As quadraturas da liberdade

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Boa tarde, meus caros. Que estas palavras vos encontrem com saúde e de bom ânimo. Hoje venho divagar sobre essa coisa onírica da liberdade. No outro fim de semana num restaurante estávamos à mesa umas quantas pessoas. Tal como começa a anedota, tinha o espanhol, o inglês, não tinha o francês, mas tinha representada várias nacionalidades como estado-unidense, brasileira, argentina, mexicana e alemã, entre outras que por ali andavam. Estávamos a falar de liberdade, na China, na esplanada multicultural de um restaurante propriedade de um italiano de Milão numa noite temática de comida mexicana preparada por um comum amigo de Guadalajara. Conversou-se entre tacos, cervejas e charros negros, os charros são os cóbois do México, ciosos da sua cultura charra ou charreria, já os charros negros não são mais do que o nome que os mexicanos dão a tequilha com coca-cola. A páginas tantas a conversa foi parar aos actuais e globais lugares comuns, as vacinas, o futuro, o mundo e os cantos do mundo de cada um. Falou-se também da liberdade e de liberdades... É difícil falar destes temas nestas linhas e fazer compreender plenamente estes tópicos pois no Ocidente existe um desconhecimento quase absoluto sobre a China e muito mais sobre a China de hoje. Isto digo eu e diz um sinólogo francês chamado François Jullien que tem também a expressiva e concludente frase “enquanto para o pensamento europeu a liberdade é a última palavra, para o Extremo-Oriente é a harmonia”. Esta afirmação ajuda a compreender os tempos que a Europa e o Extremo-Oriente vivem. Enquanto a Europa tem vindo a esforçar-se por preservar a liberdade como valor fundamental ainda que a harmonia (e o resto) decline e seja alvo de diversos tipos de ameaças, por outro lado o Extremo- -Oriente funda-se na harmonia como condição basilar de estabilidade e progresso ainda que algumas liberdades individuais tenham de dar o corpo ao manifesto e ser secundarizadas neste processo. São valores culturais, fundamentais, embora consideravelmente diferentes e às vezes contrários na forma de conceber e viver a sociedade. Por isso, aí quando se fala de China e restrições à liberdade, é sempre tudo por causa do regime, sendo na verdade tudo mais fruto da cultura intrínseca chinesa, inclusive a vigência do próprio regime. Uma visão eurocêntrica e coitadinha do mundo que não procura realmente conhecer o Outro, mas que parte sempre do princípio que os outros querem fazer as coisas à europeia, e se não o fazem é porque não podem, coitados, eles bem queriam ser em tudo tão mais- -que-perfeitos quanto nós. Actualmente na China as fronteiras continuam fechadas, entram os nacionais e os poucos estrangeiros que conseguem entrar no país. Na verdade não é que esteja fechado, a questão é que quem entra tem de cumprir quinze dias num hotel mais uma semana em casa. Sem excepções para ninguém, nem para diplomatas. No entanto, apesar deste filtro de três semanas engaiolado e a pagar o hotel do seu bolso para quem quiser andar livre cá dentro - tal como se faz na Austrália e em grande partes dos países do Oriente - a vida aqui corre absolutamente normal desde Abril do ano passado, tirando o requerido uso de máscaras em alguns locais. Deste modo, a pergunta que se colocou à mesa foi: o que é a liberdade? É querer andar a circular à vontade, porque é um direito que me assiste, quem é alguém para me impedir ou me encerrar num hotel, o que eu mais preciso no meio de uma pandemia é de viajar, na verdade de escarrapachar fotos no Instagram num sítio coiso, #life is a trip, respeitem a minha privacidade, era o que faltava num país democrático de plenos direitos quererem beliscar tamanhas conquistas... para depois acabar por ficar um país parado ou a meio gás, encerrado em casa e com as implicações todas que vocês conhecem melhor do que eu e que tantas consequências tem na vida, na economia e na saúde física e mental dos cidadãos? Quem tem mais liberdade, somos nós na China em que a normalidade já vai fazer um ano e nos podemos juntar e conviver à mesa de um restaurante ou são as pessoas em grande parte da Europa que em nome da liberdade são depois obrigadas a ter de vivê- -la dentro da quadratura das suas casas, da quadratura dos computadores, da quadratura dos postigos, da quadratura de tudo? Fica a questão sem mais juízos de valor. Antes que coloquem rótulos não se trata de defender certas concepções políticas, aliás, nessa mesa éramos todos nacionais de democracias bem fundadas, pessoas de esquerda, pelo menos as que conheço melhor. Trata- -se apenas de fazer concessões, de prescindir um pouco nestes tempos completamente invulgares para não andar na intermitência da liberdade, na cepa torta do hoje oito, amanhã oitenta. Praticar uma harmonia mais preventiva, abdicando de uma ou outra liberdade individual para não ter de desembocar na desarmonia de esgotantes estados de emergência. Não perdia nada a China em abrir mão de algumas liberdades individuais das suas pessoas e não faria mal à Europa trabalhar mais a harmonia colectiva dos seus cidadãos. Educamos os filhos com regras, com responsabilidades, mas a Europa não. Só liberdades, quase zero responsabilidades. Chegamos ao cúmulo dos dias de hoje de uma pessoa até se sentir fascista ao pedir uma ou outra regra ou concessão para a Europa, quando a questão é pecisamente a contrária. É dessa falta - desse só se poder abrir ou dar e não se poder corrigir ou recuar um milímetro que seja - que brota o perigo, o descontrolo, o descalabro. As democracias têm de agir e intervir, democraticamente, antes de males maiores. Dizerem “presente” para não dar tréguas a ameaças que se vão anunciando e alimentando da descrença. Tal como disse uma senhora, Grace Blakeley, há dias na Visão “a democracia não aguenta disparidades tão grandes. As pessoas tiram o seu apoio ao sistema e a legitimidade erode-se. Vejo muitos jovens a dizer que não acreditam na democracia, no capitalismo ou no liberalismo.” As pessoas, os jovens já não acreditam em nada e já começam a estar por tudo. Por estes dias, numa das suas mais recentes obras de rua, Banksy pôs o ladrão a escapulir-se da janela de um prédio com um cesto de comida, já não busca o dinheiro, as jóias ou televisor, mas comida. Uma imagem que diz tudo. Vivemos nos extremos, com disparidades económicas, sociais, disparidades entre os direitos e os deveres que não páram de aumentar e os partidos políticos a brincar aos moinhos de vento, sem fazer nada para mudar o rumo das coisas ou sequer para mostrar que não são instituições viciadas, narcísicas, a caminho da obsolescência. É triste e é perigoso. Enfim, tudo o que o mundo precisa é de equilíbrio. E também de mundivivência, de ver outras coisas, o outro lado, de se mostrar disponível para aprender com o Outro. Isto não é mais do que um desabafo, acaba por ser também para isso que estes textos servem, não espero que a natureza das coisas venha a mudar e muito menos que me queiram entender ou concordar com o que digo. Haja saúde e esperança, mas também acção. Um grande abraço!

Manuel João Pires