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O Rei das “selfies”

Não deixou de haver reis em Portugal com a instauração da república, contrariamente ao que pensar se possa. Longe disso. Reis disto e daquilo melhor se reproduzem agora no húmus da democracia republicana. É certo que o rei da rádio passou à história. Em seu lugar, porém, foram coroados muitos outros, tais como o rei dos pneus, o rei dos frangos, o rei das cassetes, o rei da sucata e muitos mais. Todavia, o mais badalado de todos é, sem dúvida, o Rei das “selfies”. Porque é o que melhor simboliza o país de faz de conta em que Portugal se converteu: um reino sem rei nem roque, uma democracia e um estado de direito de faz de conta, uma república que faz de conta que tem um presidente. É um rei, festivaleiro, popularucho, quixotesco, imagem central de mil autorretratos e outras tantas “selfies” audiovisuais. Sobretudo é o herói principal da telenovela burlesca que narra a vida penosa de um povo que o próprio rebaptizou de arraia- -miúda, que vive e se desenrasca como pode. Sobretudo agora que Portugal tem tantos, tão graves e tão diversificados problemas, carências e vícios como nunca teve, que nada têm a ver com a pandemia ou a guerra na Ucrânia, como alguns pretendem fazer crer. Sendo que no topo desse bolo podre “made in Portugal” estão as cerejas doiradas do nepotismo, compadrio e mediocridade de inspiração partidária. Talvez seja por isso que o Rei das “selfies”, longe de ser amado e respeitado quanto julga sê-lo, é glosado e ridicularizado especialmente nas redes sociais. Arraia-miúda ingrata que, por mais que o Rei das “selfies” a divirta e lisonjeie, não aplaude a sua árdua missão de preservar a pureza original do Regime. Rei das “selfies” que não tem feitio, nem vocação, para ficar de braços cruzados encerrado num palácio à beira Tejo e a ver passar os navios por nada ter que fazer. Arraia-miúda que não entende que o Rei das “selfies” e demais governantes falem tanto e façam tão pouco, sejam quais forem as razões. É que, lá diz o povo, entre falar e fazer há muito que dizer. Muito que encobrir, digo eu. Muito interesse particular a salvaguardar, muito criminoso a proteger. Os principais problemas, carências e vícios que Portugal enfrenta são velhos e relhos, e exigem reformas profundas para que possam ser eficazmente combatidos. Reformas do Estado e quiçá, da própria Constituição da República. Reformas que têm sido sistematicamente adiadas ou arremedadas e a que os governantes respondem com discursos de circunstância e a bater com a mão no peito. Claro que o próprio primeiro- -ministro, que já está há demasiado o tempo à frente do barco sem obra que se veja, para lá das monumentais trapalhadas que se conhecem, já não tem como alijar as responsabilidades que lhe cabem. Também o Rei das “selfies” já perdeu a credibilidade original porquanto quanto mais se mostra e arenga mais se enfarinha nos insucessos governamentais. Dir-se-á que não tem poderes para mais e que por isso passa a vida fora do palácio a opinar sobre tudo e coisa nenhuma. Ora aí está uma das muitas reformas que se impõem: dar que fazer ao presidente da república, dando-lhe os justos poderes que o motivem a falar menos e a fazer mais e, sobretudo, a fazer com que o governo coloque o interesse nacional acima da estratégia do partido e do negócio de privado. O poder democrático está demasiado fragmentado e desacreditado como se vê, o que o torna presa fácil de políticos oportunistas, incompetentes e criminosos que vivem tranquilos, apesar de tudo, porque o Rei das “selfies” distrai e diverte a arraia-miúda que arranha e ladra mas não morde. O maior beneficiário, ainda assim, é o primeiro-ministro António Costa que tem contado com a sua incondicional e prestimosa bênção e cooperação. António Costa que é, sem dúvida, um homem de sorte. Viu-se quando perdeu as eleições para Passos Coelho e o BE e o PCP lhe deram a mão e o salvaram, por mais cara que a geringonça lhes tenha ficado. Viu-se mais recentemente quando a maioria absoluta lhe caiu nas mãos, sem saber como, porquê e o que fazer com ela. Mas a sorte maior de António Costa é mesmo o Rei das “selfies” que incondicionalmente o protege nas horas más e o aplaude nas felizes. Grande mistério é, por tudo isto, saber que papel assumirá o Rei das “selfies” depois de terminar a presente missão. O mais certo será a arraia- -miúda continuar a jogar forte na raspadinha eleitoral e ter o azar de continuar albardada pela esquerda, porquanto os albardeiros de direita não parecem ter competência bastante para amansar a cavalgadura. Continuará, então, o Rei das “selfies” a oferecer a sua mãozinha aberta ao punho fechado socialista, agora já não em Belém mas noutro qualquer reino transnacional para o qual os machuchos socialistas o empurrem, por gratidão. Isto se a raspadinha da Santa Casa de Bruxelas continuar a distribuir prémios. E se Portugal sobreviver.

O ARMÁRIO DE BORODYANCA E AS SAPATILHAS VERDES

«Como vais?» É um cumprimento vulgar e natural o qual tem, na esmagadora maioria dos casos, uma de duas respostas: «Mais ou menos» ou «Cá vou andando». Será, imagino eu, identicamente, por esse mundo fora, mutatis mutandis. Terá sido assim, mais ou menos, que os naturais e residentes da Ucrânia se cumprimentavam até há pouco tempo. Ultimamente, porém, surgiu uma nova forma de responder à sudação «Como estás?» «Para já, estou bem. Vou-me aguentando, como o armário de Borodyanca!» Nesta altura e nesta fase do horrendo conflito que assola o oriente europeu, em que edifícios, bairros e zonas residenciais voltam a ser o alvo preferencial dos mortíferos mísseis russos, ganhou forma, fama e notoriedade, que persiste, uma imagem de um edifício habitacional de Borodyanca atingido, no início da guerra, totalmente esventrado pelas bombas do exército ocupante. Tal como em todos os outros, a destruição era total, porém, neste, uma fotografia, largamente divulgada e partilhada, mostrava uma parede que ficara incólume. Encostado a esse inesperado e imprevisto refúgio, um armário resistira, perfeito e sem qualquer arranhão. No meio da enorme destruição, de milhares de mortos e feridos, para trás dos milhões que abandonaram os seus lares, a sua cidade, a sua região, o seu país, há ainda milhares e milhares de ucranianos que resistem, com a aparência do agora célebre armário... porém com enorme e inevitável destruição interna. O horror, é sempre abominável para as suas vítimas. É verdade que um genocídio em massa causa um maior impacto na opinião pública e tem uma maior divulgação e persistência do que os crimes isolados mesmo os mais macabros e inumanos. Porém, para os pais e familiares, a perda de um filho causa o mesmo sofrimento independentemente de o seu desaparecimento acontecer de forma isolada ou integrada em ações mais alargadas. A forma e as circunstâncias que antecederam e que presidiram ao trágico acontecimento, sim, podem ser fatores que agravam a já incalculável intensidade da dor. No meio das dramáticas notícias da guerra russo-ucraniana, em maio deste ano, surgiu uma notícia, igualmente deplorável, do outro extremo do planeta. Em Uvalde, no Texas, um jovem armado entrou numa escola e abateu fria a sadicamente dois adultos e dezanove crianças. Qualquer bala, por mais minúscula, seria mais do que suficiente para ceifar aquelas vidas. Porém o autor da carnificina usou munições, de tal forma potentes e desproporcionadas que os corpos das suas vítima ficaram desfigurados, na zona de impacto. Maitê Yulena Rodriguez foi atingida na cabeça. Os pais reconheceram e identificaram o seu corpo pelas sapatilhas verdes que usava e nas quais desenhara, no que se converteu em macabro sinal identitário, um coração azul, na borracha da biqueira, sobre o dedo maior do pé direito. A fé na Democracia baseia-se na crença de que, apesar dos entorses e desvios que a ação governativa possa sofrer, genericamente, o exercício do poder há de refletir o pensar e o querer da maioria da população. Mas é difícil acreditar que um povo possa, em nome da defesa de hipotéticos e ainda inexistentes sonhos e planos de vida, retroceder, civilizacionalmente, mais de cinquenta anos e não seja capaz de dar um passo, por bem pequeno que seja, em direção ao futuro e à civilização, para proteger vidas concretas, sonhos reais, famílias constituídas.