Angola, essa inimiga

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Não sou político nem tão pouco comentador; muito menos versado em relações internacionais. Ensinou-me a vida, ou talvez o passar dos anos, a ser ponderado tentando dominar uma natureza impulsiva, incapaz de aguardar pelo momento favorável ou de escolher as palavras que melhor se adaptam ao contexto. Tão pouco vivi em Angola ou mantive contatos com o país que povoa o imaginário de tantos portugueses passados quarenta e alguns anos da descolonização. Desta, guardo apenas as memórias dos que regressaram à terra e, sem um tecto para os abrigar, foram viver em velhos palheiros ou nas lojas térreas convivendo com animais. Quando me abeirava deles, ouvia lamentos e via as lágrimas correrem do rosto das crianças e dos velhos sem esperança e sem glória, não só pelo que deixaram mas também pelo modo como o Portugal de então os recebeu. Uma vez por outra, ouviam-se os relatos de feitos épicos dos que passando pela Turquia, Marrocos e sul de Espanha conseguiram por a salvo os seus bens transportados em camiões.    
Ouvia-se, comentava-se e lamentava-se. A imprensa era escassa e as redes sociais inexistentes pelo que o impacto deste fenómeno junto dos poderes centrais passava despercebido às massas, sobretudo para cá do Marão. Assim um facto que começou por ser social e rapidamente se tornou cultural, foi-se diluindo com o passar dos anos sem que as feridas tenham sarado. No meio de tudo isto, a memória registou que, se por um lado, quem retornou à terra criticava o processo de descolonização e o modo como os políticos da altura o conduziram, também os olhos brilhavam quando se falava dos estilos de vida e a nostalgia, ou mesmo a saudade, surgia quando se falava daquela terra rica e poderosa capaz de enfeitiçar quem por ela tenha andado. Já no Porto, anos mais tarde, convivi com parte da geração mais nova, que entretanto crescera, e versava estudos e literaturas africanas na esperança de, mais tarde, regressar à terra onde nasceu.
Todos estes episódios e outros que se viveram em pouco ou nada afetaram as relações entre Portugal e Angola. No entanto, em quarenta anos de relações diplomáticas, raras foram as vezes em que os dois países conseguiram estar frente a frente e em pé de igualdade. Da parte portuguesa, a relação fixou-se na subserviência, baseada num sentimento de culpa por quatrocentos anos de História e uma visão colonialista desarreigada do tempo por parte de muitos políticos que, incapazes de entender os factos na época em que ocorreram, tentam interpretá-los à luz dos valores do seu tempo. Momentos houve em que Portugal se arvorou o direito de se intrometer nos assuntos de Angola fruto da conjuntura vivida no momento, como se quisesse disciplinar. Quer numa situação, quer noutra, nunca se verificou uma posição que possa considerar-se verdadeiramente de Estado. Sempre oscilou entre as agendas ideológicas e os estados de alma dos políticos, ficando-se com a impressão que, salvaguardadas as relações económicas, tudo seria possível. Não é por acaso que, de tempos a tempos, chegavam ecos da violação de direitos humanos e as reações eram quase nulas.
Hoje, em resultado de todas as mudanças a que se assiste, podemos estar hoje a assistir a uma mudança neste paradigma de relações, onde o caso Luaty Beirão aparece como referência de um movimento democrático e o exemplo maior dos atropelos à cidadania num país irmão. Mostrando-nos a História que os regimes políticos tendem a alterar-se entre os quarenta e os sessenta anos, olhando para o que se está a passar em Angola quer a nível económico, quer social tudo indica que em breve se assistirão a mudanças ao nível político. Contudo, o conceito “breve” na história das nações não corresponde ao seu significado na vida de cada um. Luaty afirmou, antes de ser condenado, que é filho do regime angolano cometendo o erro de em vinte e sete de fevereiro de dois mil e onze ter subido a um palco, e, num concerto que nem era o seu, ter incentivado três mil jovens a manifestarem-se pacificamente em favor da democracia. Hoje, quando o mês da liberdade para os portugueses se faz anunciar, Luaty e os companheiros foram condenados, faço votos de que as palavras de Marcolino Moco, antigo primeiro-ministro angolano, ecoem nos corredores de S. Bento: “Penso que os negócios entre Estados têm de ser superados perante situações deste calibre”.  Angola é amiga, os inimigos são outros…          

Por Raúl Gomes