A Imagem do Funcionário Público

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Ter, 20/06/2006 - 15:39


Na Roma Antiga, os Servidores do Estado, os que fundamentalmente pelas qualidades morais, representavam a Polis, eram investidos de uma certa autoridade.

Tal condição, compreensivelmente, suscitava a cobiça e a inveja dos não eleitos, quer pelo reconhecimento social granjeado, quer pelos inerentes privilégios dela decorrentes.
É do senso comum que a credibilidade de uma qualquer opinião, acerca deste ou daquele assunto, seja emitida no jornal, na televisão, no barbeiro, ou na tasca da esquina, pelo mais simples dos mortais, é sempre condicionada pela forma como na sua abordagem nos posicionamos. Digamos, ela é tanto mais fiável quanto maior for o distanciamento emocional entre o objecto de abordagem e a pessoa que sobre ele opina. Ou seja, na minha orgulhosa condição de Servidor do Estado, serei uma pessoa suspeita, tendenciosa, para falar dos funcionários públicos.
É, pois, nessa qualidade, tentando ser o mais razoável e racional possível, que me cumpre submeter à reflexão os motivos que poderão estar na base da generalizada fixação nos funcionários públicos, por parte de pretensos virtuosos, que se manifestam, tantas vezes, de forma despudorada e deselegante, movidos, só pode, por sentimentos de frustração por não serem igualmente “eleitos”.
Ponho as coisas nestes termos, evidentemente sem generalizar, porque o 6º dos preceitos do Decálogo - um dos traços característicos deste povo - parece ser a arma mais frequentemente utilizada por parte daqueles que carregam o fardo do insucesso e da não realização profissional, para justificarem a antipatia que nutrem pelos funcionários públicos, ao ponto da vituperação ter “honras” de anedotório nacional”.
Entre outras coisas, os funcionários públicos são acusados de terem muitos privilégios, de pertencerem a uma classe onde se perpetuam certos vícios e de não “fazerem nenhum”.
O primeiro ponto, o dos privilégios, leva-me naturalmente ao seguinte comentário: aquilo a que chamam privilégios, que é, em meu entender, e não mais do que isso, a consolidação dos mais básicos direitos consignados na Constituição da República Portuguesa, como a estabilidade laboral, que dá a garantia do vencimento ao fim do mês, não são extensíveis, como todos desejaríamos, a muitos funcionários do sector privado, por culpa, por um lado, de milhares de cidadãos que, ao contrário dos funcionários públicos, não cumprem as suas obrigações fiscais; e, por outro, dos muitos Belmiros de Azevedo deste país, que têm, por exemplo, funcionários a trabalhar para eles, com o grau de licenciatura, a ganhar o mísero ordenado mínimo. Relativamente ao “não fazer nenhum”, o que se pode dizer é que esta convicção religiosa, tão presente e institucionalizada, é não mais do que o reflexo do pretensiosismo de certas mentes dadas à maledicência, que julgam ser os únicos capazes de fazer andar o país para a frente. Os “vícios” (quem os não tem?!), a existirem, terão provavelmente os dias contados com a anunciada reestruturação na administração pública, em que a principal rotura se dá através da Lei da Mobilidade dos funcionários da administração pública, com a qual estou, pelo menos no essencial, de acordo.
Recentemente, fui protagonista de um episódio que vai ao encontro da ideia de que o sentimento de repulsa em relação aos funcionários públicos se manifesta de uma forma muito explícita.
No exercício da minha actividade profissional, necessitei de dar uma mangueirada de água na viatura que me está distribuída. Para o efeito, demorei, obviamente, o tempo necessário. Ainda não tinha terminado a dita tarefa, quando, de súbito, nesse local semi-privado, e sem que nada o fizesse prever, um certo indivíduo se dirigiu a mim, com a arrogância de quem tem o rei na barriga: “Ó amigo, isto não é para todo o dia!” “Vamos lá despachar, que eu estou com pressa!”. Num tom civilizado, respondi: “Tenha calma, que eu também estou com pressa.” “Portanto – prossegui –, faça favor de aguardar pela sua vez.”. O meu interlocutor, apercebendo-se, pelo logótipo colocado na viatura e pelo dístico EP, que eu pertencia à vasta família dos funcionários públicos, completamente esbaforido, replicou: “Como é que tem pressa, se é funcionário público?!” “Além do mais – concluiu –, o seu ordenado sou eu quem o paga, lembre-se disso!”.
Esquece-se este senhor – que, soube mais tarde, é proprietário de dois ou três talhos em Mirandela – e outros tais que alimentam este tipo de discurso, por pensarem que lhe devemos vassalagem, que os funcionários públicos são clientes dos talhos, dos restaurantes, dos ginásios, dos cafés, das farmácias, das discotecas, etc., e que a dinâmica social só é possível com base na complementaridade e na cadeia de relação entre os “prestadores de serviço”, aqueles que produzem (no sentido literal da palavra), e os consumidores.