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Vendavais- O jogo da cabra cega

Todos já ouviram falar e até conhecem o jogo da cabra cega. Os mais novos não sabem, não conhecem e não jogam já este jogo engraçado que era habitual jogarmos no tempo da escola primária. Os recreios eram animados e todos estavam ansiosos para que a professora nos mandasse para o intervalo. Era uma festa ainda que durasse breves minutos. De olhos tapados, a criança procurava encontrar e comprometer outro colega do jogo, apanhá-lo e obriga-lo a andar de olhos tapados à procura de outro incauto ou menos espevitado. Hoje os tempos são outros, já sabemos e, os divertimentos são substancialmente diferentes e mais perigosos, quer para as crianças, quer para os adultos. Os jogos são tentadores e os mais incautos arriscam demasiado em busca da vitória que nem sempre compensa. Até parece que de olhos vendados já ninguém anda nem quer andar no meio deste jogo onde muitos se comprometem e só um ganha. A cabra cega, apesar de tudo e dos tempos, continua a ser jogado. Não propriamente pelas crianças, mas pelos adultos e com uma diferença enorme: não andam de olhos vendados, mas pensam que os outros usam vendas e por isso não os apanham. Erro fatal. Se antigamente eram as crianças que vibravam com este jogo, hoje são os crescidos, conhecedores do jogo e das regras, que adoram correr os riscos e ver se ninguém os agarra. Contudo e embora as regras sejam de quem as faz, é preciso cumpri-las o que nem sempre acontece. O falsear das normas e a tentativa de ludibriar os parceiros não significa que o jogo se possa ganhar facilmente. Exemplos disto temos imensos, desde a criança que é seduzida pelo adulto que está do outro lado da linha de olhos vendados tentando apanhar no engodo o parceiro de jogo que, se deixa enredar e só tarde demais se apercebe que caiu numa cilada e perdeu o jogo, até ao espertalhão que enganando tudo e todos se aproveita da suposta inocência dos parceiros e foge com o produto da vitória. Falsa vitória. No meio de tudo isto há milhares de exemplos. Jogar à cabra cega é jogar na universalidade de oportunidades. Não é um jogo só português já que se joga em todo o mundo. Infelizmente o que nos toca a nós é bem representativo da falsidade das regras e do abuso de confiança e do logro em que facilmente as instituições são capazes de cair. Nos últimos tempos, quantos banqueiros foram apanhados a jogar à cabra cega? Muitos. Uns estão presos, outros estão a aguardar julgamento, outros indiciados de vários crimes ligados à manipulação indevida de capitais, outros simplesmente fugiram à justiça e andam por lugares incertos, ou quase. Em alguns casos, até quase dá pena saber a sanção que apanharam e terem de passar o resto da vida numa cela, deixando a família ao abandono. Será que não conheciam as regras do jogo? Não, o que pensavam é que os outros andavam de vendas nos olhos e não seriam capazes de os ver descarrilar. Mas viram. A justiça é cega, diz-se, mas consegue ver longe. Pode demorar, mas acaba por ver e apanhar o mais incauto ou, melhor, o que pensa ser mais esperto. Foi o que aconteceu recentemente a Rendeiro. A segurança com que afirmava que não voltaria a Portugal e que vivia bem num país estrangeiro, que não queria revelar, e ainda que o Estado português lhe teria de pagar uma indeminização de 30 milhões, roça o ridículo, o incrédulo e a maior estupidez possível de quem deveria ter maior esperteza e discernimento. A sagacidade que aparentava ter caiu sem que se apercebesse disso. O jogo da cabra cega, neste caso, jogou-se às avessas, já que Rendeiro não andava vendado à procura de apanhar os parceiros. Não. Ele pensava que eram os outros que andavam de olhos vendados, mas claramente ele é que estava completamente cego e foi apanhado sem contar. Quem não andava de olhos fechados era a Polícia Judiciária que trabalhou bem e em segredo e conseguiu apanhar o prevaricador. E agora Rendeiro? Valeu a pena? Não. Talvez o muito dinheiro que possui o ajude a dilatar o tempo de liberdade, comprando tempo em reclamações na justiça, em justificações injustificadas, em jogos e joguinhos de cabra cega, mas acabará certamente por cumprir a pena de não ter cumprido as normas com que se deve jogar este e qualquer outro jogo. Os jogos de poder são demasiado perigosos para jogar mesmo sem vendas. Como sabemos, não é só Rendeiro que está à perna com a justiça. Outros vivem a mesma situação e talvez a justiça tire exemplos de uns que sirvam a outros e assim, possivelmente Rendeiro continue a jogar à cabra cega, mesmo com justiça.

Chega a ser preocupante

Sei que não é curial extrair conclusões, tirar ensinamentos de qualquer evento catastrófico quando ele ainda se encontra em desenvolvimento. Eu sei que é imprudente pois em qualquer altura se pode dar um “volte face” e o que hoje parecia certo pode amanhã estar perfeitamente errado. Estou a referir-me, como é óbvio, à pandemia do Covid-19 cujo desfecho não se adivinha para breve. No entanto, do rasto de destruição que ele provocou no nosso País e noutros da Europa podemos exibir alguns dados estatísticos bastante relevantes. Relembremos que no início de 2021 a Europa foi assolada por uma nova vaga. Portugal foi particularmente fustigado a ponto de termos tido mais de 16 mil casos num só dia, numa semana em que a média diária foi de 12.891. Foi um período particularmente mau e se estes números absolutos, ditos assim à bruta, não dão a noção exata da realidade, já comparados com os de outros países permitem-nos fazer uma ideia de quão grave foi a circunstância. Assim, analisando a pior semana de alguns países europeus e fazendo a relação de novos infetados por milhão de habitantes, vemos que a Alemanha na sua pior semana, teve uma média diária de 312 novos infetados por milhão de habitantes; a Itália 583; os Países Baixos 683; a Espanha 818; a Áustria 853; a França 907; a Suíça 964; o Reino Unido 989; Portugal 1.289; a Bélgica 1.478. Só, de facto, a Bélgica é que foi mais massacrada que nós. Já no que diz respeito ao número de mortes por Covid-19, verificadas até então e relacionadas a 1000 habitantes vemos que os Países Baixos verificaram até agora 1,1 mortos por 1000 habitantes; a Alemanha 1,275; a Suíça 1,29; a Áustria 1.4; Portugal 1,8; a Espanha 2; a França 2; a Itália 2,23;a Bélgica 2,3 e por último o Reino Unido registou 2,4 mortos por mil habitantes. Verificamos aqui que os países com menos taxa de mortalidade foram aqueles que menos pressão sofreram dos novos infetados. Excepção feita à Suíça que sendo das mais fustigadas pelo aparecimento de novos casos (964) apresenta uma taxa de mortalidade bastante baixa (1,29). Portugal, que sofreu uma pressão tremenda de novos infetados (só ultrapassado pela Bélgica) teve, no entanto, uma taxa de mortalidade (1,8/1000) que apenas é melhorada pelos campeões do Norte (Países Baixos, Alemanha, Suíça e Áustria). Se por outro lado fizermos o rácio das mortes por número de infetados temos que os Países Baixos registaram 7.3 mortos por 1000 infetados, a Áustria 10.6, a Suíça 10.7, o Reino Unido 14.5, Portugal 15.5, a França 15.6, a Bélgica 15.8, a Alemanha 17, a Espanha 17.6 e a Itália 26.8. Face à pressão dos novos casos, todos os países tiveram dificuldades em tratar os seus pacientes. As imagens da televisão eram aterradoras com doentes em macas porque já não havia camas, doentes que não eram socorridos por não haver ambulâncias. Faltava tudo, médicos, enfermeiros, ventiladores, bombeiros, macas, foi de facto um pandemónio. Mas quem estava preparado para uma pandemia?! Ninguém! e ainda hoje não está. E neste estado caótico houve países que se declararam impotentes e “exportaram” os seus doentes para outros países. Passo a transcrever subtítulos do título maior - “solidariedade Europeia no tratamento de doentes”:

• “7 doentes Franceses de Mulhouse, França, foram transportados por via aérea em 25 de março e estão a ser tratados no Luxemburgo”;

• “11 doentes provenientes de Itália e 3 Franceses foram tratados na Áustria”;

• “46 pacientes dos Países Baixos foram transferidos para a Alemanha”;

• “para a Itália 85 leitos de terapia intensiva foram reservados em 10 Estados Federais Alemães”;

• “130 doentes Franceses foram transferidos para a Alemanha”;

• “para a França 98 leitos de terapia intensiva foram reservados em 10 Estados Federais”;

• “23 pacientes da província de Liege, Bélgica, foram transferidos para a Alemanha”;

• “cidades e estados de toda a Alemanha trataram doentes graves de Itália, França, Países Baixos, Bélgica e República Checa”;

• “Luxembourg Air Rescue repatriou mais 6 doentes provenientes do Grand-Est, França, e que foram tratados no Grão-Ducado”.

Estas manchetes revelam bem as dificuldades que alguns Países experimentaram na prestação de cuidados de saúde aos seus pacientes. Pois bem, depois de toda esta exposição fica uma pergunta: como é que Portugal, país periférico, com fracos recursos e depois de tão fustigado pela pandemia, com dificuldades de vária ordem, com constrangimentos diversos, com situações mais que aflitivas, mas mesmo assim conseguiu tratar todos os seus pacientes em território nacional e com taxas de sucesso que deixa para trás muitos países que são autênticos faróis civilizacionais? Acho que a resposta está nos grupos de profissionais de saúde, abnegados, com espírito de sacrifício, com sentido de serviço público, coordenados e orientados por chefias profissionais mais a logística possível. Isto é o nosso Serviço Nacional de Saúde que, com todas as suas falhas e limitações, não nos deixou envergonhados nesta prestação de cotejo mundial. Nesta guerra contra a pandemia, que nos convoca a todos a envidar esforços contra o inimigo comum, há quem não se sinta bem deste lado da barricada. Vou citar três personalidades: um médico que é deputado, o Bastonário da Ordem dos Médicos e a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros. O primeiro quando chamado a pronunciar-se como médico respondia sempre como deputado. Uma vez até inventou um hospital repleto de mortos. Entende-se, mas fica-lhe mal. Quanto aos dois Bastonários sempre que se pronunciaram sobre medidas tomadas pelo Governo, pela Ministra ou pela Direção Geral de Saúde disseram sempre, mas sempre, mal de todas elas. Fossem essas medidas sugestões do Infarmed, fossem recomendações da Organização Mundial de Saúde, fossem medidas já em vigor num conjunto grande de Países, fossem orientações da Agência Europeia do Medicamento, estava sempre tudo mal e dito de forma desdenhosa, escarninha, com uma vontade indisfarçada de que tudo corresse mal. Nunca se ouviu uma palavra de ânimo aos seus profissionais, de conforto aos pacientes ou de serenidade aos ansiosos. Mesmo agora em relação à vacinação dos menores de 11 anos o Bastonário da Ordem dos Médicos disse ter muitas reservas. A Sr.ª Enfermeira, do alto da sua cátedra de Pediatria, de Imunologia, de Virologia, de Infecciologia e possivelmente outras, disse “não concordo”. Ninguém esperava outra coisa. Outra situação que me causa perplexidade é esta súbita debandada das chefias clínicas alegando falta de condições de trabalho, rejeição às horas extraordinárias e falta de pessoal médico. É verdade que o facto de mais de um milhão de Portugueses não terem médico de família aliado ao facto de sucessivos concursos públicos ficarem desertos, sobretudo quando é para colocação de médicos no interior, dão-nos a ideia de carência de médicos. Mas o Sr. Bastonário diz que não. E secundado por todos os Diretores das Faculdades de Medicina que abdicaram das 100 vagas a mais que o Ministro Heitor lhes oferecia. Foi um “tiro no pé” pois o Ministro Heitor deu-as à Universidade Católica para abrir a sua Faculdade de Medicina. Mas dando de barato que as reivindicações das chefias clínicas são justas, não deixa de ser paradoxal que, agora que a pandemia atravessa uma fase de remanso, se reivindiquem condições de trabalho quando ainda há poucos meses elas eram perfeitamente caóticas. Todos queremos melhores condições de trabalho, mas, numa fase em que tudo ficou virado do avesso e em plena pandemia, será que é a altura boa de se fazer uma restruturação serena? Ou será que a ameaça de uma nova vaga pandémica, que torna todos ansiosos e dependentes dos médicos, aliada à proximidade eleitoral, em que o Governo quer tudo menos uma guerra com os médicos, fazem um caldo de cultura óptimo para qualquer reivindicação? Sob o ponto de vista sindical a postura da Ordem é irrepreensível, já sob o ponto de vista da ética e da deontologia tenho todas as reservas. Além de ser preocupante.

Por um diálogo inter-religioso, segundo A Formosa Pelicana

Torre de Moncorvo tem a Casa de Violante Gomes, a Pelicana, e a Rua Prior do Crato. Agora, tem também uma ficção que honra a Praça, a Feira Franca filmicamente documentada, a mais imponente igreja da região e quantos, seguindo o diálogo a espaços socrático de dois amigos nos nossos dias, Jorge Vilela e António Rebocho, encadeiam a história do judaísmo na região, prolongam dúvidas sobre a historiografia à volta de D. António, Prior do Crato, e se demoram nos pequenos luxos da memória, seja uma alheira, seja um copo de vinho fino. Se ainda não tem, a vila deveria ter uma rua D. Luís de Portugal. O argumento é simples. Acompanhado pelo fiel escudeiro David, cujo nome diz muito, também com família no seio da vasta comunidade judaica de Moncorvo, o infante D. Luís sobe o país ao serviço do irmão D. João III, quando, subitamente, uma jovem amazona vinda do Rio Sabor lhe sobressalta o coração. Tirando informações, confirma-se, num segundo momento, vencido pela fermosa pandeireta, em baile que deixa a cabeça à roda ao 5.º duque de Beja. Travam-se de razões, deita ele às malvas um compromisso com menina inglesa, e, em Março de 1531, nasce D. António, último e desafortunado ramo de Avis, que, em 1580, ainda cunha moeda como Antonivs I (no anverso, a inscrição de Constantino e D. Afonso Henriques em Ourique: In hoc signo vinces), rei de Portugal assim reconhecido, no exílio, junto das potências inimigas de Espanha. O autor parte de uma demora na FNAC em que, por acaso, lhe cai nas mãos Manuel Alegre, Auto de António. Até à bibliografia registada no final vai um longo caminho, entre História pátria e contributo judaico: neste segundo domínio, acompanha estudiosos que justificam um interesse crescente plasmado no Centro de Interpretação da Cultura Sefardita, em Bragança. Francisco Manuel Alves, Abade de Baçal, dedicara a essa presença o quinto volume dos onze das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança; o nosso comum amigo Amadeu Ferreira trouxera a Inquisição para terras de Mirando Douro em Tempo de Fogo; eu mesmo, em O Romance do Gramático, acompanhara as vicissitudes do nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, cujo processo inquisitorial editarei nas Obras Completas de Fernando Oliveira, em curso na Fundação Calouste Gulbenkian. Salvo o que, ficava campo aberto para o berço moncorvense dos Borges e Azevedos, apelidos assumidos pelo bisneto Jorge Luís Borges, que dirá Azevedo nome ‘judeu-português’. Eis a atmosfera em que, por acaso, e, logo, em honesto estudo, entra o nosso autor para se abalançar às 500 páginas de A Formosa Pelicana (Lisboa, Âncora Editora, 2021).

D. Luís de Portugal

Na Vida do Infante D. Luís (1735), D. José Miguel João de Portugal, 9.º conde de Vimioso – e já o 3.º conde, D. Francisco de Portugal, fora o principal aclamador de D. António em Santarém –, é-nos dito que este infante «Nunca mudou de estado, naõ chegando à conclusaõ pratica de quatro casamentos, […]. Incitado do verdor dos annos, e enganado das attraçoens da fermosura de Violante Gomes (chamada a Pelicana pello excesso da sua belleza), teve um filho q͂ se chamou D. Antonio.» (p. 151) D. Luís estava com 24 anos; ela, com cerca de 20. O ledo engano do cronista transforma-se, aqui, em atracção mútua, renúncia do infante à corte inglesa e casamento secreto na ermida da Senhora do Castelo, na Adeganha, segundo documento em posse de uma das raras testemunhas nupciais, o marrano Joaquim, certidão que Filipe II gostaria de recuperar, entretanto entregue ao foragido D. António. Algumas fontes corroboram esse enlace. Pouco seria este enredo, se a ossatura do romance não vivesse de um olhar sobre o século XVI, entre perseguição ao judaísmo e fácil cedência a Espanha de uma nobreza e alto clero (personalizados no Cardeal D. Henrique), aquela debilitadíssima após Alcácer Quibir, devendo inclusive resgastes a Filipe II. Essa perseguição, entretanto (com recuos a D. João II e à chacina do Rossio em 1506, ano em que nasce D. Luís, no baptismo apadrinhado pelo duque de Bragança D. Jaime), remete para um fundamental terceiro ponto: os sefarditas no Nordeste e a demanda de uma Terra Prometida, o que, homologando os hebreus no Egipto, agora expulsos de Espanha, servirá para um balanço de lugares de passagem e sinais messiânicos (leite, mel, arca, arco-íris). Entreluz um hino à geografia transmontana, em sobrevoos descritivos, e, antes de se chegar a Camões, conjugar-se-á um dos principais acenos literários no moncorvense Abílio Campos Monteiro, ao naufragarmos numa impressiva rebofa, essa tromba de água causada pelo Rio Douro irritado, qual novo Dilúvio mimado do Velho Testamento. O sangue é uma questão política. Quem se opõe a D. António diz a Pelicana impura, o que não preocupa D. Luís, bem acolhido na comunidade judaica local. É um favor que a ficção faz ao futuro padrinho de baptismo de D. Sebastião. Uma Violante convertida também convém à ficção, ainda que, dirão alguns, dificilmente esse sangue contaminado findaria os dias no convento de Almoster. É ignorar que o médico Luís Brás de Abreu, que passou a meninice em Vila Flor, com fuga dos pais à Inquisição, deu sete filhos à mulher, afinal, irmã, a qual, descobrindo-se incestuosa, entrou com cinco filhas num convento. A tragédia inspirou O Olho de Vidro (1866), de Camilo Castelo Branco. Corolário da primeira parte, defende-se um natural convívio inter-religioso, que o fanatismo tresvaria, com implicações na política ibérica. Não se perdoa aos matadores de Cristo. Afirma-se, mesmo, que seria preferível um filho de negra ou escrava. Assim, este romance-ensaio é, enquanto ensaio em dias de intolerância, actualíssimo; enquanto romance, aceita inventivas de matriz histórica. A bibliografia final defende quem, logo à partida, não se assume historiador.

Do romance histórico

No romance histórico, o evento ilumina acontecimentos e quadros mais vastos. Evento é uma paixão que gera descendência. Tem um valor de exemplaridade, como obedecer ao coração e não a razões de Estado, e, daí, a firmeza do protagonista, morto demasiado cedo, em 1555, que justifica a designação técnica de ‘herói’. Mas diremos D. Luís único herói? Não me parece que seja a heroína venha do título, como, ao dizermos O Primo Basílio, não é este o herói queirosiano. Figura decisiva, até porque envolve, ou representa, a comunidade judaica, Violante não é figura central: aliás, só aparece na página 128. Ou será o filho, que, patriota, luta pela independência nacional, e perde na sucessão, não pela sua origem controversa, embora isso diga o Cardeal (se assim fosse, o primeiro de Avis, D. João, bastardo e filho de judia, não seria rei de Portugal), mas porque, tendo-lhe aquele dado mestres como D. Jerónimo Osório e frei Bartolomeu dos Mártires, e sido testamenteiro do irmão D. Luís, ele, António, não quis entrar em religião? Centrado numa figura heróica (à escolha do leitor), e num propósito que só é nacional enquanto correctivo da actualidade – que me parece de diálogo inter- -religioso na Europa de hoje, extensivo ao Islamismo, que D. António combateu –, o romance histórico procura espaços representativos no imaginário e momentos-chave da (re)constituição de uma pátria, de um reinado, de um comportamento nobilitante, de um tempo, espírito ou atmosfera, como variamente acontece aqui. O Indesejado D. António na peça de Jorge de Sena visava o Estado Novo e o caso biográfico do autor. Em Manuel Alegre, é o reconhecimento da necessária luta individual, de uma conduta que signifique pátria e esperança, independentemente de reino ou coroa. O rigor literário não tem de coincidir com o rigor histórico, também precário e em formação. Informações há, todavia, que não podem falhar. Estes passos da leitura conheço-os bem, e, por isso, leio sem sobressalto. Quem não os dominar (no meu caso, aspectos da construção da igreja de Moncorvo), dirá, com razão, estar perante um ensaio sob forma de lição amena. Ganhamos com esta função pedagógica. Noutro âmbito, pactuamos com ingredientes de verosimilhança, como o meio-tostão de prata, paga bastante (e recordatório final), além de significar uma latente independência nacional. Mais: liga-nos ao presente da narrativa, após descoberta no perímetro do castelo pelo pedinte Camolas, em diálogo que resulta excelentemente – e o diálogo é uma das virtudes desta obra. Outra virtude está na descrição, que assenta no olhar, e, além de alguns tipos, geografia e instantes, importa o retrato de Violante, no seu colo, já não direi de garça, mas de pelicano, vindo da página 137 para a capa sobre pintura de Maria de Lurdes Baptista, que tão bem resultou. Note-se, por outro lado, um singular processo de encadeamento discursivo: o final de cada capítulo é retomado na abertura do capítulo seguinte, como recuperando a familiaridade do dito e do momento. Outros momentos, no interior da prosa, ficam em suspenso, com aviso de resolução futura. Processo fundamental, em espelho, está nas remissivas histórico-literárias. A sorte da mãe de Violante e seus amores com D. Diogo repete-se na sorte da filha. Sugeri que a fuga para a Terra Prometida tanto lembra a penitência das tribos no Egipto como as expulsões de Espanha, seguidas de conversão forçada e fogo. Expulsão, conversão forçada, criminosos autos-de-fé é uma trindade infelizmente humana, que sofrem esses errantes, quando não fogem. Graças à ficção, o alardo feliz dessa comunidade tanto evoca o alardo da Vilariça com Nuno Álvares Pereira e D. João I, em 1386, como um pequeno grupo de soldados de D. António, em 1580. Também a construção da igreja matriz desde 1544 mostra como conseguem espelhar-se cristãos e judeus, numa lição de tolerância que o texto suscita. Como se as inquisições ali não chegassem, embora a realidade não fosse essa. Espelham-se ainda, entre exemplos que deixo – e relembro alusão ao conto “A rebofa”, de Campos Monteiro –, as Trovas de Bandarra e passos d’Os Lusíadas alusivos ao Quinto Império. Entra, aqui, como exemplo subido dessa ordem especular, a explicação do pelicano. Temos a tese ligada às peles, ao peliqueiro ou pelicano, que podem singularizar uma aldeia, como a de Carção, no concelho de Vimioso. No distrito, a Inquisição perseguia, sobretudo, homens de negócios, industriais da seda e curtidores ou surradores de peles. Vimos o cronista reconhecendo, em Violante, a tentadora e «excessiva beleza» tirada de ave elegante. Temos a dupla tese judaica e cristã, na p. 168: Esta ave «É associada, pelos hebreus, à redenção. A Tora indicaa como exemplo do imenso amor maternal, sacrificando-se pelos filhos. É vulgarmente representada pela imagem de um pássaro a dilacerar o peito e a alimentar os seus pelicaninhos com o seu próprio sangue. Os primeiros cristãos usaram o símbolo para representar Jesus Cristo Nosso Senhor por ter, efectivamente, dado a vida por todos nós, filhos de Deus.» Ora, antes de, no último parágrafo do romance, um lenço que estampava fêmea de pelicano sobrevoar giestas e aterrar numa carrasqueira, uma polémica maior, já secular, é a do pelicano no frontispício do Poema nacional. José Mário Leite segue José Hermano Saraiva no tocante às origens familiares de Camões. Proviriam de Vilar de Nantes, aldeia perto de Chaves, onde Saraiva afirma ter nascido Camões. Outro natural, Pedro Álvares de Freitas, futuro abade de Moncorvo, seria putativo apoio do Vate no imprimatur do Santo Ofício. Agradecido, Camões teria subido à vila para lhe oferecer um exemplar. Eis invenções de ficcionista, não diferentes de aceitar a lenda dos amores de Camões com D. Maria e dizer D. Manuel de Portugal financiador das viagens transatlânticas do soldado Luís Vaz (p. 430). Se não se levanta a questão, aqui, de um Camões judaizante, ela não estaria a mais. A análise passa pelos frontispícios da edição princeps e da contrafacção, com o pelicano olhando à nossa esquerda ou à direita. Usado durante 50 anos, e antes de sofrer pequenas alterações, esse frontispício estreia-se em Reegra & statutos da ordem de Santiago, sob os auspícios de D. Jorge de Lencastre, Duque de Coimbra e Mestre de Santiago. Numa interpretação em parte delirante, Fiama Hasse Pais Brandão vê no pelicano voltado à esquerda um «símbolo de Cristo, enquanto que o pelicano maçónico apresenta comummente o bico para a direita». Gomes de Brito explicou o de 1548: «Aquelle frontispicio é o do Regimento de uma Ordem militar de cavallarias, segundo o proprio arrogante aspecto o mostrava.» Particulariza, com que melhor perceberemos as diferenças futuras («despida de todo o apparato bellico»), e acrescenta: «no pelicano que corôa o frontão concentrava-se um duplo sentido. Aquella ave era a representação symbolica, como o eram os dois golphinhos e o tridente que desappareceu, dos sentimentos profundamente religiosos e christãos que deviam morar no imo peito dos agueridos spatharios, mas era tambem um cumprimento amavel ao regio pae do Mestre D. Jorge, áquelle principe que escolhera para seu brazão o mesmo pelicano que de seu sangue nutre os filhos: profundo conceito politico que define o monarcha previdente que tal pensou.» Pai de D. João de Lencastre, este monarca é D. João II, que este gerou em Ana de Mendonça. A ironia é que, no seu emblema, o pelicano está voltado para a… direita. Vejamos, pois, nesta fêmea-pelicano que ilustra a capa, olhando para a nossa esquerda, e fecha o romance, um símbolo crístico de união sem preconceito e respeito por outrem na sua diferença, para deste chão fazermos uma terra prometida.

Associação Reaprender a Viver

Ter, 14/12/2021 - 09:29


Na quarta feira passada, dia 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição, algumas localidades tiveram direito a manto branco, pois a neve deu ares da sua graça.
Quem tem reinado também é a chuva e o vento, que o diga o tio Adérito Pinela de Sacoias (Bragança) que apanhou a sua azeitona debaixo de água. Como diz ele:-“ pus-me que nem um pito, foi água de cima a baixo.”
0 vento é um inimigo dos apanhadores da azeitona, pois as lonas voam.