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Cronicando - Caos na nação, mês do coração

"Mês de maio, mês do coração” – um slogan tantas vezes repetido que, poucos serão os que não o memorizaram ao longo de anos. Estranhamente, neste ano, não consta que se tenha repetido e já o mês vai a meio. Na esperança que fosse uma desatenção da minha parte, cliquei na página da fundação que tomava as rédeas da iniciativa e pude constatar que, à data em que escrevo, a página da campanha brinda-nos com um “brevemente disponível” e o programa fica-se por uns torneios, umas jornadas e um peditório.

Tendo uma visão muito particular sobre estas campanhas de massas, e sendo um crítico assumido dos orçamentos que as mesmas absorvem, deveria estar tranquilo e pensar noutros assuntos. Poderia… não fosse conhecer outros projetos que, por falta de apoios, ficaram esquecidos e todo o potencial se foi perdendo. Refiro-me sobretudo a ações de formação, especialmente as que se centram nas áreas da saúde e da educação – pilares das democracias modernas e que, repetidamente, vão sendo relegados para segundo plano. Fica-se, por isso, na dúvida sobre o que terá acontecido neste ano para o impacto do evento ser tão drasticamente reduzido. Seria apenas mais uma campanha a esvair-se sem a opinião pública se aperceber dos seus efeitos, ou talvez não. Poderá, também, ser a metáfora do estado da saúde em Portugal. Uma saúde teorizada, excessivamente burocrática e onde em vez de se pedir ao corpo clínico que trate pessoas, exige-se-lhes a apresentação de evidências do desempenho, seja no hospital da província ou no central que recebe doentes de todo o lado. Exemplos não faltarão. Apenas dois.

Há cerca de duas semanas, um doente traqueostomizado, a necessitar de medicação específica, vê-se confrontado com a dificuldade de aceder ao medicamento porque às vinte horas, a farmácia do hospital estava encerrada. “— Somos um hospital pequenino!” – Desculpou-se a enfermeira “— Mas se for mesmo necessário vou ver o que posso fazer.”

Uns dias antes, uma doente, de oitenta anos, foi mandada para casa sem ter acesso aos procedimentos necessários, porque, depois de fazer duzentos quilómetros, tinha-se esgotado o tempo que o corpo clínico tinha para realizar aquelas intervenções e já não dava para mais. A médica que chefiava a equipa, ao contrário das outras vezes, foi incapaz de vir falar com a família da doente e mandou uma tarefeira. Passados alguns minutos viu-se a correr para o serviço de urgências.

Dois episódios reais. Um na ULS – Nordeste, outro no Hospital de Santo António. A mesma face da mesma moeda, onde de positivo se encontra apenas o humanismo de médicos e enfermeiros e a vontade de fazer melhor com os escassos meios que são colocados ao seu dispor. Obriga-se-lhes a justificar o motivo por que solicitaram exames de diagnóstico, avaliam-se se despenderam mais medicamentos do que é expectável e quer-se que haja sucesso nos tratamentos, como se de mecânica se tratasse.

Se maio é ou foi o mês do coração, também foi o mês das revoluções e das lutas pela dignidade do povo. Deve assumir-se a cidadania e, mais do que agredir médicos e enfermeiros, devem reivindicar-se a melhoria das condições em que trabalham e, sobretudo, que estes profissionais não sejam esmagados por mais um sistema que asfixia, única e simplesmente porque no lugar das pessoas colocou números

Vendavais - Os milagres que Maio trouxe

O mês de maio é rico todos os anos em acontecimentos, uns com data marcada, outros que acontecem ao sabor do vento. Este ano não foi muito diferente.

Com data marcada está, agora e sempre, o dia 13, comemorado todos os anos com a dignidade que o dia e o acontecimento merecem. Fátima, bafejada pela graça divina, elevou-se há 100 anos ao mais alto pódio da religião cristã e se desde então tem sido palco onde se encontram os crentes e até alguns não crentes, este ano o dia mereceu a comemoração do centenário das aparições da Virgem. Também este ano e para realçar o centenário das aparições, juntaram-se mais dois eventos de relevo: a presença do Papa Francisco e a canonização dos pastorinhos. Portugal ganhou mais dois santos.

À volta da presença do Papa em Portugal, geraram-se vários comentários, que alguns acharam ter alguma relação com o facto e tudo passou a ser justificado como se de mais um milagre se tratasse. Se para uns isso foi motivo de sorrisos, para outros foram piadas de muito mau gosto. A verdade é que temos de ter mais postura e responsabilidade no que afirmamos especialmente se isso pode colidir com sentimentos e modos de estar de outros que pensam de modo diverso.

Na verdade, o facto de o Benfica ganhar o tetra pela primeira vez, não terá muito a ver com a vinda do Papa a Portugal já que o Benfica estava à frente da classificação do campeonato há já algum tempo e não se esperava grande alteração a esse respeito. Mas outros vieram dizer o contrário e até puxaram a brasa à sua sardinha ao dizer que o Porto não ganhou precisamente devido a forças externas ao mundo do futebol. Nós sabemos que em Portugal sempre se celebraram os três Fs: Fátima, Fado e Futebol, mas francamente, isto é abuso.

Outro facto que mereceu e bem, a atenção do país inteiro, foi termos ganho o Festival da Eurovisão pela primeira vez. Salvador Sobral foi, com toda a prioridade, o Salvador da Nação. Há muitos anos que perseguíamos esta vitória e chegámos mesmo a ficar em sexto lugar, mas o salto para o primeiro não estava nos melhores prognósticos nos tempos que antecederam o festival. Salvador “amou pelos dois” e Portugal agradeceu e até o ”condecorou” de certa forma ao homenageá-lo na Assembleia da República com aclamação unânime dos deputados. Também a este respeito, muitos correram a afirmar que foi mais um milagre que o Papa Francisco fez ao vir a Portugal, juntando assim uma mão cheia de “milagres” que fizessem esquecer alguns momentos menos bons que o país pudesse estar a atravessar. Enfim! Coitado do Papa Francisco! Se mais nada tivesse que fazer, isto bastava-lhe para se promover a ser o próximo santo em nome de Portugal. Pois, mas ainda há mais.

A verdade é que Costa ao anunciar a melhoria da situação económica de Portugal, a redução do défice, a redução da taxa de desemprego e mais umas descidas quase inesperadas, logo apareceu quem dissesse que se devia a mais um milagre do Papa Francisco. Pois claro! Eu, pessoalmente, não imaginava que o Papa pudesse ter tanto poder! Será que alguém imaginava? Francamente, ponho-me a pensar no que dirão os que não tiveram a sorte de serem bafejados por toda esta panóplia de favores celestiais.

Não sei se Trump é fervoroso de Nossa Senhora de Fátima ou até do Papa Francisco, mas o que lhe está a acontecer este mês de maio não lhe é muito favorável. Não sei se pelo facto de ele não ser suficientemente inteligente para não dizer certas coisas, ou se pelo facto de mesmo falta de sorte! Pode ser que esta visita ao Médio Oriente e ir até ao Muro das Lamentações, o alivie do peso que traz às costas!

Já cá dentro de portas, finalmente Passos Coelho admitiu que a economia melhorou um pouco, mas sempre foi dizendo que era preciso ter cuidado pois não vá ela voltar a piorar. É que ele baixou de 11% para 3% o défice que agora até está em 2,8%. Será que também aqui o Papa teve alguma influência? Não me parece que seja milagre, mas que este mês foi bem recheado de coisas boas, lá isso foi. Venham mais maios!

A NOSSA CULTURA OCA E VÃ

Na lógica, compreensão e extensão são racionalmente o inverso uma da outra, o que quer dizer, em linguagem corrente, que quanto mais uma categoria é definida de forma precisa, menos chances tem de se alargar a um grande número de casos. Inversamente, quando a sua definição é vaga e geral, esta pode compreender um grande número de finalidades. 

Mario Vargas Llosa não é o primeiro a deplorar no seu ensaio de 2012, A civilização do Espetáculo, que a palavra cultura tenha perdido em compreensão à medida que ganhava em extensão. Se tudo é “cultura” – não somente as produções do pensamento, mas também os mitos e os ritos duma comunidade, os seus hábitos alimentares ou vestimenteiros - então a palavra “cultura” já não significa grande coisa. Remete para as crenças e comportamentos colectivos dum grupo particular. É o uso que impôs a antropologia, numa preocupação louvável para dar a conhecer uma legitimidade aos usos e costumes das sociedades ditas outrora primitivas, que os antropólogos e sociólogos estudavam.   

Em sociologia, Alain Finkielkraut, em A Derrota do pensamento (1987) já tinha mostrado – tema recorrente nos seus programas de France Culture - de que forma esta diluição da cultura estava em parte ligada à comunitarização. A cultura no sentido antigo de “humanidades” ou de património intelectual e artístico, tinha uma vocação universal. Enquanto as “culturas” no sentido antropológico ligam entre eles os membros das comunidades particulares.   

A cultura banalizou-se, escreve Vargas Llosa, vulgarizou-se tornando-se vazia e vã.

Em causa, a sociedade do espectáculo, que substitui a vida autêntica pelo representação e os criadores por bufos. Em causa igualmente, a sociedade de massas (civilização), que recusa toda a cultura herdada como um constrangimento, qualquer hierarquização dos valores e dos saberes, aspira à distracção, convida ao divertimento. As indústrias do divertimento mergulham e afundam-se nesta brecha. Alguns veem nisso uma forma de democratização, tratar-se-ia de fazer aceder o maior número de indivíduos ao maior número de obras, e não de substituir o livro pela imagem e a procura da verdade pela distracção. Mas a grande cultura, acusada de elitista e retrógrada, esconde-se e desaparece.

Tudo isto não é nem verdadeiramente falso, nem muito original. Estas ideias foram agitadas desde o séc. XIX pelas correntes alemãs. Mais perto de nós, o universitário americano Allan Bloom, declinou, com A Alma Desarmada, em 1987, um “ ensaio sobre o declínio da cultura geral” nos campus universitários, que ele atribuía ao crescimento da cultura pop. Muitos ensaios recentes denunciaram a diluição da cultura no “tudo é cultura”.

Mais original, parece ser o papel nefasto que atribui Mario Vargas Llosa à teoria da Desconstrução (J. Derrida) neste desmoronamento cultural. Levando qualquer tentativa de elucidação da realidade a discursos equivalentes e sem objecto.

Presa entre as indústrias do divertimento, por um lado, e os vários sofismas, por outro, a cultura autêntica estaria a passar um mau bocado. Contudo, enquanto os romances de Mario Vargas Llosa encontrarem leitores, a cultura não se portará muito mal…