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Vitória da eficácia

Qua, 02/11/2016 - 17:48


Mas, os locais reagiram e Rodrigo Cristóvão igualou abrindo o caminho para a vitória. Ainda antes do intervalo, Martim e Gui Silva dilataram o resultado para 3-1.
Na segunda metade marcaram para a equipa da casa Francisco, que bisou, e Martim.

GUERRA JUNQUEIRO – Fragmentos de Unidade Polifónica por Henrique Manuel Pereira

“Há anos que persigo um homem pela sombra dos gestos, por entre incêndios, no coração das sílabas que escreveu e suscitou em outros homens que com ele cumpriram a vida ou sobre ele se debruçaram.
Aos poucos tornou-se Amigo e o que era sombra difusa fez-se presença. Ganhou à vontade pela casa, encheu prateleiras, algumas paredes e fez-se amigo dos meus amigos” (p. 469).
Este excerto comovente inicia o post-scriptum com que Henrique Manuel Pereira fecha o livro (base da dissertação de doutoramento em Cultura Portuguesa apresentada à Universidade de Aveiro) dedicado à vida e obra de Guerra Junqueiro, que aqui nos ocupa. Desde o seu início, ressalta uma atenção aguda e generosa, uma defesa minuciosa e lúcida do estudioso em relação ao autor estudado.
O título traduz fielmente o conteúdo e a estrutura do livro, como também o âmbito e a dimensão da abordagem. Procura-se restituir o homem e o escritor à sua plenitude de pensamento, ação e criação, num intercâmbio profícuo entre as múltiplas facetas que constituem a sua personalidade. Essa polifonia convocada sob a forma do fragmento alargado, estabelece a própria correspondência com a multiplicidade vital e intelectual de Guerra Junqueiro, que marcou uma época e cuja obra poética exerceu uma influência ímpar nos seus contemporâneos. Fragmentos também porque se trata deliberadamente de um estudo “poliédrico”, série de faces que vão integrar um todo, em unidade, que se completam e complementam e nessa medida empreendem o diálogo descritivo que em cerca de meio milhar de páginas fornece o rosto nítido do autor de Pátria. O académico faz questão de sublinhar o ponto de vista que adopta e o ângulo do seu visionamento. A afectividade para com o seu autor manifesta-se da primeira à última linha deste trabalho; não se arroga a uma falsa neutralidade, a um distanciamento calculado; interessam-lhe todas as dimensões do homem e do criador, “porque de um Amigo tudo me interessa” (p. 469). Assim, vai predominantemente internar-se pelo “poeta dos múltiplos registos”, mas também “cumulativamente político e diplomata, pensador, coleccionador de arte, homem de ciência, lavrador e viticultor” (Ibidem). Os instrumentos de análise passam sobretudo pela conciliação produtiva de uma abordagem biográfica e sociológica a uma exegese de base genética que permita restituir o autor à sua verdade humana e criadora. Os diferentes planos acima mencionados não são pois mais que um delta de possibilidades, visando trazer à superfície essa figura tão obscurecida por múltiplas vicissitudes, em que as paixões cruzadas de admiração e repúdio que sobre ele recaíram deram origem a um dos casos mais complexos no horizonte da recepção literária portuguesa.
Deve dizer-se todavia que a declarada manifestação de afecto de Henrique Manuel Pereira para com Guerra Junqueiro em nada obnubila a clara visão do estudioso, a admiração calorosa não desfoca a sua intencionalidade hermenêutica, a proximidade humana entre crítico e poeta em nada conflitua com a racionalidade apreciativa. Sopesa criticamente a verdade dos acontecimentos e avalia de forma equilibrada e justa os vários factores e actores em confronto.
Concentra-se o investigador com grande acuidade na recepção da obra de Guerra Junqueiro, constituindo essa problemática o pilar inicial e central deste estudo, o que, do nosso ponto de vista, e pelo que atrás foi dito, se justifica plenamente. De certa forma, Henrique Pereira da Silva vai ao encontro dos pressupostos estabelecidos por Hans Robert Jauss, quando o pensador da escola de Constanza sustenta que “a teoria da estética da recepção não permite apenas apreender o sentido e a forma da obra literária, no âmbito da sua evolução literária. Ela exige também a inserção de cada obra particular na sua “série literária”, para que seja possível determinar a sua posição e significação históricas, no contexto geral da experiência literária”1. Com efeito, não só a maior parte desta obra não pode ser separada das circunstâncias históricas da produção (a transição do paradigma romântico para os paradigmas realista e modernista) e da primeira recepção (o Ultimatum e a instauração da República), como, igualmente, a sua fortuna posterior, sinuosa e inconstante perante o público e a crítica, associa de forma indelével a historicidade intrínseca da obra à própria temporalidade social e ideológica que a tem vindo a recepcionar ao longo dos anos.
O autor inicia, com justificada intencionalidade, o seu estudo pelas questões religiosa e política, visto que elas não só condicionaram e orientaram a produção da obra junqueiriana, como, efectivamente, marcaram para sempre o seu percurso junto do público da época, ao qual o apelo de Junqueiro interpelou enquanto verdadeiro choque, quer na adesão quer na rejeição. Para o biógrafo, com o livro A Velhice do Padre Eterno “Guerra Junqueiro sentenciou, em parte, o seu destino. Despertou a ira dos católicos e desse modo activou uma primeira batalha. Com ele, em aplauso e servindo-se daquela poesia como instrumento de militância, estavam os anticlericais” (p. 23). No plano politicamente oposto: “com Finis Patriae (1891) e Pátria (1896), o poeta atacou a Monarquia e a plácida aliança entre o trono e o altar. Aos contundidos monárquicos aliam-se os católicos que há muito o tinham no ponto de mira” (p. 23). Junqueiro sintetizou bem esse diabólico mundo de equívocos: “os políticos consideram-me um poeta; os poetas, um político; os católicos julgam-me um ímpio; os ateus, um crente” (p. 25).
Em relação à recepção crítico-literária propriamente dita, é de salientar a forma como Junqueiro permaneceu em vida, pelo menos aparentemente, insensível aos ecos críticos que a sua obra suscitava. Não respondia à crítica. Impassível, afirmava que escrevia os livros para si mesmo. Henrique Manuel Pereira vai pontuando criteriosamente alguns dos autores mais significativos que recepcionaram os textos de Guerra Junqueiro: Gomes Leal (que aponta com justeza as principais virtudes e os principais defeitos de A Morte de D. João);2 Moniz Barreto (sublinhando o que veio a tornar-se um lugar comum de inferiorização da poesia de Junqueiro, ou seja, que este seria muito mais um orador em verso do que propriamente um poeta, com “muito mais eloquência do que imaginação”);3 a crítica advinda da Seara Nova pelas penas de Raul Proença e António Sérgio, aquele apesar de tudo mantendo um certo equilíbrio no levantamento dos pontos altos e dos pontos baixos da poesia do autor de Os Simples e este, com o célebre texto “O caprichismo romântico na obra do sr. Junqueiro”, que – sob o pretexto de que a sua crítica não se pretendia literária, mas pedagógica – deu azo, pela sua contundência, a que adversários declarados ou potenciais de Guerra Junqueiro seguissem por esse caminho devidamente trilhado, como foi o caso de Vieira de Almeida. Acontece, por vezes, que pela sua intensidade, o alcance e os efeitos de um texto crítico não só atingem naturalmente o alvo, mas arrastam no mesmo passo o seu autor, como foi o caso. Durante o resto da sua vida António Sérgio veio diversas vezes a terreiro suavizar, matizar, circunscrever o âmbito e objetivo desse ensaio. Asseverando tratar-se de crítica pedagógica, de carácter portanto político e sociológico, que, num raio de acção mais vasto, além de um autor visaria o público português, que recepcionava a poesia de Junqueiro na sua globalidade (literária, política e religiosa), interiorizando avulso as diversas componentes. Mas, na verdade, a crítica de António Sérgio, de forma sibilina umas vezes e ostensiva outras, passou muito também pelo plano literário, até pela forma como compara depreciativamente Guerra Junqueiro a outros poetas como Sá de Miranda, Alexandre Herculano, António Feliciano de Castilho, Soares de Passos, Antero de Quental, Bocage ou Camões. Não cabe neste espaço recensear as trinta e tantas páginas desse texto marcante, cujo autor entra nos planos estético e poético conforme convém à sua argumentação, sempre implacável. Diga-se por justiça que Guerra Junqueiro ao assumir-se como um poeta filosófico e um poeta científico deu a um espírito acutilante como Sérgio, em bandeja de prata, o pretexto que este não enjeitou. (Embora deva situar-se a opção de Junqueiro no contexto mais vasto da segunda metade do século XIX, em que a ciência como motivo poético atravessa os alvores do Modernismo como já tinha invadido a fase final do Romantismo e o período designado por Realismo; isto no espaço nacional e no espaço internacional. Os exemplos de obras e autores que testemunham este facto são inúmeros, aquém e além fronteiras. Em Portugal, Junqueiro – como os seus amigos Guilherme de Azevedo, O Eça da Cidade e As Serras, ou até Cesário, que lhe dedica, como sabemos, o seu mais alto poema: “O Sentimento de um Ocidental” – nada mais fez que assumir e aplicar na poesia portuguesa este novo paradigma, esperando, naturalmente, que o tópico, que era antes de mais poético, fosse lido poeticamente; o que António Sérgio manifestamente não pretendeu fazer). Por essas razões, agiu o autor deste estudo com irónica subtileza ao intitular o capítulo dedicado ao texto do filósofo racionalista como “A crítica literária de António Sérgio” (p. 41). Henrique Manuel Pereira vai com argúcia analítica desmontando uma a uma as injunções cortantes do autor de Ensaios: as oito ou nove vezes que ao longo do texto o pensador positivista assevera que não pretende fazer crítica literária, mas o igual número de asserções em que ou faz crítica puramente literária ou a faz na tangência do literário, com extrema acutilância, visando desconstruir passo a passo os núcleos temáticos, semânticos, poéticos e estruturais da obra de Junqueiro.
Para além de contestar as críticas acintosas dirigidas por Sérgio a Junqueiro, o académico faz igualmente sobressair os momentos de hesitação, de cedência ou de contradição do filósofo da Seara Nova, deixando entrever que aqueles que acompanharam Sérgio o seguiram parcelar ou facciosamente, tomando apenas como respaldo do seu ataque os aspectos que combatiam a obra de Junqueiro, com resultados sem dúvida nefastos. Esqueceram, convenientemente, nesse texto, e em esclarecimentos posteriores, afirmações como “a fantasia plástica exuberante”, “o talento verbal”, “o grande talento poético de Junqueiro”, “esse poderosíssimo orador do verso”, “as virtudes técnicas dos seus poemas”, a “intensidade expressiva da sua sonoridade e dos seus ritmos”, o “grande engenho e habilidade artística”, “o boleio, o ritmo, o rolar da frase são magníficos”, etc. (p. 44).
O certo é que Henrique Manuel Pereira, na sequência da posição de José Régio perante esta polémica, também observa que as críticas negativas apareciam a solo, em sua radicalidade absoluta, enquanto as virtudes reconhecidas por António Sérgio “são sempre acompanhadas dos defeitos e deficiências” (p. 43). Daqui resulta claramente uma superior eficácia argumentativa e persuasiva do plano do ataque em detrimento do plano da defesa.
A recepção de Junqueiro, avassaladora, reitera-se, pelo público do seu tempo, oscila de forma antitética junto dos críticos, como temos visto, e continuaremos a ver pela mão do nosso ensaísta: António Sardinha, o homem do Integralismo Lusitano, reage, em “Guerra Junqueiro: a propósito de um livro” (1921), ao “Iscariotes empedernido de A Velhice do Padre Eterno” (p. 49) num texto insultuoso de ponta a ponta, em que o ataque pessoal se sobrepõe às razões literárias; Alfredo Pimenta segue-o no conteúdo e no estilo em “Guerra Junqueiro” e “Eu me explico... outra vez” (1922). Após a morte do poeta – com honras nacionais e depositado nos Jerónimos, o que não apagou o tom crispado em que decorreram as exéquias fúnebres – segue-se, de mais relevante, um número de A Águia com textos de autores tão destacados como Leonardo Coimbra, Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Miguel de Unamuno, Vitorino Nemésio e Hernâni Cidade. De todo o modo, a posteridade do poeta passou a girar, por aceitação ou recusa, muito em torno do texto incontornável de António Sérgio, já aqui abordado. No primeiro caso, temos Vieira de Almeida e os três diretores da Presença (Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro e José Régio), embora este, que lhe era devedor, procurasse dentro do seu estilo aproximativo e ponderado fazer justiça a Junqueiro. Entre os mais destacados admiradores da globalidade ou de parte desta obra salientam-se Fernando Pessoa, exaltando Oração à Luz e Pátria, os autores que colaboraram no número da Águia acima referido e o próprio Cesário Verde, que estava também grato a Junqueiro pela forma como este poeta, lúcida e nobremente, o defendeu de ataques parecidos com os que ele próprio, nesse momento, sofria. 
Quem combateu com mais profundidade e eficácia o texto sergiano foi o crítico literário e poeta Amorim de Carvalho, em vários textos importantes e numa obra de grande fôlego intitulada Guerra Junqueiro e a sua Obra Poética (Análise crítica) (1945). Trabalho de valia próxima e imprescindível para o conhecimento do poeta coube ao biógrafo Lopes d’ Oliveira em Guerra Junqueiro: a sua vida e a sua obra (1954). Entre essas duas obras surge o excelente As Imagens e os Sons na Lírica de Guerra Junqueiro (1950), da insigne classicista Maria Helena da Rocha Pereira.
No cinquentenário da morte do poeta (evocado na revista Colóquio/Letras N.º 14, de Julho de 1973), merecem atenção as referências impiedosas de António Gedeão e Eugénio de Andrade: aquele considerando Junqueiro “irremediavelmente morto” e este opinando que “os últimos ecos da sua charanga levou-os José Régio para a cova”.4 Por esse tempo, Miguel Torga, no seu Diário, afinava pelo mesmo diapasão. Já Natália Correia, com finura, sublinha que o poeta interfere “nos valores da vanguarda surrealista” entre “fulgurações de génio e desgostantes complacências panfletárias”;5 Armindo Rodrigues considera a leitura de Junqueiro “retemperadora” e “resgatadora”6 e Fernando Guimarães salienta um “sentido magnífico de caricatura e dramatização”, bem como o seu carácter “transfigurador e fabuloso”7 em obras como A Velhice do Padre Eterno e Pátria. José Gomes Ferreira aponta o “satírico feroz”, o “contestatário”, o “antecipador dos poetas automáticos”. Declarou ainda, com a autoridade do jurista e a sageza do poeta maior, que “o processo de Junqueiro ainda não está encerrado”.8 António Cândido Franco na apresentação deste livro citou a frase de José Gomes Ferreira e reafirmou que ela mantinha plena actualidade; ou seja, o processo Junqueiro, noventa e dois anos após a morte do poeta, continua em aberto.
Críticos mais recentes (embora alguns já falecidos) como João Mendes, Dalila Pereira da Costa, José Augusto Seabra, Pinharanda Gomes, o já referido António Cândido Franco, José Carlos Seabra Pereira, Nuno Júdice, Joaquim Matos, Henrique Pereira da Silva, entre alguns outros, foram nos últimos anos reavaliando criteriosamente a obra de Junqueiro nos seus diferentes planos, colocando-a no lugar justo e adequado no panorama da literatura portuguesa.
Mas tudo parece incerto e em deslocamento no que respeita à catalogação, compreensão e explicação críticas desta poesia. Recorremos de novo a António Cândido Franco, que apresenta, em nossa opinião, a chave precisa desta dificuldade; e ela reside na essência dialéctica desta poética: “Muita da importância da poesia de Junqueiro situa-se nesta admirável argumentação entre uma afirmação que nega e uma negação que afirma. […] Há qualquer coisa nela de inexpugnável, de resistente ao tempo e à leitura. A poesia de Junqueiro dificilmente se encontra onde se usa por ela esperar. […] É refractária, como poucas, a leituras rígidas e inamovíveis. A contradição é-lhe congenial. Daí a sua renitência em se deixar dizer. Nela tudo é verdade.”9
Como ignorar, finalmente, que, nas letras portuguesas, o triângulo da nossa épica nacionalista passa em boa parte por uma estrutura dialógica e polifónica constituída por três obras seminais: A épica maior Os Lusídas, de Luís de Camões, a épico-dramática Pátria, de Guerra Junqueiro e a épico-lírica Mensagem, de Fernando Pessoa – por esta ordem de publicação, correspondendo, obviamente, à seta dialógica de ordem inversa. Assim, só esta obra, do nosso ponto de vista, já consagraria Guerra Junqueiro definitivamente como poeta, porque, como precisamente escreveu José Augusto Seabra – referindo-se a Pátria, na senda de Os Lusíadas – “na história e na literatura de um povo há poucos livros que dão voz, em momentos críticos, à consciência nacional, ganhando por isso mesmo um significado que transcende, embora lhes seja de igual passo imanente, as circunstâncias em que emergem. Para além destas, eles assumem recorrentemente, a cada crise maior que sobrevenha, um papel catalisador das reservas de energia espiritual capazes de mobilizar a resistência desse povo a todas as advertências e vicissitudes. […] Esse livro, publicado em 1896, intitulava-se justamente Pátria”.10
Por tudo isto, e à laia de balanço, consideramos Guerra Junqueiro um autor importante, impressivo, canónico no âmbito da literatura portuguesa, cuja obra, édita e inédita, deve continuar a ser estudada, investigada, divulgada. A esta tarefa tem consagrado o melhor do seu tempo, do seu esforço, do seu talento de ensaísta e investigador multifacetado, Henrique Manuel Pereira.

NOTAS:
1 - Hans Robert Jauss, A Literatura como Provocação, Lisboa, Vega, p. 89.
2 - Gomes Leal, “A Morte de D. João”, Diário de Notícias (5 jul. 1874), p. 1.
3 - Moniz Barreto, A Literatura Portuguesa do Século XIX, Lisboa, Editorial Inquérito, p. 38.
4 - Colóquio/Letras, Nº 14, de Julho de 1973, pp. 69 e 70.
5 - Idem, p. 72.
6 - Idem p. 70.
7 - Idem p. 71.
8 - Ibidem.
9 - António Cândido Franco “A catarse na Pátria de Guerra Junqueiro”, in Guerra Junqueiro e a Modernidade, Porto, Lello Editores, Universidade católica Portuguesa – Centro regional do Porto, 1998, p. 334.
10 - José Augusto Seabra “A Pátria como Renascença (de Junqueiro a Bruno e Pessoa), in Idem, p. 429.

Por Fernando de Castro Branco

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Rodrigues Ferreira (c. 1692 – depois de 1749)

Era um dos 12 filhos (5 rapazes e 7 raparigas) de Pedro Cardoso e Esperança Rodrigues. O irmão Gabriel casou na família de Luísa Bernarda, a matriarca dos Raba; a irmã Luísa com o Dr. Gabriel Ledesma; a Isabel com Tomé de Leão e a Maria foi casar em Vinhais com Diogo Ferreira. (1) Ligavam-se assim os Ferreira a uma boa parte da “nação marrana” de Bragança.
E “entre as pessoas da nação, Francisco Ferreira era o melhor reputado” – no dizer do Fidalgo Francisco Xavier de Sousa. O próprio assumia essa condição destacada, provando que tinha amizade com gente da maior nobreza do Reino, como o Conde de S. Vicente ou o trinchante mor do reino D. José de Vasconcelos e Sousa. E até “ia pousar a casa de António de Brito Távora”, pai do inquisidor Manuel Varejão de Távora.
Terá nascido em Bragança, por 1692. E contava 22 anos quando foi preso pela inquisição de Coimbra, em Novembro de 1714. (2) Saiu em 28 de julho de 1718, não sendo presente a qualquer auto de fé. Aliás, esses foram anos terríveis para os marranos de Bragança que, manifestamente entupiram aquele tribunal. Disso nos dá notícia o próprio Francisco Ferreira:
- Naquele tempo foram presos e apresentados todos os cristãos-novos de Bragança.
Francisco e os irmãos dedicavam-se ao fabrico e comércio de sedas. E ele seria o mais expedito e já então acrescentava ao “curriculum” de “torcedor de seda” o de “homem de negócio”. E a sua vida desenrolava-se entre Bragança e Lisboa conduzindo cargas de seda que ali vendia.
António Dias Pereira, (3) um mercador brigantino que às vezes o acompanhava diria que ele “foi sempre homem de negócios graves (…) e pela sua verdade e inteireza adquiriu cabedais grossos”. 
Terreno propício para investidores de “capitais grossos” era a arrematação de rendas. E esse foi o caminho seguido pelo rendeiro e contratador Francisco Ferreira que "adquiriu grande crédito e cabedal, com o que se fez conhecido em todo este reino e foi em todos os anos até 1745 à cidade de Lisboa, aonde não só se achava nas arrematações das comendas vagas das três ordens militares, mas ainda em vários tribunais como são a Junta dos 3 Estados, a Casa de Bragança, o Conselho da Fazenda e casas de fidalgos particulares aonde arrematavam publicamente vários negócios". Citemos alguns dos negócios que Francisco trouxe arrematados:
As comendas de S. Miguel de Poiares e a de Algoso, que eram da Ordem de Malta.
A comenda de Santo André de Ousilhão, da Ordem de Cristo.
A comenda de Santalha, que era do Conde de Salzedas e a de Santa Marinha da Carregosa, do tenente-coronel Francisco José Sarmento.
A comenda de Torgueda e os foros de Margaride que eram dos religiosos do convento de Belém.
O assento (fornecimento de géneros às tropas) de Trás-os-Montes, certamente o contrato mais vultuoso.
Sendo preso segunda vez pela inquisição, em 20 de Abril de 1747, (4) Francisco Ferreira inventariou os seguintes bens:
Umas casas na Rua Direita da cidade de Bragança, na esquina da Travessa do Corpo da Guarda, que valiam 300 mil réis.
Na mesma Travessa outras duas casas avaliadas em 200 mil réis.
Mais 2 moradas de casas junto à cadeia que valeriam 100 mil réis.
Uma casa na Rua dos Oleiros arrendada por 8.500 réis/ano.
Outra casa, pequena, na Rua do Paço, arrendada por 4.000 réis/ano.
Uma casa, um celeiro e uma adega, na aldeia de Edral que valeriam 200 mil réis.
Na aldeia de Santalha outra casa avaliada em 100 mil réis.
No sítio da Candaira, Bragança, era proprietário de uma vinha que valia 200 mil réis.
Na aldeia de Sobreiró de Baixo tinha metade de um alambique de aguardente e respetivas instalações, valendo a sua parte 240 mil réis.
Devemos esclarecer que nessa altura eram já falecidos os 3 irmãos que ficaram solteiros e ele vivia com duas irmãs igualmente solteiras, tal como ele próprio. Do ponto de vista formal, aqueles bens pertenceriam aos três, o que até convinha, no caso de a inquisição ordenar o seu confisco.
Falámos no assento de Trás-os-Montes. Vejamos, a propósito a quantidade de cereal que lhe foi arrolado à data da prisão:
Em Ousilhão tinha 4 000 alqueires; em Santalha 2 500; em Vimioso 1 500; em casa de Pascoal Ramos 350; na de José de Sá 300.
Não falaremos de débitos e créditos, que eram muitos e avultados, naturalmente, nem dos muitos contos de réis envolvidos nos contratos. Diremos que ele tinha ainda outros diversos negócios, como a exportação de vinhos para o Norte da Europa.
Que culpas lhe imputaram para o prender? Fundamentalmente duas: participar em “reuniões de sinagoga” em casa de seu cunhado Ledesma e fazer enterrar seus dois irmãos amortalhados à maneira judaica e em terra virgem, na igreja de S. Vicente.
Foram muitas e gradas as testemunhas de acusação e muitas mais e de superior categoria as testemunhas de defesa: cavaleiros fidalgos professos da Ordem de Cristo, quantidade de padres, familiares do santo ofício… o próprio comissário da inquisição em Bragança, condutor das averiguações para o processo, deixaria nele o seu próprio testemunho:
- Do réu Francisco Rodrigues Ferreira conheço por falar com ele muitas vezes, assim nesta cidade como em Lisboa e outras partes e nunca lhe vi fazer coisa alguma que tivesse laivos de cerimónia judaica.
Francisco Ferreira defendeu-se dizendo que estava fora de Bragança quando dos funerais referidos pelo que não tinha qualquer responsabilidade nas mortalhas e nos enterros. Além de que, no falado enterro de um dos irmãos estiveram presentes 7 padres e 2 comissários do santo ofício e nenhum deles viu qualquer cerimónia judaica. E desafiou os inquisidores a que mandassem abrir a sepultura. Se o seu irmão foi a enterrar “com uma granacha de seda com bocais de veludo a modo de desembargador”, então a seda devia estar lá intacta, pois se não corrompe facilmente…
Porém, o mais significativo do processo inquisitorial de Francisco Ferreira, como aliás, de outros cristãos-novos brigantinos da mesma época, é a luta política e as questões sociais que abalaram a cidade de Bragança naqueles anos.
Nos anos de 1730 o rei D. João V instituiu o monopólio da venda do sabão “industrial”. Em Trás-os-Montes o monopólio foi entregue a João Evangelista de Morais Sarmento e o ramo da comarca de Bragança ficou em mãos de uma sociedade constituída por Francisco Xavier da Veiga Cabral, governador de armas da província de Trás-os-Montes, Lázaro Jorge de Figueiredo Sarmento, alcaide-mor de Bragança e Roque de Sousa Pimentel, comissário regional da inquisição – todos três ligados por estreitos laços familiares.
Tal monopólio fazia aumentar os preços e prejudicava principalmente os fabricantes de seda, cristãos-novos na grande maioria. Estes promoveram muitas iniciativas tentando impedir a instalação de tal monopólio. Uma delas foi uma grande manifestação em 5 de Maio de 1731 a que aderiu quase todo o povo da cidade, (5) inclusivamente as freiras dos dois conventos que seguiram na cabeça da manifestação. Os manifestantes só pararam quando atiraram pelas muralhas o sabão do monopólio que estava armazenado no castelo.
Outra iniciativa foi uma exposição enviada à Corte e que terá sido escrita por André Lopes dos Santos, irmão da “matriarca” dos Raba. Para além do preço, queixavam-se os fabricantes de seda que o sabão do monopólio não era tão bom como o sabão que eles usavam, importado de Castela. E conseguirem que o “governo” de Lisboa se decidisse por uma prova real, lavando-se a seda com os dois tipos de sabão, na presença de um desembargador da Relação que julgaria o caso e cada uma das partes nomearia o seu representante. A experiência foi feita. Os fabricantes de seda venceram a causa. E o homem que os representou na foi exatamente o nosso biografado.
Escusado será dizer que os homens da nobreza e da governança da terra não ficaram parados, antes mudaram de tática e escolheram o tribunal da inquisição como palco de luta política, para ele canalizando quantidade de denúncias de judaísmo. E assim se explica que, nos anos que se seguiram, entre 1747 e 1752, pelo menos 128 marranos de Bragança fossem arrastados, em vagas sucessivas para as cadeias da inquisição. Como aconteceu com Francisco Rodrigues Ferreira.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 6977, 1699. Diogo Ferreira faleceu no cárcere.
2-IDEM, pº 8558, de Francisco Rodrigues Ferreira.
3-IDEM, Coimbra, pº 6304, de 1716: pº 6304-1, de 1743, de António Dias Pereira.
4-IDEM, inq. Lisboa, pº 8558-1.
5-ALVES, Francisco Manuel – Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança, tomo II, p. 258.

Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

Alberto Fernandes: in memoriam

Amicus est alter ego, dizia Pitágoras, na linha de Marcial, Cícero, Séneca, Horácio, Santo Agostinho, Montaigne, D. Francisco de Portugal e tantos mais. Ressinto, pungente, este «outro eu» da amizade, na manhã de quinta-feira, 27 de Outubro, em que vai a enterrar Alberto Fernandes: é uma injustiça; e, se eu desejava estar com Henriqueta, Maria João e Maria Henrique, o mínimo que posso fazer é lembrá-lo, num entendimento de 45 anos.
Entrávamos na juventude, com um pé na insatisfação. Arguto, modulando ironias num sorriso, Alberto respondia aos nossos fervores com uma reserva de quem pisava o chão (vindo de família numerosa), e, mais do que a página que nunca deixou de o acompanhar, sentia a desigualdade social como tarefa urgente a vencer.
Assim, já na Faculdade de Direito de Lisboa, onde se formou, o pós-25 de Abril fê-lo radical de Esquerda – contra certa Esquerda, e a Direita que, em contra-manifestação, o levou ao hospital e à prisão. Sucederam derivas entre Portugal e França, empregos menores que a coragem suportou: quando vivíamos no Bairro Alto, o autocarro madrugador apavorava-o. Descansávamos num filme e nas intermináveis conversas sobre literatura, Lisboa fora.
  Foi quando, vencendo essa visceral reserva, consegui estreá-lo em volume. Acácio Trigo e eu já tínhamos publicado; não ele, nem Victor Rodrigues, que ambos seleccionei sob o título “Março” e “As primeiras mãos”, resultando Março ou as primeiras mãos, assinado pelo quatro. Celebrámos estes versos com jantar na Rua de São Marçal, em 28 de Março de 1981. Em breve, teríamos outro fogacho: Bico d’Obra, uma editora de vida curta. Era maneira de trazer à boa mesa – até à dor de Alberto não poder beber o tinto Cistus, produção de família – amigos como João Manuel Neto Jacob, Hélia Correia, Rui Ferreira e Sousa e Victor Rodrigues, com este vivendo também sob o mesmo tecto, pouco depois. 
Ora, o leitor de clássicos (ainda neste Verão, lia os clássicos antigos), cada vez mais avesso aos génios do dia, era um narrador nato. Sendo o nosso melhor contador de histórias (era um prazer escutá-lo), por mais que eu insistisse, não se dignava dá-las ao prelo. Alguma publiquei em jornal ou revista, todavia, nos anos 80 e 90; e, animado por José Carrapatoso – com quem esteve largos anos nos destinos da Escola Secundária Miguel Torga –, de ambos recebi material notável, e a resposta que Alberto reiterava: «Não vale a pena…» Tenho aqui Farruco e outros contos, do melhor que a prosa de cor transmontana nos oferece: «Dá-se o caso que ao Antero de tal forma lhe tolheu a razão, já pouca, a primeira vez que conheceu mulher, que o caso foi falado por muita distância de povos com brado de milagre ou coisa inexplicável pelo humano entendimento. Assim foi, de facto, lembro-me como se fosse hoje, e ainda não formei juízo, depois de tanto tempo decorrido, sobre tal assunto de pasmar. Mas eu conto, ciente que não haverá nenhum de vós que, sucinto ou por largo, não tenha dele tido notícia.»
Recordo a tarde de 25 de Dezembro de 2001, após o funeral de um irmão do Marcolino Cepeda, também dilecto Amigo: dei uma volta com o Alberto, que trazia Maria João e Maria Henrique – aquela, séria e inteligente no seu sorriso bom; esta, já convivial, malandra («Pai, não inventes!»), ambas significando um futuro que é a grande obra de Alberto e Henriqueta.
Henriqueta pedia outra demora. Resumo-a numa palavra: grandeza. Alberto deveu-lhe a vida, no meio de tanto sofrimento dele, e sacrifício dela. Só assim o pudemos ter connosco – embora um pouco menos do que seria justo.
Às onze da manhã desta quinta-feira, deixo uma lágrima pelo meu Amigo.