José Mário Leite

PUB.

OS TRÊS “R” E OUTROS TRIOS 2 - OS TRÊS JOSÉS I - O GAMA

José Gama costumava dizer que o seu sucesso político se devia à sua arte e engenho de pegar num fósforo aceso e fazê-lo brilhar como um canhão. Desconte-se o exagero característico dos políticos e a trajetória do autarca nordestino justificava tal aforismo. Naquele tempo, no distrito de Bragança, ninguém dominava a arte da comunicação como ele. Sabia construir uma história, facilmente entendível pelo público alvo, acrescentava-lhe um bordão já devidamente estudado e testado e repetia-a até à exaustão. “Há verdades que existem e têm de ser respeitadas, há outras que se constroem e é preciso revelá-las”. Aos que lhe criticavam as “novidades” costumava rotulá-los como sendo do tempo do carro de bois em contraponto consigo próprio que se autointitulava de ser da era do TGV. E tudo lhe corria bem. Porém, é sabido, não há regra sem exceção! E o ambiente, nessa altura, sobretudo o tratamento dos resíduos sólidos não podia ser tratado como a construção de uma rotunda. Por alguma razão, até aquela data, em Bragança, não havia concelho que não tivesse rotundas, pavilhões, piscinas e terminais de camionagem... mas não havia nenhum aterro sanitário, nem tão-pouco a definição concreta da sua localização, a primeira e mais difícil de todas as etapas necessárias. Obviamente que a sua concretização, apesar de não haver ainda uma consciência ambiental parecida com a de hoje, seria um feito assinalável que caía como mel na sopa, ao autarca mirandelense, numa altura em que sonhava já com novos voos. Porém, a morosidade do processo não se compaginava com o “timing” das suas ambições. O verdadeiro feito seria a inauguração do equipamento, mas como não tinha tempo para esperar resolveu, imprudentemente, fazer da escolha do local de implantação, um “acontecimento mediático nacional” e resolveu convidar a televisão para o terreno para, em direto (outro erro crasso!) fazer o anúncio do arranque da obra. Para piorar, soube-se depois, tinha telefonado ao Primeiro Ministro de então, chamando- -lhe a atenção para a reportagem da recém-inaugurada delegação da RTP de Bragança. Uma pequena, mas aguerrida e ruidosa manifestação destruiu o efeito pretendido. Gama sentiu-se humilhado e ficou furioso. Obviamente que a culpa, não podendo ser sua, caiu-me em cima, apesar de ter ignorado os avisos que lhe fiz, no próprio dia sobre o risco elevado da sessão por causa do que então já se sabia. O projeto ficou ferido de morte e podia ter terminado ali! Tal como sabia fazer brilhar como um canhão, um simples fósforo, José Gama sabia bem que havia fogos cujo brilho, por ser prejudicial para a sua imagem, era melhor escondê-los, colocá-los debaixo de um alqueire por antítese ao que é recomendado pelo Evangelho (São Mateus 5:13) que Gama bem conhecia. A missão da Associação de Municípios, estava em risco, apesar de, entretanto, ter lançado o projeto MATER de modernização administrativa e informática das Câmaras associadas. Nesse tempo eu ainda presidia à Comissão Política do PSD de Moncorvo e, nessa qualidade, na disputada e “dramática” reunião distrital para indicação dos candidatos, propus e defendi, aguerridamente, o nome de José Gama para liderar a lista distrital para a Assembleia da República. Mais por causa do nome em si, do que da minha intervenção, a proposta foi aprovada por unanimidade. Em boa hora. As eleições de 1995 haveriam de trazer, para o palco ambiental do nordeste e que seriam decisivos na retoma da iniciativa que seria concluída, com sucesso, em 1997, dois outros Josés, de que falaremos na próxima crónica, a saber José Silvano e José Sócrates.

OS TRÊS “R” E OUTROS TRIOS 1 – TRÊS “M”

Recentemente fui convidado a elaborar uma comunicação sobre o processo de valorização ambiental da Terra Quente, a propósito da passagem de 25 anos da inauguração do Aterro Sanitário que aconteceu em setembro de 1997. De- veria ser apresentada numa sessão a realizar para celebração da data do evento.
Por razões que desconheço, na totalidade, tal celebração não se realizou.

Arredado há muitos anos da gestão dos resíduos, no nordeste, a minha interven- ção, para não me envergo- nhar, teria de ter um pendor histórico. E, assim sendo, para começar do início, teria de re- montar a 1993, altura em que me iniciei nessa atividade. Verifiquei que se cumprem agora, em 2023, três décadas e que foi nessa altura que sur- giu com particular importân- cia para o projeto que abraçava a política dos três “R” – Reduzir, Reutilizar e Reci- clar. De repente vi que havia, nesse processo, vários grupos de três palavras-chave com as mesmas iniciais. Pareceu-me ser de interesse, passados que são trinta anos, revisitar esses tempos, trazer para a luz do dia, episódios desconhecidos e revelar situações menos conhecidas e até, porque não, desfazer alguns equívocos e mitos criados à volta de uma instalação que, sabendo-se importante, à data, não se adivinhava a relevância que viria a assumir por ter sido o único aterro concluído, no distrito de Bragança, dos três então anunciados.

O primeiro trio é de palavras começadas por “M”: Mirandela, Moncorvo e Macedo.
José Gama, o autarca modelo de então, ganha- ra, surpreendentemente, o município mirandelense e propunha-se fazer da “prin- cesa do Tua” um jardim. Ob- tivera financiamento europeu para a ponte-açude, revolucionara a zona entre pontes com a construção do Parque do Império e a urbanização da antiga zona da feira, junto à Senhora do Amparo, cons- truíra o Parque de Campis- mo da Maravilha e iniciara a revitalização do espaço que, futuramente, haveria de ter o seu nome. Nas rotundas e ou- tros espaços públicos trans- plantara oliveiras e mandara plantar rosas. Alindara a cida- de, em toda a zona ocidental,
porém... a nascente, uma li- xeira a céu aberto, era o pior dos cartões de visita de quem chegava vindo de Vila-Flor ou Alfândega, impedia o cresci- mento para leste e empesta- va toda a zona da Reginorde,
sempre, mas muito especial- mente nos dias em que o ca- racterístico “capacete” de ne- voeiro aprisionava os fumos e cheiros libertados, cons- tantemente, pela combustão dos resíduos ali depositados. A minha entrada para a Asso- ciação de Municípios da Terra Quente Transmontana a que o edil mirandelense presidia, tinha como desafio primeiro, libertar Mirandela (e a região) deste cancro ambiental.Em Moncorvo, Aires Ferreira que disputava, a Gama, o título de melhor autarca re- gional, estava no final do seu segundo mandato e depara- va-se com um problema idên- tico que sendo, embora, de impacto inferior causticava os moncorvenses que subiam para a Terra do Ferro, vindos do IP2 junto do cruzamento da Foz do Sabor ou quando o vento empurrava fumos e cheiros para o centro da vila. Associar Moncorvo, onde eu, nesse ano, concorria contra o autarca pela disputa da Câ- mara, era um objetivo políti- co, mais do que técnico. Por óbvia razão política, foi rejei- tada a minha proposta. Apesar da mancha ambiental no centro da REN, na serra de Bornes, a lixeira de Mace- do não tinha os incómodos das duas anteriores. Contudo o aspirante Luís Vaz fez da inclusão do município ma- cedense, na Associação, para resolver, precisamente, os problemas de recolha e trata- mento de resíduos, o mote da sua campanha eleitoral que o haveria de levar ao poder, em dezembro desse ano de 1993.

PAF

PAF não é, aqui, o acrónimo da Coligação Política (PSD/ CDS) que em 2015, tendo ganho as eleições legislativas, acabou na oposição por causa do acordo que ficou conhecido como A Geringonça. Não é esse o objetivo deste texto, pese embora o ineditismo do sucedido. PAF, neste caso, refere-se a Pedro Álvares de Freitas, um ilustre transmontano, seiscentista, originário de Vilar de Nantes e abade em Torre de Moncorvo. Ernesto José Rodrigues escreveu no Jornal Nordeste (“Por um diálogo inter-religioso segundo a Formosa Pelicana), advogava a atribuição do nome de D. Luís de Portugal a uma das ruas da vila de Torre de Moncorvo. Subscrevendo a proposta deste velho e fiel amigo, acrescento a adequação de incluir na toponímia moncorvense o ilustre prelado que após um doutoramento em Salamanca veio para a Terra do Ferro, antes de seguir para Tomar, empossado como prelado, tendo sido igualmente Reitor de S. Nicolau, em Lisboa e desembargador do rei, desde 1595. Faleceu em 1599 tendo sido sepultado na cidade dos Templários, no Convento de Cristo, em notável e rico túmulo onde, a par com as suas armas, gravadas numa das faces da pirâmide que encima o seu caixão, tem o seguinte epitáfio: “Sepulcho de Pedro Alvares de Freytas Prelado q foi nesta v.ª de thomar deixou três missas cada semana com responso nesta sepultura para sempre...” As poucas referências encontradas sobre este enigmático personagem, apontam para um homem poderoso, no seu tempo. Em Tomar sucedeu a Pedro Lourenço de Távora, no ano de 1580, pouco depois da morte do Cardeal D. Henrique. Tendo tomado o partido de D. António I, ganhou, obviamente, o desagrado do soberano Filipe, Segundo de Espanha e Primeiro de Portugal. Porém, tal como o pretendente ao trono, filho da moncorvense Violante Gomes (A Fermosa Pelicana), afrontou, sem receio, o todo- -poderoso monarca. Filipe II, agastado com a defesa pública das aspirações do Prior do Crato quis livrar-se do prelado e, no mínimo, afastar a sua afrontosa influência. Incapaz de o depor do lugar que ocupava, nomeou para o seu lugar o Dr. João de Resende, cónego da Sé de Leiria, tendo promovido a elevação a bispo de Cabo Verde ou S. Tomé do rebelde transmontano. Porém, Pedro Álvares de Freitas não aceitou a promoção nem permitiu a substituição decidindo manter- -se no lugar que ocupava. A essa altura já era inquisidor do Santo Ofício tendo, nessa qualidade tomado, juntamente com Manuel Álvares Tavares e Heitor Furtado de Mendonça, a decisão, rara e corajosa, à época, de inocentar Aires Fernandes, o Dinga Dinga, levantando o sequestro que a Inquisição fizera da sua fazenda. Nas suas armas estão incluídos os motivos das dos Camões pois este personagem foi primo de Luís Vaz de Camões por ser filho de Álvaro Anes de Freitas e de Mécia Vaz de Camões, irmã do pai do grande poeta português. É razoável pensar que este influente religioso tenha exercido a influência suficiente para poupar o épico poema à sanha censória do Santo Ofício pois apesar de algumas exclusões, Os Lusíadas foram preservados no essencial, fenómeno tão estranho para quantos estudaram a época que deu origem à teoria, já abandonada, conhecida por “lenda dourada” defendendo que Frei Bartolomeu Ferreira (primeiro censor de Os Lusíadas) seria um censor benévolo, de grande tolerância, erudição e apurado gosto literário o que, analisando, outras atuações do clérigo inquisidor, não corresponde minimamente à verdade.

As Costas dos Costas

É nas costas dos outros que vemos as nossas, diz, sabiamente, o nosso povo e vem mesmo a calhar a propósito das polémicas à volta dos Costas da lusa classe política. Começara, esta semana, com a tão insistente, quão descabida e injustificável “exigência” de demissão de António Costa (o Silva) e acabou na controvérsia entre Carlos Costa (o ex-Governador) e António Costa (o Primeiro Ministro). Diz o antigo responsável do Banco de Portugal que o governante o terá condicionado, através de telefonema, curto e agreste, sobre a avaliação da idoneidade de Isabel dos Santos para poder estar ou não, na administração do Banco BIC. E foi o que se viu. Irritação do político, com ameaça de recurso aos tribunais, testemunhos de um lado e de outro, com curiosos cruzamentos políticos e pouco inocentes “confusões” entre BIC e BPI, indignações da oposição, e repulsa da maioria, precisamente, com a indignação oposicionista. Tudo muito teatral! Mas, mesmo no teatro, por mais ficcionado que seja o argumento há e haverá sempre bons e maus atores, melhores e piores personagens. Vejamos o caso em apreço. Terá Costa (o António) telefonado a Costa (o Carlos) recomendando-lhe que não destratasse a filha de um presidente de um país amigo? É bem provável que sim. E então? Por acaso está já esquecido o tempo em que a “princesa” africana passeava o seu charme pela Avenida da Liberdade e despejava dólares, aos milhões, pelo capital social das principais empresas portuguesas? Tratou o PS, com cuidado e deferência, a elite angolana, sobretudo a família Santos? Claro que sim. E o PSD não? Por acaso os Sociais-democratas ou mesmo os Democratas-cristãos afrontaram os dirigentes de Luanda, nas suas opções “institucionais” ou, tão pouco, nos negócios assumidamente particulares? Quererá, porventura, Montenegro fazer-nos crer que se em vez de Costa, fosse ele o inquilino de S. Bento teria importunado, de forma séria e consequente, a senhora engenheira? Por outro lado, que interesse público pode haver na revelação de um putativo telefonema que ninguém, em boa verdade, pode reproduzir, ipsis verbis, em todas as suas palavras, interjeições e, muito menos, intensidade, bem como pretensa irritação? Porquê, agora e não na altura? Ao assistir a esta ópera bufa, a este triste espetáculo de lavagem de roupa suja e encardida há perguntas que não podem deixar de ser feitas. Que idoneidade tem quem, encarregado de julgar e decidir sobre a idoneidade alheia (e falhou, redondamente, pelo menos, no caso BES), não consegue ser suficientemente idóneo para manter em privado uma conversa privada tivesse ela o teor que tivesse, dado que a não reve- lou em tempo e útil? O Governador do Banco de Portugal é independente. Sendo-o, não pode sentir-se pressionado. Se não consegue resistir às pressões (e devem ser imensas, provenientes de poderosos agentes políticos e financeiros) então não tem condições para continuar no cargo. Mas se resiste, então as pressões são irrelevantes e não há razões para serem divulgadas, vários anos depois. O Primeiro-Ministro foi o único a “condicionar” Carlos Costa? Porque não foram reveladas todas as outras? Ou será que às outras resistiu (a ser assim, algumas decisões mereciam melhor explicação) e aquela não? Mas, se assim foi, denunciá-la, só seria útil se divulgada no seu tempo. Ou, pelo menos, pouco tempo depois, numa conhecida Comissão Parlamentar de Inquérito onde o então Governador apareceu... totalmente desprovido de memória. Que bom, para ele, que a amnésia foi temporária e reversível!

NÓMADAS

Nómada, segundo o dicionário, é quem não tem residência fixa, que muda frequentemente de lugar, vagamundo ou vagabun- do. Era um adjetivo com algo de depreciativo e digo era porque se ao epiteto for acrescentada a palavra “digital”, então o conceito ganha importância, valor e consideração. Os “nóma- das digitais” são a elite dos trabalhadores disputados por empresas, instituições, governos e regiões. Porque o futuro é digital é normal que as empresas do ramo disputem e invistam nos recursos humanos mais qualificados que, se estiverem algures, longe dos centros exorbitantemente dispendiosos onde têm as suas sedes ou os controladores dos “armazéns” de dados (também eles dispersos, redundantemente, pelo planeta), mais preciosos são, porque baixam os custos indiretos valorizando as soluções procuradas e comercializadas. Aparentemente, a atratividade destes novos hipsters confere estatuto, promove e valoriza o lugar onde se instalam, vivem e trabalham. Sendo nómadas não sei bem se devem ser classificados de imigrantes ou turistas, ou algo aí no meio. Porque, turistas vagabundos, era algo que, não se enjeitando, deveria ser evitado. O investimento devia ser orientado para o turismo de qualidade, segundo garantiam há poucas décadas atrás os especialistas na matéria. E, igualmente, havia, se bem me lembro, um desígnio nacional para atrair imigrantes de luxo, normalmente reformados, nórdicos, na sua maioria, a quem se concediam grandes benesses. Pareciam ser a chave para a valorização deste território ameno e pacífico tão carenciado dos dólares, coroas e outras moedas externas. E ainda se foi mais longe com os famosos e famigerados “Vistos Gold”. Tudo isto é verdade... no curto prazo. A liquidez, o prestígio e a atividade económica, no imediato, são vantajosas, sem dúvida. Mas, a longo prazo não. Porque a atratividade que é necessária para cativar esta gente passa pela implementação e manutenção de várias infraestruturas básicas e de qualidade (que, óbvia e naturalmente não dispensam) que são financiadas pelos impostos... dos que cá vivem. Para atrair os outros eram-lhes concedidas, várias isenções e generosos benefícios fiscais. Ninguém duvida do interesse em atrair turistas ricos e com elevado poder de compra. Não é assim com os imigrantes. Os que se precisam, sendo especializados ou não, devem integrar e reforçar o contingente de trabalho nacional, sobretudo pagando impostos e contribuindo para a sustentabilidade da Segurança Social, Venha quem crie emprego ou quem se instale, trabalhe e constitua família e tenha filhos, para inverter o declínio populacional Não é por acaso que, após a euforia das grandes remessas de capitais que chegaram com “investidores” estrangeiros, depois da inflação do imobiliário e da enorme quantidade de empresas que produzem tanto ou tão pouco que os seus gestores receberam os famosos 125.00€ concedidos pelo governo aos mais necessitados... venham agora os governantes dizer que é necessário reavaliar a medida... exatamente na altura em que as reformas não sobem por causa da sua sustentabilidade e o Serviço Nacional de Saúde... estoira por todos os lados!

NÃO MATARÁS!

São várias as imagens que nos ocorrem, ao falar de Itália. Aparte as pessoais, que não interessam para o assunto, Itália remete para a arte renascentista, o legado imperial, o cinema de autor, as belíssimas actrizes, os fabulosos lagos do norte e, claro, o cálcio. Mas também para a política agitada, fremente e instável, a governação efémera, mas agitada e frequentemente violenta, as jogadas de bastidores, a corrupção, o poder do Vaticano em convívio com a Fé e com a Esperança, a luta pelo progresso do sul e a contínua procura de maior enriquecimento a norte, os seus agentes ativos e passivos, enfim gente muito simples e gente muito poderosa, a procura do bem comum e a prossecução de interesses egoístas e nem sempre legítimos. A bela, piedosa e culta Itália de Florença, dos Lagos e do Vaticano é a mesma da Política, da Máfia, das Brigadas Vermelhas e dos Escândalos Financeiros. É desta última que nos fala Teresa Martins Marques no seu recente livro “Não Matarás – romance de um crime”! Mas não só. O relato minucioso, documentado, criteriosamente detalhado dos cinquenta e cinco dias que abalaram Itália e o Mundo no ano de 1978, vai mais longe mer- gulhando o leitor uma profundidade notável. Revela a Itália escondida, quase invisível, miserável, ao nível económico, mas também cívico e moral, disseca sentimentos nobres e canalhas, expõe verdades e mentiras, aponta pistas e questiona dúvidas. Sendo um romance de um crime não é, tal como vulgarmente se apreende, um romance policial. Aqui não há dúvidas de quem são os autores materiais nem qual a vítima concreta de tão horrenda conspiração. A forma como a autora prende o leitor não passa pela curiosidade do desfecho, amplamente conhecido, mas pelo enredo em si, pelo entretecer das linhas com que foi sendo cerzido o maior crime político da história moderna italiana. Depois de escalpelizar as motivações mesquinhas e altamente egoístas de grande parte dos atores, Teresa Martins Marques brinda o leitor com um final onde traz para o conhecimento público vários personagens, indubitavelmente bons e generosos, decalcados de pessoas reais e contemporâneas. É a forma de, justa e generosamente, os homenagear. Não Matarás, é um livro fundamental e imperdível para tutti quanti se interessarem por conhecer a forma como é possível, quando há boa fé e genuíno espírito generoso de serviço público, unir esforços para melhorar a vida de uma comunidade, mesmo que, ideologicamente haja um mar de diferenças entre os protagonistas. Mas é também um alerta para as enormes ciladas e dificuldades, tantas vezes inul- trapassáveis, para atingir tais fins porque, paradoxalmente, o bem de todos não rima com o bem de alguns, se poderosos, egoístas e de mau carácter. É, para finalizar, um livro para ler devagar. E, principalmente, fazer uma pausa longa e reflexiva, na página 180 onde a Teresa transcreve o melhor dos pensamentos do antigo primeiro-ministro Aldo Moro: “Datemi da una parte milioni di voti e togliete-mi dall’altra parte un attomo di Verita, ed io saro communque perdente” (Dai-me por um lado mi- lhões de votos e tirai-me, por outro lado, um átomo de verdade e eu ficarei per- dendo) e que deveria fazer reflectir todos os eleitos desta nossa terra. Não duvido que a autora partilha deste superlativo valor da verdade.

OH, DIABO!

O meu pai, que Deus tenha, falou-me, várias vezes de um rapaz do seu tempo, um afamado cantador de fado, que brilhava nas desgarradas que, antigamente, se organizavam em festividades e romarias. Vinha de uma das aldeias do sul da Vilariça, não sabia ao certo se da Foz, ou das Cabanas, fossem as de Cima ou as de Baixo. Diziam-lhe que can- tava bem como o diabo ao que o próprio respondia que cantava melhor e se o mafarrico tinha dúvidas que aparecesse pois ele não tinha receio de pedir meças ao príncipe das trevas. E tal era a fanfarronice que, uma noite de lua cheia, dirigiu-se, sozinho (não encontrou quem o acompanhasse) a uma encruzilhada onde, por tradição, aconteciam coisas estranhas e sobrenaturais, próprias de bruxas, lobisomens e outras forças maléficas. Nunca ninguém soube ao certo o que se passou. O que ficou para a história foi a perda completa dos dotes vocais do fadista e uma recusa terminante em abordar o assunto.

Como este há muitos outros relatos que atestam que, quando é desafiado, o diabo, normalmente, não falha. Pode demorar, mas aparece. E quem confundir a demora com uma pretensa desistência, normalmente arrepende-se!

António Costa devia estar avisado desta tradição milenar!

Quando Pedro Passos Coelho vaticinou que as dificuldades do PS começariam quando viesse o Diabo, os socialistas galho- faram com as “previsões” do ex-primeiro-ministro e não havia debate parla- mentar, discurso público ou comício eleitoral onde faltasse a graçola sobre a “falhada previsão” passista... até que o diabo se fez anunciar!
Pois não é que o Diabo veio mesmo? E, como é seu timbre, no melhor da festa, para ser mais notado e destruidor.
Primeiro, sob a forma de uma pandemia demolidora, destruindo as recentes “conquistas” no deficit e nas “contas certas”. De pouco valeu o combate exemplar à moléstia e a maioria absoluta ganha a um PSD, sem rei nem roque, pois o próprio SNS, que fora estrela na atuação governamental, entrou em colapso, a inflação entrou de rompante, em força, sem pedir licença e instalando-se com impacto e duração totalmente opostas às garantidas pelo primeiro-ministro. Os salários e, sobretudo, as pensões começaram a perder poder de compra levando a chefia do governo a utilizar truques e passes mágicos para tentar esconder as suas reais intenções que, na prática, desmentiam as garantias dadas sob palavra de honra (palavra dada é palavra honrada) durante as campanhas anteriores levando ao cúmulo de atirar para o governo de Passos Coelho o que fora obra do seu antecessor, quer enquanto governante quer enquanto primeiro negociador/subscritor do acordo que nos colocou sob o jugo da infame troika, de má memória.
O Diabo chegou e ainda aí está, assombrando o elenco governamental com as trapalhadas ministeriais aeroportuárias (se a TAP foi renacionalizada e reforçada com três mil milhões de euros para evitar que o famoso “HUB” fosse para Madrid, como se justifica a ausência desse risco ao ser privatizada?), as reduções de IRC, as (in)compatibilidades dos gabinetes ministeriais e com as impensáveis e injustificáveis pressões para apagar gravações e excluir de atas, de intervenções alheias. E a procissão, perdão, o mafarrico, ainda está no adro.
As intervenções recentes do arguto e implacável Marcelo assim o dão a entender.
 

CARVIÇAIS

No seu livro “Madrugada Suja”, que vai ser adaptado a uma série televisiva, Miguel Sousa Tavares alerta para a falácia dos pareceres negativos, condicionados, dos indeferimentos condicionados e do risco subsequente do deferimento tácito. O esquema do processo dissecado pelo jornalista/escritor versa sobre um empreendimento que não respeita todos os preceitos ambientais mas que o poder político quer fazer aprovar, porém, pretendendo resguardar-se das consequências políticas e legais. O processo é apresentado à Câmara Municipal que, reconhecendo-lhe importância económica e de fomento do desenvolvimento local, indefere as pretensões do requerente enunciando uma lista de requisitos que, em primeira instância e, no imediato, o projeto não contempla. Como tal, a estrutura técnica dá parecer negativo e o poder político, lamentando privar o concelho de tão impressionante e benéfico empreendimento, reprova o requerimento. Publicita esta decisão para que os eleitores saibam que a edilidade, procurando a melhoria económica e o aumento do bem estar dos cidadãos, não cede nem abdica dos princípios básicos de sustentabilidade nem está disponível para contornar a Lei. Com pena e com risco de perder o investimento que irá, quiçá, para outra localidade menos rigorosa na análise e mais condescendente para com a violação dos princípios enunciados, fez o que devia fazer, defendendo o interesse público e a legalidade instituída. Tudo bem. Aparentemente. Mas não. No caso ficcional, o requerente mais não fez do que resolver os tais “problemas inultrapassáveis” e remeter o processo. Os políticos sentem-se de mãos atadas: pois se todas as incompatibilidades foram resolvidas de acordo com o que lhes foi apontado... como poderiam agora dar o dito por não dito e apresentar novas exigências? “As entidades públicas são entidades de bem e têm de comportar-se como tal. Não seria ético defraudar as expectativas criadas!” Obviamente que o relato de Miguel Sousa Tavares é imaginário e não tem que espelhar o caso da fábrica de extração de bagaço de azeitona em Carviçais, mas é preocupante que o primeiro parecer da CCDRN, sendo embora negativo apresenta uma lista de peças documentais que o requerente deverá apresentar caso entenda solicitar uma reapreciação... No processo do romance, para obviar alguns aspetos que não tenham sido devidamente superados pelo empreendedor... o poder político entregou a reanálise a um técnico que... subitamente adoeceu, deixando expirar o prazo legal para dar uma resposta. Resultado: o requerimento acabou aprovado tacitamente. “Infelizmente” nada se pode, depois, fazer. Porém, caso aconteça que, por azar ou infortúnio, alguém adoeça ou fique impedido de dar o seu parecer em tempo útil, atente-se que o deferimento tácito tem de ser pedido e pode, eventualmente, ser negado. De qualquer forma, o promotor não pode começar a obra sem o licen- ciamento camarário. Ora, de acordo com o parecer jurídico elaborado pela jurista da CCDR Centro, Dr.ª Elisabete Maria Viegas Frutuoso, a 23 de janeiro de 2003: “a Câmara nesse momento, ao tomar conhecimento do início das obras pelo particular, deve proceder às medidas necessárias, nomeadamente através da revogação (conjugação dos arts. 136º e 141º do CPA) ou declaração de nulidade do referido deferimento tácito.”

EM MEU NOME, NÃO!

Marcelo Rebelo de Sousa, o nosso Presidente, foi,
nessa qualidade, ao Brasil participar nas comemorações dos 200 anos da independência daquele país. Foi, segundo o próprio, em representação do povo português. De todo o povo e, portanto, quer eu quer o leitor estivemos lá, por interposta pessoa. No que me toca, fiquei incomodado
ao sentir-me representado numa tribuna em que bandeira brasileira estava adulterada. O tradicional
globo azul tinha perdido as estrelas (representativas dos estados federais) e apresentando a imagem de um feto onde o lema “ORDEM E PROGRESSO” dera lugar ao slogan bolsonarista “BRASIL SEM ABORTO, BRASIL SEM DROGAS”.
Fiquei incomodado, mas Marcelo não.
Sorridente aplaude não o presidente da “Nação Irmã” mas o candidato que transformou as comemorações num comício de autoelogio com referências de mau gosto à sua virilidade. Justificou a sua presença dizendo ser institucional. O que é estranho pois foi numa visita institucional recente que foi destratado.
Marcelo Rebelo de Sousa é o Presidente de todos os portugueses e, nessa condição, não pode deixar-se manipular por quem o convida e logo desconvida para depois o arrastar para uma ação de campanha travesti- da de comemoração nacional, ao serviço de um candidato pouco escrupuloso.
Enquanto Marcelo presidenciava por terras de Vera Cruz o Primeiro Ministro presenteava-nos com um discurso estranho e descabido. Costa veio à televisão informar que a Lei da atualização das reformas ia ser contornada neste e no próximo ano, como primeiro passo para a sua alteração porque a ser aplicada “prejudicaria” o futuro da Segurança Social. Pois é, mas não o sendo... prejudica o futuro de todos os reformados (a prazo, todos nós, se lá chegarmos!). Ora, entre os portugueses e os cofres do governo... a opção de Costa foi clara. Com a agravante de que a Lei foi feita precisamente para proteger os contribuintes mais frágeis de decisões
como a que o Governo acaba de tomar.
E se, nunca foi usada antes é porque não foi necessário. Agora que é, não se usa? Muda-se? Imagine-se que as companhias de seguro adotavam a lógica primo-ministerial? Os contra- tos eram válidos enquanto eu não houvesse qualquer sinistro. Tudo iria bem e se o segurado fosse bem com- portado recebia prémios e bónus. Quando houvesse um azar, a companhia ale- gando prejuízos futuros incomportáveis, alterava os termos do acordo!
Esta rábula governamental é agravada por dois as- petos:
- A subtração permanente, a partir de 2024, de uma parcela devida por lei, aos pensionistas, é feita usando um subterfúgio enganador que pretende fazer passar por bónus um suposto “adiantamento” que mais não é que uma cortina sobre os perversos intentos de Costa e Medina
- A artimanha, de puro ilusionismo, é feita para
iludir e prejudicar os cidadãos menos informados e, igualmente, os que menos poder reivindicativo possuem!
António Costa é o chefe do Governo de todos
os portugueses e, nessa condição, não pode manipular os recursos públicos à margem da Lei, nem esta pode ficar refém da maioria absoluta.

COMER, LER OU RESPIRAR?

Há quarenta anos, altura em que co- mecei a demandar, com alguma regularidade, o Planalto, para ir de Moncorvo a Mogadouro, tinha de se passar por Carviçais e ainda bem. Fazía por ultrapassar a Serra do Robo- redo, a meio do dia e, antes de abandonar a longa fila de casario, encostava à direita, quase ao fim da última reta e franqueava uma porta rústica para me banquetear com a Posta do Artur, uma das melhores do nordeste. O restaurante, apesar de exíguo (em alturas de grande enchente, sobretudo no tempo da caça, prolongava-se para um quintal, as traseiras) era famoso, como o testemunhavam as inúmeras e criativas mensagens espalhadas pelas paredes. A notoriedade do estabelecimento confundia-se com a do seu proprietário, o Artur, e che- gava longe, tendo ficado célebre um dito do mesmo. Quando um comensal lhe solicitou a ementa o dono do estabelecimento olhou-o de frente e questionou-o: “O senhor veio aqui, para comer ou para ler?”. Para comer, sem dúvida, iam, vão e irão (espera-se) a Carviçais todos quantos apreciam a boa posta mirandesa. Esperemos que continuem a ir porque as nuvens que se vislumbram no céu são negras e pesti- lentas. Anuncia-se a construção, para breve, de uma fábrica de transformação de bagaço de azeitona que irá desfigurar a pacata e ecológica povoação de Carviçais. Seria dramático se o emblemático Artur tivesse de alterar o rifão que o notabilizou e, perante a reclamação de algum cliente, por causa da escuridão do ar e do insuportável cheiro tivesse de o questionar: “O senhor veio aqui, para comer ou para respirar?” O drama de Carviçais não se restringe ao restaurante O Artur, que se expandiu e mudou de lado da estrada que atravessa a aldeia. Os comensais podem escolher onde comer e o próprio estabelecimento pode mudar, mais uma vez, de lugar. Mas os habitantes, não! E o que dizem eles do que lhes está prestes a cair sobre a cabeça? Obviamente, estão con- tra! E, em consequência, contra a instalação de tal em- preendimento, estarão os seus legítimos represen- tantes. Não! Não estão! Vão dizendo que não estão a favor, que tal ativida- de não está alinhada com o programa com que foram eleitos mas... ninguém os ouviu dizer que estão total e inequivocamente, Contra! Pois bem, felizmente es- tamos num regime democrático e a oposição, de certeza que aproveitará o apoio popular para ma- nifestar a sua manifesta desaprovação de tal iniciativa! Pois é... Mas, inexplicavelmente, também não é assim! Como não? Não. Estão, obviamente, ao lado da população, mas também com grande compreensão para com os oli- vicultores cujo “problema” de destino final dos resí- duos dos lagares de azeite, é necessário resolver! Pro- blema esse que se agravou, nos últimos tempos, com o grande aumento da produção de azeitona. A produção de azeitona aumentou, muito. No Nordeste? Em Trás-os-Montes? No Norte? Não. No Alentejo de onde é, curiosamente, originária a empresa que se propõe vir poluir os ares e solos nordestinos. As estranhas “especificidades” deste processo não se ficam por aqui, mas não cabem, já, nesta crónica. Voltaremos ao assunto, brevemente!