um empurrão, uma qualquer maneira de conseguir sentar-se à mesa do orçamento, de um qualquer orçamento, nesta cousa de empregos ou colocações todos os Santos são poucos porque a procura é imensa e os lugares e lugarinhos escasseiam e não estamos em época de manta às costas, cajado na mão, cabaça presa à cintura, realejo avisador nos beiços ou flauta de assobio. Agora assobiar (os sons ciciados serão assoviar) para o lado é especialidade de defraudadores da banca, peritos na obtenção de créditos sem garantias, astuciosos na chicana, enfim mais rápidos do que a própria sombra no saque, escorregadios que nem enguias na fuga ao cumprimento das obrigações, de falas mansas no conto do vigário evitando-lhe um qualquer entendimento futuro no prestar contas a tempo e a horas.
Perante tão crua realidade capaz de impressionar uns senhores Padrinhos de alto coturno retratados no filme de Copolla, não podemos estar impressionados ante a pluralidade da parentela socialista no governo, nós por cá nunca esquecemos os laços e raízes, daí os transmontanos serem e continuarão a ser uma invejosa e intensa parentela até porque apesar da descrença (leiam O Problema da Descrença) poucos da província dita «reino maravilhoso» não receberam o sacramento inicial. Alguns de nós conhecemos a surdez do Almirante Sarmento Rodrigues, então Governador-Geral de Moçambique, relativamente a uma solicitação do Professor Adriano Moreira a fim de ser colocado um nosso conterrâneo nos quadros da administração moçambicana. O Almirante fazia orelhas moucas até ao dia de ler o pedido do Ministro. Pedido é pedido, o jovem licenciado obteve a nomeação de imediato. 
Na obra Os Devoristas, Vasco Pulido Valente refere apelidos ainda agora chupistas da teta estatal, outros historiadores dão-nos conta das clientelas derivadas das parentelas, no entanto, importa sublinhar o facto de até à propagação das comunicações e a Internet as coligações familiares e partidárias chegarem ao nosso conhecimento muito atrasadas ou não chegarem.
O Botas de Santa Comba recrutava altos funcionários e ministros (chegaram a ser cinco no mesmo elenco governamental), colocavam seguidores aqui e ali, tinham o cuidado de não darem nas vistas, por isso mesmo fios entrelaçados de sangues estavam interditos a entrarem nos organigramas da decisão. Apesar disso, a vários níveis, os facilitadores normais recebiam fumeiro, perdizes charrelas, trutas de pinta vermelha como agradecimento das dádivas concedidas, os facilitadores anormais tinham direito a tratamento diferenciado pois um director-geral ou presidente de um Instituo eram avessos a fanfarronadas efusivas proclamadas no Chave de Ouro. O operoso facilitador Albininho de Gostei nunca referia determinadas personalidades, de outra forma blasonava outros a fim de manter a aura de conseguir o «impossível». Também existiam os facilitadores ocos, ou seja não conseguiam fungar um pedido dada a resistência do parente. O bem-disposto Capitão Ferreira sabia não valer a pena assediar o general João Pinheiro, seu genro, embora propalasse o contrário.
Os socialistas ganharam a fama (e algum proveito) de serem insaciáveis no seu apego à gamela (dixit Elisa Ferreira), os casos vindos a lume pecam pelo excesso (Grande Farra), porém manda a verdade dizer-se que nem todos enveredaram por cederem ao apetite de uns e outros, o ora deputado Jorge Gomes na qualidade de secretário de Estado resistiu a remover o Dr. Manuel Cardoso do cargo do Director Regional da Agricultura. Lembram-se?
A sucessão de revelações causa embaraços a António Costa, naturalmente, o PSD aproveita a onde ventosa enfunando as velas da caravela comandada pelo austero Rui Rio, deixa a áspera contagem dos parentes a Rangel e terceiras linhas, cautelosamente reclama contra o evidente, o antigo Presidente da Câmara do Porto espera retirar dividendos políticos em Maio, os seus adversários cofiam as barbas pensando na probabilidade de terem de as pôr de molho. Tinha graça e era bem feito!

 

A prima Vera e a Primavera

Aquilo que quero lembrar volta sempre quantas vezes distorcido, fantasiado, mas volta. A prima Vera não seria prima, porém naquela aldeia onde todas as mulheres são tias e todos os homens são tios, para isso é só dobrar a casa dos trinta anos. Era assim, corrige-me a memória. A memória tem razão seja pela velocidade do tempo, seja por via da desmemória trepidante do que hoje é, amanhã não sabemos, depois entra-se no alçapão do obscuro onde pululam sítios ou lugares de memória. Terá futuro a memória?

Neste mês seco de Março, no dia 21, no decurso do obrigatório calcorrear peripatético por via da recuperação de deteriorado corpo em virtude de apagão num hospital dito de referência, a memória recuperou a imagem da Vera de olhos verdes, fulgência ofídica dos olhos, cabelos louros, corpo estirado pontuado por dois pómulos em crescimento, protegendo-se da chuva puxada a vento utilizando uma saca de serapilheira colocada na cabeça à maneira das capuchas. A Páscoa está a escassos dias, em férias e empertigado quanto galinho muito barulho para nada, protegido da borrasca, atirei à Vera patetices às quais respondeu lançando-me serpentino olhar de desdém abandonando o precário abrigo do cabanal. E, desandou. Aqueles olhos vergastaram-me porque a formiga nem aspirações a catarro tinha.

Nunca mais vi a Vera filha de um senhor chamado Jaime, apelidado de Cobro dado o seu afã em abrir buracos na terra, pai de muitos filhos, desvaneceu-se a família julgo na terra do nascimento da mãe, Quintela. Vi por duas vezes a genial construção do bailado de Igor Stravinsky, todos os anos ouço a peça, sempre associo a bera altiva às elevações dos bailarinos.

A memória lança à minha frente relatos de vida apertada de uns e outros, ninguém detinha capitais de modo a uma pessoa ter direito à nomeação de milionária, possuir mil contos, atira-me relatos de vida suspirada e sustentada através do estimável porco, os ovos e frangos, alguma caça, couves, feijões e batatas, pouco azeite, unto ou banha a contento, a paisagem primaveril, exuberante nos verdes, violetas e amarelos perfumados, faziam esquecer as inacessibilidades exibidas, faladas e comentadas por gente de posses e caixeiros-viajantes portadores de amostras e novidades,

Agora, como se fosse um nababo antigo ouço e vejo a Sagração da Primavera, dou-me ao luxo de cotejar gravações, de ir em busca de verdes comestíveis ditos da sazão, verduras de todas as origens e nações. Agora, enquanto a pulsão populista não gangrena a nossas relações seria fundamental pensarmos na possibilidade da sua expansão, uma possibilidade se ficarmos possuídos desse mal, na possibilidade de uma elite cada vez mais restrita ter o usufruto da generalidade das obras culturais das diversas civilizações, na (in) justa medida de o grosso das populações ficarem consoladas na mediocridade da grande farra do burlesco, da imitação, da pantomina mimética.

Vamos ter eleições europeias, vamos ter as exibições ridículas do costume, ainda há semanas li a facúndia do coordenador da Aliança dos ressabiados, até Maio temos de suportar as lamúrias e farroncas do costume, infelizmente, não vamos sentir vontade em eleger deputados bem-mandados, recheados de retórica ressonante até esvair o eco. E, nós por cá todos bem. Se os fundos não falharem!

Os marajás apesar de toda a propaganda paga lautamente estão apreensivos, os sinais de fogo multiplicam-se, os de fumo estão a penetrar nas nossas casas via televisões, algo tem de mudar a fim de tudo como antes. Este princípio deveras estimado desde o Senhor de Lampedusa (agora a braços com as migrações), pode ser colocado em causa devido ao cansaço dos eleitores elevando-se a taxa de abstenção conjuntamente com a pulverização do voto. O tempo quente da Primavera traz o diabo no ventre? Esperemos que não, os nossos filhos e netos não podem pagar duramente os erros dos pais filhos da prosperidade criada no pós segunda guerra mundial. Nós não soubemos criar o futuro, daí a razão de defender a pujança da memória, ela castiga sem pau nem pedra, castiga todos os dias quantas vezes no decurso do chamado sono da manhã.

Butiêlo em Lisboa

Através da sucessão das épocas o butiêlo largou a farpela rural de estômago do porco ou porca, recheado de ossos esburgados e o rabo cortado em miúdos do animal destinado aos rapazes brincalhões em época entrudeira para envergar a roupagem de enchido de untar a barbela servido nas mesas bem atoalhadas na quadra carnavalesca.

O butiêlo ganhou roupa nova e etiquetas certificadoras, mudou de nome – botelo e)ou botelo – largou os vestígios de comer faceto logo engraçado, muito desprovido de carniça substanciosa, passando a conter ossos gulosos de assuã, menos pimento queimão, citadino em prejuízo da rusticidade que principiava na periferia do concelho de Vinhais, percorria a parte nordeste do de Bragança (principalmente a Lombada) e penetrava em Castela e Leão até às alturas de Burgos. Não interessa reclamar paternidade geográfica pois tudo indica existir simultaneidade.

Entre o butiêlo e o butelo havia (há) diferenças locais na preparação das marinadas, o ardor ultramarino (pimento queimão acima referido) vem do lado de lá, a génese é a mesma, onde há tripas há enchidos, nada se podia perder, tudo se aproveitava. O butelo com casulas (repare-se no simbólico – casulas – pois após a cozedura ficam sedosas tal qual as vestes religiosas, o termo cascas deve ser trazido à ponta da língua quando as vagens secas dos feijões são objecto de cozedura encruada de veios salientes e duros.

O butiêlo ganhou carta de alforria mercê do empenho entusiasmado da Câmara Municipal de Bragança, por isso mesmo todos os anos na época própria a Autarquia Bragançana promove um jantar dedicado ao butelo com casulas no conceituado restaurante da Dona Justa e do Senhor Nobre. O ágape inicia-se degustando abraços, palmadas interrogativas, respostas exclamativas, provas de variados enchidos e outros mimos tem-te-em pé, saborosos, centrados no porco, caso dos rojões miúdos também portadores de vários nomes de baptismo, por exemplo rojões do redenho ou do balho. Boas as empadinhas de caça.

Este ano não houve entorses ao cânone, o Dr. Hernâni Dias na qualidade de anfitrião da urbe bragançana recebeu galhardamente os convidados, cada um reviu amigos e conhecidos, numa mistura de sorrisos e lembranças onde a verve e boa disposição do Comandante Chiote alegraram os circunstantes, enquanto o Ezequiel Sequeira distribuiu graças e consolos sem incorrer no «Entrudo passa tudo», antes pelo contrário, muito grato lhe fiquei no decorrer da apreciação dos pratos quentes que também incluíram um fumado de presunto e salpicão, uma sobremesa de abóbora com chocolate branco e gelado de vinho do Porto.

A destreza da dona Justa obrigou a consistente cadência na colocação das pitanças sobre a mesa, a conversa com Grão-Mestre da Confraria do Butelo ficou a meio, intervaladamente, levantei o pendão da Terra Fria junto do escritor Ernesto Rodrigues, o qual aceita de bom grado o meu humorado localismo, na altura certa a Dona Justa disse do seu gosto em coordenar o repasto e o Dr. Hernâni Dias pronunciou palavras bem polidas, bem aparelhadas e bem colocadas referindo-se ao muro Braganção, não de lamentações, sim de crença na progressiva afirmação de Bragança como cidade onde vale a pena viver e os da Diáspora têm sempre grato acolhimento e um sem numero de patrimónios matérias e imateriais para reviverem. Não tardará muito e os nove museus existentes acolherão o Museu da língua Portuguesa.

Uma bonita fadista do Romeu (Terra Quente) deu a conhecer trechos do seu próximo álbum, Gotas de Sangue. Chama-se Teresa Carvalho. Os senhores deputados primaram pela ausência. Presumo que sejam benfiquistas! Eu sou.

Enfermeiros

Da meninice guardo gratas recordações do Sr. Xuco-polícia destro e bondoso enfermeiro daquela corporação, fumador empedernido, incapaz de prender quem quer que fosse, capaz de injectar na perfeição vacinas e outras curações/curativas, ligaduras e pensos. Também o pai da Geninha (da estrídula publicação de um livro alheio) foi competente enfermeiro na polícia. A Geninha trouxe o livro da casa do autor, o escritor Modesto Navarro, apresentou-o como seu, recebeu hossanas e louvores, depois cumpriu-se o sabido anexim: quem o alheio veste, na praça o despe.

Da adolescência retenho imagens dos sorrisos sinceros de freiras a trabalharem no Hospital da Misericórdia, da sua extraordinária caridade no paciente atendimento de exaltados e silenciosos feridos ou magoados no corpo e a denunciarem carência de afectos e encorajamentos. Não sei se o Senhor Francisco e as Irmãs em causa possuíam habilitações científicas, sei, isso sim, possuírem aptidões no auxílio aos enfermos, fossem eles dos vários estratos da hierarquizada sociedade salazarista. Não sei se a PSP alguma vez salientou o labor de agentes da estirpe do enfermeiro acima referido, estou convencido de o Eleutério Alves já ter homenageado aquelas devotadas Servas pois é grato timoneiro daquela secular Instituição.

Em 1967, embarquei na nau da diáspora, por onde tenho andado a generalidade dos profissionais de enfermagem escalados para me prodigalizarem cuidados tem sido cuidadosos, as excepções (num Hospital afamado) não ofuscam a regrada positividade. Por isso mesmo estranho o tom de farronca dos enfermeiros grevistas ao ribombarem o número de cirurgias desprogramadas deixando os pacientes em maus lençóis, quantas vezes sem cama quanto mais lençóis, angustiados e desesperados dado os seus males serem atirados ao vento indo cair na cova burocrata apressando a abertura do coval de acolhimento dos seus corpos. Mau demais para ser verdade. Mas, é!

O visto, o lido e ouvidos relativamente ao diferendo entre enfermeiros e o governo evidencia um diálogo de surdos fora de quaisquer limites imperando um infantil jogo se sustentação de pulsos, denunciando o aproveitamento da época eleitoral quer dos dirigentes sindicais, quer de António Costa e a ministra temerosa na perda de votos. O sustento dos enfermeiros vai ser averiguado, a sustentação governamental escora-se, em muito, na pouca popularidade deste género de greve muito animada pelo bastão da bastonária a qual manuseia o símbolo do poder profissional como se fosse a Maria da Fonte de corneta na mão a cavalo sem cair, a tocar a reunira. Estamos ante uma Patuleia comandada e sustentada através de plataformas digitais e redes sociais!

Perante a escassez de disposição para uma negociação serena, razoável, levando em linha de conta a situação social de activos profissionais e passivos (idosos e desempregados) num fundo populacional de doentes, incapacitados e indigentes, agride-me o desprezo dos decisores de um e outro lado manifestado aos enfermos pois esgrimem-se argumentos especiosos à vez prevalecendo aquilo que o povo toma como morte lenta.

A morte lenta provoca atitudes sem temperança, angústias de actos desesperados, a jugulação da probidade em negociações de qualquer natureza conduz a uma permanente desconfiança daí a débil vontade na resolução da fractura, não sendo de estranhar o mutismo ruidoso dos bloquistas e comunistas a obrigarem António Costa a designação de greve selvagem. A (a seguir ao 25 de Abril de 74, saiu à estampa elucidativa obra de um anarquista italiano sobre greves selvagens) cuja leitura recomendo.

Esta greve sai fora do cânone usual, a seu tempo vamos saber qual a origem do fundo de greve, para já são doadores abstractos, amanhã nominais, é natural mexidas na lei da greve, o comportamento da geringonça será em verificar, do PSD e CDS também, o Novo Mundo teorizado por Huxley aí está impante picando os miolos de todos quantos defendem normas comportamentais assentes no bom senso, na ética e na moral, relapsos à mesquinhez gulosa porque dá plena autenticidade à máxima “a ocasião, faz o ladrão.”

O mel turístico e a regionalização

Afigurava-se-lhe que o seu currículo, até ali, demonstrava amplamente ser o candidato mais bem preparado para suceder ao detido Merlchior Moreira, no blasonado cargo de Presidente da Entidade Regional de Turismo do Porto e Norte de Portugal. Afigurava-se-lhe que a hegemonia da «sua» família socialista o iria apoiar e proteger de modo o exame eleitoral ser mero pró-forma, um aperitivo de vinho fino antes do suculento jantar de entronização. Raciocinava, era certo, que ninguém está na cabeça dos outros, ele próprio sabia quão volátil é palavra dada no circuito político, muitas recordações desse género guardava desde o seu primeiro mandato enquanto Presidente da Câmara de Miranda do Douro, benjamim posteriormente condecorado por Ramalho Eanes. Adiante!

Intensas e mastigadas palavras nos bastidores acordaram-no do sonho, avisaram-no da existência de outro candidato saído da mesma família, escorado na génese portuense, enfunado pela brisa do litoral, podendo reivindicar costado bragançano. E o currículo lembrou o sevilhano mirandês? Ora, o currículo! O rival foi deputado oriundo da Jota, coevo de Jamila Madeira, dele os anais parlamentares não rezam nada de relevante, ficaram as incursões nocturnas, no presente exerce burocraticamente um cargo na Torre dos Clérigos, estando a ler o dicionário e manuais de economia turística. Um espanto!

O transmontano sentiu um amargor a amolecer-lhe os cantos da boca, consequência de não ter sabido granjear outros esteios a sustentarem a sua propositura. O acontecido era grande culpa dos outros sem dúvida, mas também culpa dele e de quem lhe disse serem favas contadas. Saiu-lhe a fava, preta, favas tenras, verdinhas só na Primavera.

O Dr. Júlio Meirinhos teve de aceitar um lugar sem lustre num órgão consultivo, daqueles onde se colocam comendadores ao modo de jarrões de várias qualidades de louça, desde a porcelana ao barro de Pinela.

Lastimo este desfecho para o antigo membro do Leal Senado de Macau e Governador Civil de Bragança.

Este exemplo, mais um, cimenta a minha velha e firme recusa da regionalização a qual é muito querida nas bandas da Comissão Coordenadora e Desenvolvimento do Norte, cujo Presidente tal como Luís Braga da Cruz vê na dita regionalização a fórmula mágica capaz de num ápice resolver os problemas existentes no Porto e arredores, tal como Astérix derrubava romanos depois de ter tomado o xarope do druida.

O senhor professor Sousa tem todo o direito em erguer o pendão do regionalismo muito distante do outrora defendido pelo sincero amigo da sua região, refiro-me a Ferreira Deusdado, eu também ainda tenho o direito a defender posição contrária porque não sou do Norte, sou de Trás-os-Montes, parafraseando o meu saudoso amigo Afonso Praça.

Se tivermos em linha de conta as afirmações do Presidente da Câmara do Porto logo verificamos a sua disposição tentacular no princípio para o Porto tudo, para os vizinhos as migalhas, os acima de Baltar, nada. O senhor professor Sousa não navega em águas muito diferentes das do Dr. Rui Moreira, por tacitismo e realidade territorial procura atrair os autarcas do Nordeste, já os beira Douro é uma questão de pormenor, recentemente o município da Carrazeda de Ansiães transferiu-se dando a ideia de não estar só nesse propósito. Razão tinha o almocreve ao exclamar – onde há lúcaros, não há escrúpalos! – , por assim ser, repito o escrito durante a campanha do referendo: “os nordestinos ganham mais tendo como tutela o Terreiro do Paço, do que a Torre dos Clérigos”.

Enquanto do Professor Marcelo professar as dúvidas professadas no decurso de referendo estou descansado, o Senhor Professor Sousa terá de continuar a gritar até ficar rouco, o problema reside na possibilidade de o Presidente da República se converter tal como Rui Rio está (quase) convertido.

Eu sei, nós sabemos, da gula alfacinha, gula aumentada dada a insegurança e custo de vida noutras cidades europeias, apesar da voracidade lisboeta nós, os do interior, das serranias, do gelo, do fumeiro, dos lameiros primaveris, do Estio tórrido, do fumeiro, do folar, das trutas de pinta vermelha, os vindos do «reino maravilhoso», caso se interessem conseguem fazer medrar os seus direitos no seio da burocracia estatal. Inúmeros exemplos o atestam.

Os Nordestinos têm o dever de afirmarem a singularidade de terem chegado à capital desprovidos de padrinhos, de capital, de penduricalhos reluzentes, disfarçaram a pobreza estudando, afirmando-se, dizendo o evidente – podemos andar de socos, mas não somos brutinhos –, depressa demonstraram as qualidades de poderem ser burros, nunca de jericos. Entendem caríssimos capatazes do Porto?

Várias vezes, nestas colunas, critiquei Melchior Moreira, a crítica residia no facto de o antigo deputado privilegiar a «aulazinha» dos tempos de S. Bento em detrimento do Nordeste, na dele contava o litoral dos votos, o rio do vinho generoso e as arribas fronteiriças. Saiu sem honra e glória.

O noviço Presidente pode ribombar feliz e contente, porém não se esqueça de Marco Aurélio e a efemeridade da glória. Trago a terreiro Marco Aurélio porque os seus comentários filosóficos continuam na ordem do dia, caso queira conselhos acerca da política turística faça o favor de rumar até Delfos, o oráculo continua difuso e intrigante.

Fumeiro: ventos e fumos

Estamos em pleno apogeu da degustação do fumeiro, sejam os enchidos de massa, sejam os integralmente de carnes, sejam ainda os «misturados» de sangue agres e doces, tabafeias e por aí fora até aos menos conhecidos para o vulgo caso dos chavianos e das larocas, sem esquecer os reizinhos tão do agrado dos meninos das aldeias num tempo corroído pela máquina do progresso tecnológico triturador de usanças artesanais na arte de conceber produtos impregnados de fumos e ventos.

Fumos de lenha seca de boa estirpe, ventos a fanfarem entre as frinchas das telhas produzindo ardores nos olhos dos arrimados em torno da lareira, do lar.

Os fumos desinquietados perturbavam a denomina lida da casa confinada à lareira e adjacências, faúlhas enriqueciam os caldos grossos invernais, até as chouriças a assar no borralho sofriam inclemências obrigando a maiores desvelos na boa preparação das mesmas.

Acaba de pousar nas estantes das livrarias o livro Entre Fumos e Ventos, Editorial Bertrand, da autoria de um competente, logo esclarecido chefe de cozinha, mesmo chefe, o Chefe Nuno Diniz, o qual é dono de vivaz currículo repartido entre os fogões, as caçarolas, as prensas de onde saem patos a pedirem meças aos do famoso restaurante parisiense Tour d’Argent, e do estudo das causas decorrentes da criação e inovação culinária. O livro é documento a ler e consultar no tocante a chouriços do terrrunho português, peca pela falta da bibliografia consultada, isso não apouca o mérito do trabalho. É um pecadilho!

O Chefe Nuno Diniz é um apaixonado e defensor da Serra do Larouco, do termo de Montalegre, eis a sedução convertida em livro falando de ventos ásperos provindos dos cabelos misteriosos da divindade serrana, das fumaças a afagarem os famosos enchidos ora conhecidos em todo o território português e pelo menos na Galiza.

A Feira do Fumeiro de Montalegre iniciou-se num espaço apertado debaixo da batuta do então Vereador da Cultura Orlando Fernandes, presentemente o primeiro timoneiro da Edilidade barrosã. A festa incluía um concurso destinado a premiar a melhor chouriça de carne e a mais bem conseguida alheira. Nenhuma alheira foi distinguida originando a decisão desenvolta e atrevida levando em linha de conta o ambiente, tendo originado um intenso ruído polvilhado de verrinosas e vernáculas palavras. O Presidente do Júri, o sabedor Padre João sossegava-me, o outro jurado natural de Padronelo, proprietário de talhos em Fafe, conseguia superar o vozear explicando os critérios de apreciação para lá de exibir alheiras defeituosas na sua confecção. Durante alguns anos frequentei a Feira do Fumeiro e posso testemunhar quão importante foi e é no desenvolvimento económico, social e turístico do concelho de Montalegre. A vetusta vila pese a sua importância estratégica no passado e assinalável história foi fenecendo ao ritmo do progresso científico e técnico da arte da guerra, foi porto seco, na maior parte do século XX as pessoas daquela região viviam mal, notabilizando-se devido à boa qualidade da batata de semente. Até chegar a Feira/Festa do Fumeiro. Sem tirar, nem pôr o generoso porco, porcos, trouxeram e trazem muitos milhões à generalidade das pessoas. Fico feliz por tudo quanto a marca maior – o reco – nas suas múltiplas designações consegue trazendo multidões ao Barroso, levando de volta o estômago saciado de pitanças porcinas, as bagageiras dos meios de transporte toda a casta de produtos propiciadores de chorudos lucros às farmácias pois não há bela sem senão.

A Feira de Fumeiro coeva mais antiga é a de Vinhais, bem organizada, é outro grande acontecimento nesta área alimentar e de júbilo palatal, a estrutura integra um Centro de Interpretação alusivo ao – leitão, larego, farrôpo, marrancho –, eis algumas designações do estimado amigo das donas de casa transmontanas, cuja acção visa perpetuar a memória unitária da paisagem e o animal, cujo traço de união é o castanheiro nobre árvore geradora de frutos imprescindíveis na dieta dos suínos geradores de carnes gostosas expressas no fumeiro.

Nos dias de hoje as feiras do fumeiro proliferam, miméticas, sem a vivência das acima enunciadas e ainda a de Boticas, as populações locais aderem, sempre vão amealhando umas receitas, o povo, essa entidade abstracta frequenta-as alegremente, pudera, a satisfação auferida é grande, como longo é o ano de muitos dias de combate ao colesterol. Dias não são dias, aquelas feiras possibilitam tirar a barriga de desejos, felizmente, de misérias já não.