Adriano Valadar

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Olhar para trás

Uma voltinha à aldeia, onde atualmente o sol já se deita muito mais cedo, permanecendo o seu brilho um pouco mais tarde na torre da igreja. Não é uma aldeia deserta mas desertificada. A maior parte das persianas encontram-se fechadas dia e noite.
Olhar para trás de si, qualquer que seja a estação do ano, é contemplar, pelo pensamento, um cemitério cada vez mais vasto onde se levantam silenciosamente as silhuetas dos “nossos defuntos”. É repensar na geração dos nossos pais e dos que foram seus contemporâneos. Mas é cada vez mais, com o passar dos anos, compreender que os mortos de hoje são os nossos contemporâneos, aqueles com quem trabalhámos, caminhámos, convivemos, amámos. Estes rostos obsessivos, que já não passam muitas vezes de fotos armazenadas nos computadores, investem-nos e habitam-nos neste período de luz, cor e perfume de outono. Falam-nos da nossa vida em comum, das paixões partilhadas, do clima dos anos anteriores. Das dificuldades ultrapassadas em comum.
Os mortos são os nossos próximos bem definidos. A partir do momento em que partiram, num estúpido dia de agosto por exemplo, vivem e habitam na nossa memória viva onde se instalaram com direito a tiragem permanente. Nunca os afastaremos e como? Se contaram nas nossas vidas, que continuem a fazê-lo depois da morte. São um recurso permanente para nos ajudar a enfrentar, aguentar e transportar os dias: um casal defunto ou um amigo desaparecido nunca concluíram o seu trabalho dentro de nós mesmos. É como se olhassem por nós, com as suas vozes audíveis, os seus sorrisos perpetuados e a sábia forma de nos aconselhar a relativizar as nossas preocupações.
Ficamos contudo perante uma prova que nada tem a ver com a festa americana que não faz mais do que maquilhar a realidade e o medo. A nossa perspectiva é magnífica, mas aleatória. Nos cemitérios todas as inscrições garantem que os nossos familiares (ou desconhecidos) “descansam aqui à espera da ressurreição”. Esta aposta em forma de afirmação encontra-se no coração da mensagem cristã. Perturbante, apesar de tudo, um tal pressuposto. Difícil de atravessar este mistério. Nada se encontra verificado. Mais ainda; ignoramos completamente a forma como poderiam acontecer as coisas no dia em que essa promessa surgiria. Não conhecemos nem a forma, nem o momento dessa reaparição que vai até ao reencontro do corpo! O nosso corpo com que idade? E em que estado? Não o corpo sofredor dos sofredores, seria um castigo injusto, eterno.
“Transfigurados”, respondem os teólogos desde há séculos. Mas da transfiguração em questão não temos qualquer ideia, qualquer representação. Seria uma “alma” revestida de atributos? Um espírito com uma ancoragem carnal mínima ? Uma forma vaga envolvida por uma tal luz em que nenhum pormenor seria percetível nem necessário? Este mistério faz balançar o nosso imaginário, e deixa-nos no turbilhão do incerto e do improvável. Faz rir às gargalhadas os que não crêem nem em Deus nem no diabo.   
Porém, esta famosa “ressurreição” prometida, porquê esperá-la? Porquê colocar-se numa fila de espera que não levará a nada, nada ao fundo? Para quê, sobretudo, suportar as provas que, no fim da vida, se acumulam tão cruelmente? É preciso consentir ao desconhecimento desta espera e dar sentido aos sofrimentos retirando-lhes a carga de puro escândalo. E admitir que esta espera do desconhecido é a nossa única possibilidade de nutrir a bela virtude da esperança. Loucura, finalmente, esta esperança. Loucura sem provas estabelecidas, sem verificação científica ou experimental, triturada dolorosamente com a razão.
Contudo é talvez o que faz a sua força, esta loucura consentida.

Guerras, guerras …

A nossa impotência, sempre ela. Mina-nos por dentro e faz-nos sofrer. De Sarajevo a Alep, sempre o mesmo sentimento de que nada pode concretamente depender de nós. Não temos qualquer domínio sobre nada, e ainda, apenas, os nossos sentimentos, o grau de horror que suscitam todos estes acontecimentos que nos vão mostrando através de pequenos fragmentos televisivos. A nossa indignação é abafada nas entranhas, a nossa raiva tem muito pouco peso na batalha bem instalada que travam os humanos entre eles. 
Na ONU, como sempre, a regra do veto das grandes potências convém antes de mais aos assassinos, aos corruptos, aos malfeitores. Qual será o Conselho de segurança que vai reunir um dia para mostrar com firmeza os responsáveis nomeadamente designados, pelas atrocidades que desesperam a humanidade? Quem poderá dizer que uma época capaz de gerar um Assad apoiado num Putine é um momento sinistro onde o cinismo em tudo tenta sair vencedor e o consegue quase sempre?
O que podemos nós fazer, na atroz guerra da Síria, em relação ao ditador que, lá longe, sangra o seu povo e tortura as elites. Cerca de 300 000 mortos já, em cinco anos, mas quantos mutilados, humilhados, paralíticos para a vida e vidas ceifadas mal vislumbraram a luz do dia?
Hoje nada podemos fazer, exceto depositar toda a confiança no nosso recém- eleito Secretário-geral, nos eleitos do povo que possam em conjunto adotar uma posição clara e firme neste conflito. Contudo, quando pensamos nos políticos não podemos deixar de sonhar na famosa passadeira vermelha desenrolada aos pés de Bachar Al Assad por Nicolas Sarkozy, novamente candidato à presidência em França. Explica agora com grandes recortes de retórica onde estava o interesse da França e a pedir para travar a marcha dos refugiados para o seu país, onde honravam ainda há pouco tempo o seu carrasco, reviravoltas vergonhosas em relação à ideia que nós temos da França no mundo. Um dia acolhedor dos poderosos assassinos, no dia seguinte fechado às inocências massacradas. Venham falar-nos de “valores” depois de tudo isso.
E venham, uns e outros, falar-nos de Putine e da admiração apenas velada de alguns por este potentado sinistro que está nos bastidores de tantos golpes contra as liberdades e a dignidade humana. Cinismo puro de alguns politicalhos que exibem o temperamento, o carácter, a força dum Putine, um destes homens seria bem preciso para endireitar as coisas, dizem alguns e algumas. A sabedoria calculadora e exportadora da ausência de escrúpulos morais de alguns comentadores de salão são repugnantes quando tentam vender esse modelo de governo e de força que é preciso admirar. Efetivamente não temos nenhum Putine na Europa, e ainda bem, mas temos pequenos marqueses que sonhariam parecer-se com ele, sabendo a priori que não passam de anões ao lado desse gigante da crueldade e da criminalidade.
Tudo isso é excessivo ? À primeira vista sim, mas o que é mais excessivo, entre o dirigente que envia os seus bombardeiros último grito martirizar uma cidade estrangeira, testar novas bombas, destruir caravanas de alimentos e medicamentos conduzidos pela Cruz-Vermelha e um pobre cidadão impotente que tenta fazer uma crónica, batendo no teclado, unicamente com palavras para combater? O excesso é proporcional ao poder que se tem. Contra as bombas e as vossas amizades, Senhores cínicos, dilúvios de palavras não têm qualquer peso. Daí tanta raiva e indignação.

“SER FILÓSOFO”

Além dos alunos que iniciam o estudo da filosofia, ouve-se muitas vezes a expressão quando uma greve paralisa os transportes, quando o tempo nos surpreende ou quando a vida corre menos bem. Há os que se chateiam e discutem e os que se “mostram filósofos”, dizem também os comentadores de rádio e televisão.
Esta interferência mexe com os filósofos de profissão: a filosofia, apesar de tudo, é outra coisa, é Descartes, é Platão. É Kant! Não é uma moral superficial, do dia-a-dia, por favor! Tudo isto, é o fundo de comércio de práticas algo irritantes, um género de sofrologia. Porém, é Descartes mesmo que diz “preferir mudar os seus desejos à ordem do mundo”.
No fundo, se fosse isso mesmo, o papel da filosofia ? Uma sabedoria? O regresso ao sentido etimológico, o amor, filia, da sabedoria, sofia ? 
Os filósofos, em geral, nos seus textos e obras defendem esta ideia da filosofia, inspirada da antiguidade, essencialmente dos Estóicos: os filósofos da Antiguidade grega e romana não eram construtores de sistemas ou de conceitos. Para eles a filosofia, é o desejo de fazer pesar sobre o quotidiano e a vida as disposições de espírito descobertas através da análise e raciocínio científico ou filosófico.
Daí a tradição destes « exercícios espirituais », uma espécie de treino destinado a introduzir no quotidiano os princípios da doutrina. O sentido da palavra foi amplamente desviado pelo uso feito pelo jesuíta, Inácio de Loyola, que os orienta na direção exclusiva da salvação da alma. Contudo a tradição antiga tem um significado bem diferente não no sentido de salvar a alma mas sim de salvar a sua pele: sofrer menos aprendendo a modificar o olhar que nós consagramos aos acontecimentos da nossa vida. E isso vai bem mais além do mundo antigo, por exemplo com Goethe, “Não te esqueças de viver”.
Trata-se de desenvolver a nossa atenção em duas direções: a concentração e a atenção ao momento presente e o olhar do alto. De fugir ao medo do passado e à angústia do que está para acontecer. E de tomar a devida distância em relação aos acontecimentos para melhor os suportar.
Não é exatamente o que pretende pôr em prática conscientemente ou não o aluno que começa a filosofar, aquele que faz greve ou o que passeia solitário, que consegue mostrar-se “filósofo”?
Percebo perfeitamente a objeção. E sobretudo a objeção política. Mostrar-se filósofo face aos defeitos e vícios do mundo, não será finalmente aceitar que nada mude? Parar de se “indignar”, cessar de encontrar insuportável o estado do mundo? É uma verdadeira questão…
Era sem dúvida uma filosofia necessária antes das grandes possibilidades oferecidas pela ciência e a técnica. Recordemos no entanto que haverá sempre coisas que não podemos alterar: como por exemplo a passagem do tempo, a morte. Então, apesar de tudo, guardemos esta ideia da sabedoria quando ela nos diz: muda o teu olhar sobre as coisas se queres ser menos infeliz.

O REGRESSO

Regressaram, estão todos aí. Nas grandes cidades os autocarros a rebentar, as estradas e ruas impossíveis, os corredores dos hospitais. As salas de espera sofrem o assalto geral, a Segurança Social, as Finanças. Nos Correios e no Centro de Emprego, as filas de espera alongam-se inexoravelmente. Para onde tinham ido todos? Durante os grandes dias de calor do verão, tinham-se espalhado pelas praias dos nossos mares, pelos campos do nosso país, pelos caminhos e montes das nossas terras ou, simplesmente, algures, nos longínquos do exotismo, onde ainda se pensa ir sem receio de encontrar algum terrorista cheio de bombas.   
É como se tivessem nascido durante as férias, esperando o nosso regresso para se instalar nas nossas paragens, para nos sugar o ar. Quando se reencontra a casa ou o apartamento, depois das férias, depois duma longa ausência, somos agarrados pelas coisas que havíamos deixado, à espera de serem resolvidas. Papéis diversos em micas, desafiam-nos desde o primeiro olhar. Alguns livros que tínhamos deixado adormecer tranquilamente, tendo negligenciado extrair as “leituras de férias” estão exatamente no mesmo lugar. E os manuais das editoras dos professores, ainda embalados, o que fazer?  Todas estas obras perderam uma estação na ordem das nossas prioridades. Lê-las-emos um dia? Talvez nunca mais, mas como separar-se delas ? Um livro guarda-se sempre. 
A atualidade, pelo menos, deveria reservar-nos algumas novidades, algumas « notícias ». No entanto, patavina! Sopram-nos aos ouvidos os mesmos nomes, os mesmos dossiês insolúveis, as mesmas e vãs polémicas sobre tudo e nada. Tínhamos sonhado, ao partir, nunca mais ouvir falar dum tal fulano, desembaraçarmo-nos definitivamente das coisas dum tal sicrano, das mentiras da Coisa.
Mas é mais forte do que nós, este regresso de férias, como das anteriores, torna-se no momento de encontro com o que não desejávamos. Não temos nada, por exemplo, contra Durão Barroso, e pronto, acabadinhos de chegar das alegrias do silêncio da aldeia, aí está o ator novamente instalado à nossa frente. Estes especialistas da ambiguidade do mundo da finança, servem-nos novas explicações acerca das mentiras e das dissimulações que nós ignoramos completamente.
A mesma coisa, francamente, em relação aos gritos de outros políticos como a águia marinha, Assunção Cristas, que vê incompetências, dificuldades e becos sem saída por todo o lado. Ou o seu chefe, na sua forma de se enlear incessantemente numa dignidade forçada, como um imperador romano das feiras medievais, suscita uma forma de cómico e de repetição. Acusar incessantemente para destabilizar o governo é exasperante de denegação o que cansa os cidadãos descansados que pensamos estar. Tudo isso é de nível inferior aquele em que se deve situar um desesperado candidato a primeiro-ministro. Algures, a atitude como sentimento não é mais brilhante, o dejá vu, e ouvido. Catarina Martins continua firme nas suas posturas: “ Não deixarei dizer que” isto ou aquilo, “ o BE não tolerará que se faça …” isto ou aquilo. O chefe do governo, com a sua atitude imperturbável, habitado por uma convicção exagerada, é como uma planta lisa e tenaz que se encontra no vaso, algumas semanas de abstinência depois, sem se ter pensado nela em todo o verão. Está sempre presente, quase tanto como o Presidente da República que parece sofrer de claustrofobia.  
O (re)moinho dos atores da atualidade não aproveitou o verão para renovar o seu stock de bobines. Reencontramos as mesmas figuras, os mesmos papéis, em cena como na sala, com jornalistas que, por falta de renovar o interesse dos debates que nos narram, simulam a novidade mudando de tribuna, de estúdio ou horário. O dueto cantante do jornalismo e do político tenta encontrar o caminho das nossas paixões mas verdadeiramente já não consegue. 
Por enquanto, temos ainda a cabecinha atrás, os olhos na retaguarda, à beira dos riachos e dos campos onde estivemos tranquilos, na verdura fresca onde o silêncio nos protegia, nas casas onde dormem as recordações e os rostos daqueles que amávamos. Podem agitar-se como quiserem como se nada tivesse acontecido nas nossas vidas complicadas. Nada poderão fazer que possa captar a nossa atenção além dum vago franzir de sobrancelha ou dum morder de lábios de desgosto. Por todo o mundo, o homem sofre e sangra das actividades do homem; ditadores que se prendem ao poder com armas em punho, migrantes que continuam a arriscar a vida pretendendo atravessar o mar para se juntar ao nosso paraíso terrestre. Paraíso, verdadeiramente? Paraíso das aparências, certamente.
Está um tempo fantástico, e se voltássemos para férias?!

Prático

As férias permitem-nos momentaneamente fazer algumas arrumações que vinham sendo adiadas ao longo dos meses, por vezes dos anos. E reconhecemos todos que os objectos têm uma relação com o tempo que nos derrota completamente. 

Compactam-no, reduzem-no, como se estivessem apressados em desaparecer. Fizemos todos, por diversas vezes, a experiência aquando duma avaria, que um produto comprado há pouco tempo (três ou quatro anos) estava bom era para deitar ao lixo. Ouvimos todos a fórmula recorrente segundo a qual isso “ ficar-lhe-á mais barato comprar um aparelho novo” em vez de substituir uma peça defeituosa, da qual, além do mais, não estamos certos de que ainda se fabrique nas fábricas da Europa Central ou da Coreia de donde eram importadas no longínquo passado de 2008 ou 2009… “ Eu, diz o empregado, no seu lugar, sei bem o que faria.”

Este desgosto comporta um nome correspondendo à vontade presumida dos fabricantes: a “obsolescência programada”. É no momento do fabrico, com efeito, que se pode melhor organizar a deficiência dos objectos, prever o que, neles, se tornará o “elo fraco” que justificará a sua substituição. Um ferro de passar cujo fio, tendo-se desfiado, se torna perigoso? “ Temos muita pena- nem olha para si - não pode ser reparado, porque esse tipo de fios já nem existe.”

Um frigorífico que, de repente, faz um barulho de malhadeira? “ Ganha mais em substitui-lo por um modelo recente, particularmente silencioso. Além disso o motor do seu já nem se encontra no mercado!” Um aspirador que entregou a alma desde a mais tenra idade (três anos)? “ Lamentamos mas a peça já não se encontra em lado nenhum. Posso mostrar-lhe modelos bem mais recentes.”

 Poder-se-iam multiplicar os exemplos destas desventuras exasperantes que vivem os consumidores, em todos os domínios, dos electrodomésticos aos automóveis. Até aos telemóveis - quantos tem espalhados pelas gavetas cada casa?- os “iFones”, a Apple não os repara quando estes já têm dois ou três anos!

Esbanjamento, lixeiras de equipamentos praticamente novos e não tendo ainda atingido o que, num ser humano, se chamaria a idade da razão.

Nostalgia, dirão alguns, dos tempos em que certos amadores podiam fazer funcionar um “404” ou um “Datsun 1200” durante dezenas de anos com a ajuda dum amigo mecânico ou da oficina mais próxima. Do tempo em que qualquer motor ou máquina podia aguentar um quarto de século. Furor de sonhar à quantidade de minerais, de terras raras, de vidro, de petróleo, de trabalho que foi necessário consagrar para produzir todas estas obsolescências programadas. Raiva perante a má-fé dos responsáveis deste desperdício que, com grande lata de “bons comunicadores”, explicam que não, nem pensar, que tudo na sua loja é feito para durar. Que voltem os tempos das reparações e dos reparadores artistas e geniais.

… Nice, Munique, muitos mortos, muitos feridos e muitas perguntas.

Então a carnificina recomeçou? Matam, mutilam, fazem-se explodir, fazem-se assassinar, e nós, pouco depois, convocados frente aos nossos televisores para apreciar a dimensão da desgraça, o balanço dos crimes. Seguidamente, a triste litania das testemunhas, as lágrimas, as imagens terríveis, temíveis e incompreensíveis.
Quantas sequências destas teremos ainda de partilhar antes de a paz regressar à terra, e a “segurança” à Europa. Estes indivíduos doentes que circulam com a morte a tiracolo, com os cintos de explosivos recheados de pregos e parafusos para dilacerar mais ainda, de donde é que saem? Parece que se desenvolvem na terra como a grama, que nada nem ninguém os pode parar, nem mesmo a morte.
O niilismo leva até ao fim a sua fúnebre lógica de morte. Já que aqui em baixo isto não tem interesse nenhum, na nossa sociedade putrificada, então o melhor é fazer o manguito ao sofrimento, aos nossos valores mesquinhos. Pelo menos eles têm um ideal, eles pelo menos têm um ideal do absoluto que lhes foi ensinado nesse oriente complicado, para os lados de Mossul, por ideólogos completamente derrubados pela nulidade intelectual ou cultural que em nada diminui a vitalidade do seu militantismo. Decidiram matar não os seus semelhantes mas sim as suas diferenças e todas as sociedades que os enfrentam.  
De cidade em cidade, semana após semana, variando o prazer sobre o modo das suas matanças- camiões minados, explosivos espalhados ou em stock, aqui metralhadoras, mais além punhais ou armas brancas, incêndios, tiros de snipers escondidos nos tetos, decidiram desesperar não somente o ocidente maldito, mas tudo o que se opõe à sua autossuficiência mental. Das praias tunisinas ao Egito antigo, passando pela Alemanha e França, da Costa do Marfim à Indonésia, a humanidade inteira coloca-se a mesma questão: onde é que se pode estar em segurança? Tornámo-nos todos o “elo fraco” da segurança colectiva, apesar do terror ainda não se ter insinuado perto de nós. O campo de batalha encontra-se efetivamente enraizado nas nossas mentes.
Seria preciso voltar algumas décadas atrás e perguntar-se qual terá sido o milagre para nos termos desembaraçado do terrorismo palestiniano dos anos 70 ou das loucuras do Exército Republicano Irlandês (IRA) ou da ETA em Espanha. Considerando o conjunto dos ciclos de violência gratuita que visam inocentes ou os supostos “traidores” à sua causa, pode-se arriscar uma previsão: esta loucura terá fim um dia. Esse dia, dia abençoado, marcará o fim do fanatismo, esta arma de destruição maciça das inteligências e dos corações. A sua fonte está claramente identificada. É uma certa necessidade de absoluto, um gosto desmedido pelo sagrado que leva para o “djihad” (guerra santa) os assassinos da bandeira negra.
Sim, os assassinos de Bruxelas, Paris, Nice ou Munique são fanáticos duma causa pela qual lhes parece ser legítimo morrer. Porque lhes é apresentada uma perspectiva de vida, do além, no meio de alamedas de flores brancas e de virgens submissas aos seus desejos de bestas. Aborrecem-se nesta terra e lá em cima encontrarão um prazer intenso, um poder multiplicado. Mas isso ganha-se com mérito, foi-lhes ensinado, com tantas mortes e sangue nas mãos, tantos anos de paraíso ganhos.
Que podemos nós responder a tudo isso ? Cair também no fanatismo? Já o tentámos, outrora, e não se pode dizer que tenha sido um grande triunfo. As cruzadas deixaram um sulco de péssima memória em todo o Oriente e as guerras de religião desonraram a Europa e as suas crenças. O imperialismo das potências ocidentais deixou fronteiras artificiais, duma geometria absurda, negando as comunidades locais. “Estamos em guerra”, repetem os dirigentes deste mundo. Não deixam de ter razão. Mas esta guerra dum novo género, guerra contra as sombras e fanáticos, como é que se pode conduzir eficazmente? Bombardear quem, onde? Para nós europeus, a identidade é uma interrogação permanente, para eles é uma religião. Cuidado.
É preciso contar talvez com as mulheres, com as mulheres muçulmanas, com as filhas. Elas tiveram um papel de relevo na primavera árabe. As mães e as irmãs mais velhas são as únicas a saber e poder encontrar o caminho da inteligência dos temíveis terroristas. É a elas que é preciso pedir ajuda e reforço, desde a escola primária. Para pôr um freio a esta virilidade desmedida que se afirma através destes crimes inaceitáveis, é preciso dar rapidamente a força e o lugar à legitimidade feminina como princípio social. Mais uma ingenuidade, dirão alguns. Sim, mas a doçura feminina, nunca foi experimentada. Dir-se-á que afinal há muitas raparigas nessas redes criminais, sim, mas é para fazerem como os homens, precisamente.