No fim dos anos noventa, a OCDE fez um estudo sobre literacia em vários países. Entende-se por literacia, a capacidade de compreender e processar informação escrita nas actividades do quotidiano quer seja em casa, no trabalho ou em sociedade. Ficaram praticamente todos mal na fotografia. Mas Portugal foi dos piores, com 77% da população a não atingir o nível 3 de literacia que é o mesmo que dizer que 77% não conseguem analisar um simples texto de jornal ou interpretar um folheto médico. Face a este descalabro, entendeu-se, por bem, implementar um Plano Nacional de Leitura como panaceia para este défice funcional.
Não é de estranhar pois, em Portugal, para responder a um problema meio insolúvel, cria-se um Plano Nacional. Foi assim com o Plano Nacional para a igualdade de género, cidadania e não discriminação, com o Plano Nacional para a prevenção e combate à violência doméstica e de género, com o Plano Nacional de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos, com o Plano Nacional de defesa das florestas e contra incêndios, com Plano Nacional da saúde, com o Plano Nacional para a inclusão e outros, todos eles com uma eficácia só comparável à das “comissões de inquérito”.
Afinal o que é o Plano Nacional de Leitura? É um conjunto de actividades promovidas por uma estrutura de âmbito nacional, cheia de espírito de missão, devidamente comissariada e que no fundo se limitou a calendarizar uns eventos e a fornecer uma listagem de livros aos professores, esses eternos “burros de carga”, a fim de por os alunos a ler (esses livros). Por sua vez, os professores, não querendo ser acusados de bloqueamento do processo e por brio profissional, lançam um repto aos melhores alunos. Estes sempre disponíveis, com os seus trabalhos e desempenho fazem as delícias dos mentores do Plano, que lançam hossanas e dão prémios. Claro que neste esquema competitivo os mais fracos nem se atrevem a entrar. Mas era para esses que o Plano, supostamente, era feito.
Por outro lado o fornecimento de uma lista de livros de leitura, enquanto acto lúdico, diz duas coisas importantes: uma é a tentativa da tutela do gosto, que outrora se revelou um contra senso; a outra é o reconhecimento tácito de que os autores estudados no “currículo” são “intragáveis”. Quem pode, em boa verdade, incentivar outrem à leitura recomendando os “Lusíadas”? Ninguém. Se no meu tempo já era uma “seca”, que fará hoje? Os “Lusíadas”, com as constantes referências à Mitologia e aos feitos históricos, tornam-se um discurso encriptado que para o entendermos temos de nos socorrer de um descodificador permanente. Além disso, mesmo em termos formais, Camões não é fácil. Ele não alinha as palavras na frase com a ortodoxia a que estamos habituados, antes faz um “puzzle” com elas e deixa para nós o trabalho de as colocar no lugar se o queremos entender. Bonito! Por isso é que era importante dividir as orações. Pior! Um mal nunca vem só. (Em tom de brincadeira direi que aquela pintura de Ramalho, “Camões lê os Lusíadas a D. Sebastião”, é elucidativa porque D. Sebastião nunca leria os Lusíadas. Tinham de lhos ler. Tal como nós). É curioso que quando recebíamos o livro de “Os Lusíadas” íamos logo ver o canto IX (a ilha dos amores) que era proibido. Mas os livros que eram para uso académico já o não tinham. Talvez o único canto que devia ser estudado, pois era, no livro, a única coisa demandada.
Resumindo, o Plano Nacional de Leitura é, como os outros Planos, inócuo. Os bons alunos carregam o fardo de o fazer parecer útil e os outros nem querem ouvir falar dele. Se lamentar a presente falta de avidez de leitura, quanto mais não seja por saudosismo, me parece natural, já este remar contra uma maré que não vencemos me parece uma, irreparável, perda de tempo. Repare-se que já há mais de 40 anos, Marshall Mcluhan, aquele que anunciou o aparecimento da internet e que chamou à Terra a “aldeia global”, classificou a sociedade da altura de pós-Gutemberguiana, entendendo isto como uma evolução, uma passagem a um estado superior. Há já quem suporte que o analfabetismo, hoje, é a iliteracia digital.
Corin Tellado fez as delícias das raparigas do meu tempo. Fazia-as sonhar cor-de-rosa. Nós, rapazes, fazendo jus à educação da época e ao ditado popular, “o homem quer-se como o capote: feio e forte”, tínhamos que sonhar azul. E sonhar azul neste caso era entrar no imaginário das “cowboiadas” e dos policiais. Professores e pedagogos condenavam veementemente este tipo de leitura. Chamavam-lhe literatura de cordel, uma alusão ao facto de estes livros não estarem nas prateleiras das livrarias mas sim nos quiosques presos com uma mola a um cordel. Durante muito tempo este tipo de literatura foi menorizado e até ostracizado e só o facto de algumas obras terem sido passadas ao cinema por grandes mestres e interpretadas por actores como Robert Mitchum, Humphrey Bogart ou Lauren Bacall, autênticos “monstros sagrados” de Hollywood, é que fez com que os críticos literários vissem o género policial com outra atenção e respeito. De notar que o nosso Diniz Machado (“ o que diz Molero”) escreveu Westerns e policiais com o pseudónimo Dennis Mcshade. Também Corin Tellado foi considerada uma escritora menor, que só escrevia futilidades. Mas aqueles que assim pensam, podem agora confrontar as suas teses com as de Maria Teresa González, uma Catedrática da Universidade de Gijon. Esta, na análise que faz à obra de Corin Tellado, além de elogiar o aspecto formal e de achar impar a forma como ela prende a atenção do leitor, faz reparar que a obra percorre, cronologicamente, todos os patamares da luta da mulher pela sua libertação. Segundo esta estudiosa a obra de Corin Tellado, durante o Franquismo, é um autêntico manual de “Educação Sentimental”, uma espécie de “código amoroso”. Já em democracia, ela teria sido pioneira na reflexão sobre o papel da mulher em sociedade e das sucessivas fases na luta de emancipação. E dá exemplos: “Ella entre los dos” sobre a perda da liberdade no casamento; “hago lo que quiero” sobre as relações sexuais pré matrimoniais; “Cuéntame qué passa” sobre o adultério; “Nos separan los celos”, de 1981, é o culminar de toda esta trajectória e aborda a questão da violação em matrimónio. Tema que ainda hoje é actualíssimo. Pelos vistos a mulher não era tão fútil assim. Conclusão: os críticos literários e os pedagogos fizeram asneira, e da grossa. Há bons e maus autores em todos os géneros literários. Mas não há géneros literários menores. Esta arrogância intelectual de rotular de “pimba” ou erudita é tique que se perpetua entre os convencidos. Rotularam o policial de menor, de “pimba” da mesma forma que se esqueceram de reconhecer Bob Dilan ou Chico Buarque já para não falar do chumbo que apanhou o Nobel Português. Todos estes falhanços são grosseiros, de palmatória até, mas lamento mais ainda o ter-se ignorado ou mesmo desprezado a avidez e a voracidade literárias dos leitores compulsivos dos meus tempos de adolescência em lugar de os conduzir, com paciência e humildade, a leituras de outros géneros. Aos pedagogos ninguém pedia que gostassem daquela literatura mas tão só que cavalgassem aquela onda de vontade. Perdeu-se uma oportunidade de ouro. Foi o grau zero da Pedagogia.
Aproveito o ensejo para prestar uma homenagem ao Sr. Lelo. O Sr. Lelo era Contínuo no meu tempo de Liceu. Não privei com ele, claro, que a diferença de idades era grande. Mas ele era amigo dos alunos e cúmplice também. Cúmplice quando nos chamava à parte e nos alertava assim: “Já mandei o postal. Vê lá se ainda o agarras no carteiro, senão já sabes como te mordem.” O postal era a comunicação aos pais do excesso de faltas, de alguma falta disciplinar ou de qualquer outra coisa menos abonatória. E, claro, lá passávamos uma tarde, na rua, à espera do carteiro e quando o víamos, disparávamos: ”É para mim!” Mas também era cúmplice quando trocava connosco “cowboiadas” e policiais, a tal literatura proibida. Entre o Sr Lelo e nós havia vizinhança e que importantes nos sentíamos quando de forma quase clandestina se disponibilizava: “tenho ali um muito bom. Mas vê lá não mo percas.” Era o melhor incentivo à leitura.
Insignificâncias que tornam o Mundo maior.