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Beirute

L íbano é um País do médio oriente. Pertence, portanto, a esse interface cultural, económico, religioso, berço de civilizações, de religiões mas que é ao mesmo tempo placa giratória de interesses económicos, militares, geoestratégicos e políticos, zona em permanente tensão, sempre com disputas, conflitos e até guerras. Além disso, o Líbano teve também uma guerra civil de 15 anos que deixou o país completamente devastado. Beirute, cidade capital do Líbano, outrora conhecida como a “Paris do médio Oriente”, alternava a reconstrução com a ruína. Nos últimos anos tem experimentado alguma paz, tensa, que o Governo, um triunvirato religioso, não deixa ninguém descansado. Pois, agora que tinha alguma paz foi subitamente sacudida por uma explosão gigantesca. 200 mortos, 5000 feridos e 300 desaparecidos foram os números avançados pelos serviços oficiais. Foi de tal ordem o grau de destruição que Marwan Abboud, governador de Beirute, homem temperado naquele “caldo de cultura de violência”, que já sofreu dores de todo o tipo, não conseguiu evitar o choro quando viu o cenário de destruição. A princípio pensou-se que era a abertura de novas hostilidades, mas não. O responsável por esta deflagração tinha sido um carregamento de 2750 toneladas de nitrato de amónia. O nitrato de amónia é um fertilizante muito comum e também é explosivo, aliás muito usado por ser barato e não ter controle. Esse nitrato de amónia tinha sido confiscado a um carregueiro Moldavo e permanecia em armazém há 6 anos. Ficamos perplexos. O que é que leva a que não sejam suficientes 6 anos para decidir do futuro do material confiscado? Há de facto um “pauzinho na engrenagem”. A burocracia estourou com Beirute. Beirute está em todo lado. Também, nós, conhecemos essa burocracia que protela tudo até ao esquecimento. Ora falta uma certidão ora uma assinatura senão falta um despacho ou o requerimento não está de acordo com o modelo prescrito depois passou o prazo, em suma, desesperante. Tornou-se, a burocracia, uma máquina pesada, com inércias quase insuperáveis culpa de uma evolução perversa dos seus pressupostos. Assim: as normas e regulamentos passaram a ser absolutos e prioritários, quer dizer, de meios passaram paulatinamente a objectivos; a necessidade de documentar e formalizar todas as comunicações levou a excessos de formalismo com as consequentes demoras insuportáveis; os funcionários por força da repetição dos procedimentos tornam- -se executantes de rotinas e portanto encaram qualquer novidade como uma ameaça à sua segurança profissional; a despersonalização no relacionamento, que era uma pedra de toque da burocracia enquanto concepção pois encarava o utente sem atender ao estatuto social, passou a exibir tiques de autoridade criando assim dificuldades de atendimento ao público. O “manga de alpaca” tornou-se, assim, um homem temível porque, mesmo sem querer, é o rosto do nosso desconforto perante a máquina burocrática. Mas não era para ser assim quando três (claro que há mais mas estes serão os mais importantes) pensadores do séc. XIX, Karl Marx, Max Weber e Emile Durkheim, especulando sobre o positivismo de August Conte estabeleceram as bases de uma nova ciência, a Sociologia. Um deles, Max Weber, calvinista, que via o capitalismo como um ideal, depois de estudar as relações sociais e interacção social entre elementos de grandes grupos, como os empregados de grandes empresas, o Exército e depois o País, sugeriu a noção da administração como ciência, única forma capaz de promover o crescimento desse mesmo capitalismo. No fundo era organizar empresas que cresciam em tamanho e complexidade. A esse edifício organizativo a que chamou burocracia era no fundo o somatório de relações mecânicas entre gabinetes (bureaux, daí burocracia- o poder dos gabinetes) e tinha por objectivo a eficiência, a eficácia, garantindo rapidez, racionalidade, homogeneidade na interpretação das normas e padronização (decisões iguais para situações iguais). Ora, o que sobra, hoje, de tudo isto? Possivelmente muito pouco. É que Max Weber esqueceu- -se de uma coisa importante: o factor humano (como disse Brecht ao General: o carro de combate tem um homem). De qualquer forma é o que temos e vamos ter por muito tempo pois não há País que dispense a burocracia. Não pode! Mesmo aqueles que dizem que querem acabar com ela mais não querem dizer que corrigir vícios, desmandos, disfunções já seria óptimo. Retirar o mais possível a “mão humana” dos procedimentos o que aliás vem sendo feito por via da digitalização. Cumpre aqui homenagear dois “desburocratizadores”: Almeida Santos com a sua “guerra ao papel selado” e Maria Manuel Leitão Marques com o seu “simplex”. Toda esta conversa sobre burocracia vem a propósito dos milhões que Portugal vai receber da Europa. Se os projectos forem sujeitos aos procedimentos burocráticos normais evitamos a corrupção (nem toda) mas não fazemos nada em tempo útil. Se se agilizarem procedimentos, se forem dispensados alguns mecanismos de controle fazemos obra mas deixamos entrar a corrupção. Este é o dilema com que o governo se depara. Que fazer então? Achar um ponto de equilíbrio entre a obra necessária com corrupção mínima? (isto até parece uma negociação com a Mafia) Ou, numa política de responsabilização, confiar em homens providenciais aos quais dariam “carta branca”? Temos exemplos dos dois casos. O Plano de Povoamento Florestal foi uma obra burocratizada que correu bem. Pode discordar-se do Plano mas o que foi concebido foi bem realizado e nos prazos. Assim como a Expo ou o Europeu de Futebol que correram bastante do ponto de vista da execução. No caso de homens com “carta branca” para fazer, temos desde o Marquês de Pombal ao Fontes Pereira de Melo ao Duarte Pacheco e mais recentemente o Eng. Camilo de Mendonça. Já sei que o Eng. Camilo deixou as contas um bocado baralhadas mas na concepção e realização foi bastante bem sucedido. O descalabro financeiro podia ter sido evitado se tivesse sido monitorizado. Para um Luis XIV tem que haver um Colbert (podemos aprender com os erros, não?). Claro que chamar estes iluminados é correr riscos: 1º podem sair corruptos; 2º podem morrer a meio (Duarte Pacheco morreu e a obra ficou por ali, coisa que não acontece com a burocracia); 3º os iluminados podem não o ser, ou melhor, podem ser “iluminados não por Deus mas pela luz eléctrica” (O. Salazar).

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: Gaspar Cardoso Monteiro

Voltemos ao patriarca António Ledesma e à sua segunda mulher, Maria Ferreira de Carvalho. É que, para além dos filhos que em Bragança viveram e usaram o sobrenome Ledesma, de que falamos, tiveram um outro filho que deu origem ao ramo familiar dos Monteiro Cardoso que viveram no Porto e se passaram a Lisboa, de onde fugiram para Londres. Vamos ver. João António Monteiro se chamou aquele filho de António Ledesma e Maria Ferreira Carvalho. Nascido no Porto, ali se criou, tornando-se um homem de negócio. Casou com Brites Ana, nascida no Porto, no seio de uma importante família originária de Torre de Moncorvo, que vamos apresentar. Gaspar Rodrigues e Ana Rodrigues, terão casado em Torre de Moncorvo, pelos anos de 1640. Tiveram uma filha que batizaram com o nome de Isabel Cardoso e que casou com Francisco Lopes, de Chacim. Na sequência de uma vaga de prisões da inquisição que assolou Moncorvo, o casal internou-se por Castela. Regressaram a Portugal, fixando residência em Freixo de Numão de onde passaram ao Porto, terra onde nasceu Brites Ana. Leonor Pereira foi outra filha de Gaspar e Ana Rodrigues, a qual foi casar em Almendra, terra de Ribacôa, com António Rodrigues Cardoso. Um filho deste casal chamou-se Luís Cardoso Pereira, (1) que, por 1685, casou com uma irmã de Brites Ana, chamada Isabel Cardoso, como a sua mãe, nascida em Málaga, por 1665. Josefa Micaela, uma filha de Luís Pereira e Isabel Cardoso, casaria com um filho de João Monteiro e Brites Ana, chamado Gaspar Cardoso Monteiro, que vamos acompanhar. Nascido na Invicta cidade, por 1695, Gaspar tornou-se mercador de feiras, ou mercador ambulante, comprando e vendendo o que lhe aparecia e que pudesse dar lucro, coisas tão diversas como: resmas de papel (fino e de embrulhar), fitas de cadarço, pentes de tabanica, tesouras com suas bainhas, meadas de retrós… Mas não hesitava em receber de uma freira um anel em penhora de 970 réis ou comprar uma carga de tecidos para vender em tenda sua, montada em qualquer feira. Sim, também se apresentava como profissional tendeiro e como homem que vivia de sua agência, ou de seu expediente. Repare-se que, na própria ordem de prisão, os inquisidores escreveram: - Gaspar, casado, que vendia algum dia fitas em caixas pelos conventos das freiras na cidade do Porto. (2) Era solteiro ainda, quando os pais se mudaram do Porto para Lisboa e o levaram a ele e aos irmãos. Mudança semelhante aconteceu com a família de Luís Cardoso Pereira e Isabel Cardoso, os sogros de Gaspar. De modo que o casamento deste com Josefa Micaela se realizou já em Lisboa. Para o casamento, Josefa levaria um dote de 150 mil réis que ficou de pagar um Fulano Miranda, médico, morador na Baía, que os devia ao pai da noiva, que no mesmo investiu, pagando-lhe o embarque e, possivelmente, mercadorias que levou para negociar no Brasil. Veja-se, a propósito como ele foi referenciado por Manuel Lopes, um judeu nascido em Torre de Moncorvo e circuncidado em Livorno, que o conheceu em Lisboa, por 1700: - Sinais de Luís Lopes Cardoso: alto, não muito gordo, seco, de cara larga e moreno, barba não muito farta, com brancas, olhos negros, cabelo negro com brancas, crespo e comprido, de 65 anos. E ouviu dizer que havia sido tratante muito rico e então estava pobre, que havia perdido tudo numa embarcação. (3) Falando do sogro e explicando a questão do dote, Gaspar disse que aquele “foi homem de grande negócio na cidade do Porto, onde quebrou e veio para esta de Lisboa”, no outono de 1698. E foi certamente já em Lisboa que nasceu Josefa Micaela, filha de Luís e Isabel, mulher de Gaspar Cardoso Pereira. Situemo-nos agora em Lisboa, ao findar do mês de Julho de 1725, quando a inquisição de Lisboa prendeu Gaspar Cardoso Monteiro, “por encobrir hereges”. Na verdade, os hereges em referência seriam os seus irmãos, (4) Rafael Cardoso (5) e Gabriel Lopes, e respetivas consortes, Micaela dos Anjos e Grácia Caetana, bem como a sua mulher Josefa Micaela e familiares desta, que todos tinham fugido para a Inglaterra, levando os filhos pequeninos. Metido no cárcere, logo na primeira sessão, Gaspar começou a contar que aos 15/16 anos, fora doutrinado na lei mosaica, por uma Leonor Soares que vivia no Porto, a S. João Novo e que a partir daí vivera como judeu, fazendo as cerimónias possíveis. Repetiu duas orações que Leonor Soares lhe ensinara e que são as seguintes: I - Desde onde nasce o sol Até onde se vai Bendito e louvado seja O nome do Senhor. II - Da boca de todo o nado Seja o Senhor bendito e louvado Da boca de todo o vivo Seja o Senhor engrandecido. (6) De suas confissões, transcrevemos apenas um extrato que nos refere a celebração do Kipur de 1716, em ajuntamento familiar: - Haverá 9 anos, em Lisboa, em casa de João António Monteiro, seu pai, viúvo de sua mãe, Brites Ana, natural do Porto e morador em Lisboa, onde faleceu, se achou com ele e com Micaela dos Anjos, casada com Rafael Cardoso, seu irmão dele confitente, natural do lugar de Mouta Velha, de onde se ausentou, não sabe para que terra; e com António Monteiro, irmão inteiro da dita Micaela dos Anjos, médico, que também se ausentou; e com seu irmão Gabriel Lopes; e com Brites, solteira, irmã inteira de Micaela dos Anjos; e com Josefa Micaela, mulher dele confitente, moradora em Lisboa, de onde, com a dita Brites, se ausentou deste reino (…) e estando todos 7, juntos fizeram o Kipur. (7) Como já se disse, logo que se viu preso, Gaspar começou a confessar suas culpas. Isso não impediu que fosse submetido a tormento, no decorrer do qual “gritou que Nossa Senhora lhe acudisse”. Saiu penitenciado em cárcere e hábito, no auto-da-fé celebrado na igreja de S. Domingos em 13.10.1726. Saído da inquisição, “granjeando a sua vida em vender algum papel por conventos”, com a mulher, o filho e quase todos os parentes estabelecidos em Inglaterra, naturalmente que Gaspar Cardoso apenas buscaria uma oportunidade para fugir também para aquele reino. Encontrou-a em uma terça- -feira de Maio de 1727, quando um castelhano, morador em Lisboa, chamado João Alonso, contactado por judeus portugueses estabelecidos em Londres para fazer embarcar familiares seus, de Portugal para Inglaterra, a partir de Lisboa, o meteu num barco, no porto de Santarém, com destino a um navio inglês que esperava no mar, fora da barra do Tejo. Entre os fugitivos, seguia a mulher e uma filha de Francisco de Campos, originárias de Vila Nova de Fozcôa. Vejam o relato feito pela filha, Violante Campos: - Passado algum tempo, he deu o dito castelhano parte de que se preparassem porque tinham navio pronto para Inglaterra; e lhe entregaram o seu fato, que o dito João Alonso fez embarcar no dito navio e na terça-feira seguinte se meteram em um barco, para dele se passarem ao dito navio; porém, por estar o mar muito bravo, o não puderam abordar, sem embargo de que foram até fora da barra no dito barco e nele voltaram para a dita cidade no dia seguinte e o dito navio se foi, levando-lhe o dito fato. E declara que no dito barco iam também para embarcarem no dito navio várias pessoas (…) outro chamado Gaspar e outro cujo nome não se lembra, Brites Lopes… (8) O Gaspar referido por Violante era o nosso homem que, preso em 5 de Junho seguinte na inquisição de Lisboa, por “tentar fugir para Inglaterra”, inventou uma desculpa bem esfarrapada. Vejamos: - Disse que quando embarcou, se persuadiu que as ditas pessoas iam fazer alguma galhofa ou romaria; e neste conceito esteve até que, com as mesmas, chegou a Porto Brandão aonde, perguntando ao dito João Alonso que galhofa era aquela e para onde iam, o mesmo lhe disse que aquelas pessoas iam para uns parentes, sem lhe declarar para que parte; o que ouvindo ele declarante, se queixou (…) e desejou achar barco para voltar logo para esta cidade… (9) Claro que os inquisidores não acreditaram, observando-lhe que certamente iria para junto da mulher e do filho. Aí ele respondeu que não, que “à dita sua mulher lhe faltara fé no matrimónio e por a dita culpa e mau procedimento fora para o dito reino, fugindo dele declarante (…) e de nenhuma sorte havia de ir para a sua companhia”.