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A supremacia das cartas de Natal

Recebi o primeiro postal de Natal deste ano. Senti um arrepio pelo prazer cada vez mais raro de encontrar na caixa do correio um envelope manuscrito, coberto por uma caligrafia que parece dançar mais aos olhos do que os carateres de imprensa das cartas administrativas que têm pés de chumbo e poucos carateres. Não resisti à tentação ou à necessidade de cheirar o perfume da tinta antes de a abrir delicadamente para não a rasgar, incapaz de esperar até poder usar o corta-papel. É uma das inúmeras felicidades de dezembro, estas prendas de cartas e postais “escritos à mão”, dirigidas pelos correios com tudo o que este envio supõe: o tempo oferecido, o cuidado tomado na escrita, a intimidade deste diálogo único e tão particular que inicia uma correspondência. As cartas de Boas-festas permitem manter o contacto com pessoas que não queremos perder de vista (costumo dizer que cada encontro releva do milagre) ou afeições por momentos negligenciadas. Poder-se-á sempre acusar estas cartas por versar no elíptico, no maquinal das nossas existências. Isso não tem qualquer implicação. Estas dão-nos a oportunidade de ressuscitar um modo de conversação delicado- a relação epistolar, graças à qual tomamos o tempo para escrever o que realmente pensamos e para pensar o que realmente escrevemos. Há já alguns anos, tive uma cadeira de literatura cujo título era: “O texto epistolar” (incluía o romance mais sério do séc. XVIII, Júlia ou A Nova Heloísa, de J.J. Rousseau e o romance mais libertino, as Ligações Perigosas de Laclos), tema que permitiu encontrar outras intertextualidades, como por exemplo encontrar Hermann Hesse ou conhecer melhor o texto ambíguo de Guillerages, Cartas amorosas de uma religiosa portuguesa ou Stefan Zweig que já em 1927, consignava: “ Há uma arte nobre e preciosa: a arte da correspondência. O que a tornava tão maravilhosa e lhe conferia uma vida tão universal, uma riqueza era que, contrariamente a todas as outras formas de arte, esta não ficava ligada aos únicos artistas: era possível a cada pessoa restituir nas suas cartas essas brechas de ânimo interior e de movimentos de alma simplesmente transitórios. Nasceram assim no passado inúmeras pequenas maravilhas de verdade num mundo tranquilo onde a carta tinha ainda um valor de envolvimento, e a mensagem de pessoa para pessoa uma força tranquilamente evocadora.” Escrever, escrever-se abre um território à intimidade, talvez o último que esta conheça, de tal forma a correspondência epistolar torna as coisas do espírito no tom de diálogo próprio à intimidade das almas. Certos escritores maravilham- -nos nesse terreno e tocam- -nos tanto como através das suas obras literárias. Quem não se emociono um dia com uma carta? A maior parte do tempo, a relação epistolar é tanto melhor quando não é destinada a ser lida por outros que não o destinatário. Murmuram- -se segredos, conselhos que têm acentos de confidências e o tom inimitável da sinceridade. Revela-se aí o rosto do autor, e no plano da retaguarda o retrato da época: “ O génio quando se tem a tua idade, escreve o poeta Armel Guerne que conheceu a guerra, a um dos seus jovens admiradores, é chegar a desconfiar profundamente das suas ideias, de se convencer, seja qual for o pensamento, que não será possível verdadeiramente encontrar o desejado a não ser mais tarde, não somente após as experiências que tenhamos feito e desejado, mas sobretudo depois das mais altas provas que tenhamos merecido. O problema, é manter a confiança, amar tudo o que está fora de si para avançar, respeitosamente, com a esperança de se juntar si- -mesmo à empreitada, um dia. Desde que descobri o texto epistolar tento manter- -me ao corrente e adquirir mesmo algo da correspondência de alguns autores que conheço. Desta forma não hesitei – como o carteiro de Neruda- em fazer minhas as cartas que Hermann Hesse enviava aos seus admiradores que lhe escreviam – às centenas por ano depois de ter recebido o prémio Nobel. Comecei por folhear estes inéditos. Uma frase cativou o meu olhar. “ Aceito o apelo que a hora presente lança aos pensadores, como um chamamento de Deus aos que dormem.” Seguidamente outra: “ pode ser decerto discutido infinitamente, discutir para saber se “adaptar-se” não é efetivamente baixeza, se não seria mais bonito e mais corajoso sofrer e sombrear do que adaptar-se à maledicência do mundo.” Sentei-me e li duma só vez o conjunto generoso destas missivas que abraçam as duas guerras mundiais. A correspondência começa há alguns cento e vinte anos, e consegue o milagre de nos falar como se fosse murmurada ao ouvido nos tempos presentes. Hermann Hesse alerta- -nos para os perigos dos quais nos protegemos tão pouco- a radicalidade odiosa das posições políticas, as incertezas económicas, as tragédias devidas à violência. Além de nos impressionar pela sua lucidez acerca do curso dos acontecimentos e de nos tocar pelos conselhos, (“ sede fiéis aos poemas, não para negar a “realidade” mas para resistir, com uma força inspirada, aos absurdos, colocando-vos aos serviço do que tem sentido”), ensina-nos e mostra-nos as delícias da arte epistolar. Bem, vou-me despachar para poder escrever as minhas cartas de Boas-festas.

... Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, Uma Estranha Amizade

Muito se tem escrito sobre Eça e Ramalho Ortigão e muito se tem lido. Os textos sobre Eça são sempre motivadores. Embora não tenham primado pela longevidade das suas vidas, no que respeita a Eça, o que é certo é que os temas não se esgotam ao ponto de já ter sido publicado um dicionário com o respectivo suplemento sobre Eça de Queiroz Desta vez e mais uma, é Maria Filomena Mónica que, estranhando a amizade entre estes dois gigantes da literatura, nos traz uma obra curiosa no seu superlativo para nos deliciar, desvelando aspectos das suas vidas que não pertencem ao conhecimento do vulgo e, diga-se mesmo, da maior parte dos estudiosos. Com esmero, deslindou o que muitos não sabiam e eis-nos, de volta de gente que a gente julga conhecer, mas que ainda desconhecemos. Nunca se sabe tudo. Só os loucos são pródigos na sabedoria, ou, apetece dizer, a ignorância é atrevida. Ambos são homens do norte e ambos frequentaram a Faculdade de Direito em Coimbra, embora Ramalho não tenha acabado o Curso, tendo regressado ao Porto. Onde passou a leccionar a disciplina de Francês, no Colégio da Lapa, fundado por seus pais e onde vai conhecer Eça de Queiroz. Ao jornalismo, também, se dedicaram no início das suas vidas. Ramalho no Porto, Eça em Évora. Depois, encontrar-se-ão em Lisboa, por pouco tempo. Ramalho a trabalhar na Academia das Ciências e Eça de passagem para Cuba. Eça de Queirós, cerca de nove anos mais novo que Ramalho, nascera na Póvoa de Varzim, em 25 de Novembro de 1945. Foi em Lisboa que Eça conheceu Jaime Batalha Reis (1847-1935) matriculado, nessa altura, no Instituto Superior de Agricultura. Eram quase da mesma idade. Até ao fim da vida, manter-se-á o mais fiel amigo de Eça. No Verão de 1870, durante 31 números, os leitores do Diário de Notícias deliciaram-se com a leitura de O Mistério da Estrada de Sintra, em forma de folhetim. Em 27 de Setembro de 1870, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão informaram o público que a narrativa não tinha um único nome verdadeiro. A 17 de Junho de 1871, começam a aparecer nas bancas, uns opúsculos de cor alaranjada decorados com o diabo Asmodeus, ostentando em cima o título As Farpas. Na vertical figurava o nome de Eça de Queiroz e, na horizontal, o de Ramalho Ortigão, cujo subtítulo era Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes, com uma tiragem mensal de 1500 exemplares. Na primeira fase, a maior parte foi escrita por Eça, tendo a sua colaboração terminado em Setembro-Outubro de 1872, data da sua partida para Havana, onde foi ocupar o lugar de cônsul. Com a saída de Eça, sairá de forma separada a sua colaboração com o título Uma Campanha Alegre. Para os dois cronistas de As Farpas um dos alvos preferidos eram os políticos, advogados, a venda das colónias, pois não fazia sentido possuí-las, não havendo qualquer vantagem em manter Goa, Damão e Diu. As Farpas tornaram-se influentes na vida política do país, fazendo eco nalguns comportamentos tomados pelos governantes. Não se quedou por aqui o talento de Eça que começava a manifestar-se. Publicar um romance fazia parte dos seus objectivos. De saída para Havana, o título adequava-se: Uma Conspiração em Havana. Não levou por diante os seus intentos. Singularidades de uma Rapariga Loura é um conto que tornará público em 1873, num opúsculo como Brinde aos Senhores Assinantes do Diário de Notícias. Apesar de distante, no outro lado do Atlântico, a sua relação com Ramalho não abranda, ao ponto de lhe confidenciar a sua relação com o dinheiro. As dívidas deixam-no preocupado. Um empréstimo resolver-lhe-ia a sua situação financeira. Ramalho poderia servir de intermediário, ao conseguir alguém capaz de lhe facultar um empréstimo. Depois de começar a publicar em folhetins na Revista Ocidental, a partir de 1875, O Crime do Padre Amaro, aparece em 1878, O Primo Basílio que obteve um grande sucesso, esgotando-se rapidamente, o que suscitou, de imediato, uma segunda edição. Ramalho, por seu turno, não gostou do romance, sendo inaceitável que uma mulher ousasse ter aquele comportamento, conforme escrevia n’As Farpas em Maio de 1878. Vivendo no estrangeiro, onde exercia a sua actividade profissional, Eça vem a Portugal de quando em vez, hospedando-se no Norte, onde tinha amigos, raramente se encontrando com Ramalho, que só aparecia ocasionalmente.. A sua situação de celibatário ia resolver-se. A 10 de Fevereiro de 1886, José Maria Eça de Queiroz e Emília de Castro Pamplona Resende consorciaram-se, numa cerimónia íntima, na capela privada da Quinta de Santo Ovídio. Ele com quarenta anos, ela com menos doze. Ramalho, o único convidado de Eça, foi o padrinho. Com livros escritos, como O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro, nem todos os familiares dos Resendes apoiaram a união. Ramalho, padrinho de casamento de Eça, cimentava, assim, a sua relação, carteando-se a cada momento. Nos propósitos de Eça a redacção de um romance. Em carta escrita a 3 de Junho de 1882, do Hotel du Cheval Blanc, de Angers, escreve a Ramalho, tratando- -o por você, a propósito de Os Maias: Eu não estou contente com o romance: é vago, difuso, fora dos gonzos da realidade, seco e estando para o belo, a obra de arte como o gesso está para o mármore. Tem aqui e ali uma página viva e é uma espécie de exercício, de prática, para eu depois fazer melhor. Em tom de confidencialidade, escrevia: O que não vai bem, todavia, é a saúde. A nevrose está comigo, creio eu. O tempo chegou em que a vida para mim, a não ser que eu a queira estragar de todo, deve ter um regime e você sabe, ou pressente, quanto é triste entrar-se dentro de um regime. Enfim, cada questão de saúde é longa e eu não tenho aqui tempo para queixumes(…). Tinha Eça trinta e seis anos. Os Maias viriam a ser publicados em 1888, último livro publicado em vida do poeta, sem que se deixassem de ouvir vozes discordantes, principalmente de Fialho de Almeida que no livro Pasquinadas (jornal dum vagabundo) saído em 1889, comparando-o com outras obras de Eça, lamenta a perda de espontaneidade: o livro era uma obra remodelada, embricada de remendos, sobreposições trabalhosas, entrelinhas que por isso mesmo perdeu a sua bela serenidade de composição, a sua nitidez de factura e cujos episódios, divergindo da acção principal, em longas e inúteis explanações, fazem empalidecer o brilho de muitas cenas e substituem por vezes a fadiga ao interesse, mau grado o profuso, o luminoso, o admirável talento espalhado por todas aquelas páginas. Nas suas vindas a Portugal, habitualmente de férias com a família, era fácil a sua permanência na capital, só permanecendo durante várias semanas, pretexto para confraternizar com amigos, juntando, muitas vezes. E assim começou o grupo de intelectuais que se denominou Vencidos da Vida, designação atribuída a Oliveira Martins em 1888. De vencidos não tinham nada: eram inteligentes, cultos e capazes de governar o país. A composição variava segundo as ocasiões e a disponibilidade de cada um. Ficaram para a história Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Conde de Ficalho, Bernardo Arnoso, Guerra Junqueiro, António Cândido, Eça de Queiroz, Conde de Sabugosa, Carlos Mayer, Luís de Soveral e Carlos Lobo d’Ávila. Eça e Ramalho, dois intelectuais que a escrita uniu, mas de temperamentos muito diferentes. Ramalho, afastado de Lisboa, casara aos 23 anos com Emília Isaura Vilaça de Araújo Vieira, seis anos mais velha, noiva que não era bonita, nem rica, nem culta. Para ter a vida tranquila na casa alegre, fora esse um dos objectivos do matrimónio, a que se furtava quando possível, ao invés de Eça que era por natureza sedentário, não sendo grande apreciador da vida social, sendo avesso a movimentos literários de cariz nacionalista, o que o separa de Ramalho. Não ficou o país indiferente à actividade de Ramalho Ortigão, agraciando-o com a Comenda da Ordem de Cristo e ainda, por parte de Espanha a Credencial de Cavaleiro Grã-Cruz da Real Ordem de Isabel, a Católica. Eça, por seu turno em 1896, recebe a Légion d’Honneur francesa, grau de Cavaleiro. Servindo-nos da leitura do livro de Maria Filomena Mónica, que temos vindo a citar, Eça deixou a educação dos filhos ao cuidado da mulher que vivendo em França, é natural que em casa só se falasse francês. Os filhos apenas liam jornais franceses. A filha, Maria, fora educada no Colégio católico das Madres Agostinhas, em Paris. No final de Julho de 1900, a saúde de Eça fragilizou- -se, indo, a conselho médico para a Suíça, não tendo sido acompanhando pela mulher, por um dos filhos estar doente. Ramalho acompanhou-o, tendo continuado a viagem que estava a fazer. No dia 13 de Agosto regressa a Paris. Três dias depois falecia. Era 16 de Agosto de 1900. Tinha 54 anos. Através do cônsul português, Ramalho tomou conhecimento da morte de Eça, sentindo-se culpado por o ter deixado sozinho em Genebra. O Parlamento concordou com a concessão da pensão à viúva que lhe foi interrompida depois da implantação da República. O facto de os filhos José Maria e António terem optado por se ligar à causa monárquica de Paiva Couceiro e a mãe ter partido para Vigo, onde ficou várias semanas para estar ao lado dos filhos, ter-lhe-á custado o corte da pensão do Estado, que lhe vinha sendo atribuída. Em 7 de Setembro de 1900, ainda em Itália, Ramalho confidenciava ao conde de Sabugosa, “Eu devo muito a Queiroz, devo-lhe do que sou o que não devo a mais ninguém no mundo. Por isso o amo como a um pai” “(…) além de amar Queiroz como se ama um pai, eu o amava também – mais carinhosamente ainda! – como se ama um filho”. O governo de Hintze Ribeiro encarregou-se da transladação do cadáver de Paris para Lisboa. Em 12 de Setembro, após as exéquias em Paris, a urna foi transportada para a gare de Saint Lazare, de onde seguiu para o Havre, tendo embarcado no navio militar África com destino a Portugal, aonde chegou ao Tejo, pouco passava do meio-dia de 16 de Setembro. No Rossio, de gravata encarnada podia ver-se Fialho de Almeida, que havia sido convidado a fazer parte da comissão de jornalistas, encarregada de homenagear Eça, mas que recusara. Ramalho Ortigão,invocando uma crise de reumatismo, não compareceu. O cortejo dirigiu- -se para o cemitério do Alto de São João, onde ficaria no jazigo dos Resendes, em Lisboa. A urna era grande de mais para entrar no espaço por onde tinha de passar. O cangalheiro teve de ir a Cascais a fim de pedir à família do morto, licença para desaparafusar argolas do caixão, única forma de este entrar no jazigo. Só no dia seguinte seria sepultado, incluído numa família que não era a sua. Como é natural, depois da morte, todos lhe teceram loas, à excepção de Fialho de Almeida que no Brasil- -Portugal de Setembro de 1900, lhe dedica um artigo vituperando-o. Raul Brandão, nas Memórias afirmará, “No fundo, nunca o pôde ver, faltou-lhe o carinho, a consideração, e isso magoou-o muito, que rodeou o grande escritor de Os Maias.” Durante algum tempo, Emília Eça de Queiroz viveu na praia da Granja. Em 1932, através de Luís de Magalhães, Emília teve conhecimento de que uma comissão de notáveis de Aveiro, sabendo dos desejos de Eça ficar enterrado junto do seu avô, se preparava para promover a transladação dos restos mortais para o cemitério do Outeirinho, perto de Verdemilho, numa carta de 17 de Dezembro, dizia Emília concordar com a transladação mas com reservas, o que só veio a acontecer em 1989, para seguir para uma Fundação, que os descendentes tinham organizado em Santa Cruz (Tormes), no meio de serras, onde Eça nunca imaginou viver. Em 5 de Fevereiro de 2021, o Parlamento decidiu conceder honras de Panteão Nacional aos restos mortais de José Maria Eça de Queiroz, por reconhecimento pela obra literária ímpar e determinante na história da literatura portuguesa. Na Primavera de 1915, Ramalho sentiu-se mal. O médico, Francisco Gentil, diagnosticou-lhe cancro, tendo-o submetido a um tratamento que se revelou ineficaz. Em 27 de Setembro, depois de ter recebido a extrema-unção morria em casa, católico praticante, tendo sido recebido pelo Papa Leão XIII, no Vaticano em 1906. Ramalho morreu numa altura complicada do regime, Em Janeiro tivera lugar o golpe militar que levara o presidente da República, Manuel de Arriaga, a demitir o governo chefiado por Afonso Costa. No dia do enterro estava no poder, José Ribeiro de Castro, que no dia seguinte cederia a pasta a Afonso Costa. Ramalho foi a enterrar no cemitério dos Prazeres, tendo o caixão ficado depositado no jazigo dos marqueses de Sabugosa. No funeral não esteve presente ninguém da família de Eça de Queiroz Depois da morte de Eça, havia que tratar do espólio legado. A viúva escreveu a Ramalho, tendo em vista o destino a dar aos romances inacabados, alguns prontos ou quase prontos, como a Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras, Cartas de Fradique Mendes. Passado pouco tempo Ramalho respondeu, agradecendo a “preciosa prova de amizade”. Iria tratar de coligir todos os escritos dispersos em jornais e revistas dos quais se apurarão certamente dois ou mais volumes de grande importância na obra completa de Eça de Queiroz. Tratava-se, em primeiro lugar, de publicar A Ilustre Casa de Ramires, obra quase pronta desde 1890, que iria sair em 1900. Com a colaboração de Luís Magalhães (1859-1935) saíram: Os Contos, Prosas Bárbaras, Cartas de Inglaterra, Ecos de Paris, Cartas Familiares, Notas Contemporâneas e Últimas Páginas. Em 1924, o filho primogénito de Ramalho, radicado no Brasil, José Vasco, escrevia a José Maria Eça de Queiroz, contando-lhe o que encontrara, começando o filho de Eça, de imediato, a preparar a publicação desse espólio. Pouco depois anunciou-se a publicação da Tragédia da Rua das Flores, escrito em 1877, o que só viria a ser editado em 1980. A propósito do Arquivo pessoal de Eça de Queiroz, conta-nos Maria Filomena Mónica que se encontra no fundo do mar. Dada a circunstância um tanto bizarra, ignorada por grande parte dos leitores de Eça, não nos furtamos a escrever o que nos foi proporcionado pela investigadora: Com base numa carta que a filha de Eça, Maria, escreveu a Heitor Lyra em 4 de Outubro de 1960, Lyra revela que após a morte de Eça, a mulher decidiu enviar os móveis que existiam em Neuilly, bem como o arquivo do marido no navio Santo André, meio de transporte escolhido pelo Governo para trazer de volta a Lisboa sobras de arte portuguesas que tinham estado presente na Exposição Universal Portuguesa. A decisão viria a revelar-se uma catástrofe. Em 4 de Janeiro de 1901, diante de Lisboa, o Santo André naufragou. O Tejo estava picado e, fora da barra, as ondas andavam altíssimas. No Havre, quando o navio zarpou, já as condições atmosféricas eram deploráveis. Segundo consta o navio não tinha condições. Quando o Santo André se deparou à beira de Lisboa com dificuldades, foi abandonado pela tripulação. O rebocador Berrio enviado para resgatar, falhou a missão. Abandonado às correntes. O Santo André foi arrastado pelo mar, presumindo-se que se tenha afundado algures no sul de Portugal. Apenas foram encontrados restos de cascos, uma barrica com óleo mineral e um remo. No naufrágio desapareceram quadros de Carlos Reis, Malhoa, e de Veloso Salgado e uma pequena tela de Columbano, onde Eça está retratado, tendo desaparecido, também, a Biblioteca de Eça. Quando a viúva de Eça se deslocou a Vigo, deixou os livros que tinham pertencido ao marido em casa de uma velha criada, cujo genro, um tipógrafo de nome Danton, os foi, aos poucos roubando. Emília vivia na praia da Granja, onde os filhos passavam temporadas. Morreria aos 77 anos, tendo-se mantido até ao fim uma católica devota. Para Maria Filomena Mónica, entre Eça e Ramalho havia mais interesse do que amizade. Eça precisava de ajuda de Ramalho para ser publicado e Ramalho de alguém que com ele colaborasse em certos empreendimentos literários, tudo tendo começado com a publicação de O Mistério da Estrada de Sintra e de As Farpas, dados à estampa sem uma autoria individualizada. Em 1903, em parte devido à influência do conde de Arnoso, ao tempo secretário particular do rei D. Carlos, foi inaugurada em Lisboa uma estátua em honra de Eça, tendo um dos oradores, Ramalho Ortigão, no dia da sua inauguração, proferido algumas palavras que salientamos: Nunca foi general, nem ministro de Estado, nem deputado às Cortes. Foi tão só um artista. Viemos ao mundo e fomos criados na mesma região de Portugal. Embalaram-nos idênticas orações de nossas mães. Admitia, contudo, que a vida os tornaria diferente: ele ficara “nostalgicamente minhoto”, enquanto Eça escolhera Lisboa como o seu “laboratório de arte, o seu material de estudo, a uma preocupação de crítico, o seu mundo de escritor. Na base da estátua, uma frase retirada da epígrafe de A Relíquia: Sob a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia Não foram unânimes as vozes relativamente à estátua, manifestando-se Ramalho a favor do monumento, argumentando que certos mortos tinham o direito a ser celebrados antes de alguns homens mais célebres, tendo direito à saudade daqueles que os conheceram e trataram. É do domínio público que a relação entre Eça e Ramalho se pautou, ao longo das suas existências, sem que incompatibilidades se tenham manifestado, contudo muito havia a separá-los, ao ponto de Maria Filomena Mónica se ter interrogado acerca da ligação existente, considerando-a “uma estranha amizade”. Se as respectivas visões do mundo eram diferentes, o que é certo é que enriqueceram o nosso património cultural, a partir de perspectivas distintas que só vieram valorizar quem os leu, apreciou e criticou. Uma estranha amizade, Eça e Ramalho, um livro a adicionar muito ao que já se sabia, que nunca é demais.

Um vergonhoso jogo de batalha naval

A propósito da nomeação do novo chefe do Estado-Maior da Armada o senhor Marcelo de Sousa, enquanto presidente da república, o senhor António Costa enquanto primeiro-ministro em exercício, o senhor Rui Rio, enquanto putativo primeiro – ministro e o senhor Gouveia e Melo, enquanto marinheiro afamado, travaram publicamente, no mar da insídia política, uma batalha naval política, a todos os títulos lamentável. Batalha que poderá não ter ainda terminado embora haja quem diga que os senhores António Costa e Gouveia e Melo venceram o primeiro round. Batalha de que faz gáudio o jornal semanal “Tal e qual” sem que tenha sido, até ver, desmentido ou contestado pelos directamente visados. Titula, de facto, o referido jornal em toda a largura da primeira página do dia 29 de Dezembro de 2021: “ Gouveia e Melo esteve á beira de alinhar pelo PSD”. A que acrescenta o subtítulo “A manobra” do almirante” e, ainda na primeira página, explica: Rui Rio tinha o sonho de ver o “homem das vacinas” ao seu lado na próxima campanha eleitoral. E isso esteve por um fio. Mas António Costa trocou-lhe as voltas e ao mesmo tempo que “ destrunfou” o líder do PSD, fez a vontade a Gouveia e Melo, nomeando-chefe do Estado-Maior da Armada. Matéria que o jornal semanal “Tal e qual”, que cito com a devida vénia (agradecendo ao jornal Nordeste permitir- -me tão longa citação), desenvolve mais detalhadamente em páginas interiores. Trata-se de uma insidiosa batalha naval, portanto, entendida enquanto jogo político, que irá ficar inevitavelmente registada nos anais da Marinha e na história da triste democracia portuguesa. Não está em causa a categoria profissional e muito menos a eficiência com que a task force liderada pelo agora almirante executou o processo de vacinação na fase eventualmente mais crítica. Não se fique com a ideia, porém, que não há centenas de militares e civis, com competência bastante para desempenhar com igual ou superior brilhantismo a missão que muito justamente prestigiou Gouveia e Melo. Competências que, é por demais evidente, escasseiam, isso sim, na alargada manada de boys partidários que pululam na Administração Pública como se vem provando à saciedade. Por isso, o que verdadeiramente choca a qualquer democrata e português do povo é que, para começar, um emergente líder partidário com ambições de vir a ser primeiro-ministro se atreva, indecorosamente, a tentar arregimentar um almirante no activo para a sua causa pessoal e partidária. Depois, que um brioso militar tenha dado mostras de se predispor para despir a farda que garbosamente ostentou e alinhar em tal projecto. Ou será que se vestia de camuflado por congeminações estratégicas e não por louváveis razões tacticas? Depois, que tal almirante tenha imposto, ainda que sorrateiramente, ao primeiro-ministro em exercício a sua vontade e que este se tenha subordinado aos desígnios do tropa finório, tratando as Forças Armadas como uma coutada pessoal e partidária. Por fim, o que é mais grave ainda, que o mais alto magistrado da Nação e comandante supremo tenha sancionado e alinhado em tão indigna tramoia. A Corporação Militar foi, em última análise, mais uma vez usada, abusada desprestigiada e os seus mais dignos servidores tratados com mentecaptos, por personalidades que mostraram não ter o requerido perfil político e deontológico para da melhor forma governar Portugal. Personalidades que mais parecem apostadas em destruir o passado, o presente e o futuro do velhinho Portugal, sacrificando a Pátria, o Estado, a Nação e o Povo, a deuses que nem eles saberão quem são. Tudo só porque em causa estão as próximas eleições de 30 de Janeiro e o que verdadeiramente lhes interessa é o poleiro. Políticos que o próprio Regime gera para se auto desgovernar. É triste mas é verdade.

Carta à minha neta (Nascida em 2019)

Amélia, minha querida neta, apesar de todas as evidências em contrário, que na tua curta existência se assumem como uma suposta realidade uniforme e sem exceção, a normalidade não é a que tens constatado. A sociedade que te acolheu no final da segunda década deste milénio é significativamente diversa daquela que te foi dado conhecer e analisar. A humanidade que, em fevereiro de 2019 te recebeu, festivamente, olhando- -te nos olhos, sem reservas, beijando-te as bochechas e apertando-te em calorosos abraços, de cara descoberta e circulando livremente por todos os lados sem reservas de monta, começaste a observá-la usando, por defeito, na cara, uma máscara que, por mais personalizada é sempre impessoal, por mais elaborada é sempre mais feia que o mais feio dos rostos; vivendo, normalmente, isolada e receosa de se encontrar com conhecidos e até desconhecidos; desinfetando, as mãos, até à exaustão sempre que entra num novo espaço, banalizando o saudável ato de as lavar com frequência; fugindo de aglomerações e escondendo-se à menor suspeita da proximidade de qualquer cidadão com febre, tosse ou outro sinal de enfermidade; cumprimentando-se com acenos, toques de cotovelos ou – há bem pouco tempo pareceria insano, raiando a loucura – substituindo os francos apertos de mão aberta fechando-se sobre outra depois de a apertar, por um soco seco de punho fechado que, mesmo querendo aproximar, inevitavelmente, afasta quem se pretende cumprimentar! Não, minha querida neta, esta não é a humanidade que te abriu os braços e à qual pertences, por pleno direito, fará, brevemente, três anos! Mesmo que tu não lhe conheças outra atitude e maneira de ser, esta gente que hoje se ajoelha perante um inimigo estranho, persistente e obstinado, já levou de vencida adversários maiores, mais perigosos, mais letais e mais assustadores. Esta gente, que somos todos nós que desde há milénios povoamos este planeta, derrotámos, na nossa existência, guerras, fomes, pestes e cataclismos; gigantes, ditadores, assassinos e feras sanguinárias; forças incontroláveis da natureza, caprichos de deuses sanguinários e vingativos, maldições de bruxas poderosas e catastróficas profecias de necromantes e adivinhos; revoluções, massacres, tsunamis e violentas erupções. Demos a volta ao mundo em barcarolas movidas a remos e velas, explorámos a profundeza dos oceanos e a infinitude do universo, analisámos a imensidão das galáxias e a natureza das partículas mais ínfimas, inventámos sistemas de localização universal e construímos máquinas complexas e inteligentes e, mesmo agora que estamos acantonados por algo estranho a que a maioria dos cientistas se recusa a dar-lhe a categoria de ser vivo, apesar da sua enorme capacidade de replicação e mutação, que não tem um único neurónio apesar do “comportamento” aparentemente inteligente resistindo, eficazmente à sofisticadas estratégias de combate, mesmo confinados e assustados, desenvolvemos em tempo recorde vacinas seguras e eficazes e identificámos comportamentos seguros, cada vez mais ajustados e menos perturbadores. Por isso, minha neta, apesar dos plúmbeos tempos e das ameaças constantes e permanentes, no início deste novo ano planetário, nas vésperas do teu terceiro aniversário, quero despertar a tua esperança para os dias radiosos que te esperam, para os sorrisos que te iluminarão, para os abraços que te aquecerão, para o convívio normal, sem restrições, sem receios, sem preocupações, incertezas nem ansiedades. Bom Ano.