Ter, 12/12/2006 - 12:27
Há imagens da infância que se agarram teimosamente às recordações de quando éramos crianças, sobrepondo-se, quase vivas e a cores, aos anos que se foram acumulando. Surgindo em sequências mais ou menos dispersas que nos levam a olhar o tempo suspenso das lembranças encontradas.
Como aquele em que a minha avó Maria da Glória vivia numa aldeia do concelho de Moncorvo e eu ia, Douro acima, pelos primeiros calores do verão, reviver a liberdade de saber num espaço que não me cansava de descobrir, nos mesmos pormenores, em cada novo ano. Eram os lameiros onde escutava a cigarra e seguia a formiga da fábula; eram os riachos que escarafunchava à cata de rãs; eram as cerejeiras onde me empelouricava, de olhos nunca cheios. E eram os serões. Onde, no fresco da varanda, à mistura com o cheiro das amêndoas por partir, a minha avó dobava as histórias com que enovelava as noites que os netos haveriam de sonhar. Com mafarricos e bruxas dançarinas, encruzilhadas de destinos por achar, santas revelações e outras pequenas epifanias que nos tiravam o sono e nos davam o sentimento de pertencer a um espaço construído sobre vidas partilhadas, caminhos reconhecidos, crenças comuns e destinos que pareciam feitos da mesma vontade de existir.
Depois da morte da minha avó, esse tempo ficou mudo e quieto, num recanto de memórias por acordar. Até que, há alguns anos, por oferta de um amigo, me vi a mão com um livro de contos. E CONTOS DO NORDESTE, de Jorge Tuela – escritor nascido na Moimenta de Vinhais – tornou-se um dos meus casos de leitura.
Livro de cabeceira, mostra-se capaz de nos fazer agarrar à almofada, em cada história de mistério. Seja com a Maria Capela, que se apegava à senhora do Rosário para vencer as artes malignas do chifrudo “Barzabu”, ou com o pobre Chico Topelha, perseguido pelas bruxas e o demo em pessoa, no bojo agourento da noite. Ou, ainda, com a alma penada do padre Careja, eternamente expiando o seu pecado de ter pisado a hóstia que das mãos trémulas de vinho se lhe escapara para o chão.
Livro sensível de lucidez, CONTOS DO NORDESTE alcança a verdade do drama que se esconde em cada homem que procura, sem saber como encontrar. Na tristeza do pobre João Trauliteiro e do seu filho que olha para lá da miséria e não ousa desejar o que vê. Na vingança de Domingos Talha-grão e Gracinda Poneca que neles recai sobre a forma de arrependimento incapaz de qualquer redenção. Na dor de Justina, “prenhe” de luz” (e tão próxima da Madalena de Torga) que descobre, escorraçada de casa paterna, que a “noite veio ao nascer do dia”.
Livro tão livre no humor que provoca, no riso que rasga as angústias e faz perceber a grandeza por trás das pequenas imagens feitas de ingenuidade e alegria da descoberta. Como aquela que o Chico, catraio mais velho do Zé Troulas, achou nos tempos idos da Fira das Cantarinhas; onde se desembarrigou de misérias, engolindo, até, as carabunhas das cerejas, o que provocaria, aflitas horas mais tarde, um caso misteriosamente divertido, num surpreendente penico escarafunchado pelo atónito médico da aldeia. Ou do espanto da simplória Ana Carvalhosa que, vendo-se grávida do marido que emigrara para o Brasil, se deixa convencer de que só o ardiloso padre Zacarias seria capaz de lhe fazer os olhos da criança que esperava.
O que fica por contar, do NORDESTE, nestes CONTOS, é apenas aquela zona da nossa memória que ninguém consegue filtrar. Porque é nossa. E porque lá vivem, ainda, as avós que julgamos ouvir quando lemos histórias contadas…
N.B. – E porque de Contos aqui se trata, parece-me fundamental referir e elogiar a iniciativa que o Jornal Nordeste agarrou e promoveu, no sentido de estimular a escrita criativa, através do projecto “Quem Conta um Conto”. O incentivo à leitura e à escrita são premissas que qualquer jornal regional se deveria orgulhar de seguir.