Adriano Valadar

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A educação e a(s) vida(s)

O que é educar e ser educado? Peço desculpa por colocar a questão desta forma abrupta, mas ocorre-me sempre no início do ano escolar provocado pelo ruído rouco dos colegas e de alguns debates que começam já a surgir sobre reformas que se vislumbram.

Educar não é uma ciência mas sim uma história, uma narração. Crescer, aprender, isso não se avalia forçosamente nem sempre, e não se pode aparentar ou reduzir simplesmente a um lucro, a aquisições. Não. Saber ler, escrever, contar, isso está resolvido. Assim como descobrir, obter, experimentar. Conseguir e não conseguir. Ter sucesso e não ter sucesso, conseguir na vida e conseguir a vida. E isso não se produz nem sempre nem forçosamente ao mesmo ritmo para todos, diria mesmo que isso não tem forçosamente nem sempre a mesma intensidade, o mesmo valor para cada indivíduo. Que tudo isso jamais bastará.  

Seria preciso reconhecer antes de qualquer discurso especializado, sabiamente técnico sobre a educação, o seguinte: crescer é sempre um falhanço. Que há sempre numa vida construída uma renúncia necessária e fecunda. Quero dizer que foi necessário, como sempre, como para cada um de nós e a sua pequena trajetória tremente, tão emocionante quanto indecisa, na existência, que bastaria um nadinha para que não fosse aquilo em que me tornei. Poderia ter sido outra pessoa, melhor ou pior. Não sei se outras vidas me esperavam mas cresci com o pensamento, que ao mesmo tempo me desfazia por dentro, que me fazia acelerar o coração, que outras vidas eram possíveis, e que na maior parte, estas outras vidas, não poderia vivê-las.

Crescer, alguma coisa se perdia, se destruía incessantemente e nunca consegui segurá-la. Ora talvez isso tenha também feito parte da minha educação; aprender e aceitar que uma parte da minha vida pudesse fugir-me, que não pudesse ser explorada. Educar, é abrir o outro à experiência da vida onde nós nem sempre temos a possibilidade de viver como desejaríamos, segundo os nossos apetites, os nossos sonhos, as nossas frustrações. E que tudo isso, apetites, sonhos e frustrações, sirva para construir o somatório nunca certo e justo, nunca completo, duma existência honesta. A honestidade, deveríamos sabê-lo, nunca é uma conta redonda. Não surge fazendo unicamente preencher aos outros todas as linhas da grelha. Cada um de nós pode pretender ter mil e uma vidas, mas todos devemos fazer a aprendizagem da fragilidade de cada vida vivida, assim como da insignificância duma vida entre outras vidas.

Lembro-me da réplica dum autor (Flaubert? As citações sempre foram cigarras para mim!) que dizia qualquer coisa como: “Nós as pessoas insignificantes, com as nossas palavras, os nossos atos, preparamos a vida de muitos heróis,” Nós não seremos forçosamente heróis mas isso não significa que não participemos no heroísmo da existência. O caminho dos nossos sucessos é muitas vezes mal combinado com a mediocridade das oportunidades, mas convém então pensar que a educação não é somente um acumular de cultura, de saberes, mas sim e profundamente uma transformação da existência, dando tanto o desejo duma vida vivida como a consciência de não poder viver todas as vidas, todas as experiências.

Ensinar a crescer, no meio dos outros, e todos os outros, é tolerar com paciência, e se possível com amor, que o nosso sentimento de exceção, os nossos desejos mais fortes, sejam também confrontados com a nossa insignificância. Educar, é assim permitir a cada indivíduo de se aproximar da satisfação dos seus desejos e das suas expetativas sem por isso se transformar em alguém intolerável para os demais, como para si mesmo.     

Talvez assim se pudessem evitar, por exemplo, alguns dos comportamentos que invadem tantas vezes a imprensa, e que revelam o quanto certos jovens carecem precisamente dessa educação, a saber que uma vida bonita e inquieta, é uma vida feita de tudo o que vivemos e de tudo o que não vivemos, das experiências vividas assim como de todas as que nunca tivemos. E de facto, o que obtiveram eles, e que desejavam tão violentamente? Uma insatisfação sempre recomeçada, uma vida nunca é vivida verdadeiramente porque viver nunca é querer viver tudo, permitir-se fazer tudo, ou então tem que se fazer da satisfação um ídolo. Em quê que se tornaria então o sonho, a fantasia, a esperança, as nossas vidas desconhecidas que tornam a nossa vida tão misteriosa e tão desejável? Há uma forma de valentia viver no meio de todas estas vidas vividas e não vividas, possíveis e impossíveis, sonhadas, evitadas, desviadas, e não possuir nenhuma delas. Estou a exagerar? Talvez, sim. Mas proponho dois pequenos paradoxos. É possível que nos dirijamos mais seguramente em direção a um mundo que se harmonize com os nossos desejos sem por isso viver a realização de todos eles. E as nossas vidas só serão plenamente vividas não tendo vivido tudo. Oh meus amigos, como a vida é bela!  

Os corpos deste verão

O corpo no verão exibe-se ao longo das praias ensolaradas. Mas procura também esconder-se atrás dos véus. O que diz o corpo da nossa comunidade humana?
Neste verão já longo, assistimos por todo o lado à exposição máxima das carnes. Não só nas publicidades, na imprensa em geral, mas também na rua. São exibidas para fazer vender, expostas para se dar a ver. Sejam bonitas ou feias – falando das corporalidades dos homens assim como das mulheres – estas submetem-se a determinados padrões, à moda impostFa. Ao ponto de agastar por vezes o olhar mais avisado. 
A esta exposição vem estribar-se para algumas mulheres a reivindicação de não se expor. De enfrentar o olhar dos outros protegendo-se através do que se chama, nos atalhos da imprensa, o burkini. Recusa de exposição para poder acompanhar os filhos à piscina, ou exposição das carnes cobertas para acompanhar uma exigência de reconhecimento? Os corpos mostram-se ou escondem-se, mostram-se para reivindicar uma liberdade, escondem-se para manifestar uma liberdade. 
Mas outros corpos, nestes últimos dias foram dados a ver. Corpos meio cobertos e no entanto expostos; os de Óscar Ramírez e da filha, afogados no Rio Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos. 
 Corpos fotografados, dados a ver, que aparecem como o símbolo de outros corpos que nós não veremos nunca; cadáveres nos desertos do Novo México, os afogados no Mediterrâneo, os torturados nos campos da Líbia, os esfomeados do Sudão, ou os detidos nos gulags chineses.  
Carnes, corpos, densidade e fragilidade dos tecidos e dos ossos, aparição única de cada pele, mistério combinado dos órgãos … É a nossa humanidade que se expõe e se esconde. Na Bíblia, pode apresentar-se na sua inocente nudez ou esconder-se na vergonha (Génesis), exaltar a graça e a fruição que oferece cada membro (Cântico dos cânticos), exibir o poder do desejo (David e Bate-Seba). Carnes e corpos podem ser também submetidos à sede, à fome, à execução sumária, individual ou massiva. 
Mas, essencialmente, é na carne que se dá a conhecer o Deus dos cristãos. A incarnação duma divindade ou reconhecimento duma humanidade verdadeira, divina, na pessoa de Jesus de Nazaré, a carne é radicalmente colocada no centro das atenções no cristianismo. No centro das atenções ou pelo menos reconhecido como o único lugar de encontro possível com a transcendência, porque “ nunca ninguém viu Deus” (João 1, 18). No entanto não sabemos nada do corpo de Jesus. Nenhum tipo de exposição daquilo que o caracterizava, nenhuma marca tampouco que ele tenha querido esconder.  
Se está exposto, é como um corpo esquartejado na cruz. E se está escondido, é enquanto corpo ressuscitado. Irrecuperável como corpo crucificado, demasiado escandaloso para um Deus. Irrecuperável enquanto corpo ressuscitado, demasiado ausente para constituir uma prova de Deus a ser administrada aos não-crentes. Mas não é por isso que o cristianismo é um inimigo dos corpos, como nos foi apresentado durante muito tempo.   
Hoje ainda, o discurso dominante afirma que seria uma religião onde se subjuga o corpo, onde se esquece a corporalidade. 
Com efeito, o que convém trabalhar é o nosso modo de tomar parte na “luta dos corpos” nos nossos dias. 
Nem sublimar nem negligenciar o corpo: reconhecer que é fonte de alegria, de prazer, de vergonha e de sofrimento, reconhecer que o mesmo tem o direito de se esconder e de se expor, sem quaisquer constrangimentos de alguma espécie que não seja a dignidade daquele ou daquela que olha.
Reconhecer por fim que o escândalo maior é o dos corpos martirizados, crucificados, que convém cuidar e tratar. E, talvez, ressuscitar.

O meu touro querido

Provocado pelas minhas saídas a Espanha com a escola, memórias dos lameiros da infância mirandesa, que sonho esquisito tive a noite passada! À minha frente estendia-se um circo de pedra em ruinas. Distinguia-se ainda muito vagamente a forma de origem. Ao centro da arena destruída, um animal brutal e cintilante pronto a atacar. Fixava-me com os seus olhos de ouro. Parecia convidar-me para o combate. Não compreendia mesmo nada do que se estava a passar. Sou muitas vezes algo cobarde, oh meus amigos. Quando o ouvi dizer-me, rapando com os seus cascos de areia onde tantos antigos combates tinham sido travados: estás no lugar onde se encontram um dia todos os que não conseguem tomar a decisão certa. Não posso revelar até ao fim do texto como eu pude sair deste sonho, mas vi-me, nesta arena, a partir dos traços ridículos do rapazito franzino, hesitante e introvertido que fui nas terras de Miranda nos anos sessenta e princípios de setenta.

Confesso que me persegue a questão de saber se tenho tido na verdade a coragem ao longo da minha vida de rachar, de abrir caminho, de decidir, para avançar. Este tipo de combate, foi efetivamente conseguido? De que parte ferida da minha infância? Interrogo-me sobre aquilo que a minha mãe e o meu pai puderam transmitir-me da coragem, ou mais dolorosamente, o que eles não puderam fazer, por fraqueza ou compaixão perante a violência da vida, confiar-me um pouco dos seus próprios combates, conseguidos ou abortados. Teriam pensado que eu acabaria por encontrar sozinho alguma chama necessária que desejariam secretamente que eu descobrisse em mim num qualquer seminário? Não sei ainda hoje, sinceramente, se este ardor pode ser transmitido aos nossos filhos. O combate a ser travado contra as nossas próprias derivas.

Gostaria de poder descobrir a fonte da coragem de viver. Aquela que ajuda a atravessar os desafios, as provas permanentes. Face ao touro do meu sonho, dum negro lustroso como certas noites de verão em que temos o sentimento de que tudo pode ser abalado por qualquer acontecimento, sei que se travava no meu interior o drama da minha vida. Aceitar a luta, aceitar receber o desafio ou renunciar. E talvez, viver dignamente, oh meus amigos, não passe deste sim dado ao combate, ao mistério vivo e furioso que se nos apresenta todos os dias e até ao fim. Menos o combate ele-mesmo do que a afronta ; este frente a frente, este cara a cara. Fixar o animal que nos amedronta e descobrir no seu olhar o nosso próprio rosto.

Observo os meus dois filhos crescer demasiado, penetrar também no labirinto da existência contemporânea. O que levam eles do poder necessário para avançar e que eu lhes tenha dado e confiado, eu que tantas vezes preferi recuar, adiar? Como encontrar esta força que salva, a opinião certa, a decisão conforme ao Bem, sobre aquilo que é necessário apreender ou o que não temer, aquilo que se chama coragem? A força a encontrar nas adversidades e nas dores, nas alegrias, e nos medos. Creio que podemos, que temos o dever mesmo, de tentar transmitir tudo isso aos nossos filhos, mas essa transmissão é também um combate a travar contra as nossas próprias errâncias. Os nossos medos gelados ou febris. 

   Creio também que esta coragem de viver, cada um é convidado a encontrá-la sozinho, criança, contra a vontade dos pais ou mestres, em tudo o que desmantelamos, na reserva dos nossos medos e das nossas resignações. A decisão de viver, de enfrentar a vida viva, é um tesouro escondido na descarga da História como na dos nossos pequenos lares que nós gostaríamos, ingenuamente, que estivessem protegidos por muralhas insuperáveis.

Para que a transmissão da vida viva se produza realmente, é preciso deixar vir o touro à arena, essa força bruta que nos mete medo e aceitar manter-se à sua frente – o desejo de viver – como à beira do furacão. Nesse frente a frente, podemos lembrar-nos dos nossos pais, de todos aqueles que nos terão guiado no caminho da existência, contudo sabemos bem que para continuar estaremos sozinhos frente à coragem de viver, de decidir viver. No meu sonho portanto, no momento de ver o touro a atacar-me, acordei bruscamente. 

Esta arena meio destruída e invadida pelas ervas loucas do tempo, era a minha vida. Tinha em sonho enfrentado o meu próprio medo de viver. E este touro brilhante de suor, era o meu coração que me desafiava. Que me pedia para escorraçar todos os medos gelados e suados, os pensamentos perigosos, as sombras que eu não quisera enfrentar e que já não podia evitar. Investindo sobre mim, o meu touro querido juntou-se a mim para nos reconciliarmos, eu o menino que ainda sou. Agora sei que todos os meus medos não precisam de ser vencidos, mas sim combatidos, devo lembra-me disso para sempre. Tenho de o dizer a todos os que amo. As noites todas que temos de atravessar não reclamam forçosamente a luz, todos os monstros que nos assustam e que vêm desafiar-nos não atacam para nos destruir, mas unicamente para nos reconciliarmos connosco mesmos, com o nosso pobre coração tantas vezes despedaçado.

A penúltima estadia

Não se trata duma questão de créditos públicos ou de meios privados: nunca será agradável dizer-se, quando entrarmos para ali, voluntariamente ou forçados, num lar de terceira idade onde será o nosso último alojamento enquanto vivos, a nossa penúltima morada. Qualquer que seja o nosso estado físico ou mental, qualquer um compreenderá muito bem a mensagem e quando nos “depositarem” provisoriamente, é bem claro que é para passar entre essas paredes novas o resto dos nossos dias.

Que lhe chamemos Ehpad, lar de terceira idade, residência sénior ou Residência dos sonhos o resultado dum internamento desses é sempre o mesmo aos olhos dos visitantes. Se os houver. Estacionam o carro no parque, com a maior das delicadezas. Através das enormes portas de vidro, entreveem as cabecinhas branquinhas em cadeiras rolantes ou fixas, cabeças inclinadas para o chão ou, quando dormem, para o lado.

Depois de se atravessar a porta é possível saudar a companhia toda. Ninguém liga nem responde aos “bom dia minhas senhoras e senhores”. Na receção não está ninguém. Fugindo pela esquerda, vai-se por corredores onde outros pensionários se encontram estacionados num silêncio pesado. Parecem estar mais ou menos bem. Cruzam-se olhares cansados, esboços de sorriso, gestos com a mão, desajeitados e pouco naturais. Por fim vê-se chegar uma blusa duma ou doutra cor. “Venho visitar a Sr.ª Tal.” “Quarto 22, primeiro andar”. Deve estar a terminar a sua sestazita de certeza.” Com um gesto, indica o elevador. Será, nesta fase, o único contacto com a administração da instituição a quem foi confiado, um dia de extremo cansaço e de péssima consciência, o cuidado de guardar o vosso ente querido, aquela senhora idosa algo desorientada que andava meio perdida na rua ou se enganava à procura do seu próprio quarto.

Aqui, toda a gente sabe, toda a gente adivinha e é perfeitamente claro. Não se está ali para brincadeiras mas sim para esperar a morte, o mais calmamente possível, sem desarranjar a vida dos ativos. Para entreter algumas ilusões, deixam levar um móvel ou outro bem encerado com gavetas onde estão conservados os tesouros dos tempos de glória; fotografias dos netos, folhetos sobre o Lar, imagens da virgem Maria ou de S. António, fotos de Fátima, um bloco de notas onde já não há força para escrever seja o que for. Uma agenda vazia. Rebuçados para a tosse. Um fio de cor sem qualquer significado. Uns postais de boas festas. Um livro talvez.

Com efeito, o que significa “esperar a morte”? Estar mergulhados numa meditação profunda, estruturada, com entrada, desenvolvimento e conclusão? Não, será mais uma lenta cascada de pensamentos sem ordem nem estrutura. Sonhos lânguidos, imagens moles que circulam no que resta de sensações e de cérebro vivo. Espera-se pela hora do almoço anunciada pelo remoinho ruidoso dos carrinhos para o lado do refeitório. Blusas coloridas dançam à volta, uma delas compõe a manta mal posta no colo dum senhor, endireita umas pobres costas meio inclinadas.

Durante a tarde, simpaticamente, são propostas “actividades” ou “animações” que agradam muito a alguns e muito pouco a outros. Porque mesmo aqui há espíritos mais fortes, geralmente os homens, que guardaram a força de desprezar tudo o que está ao seu alcance, homens que, toda a vida, se mostraram esquisitos perante o colectivo sobre o tema do “muito pouco para mim isso”. Envelhecemos tal como fomos. A senhora trémula treme com todos os membros enfraquecidos, a medrosa tem medo até da sua sombra e sobressalta ao mínimo ruído, o amuado melindra-se incessantemente.

Todas estas descrições serão excessivas? Na ótica de muitos, parecerão mesmo desesperantes, caricaturais e demasiado negras. Contudo são imagens que nos vêm espontaneamente ao espírito quando ouvimos, episodicamente, que o debate público versa sobre o tema dos lares de terceira idade insuficientemente dotados em créditos, em lugares, em pessoal, em conforto e em número.

Pode acontecer que algumas recordações de felicidade fugitiva saiam do cérebro quando se pensa num aniversário organizado com os filhos para os 95 anos da tia Maria ou quando a avó perto dos 100 anos que adorava Jesus e o vinho do porto mostrava um pequeno sorriso quando bebia um copinho. Mas estes momentos de alegria cheios de sorrisos e de recordação dos tempos passados seriam de alegria aos olhos dos pensionários eles-mesmos? Ficávamos contentes do efeito aparente das nossas visitas pouco frequentes. Aliviávamos as nossas consciências. Sabíamos que repartiríamos para a “verdadeira vida”, fora, com o ruído dos carros, das motas que atravessam a cidade como foguetões estridentes. À noite, projetávamos os nossos próprios futuros. Como é que serei eu com essa idade? Qual o melhor lugar para se preparar para morrer? Num hotel cheio de sol no Algarve, numa casa na aldeia? No hospital onde nos conduziria talvez a doença que não esperávamos ter? Em casa, claro, sonhávamos com isso: onde a dignidade dos humanos passa por uma autonomia continuada e com referências estáveis. A nação não sabe o que fazer com os seus mais velhinhos, estes além de seniores, aqueles para além da terceira idade, estas pessoas da última idade, impotentes muitas vezes, esgotados e desfeitos quase sempre, perdidos, e que ficam muito caros à comunidade. Os profissionais que os acompanham para as últimas circunstâncias das suas existências são duma entrega sem limites: faríamos nós a metade do que eles (sobretudo elas) fazem por esses campesinos? O seu tratamento é um dos maiores escândalos da nossa República. Antes de nos lamentarmos sobre a nossa sorte de vivos provisórios pensemos nesta parcela de humanidade que amontoamos nestas penúltimas estações antes da auto-estrada da vida eterna e que tenta conjurar o medo ancestral perante a morte e resistir à angústia da nossa finitude.

Na sabedoria da noite, deve haver lugar para a serenidade e o abandono. Temos a vida toda para nos prepararmos. Agradeçamos desde já aos que nos poderão ajudar, perto do fim.

O espírito dos pássaros

Com a primavera volta o tempo dos pássaros. Desde a aurora, cantam, celebram alegremente o nascimento do dia, lançam-se em vocalizações de alegria, alertam os humanos de que um acontecimento considerável se está a produzir: a aurora dum novo dia, o nascer do sol, o regresso da luz. Fantásticos mensageiros, infelizmente em vias de extinção…

Tudo começa suavemente, de forma quase imperceptível, todos os dias por volta das 6 horas. Trata-se em primeiro lugar dum chilrear agudo, isolado, furtivo, de seguida acompanhado por um ou dois outros que são convocados, que se respondem, parecendo divertir-se nestas insólitas e cristalinas notas no silêncio das cidades adormecidas. Nem que não tenha o hábito de me levantar muito cedo, nada me é mais agradável do que que ter o privilégio de ser acordado desde a aurora para ouvir o canto destes pássaros misteriosos que posso adivinhar tratar-se de melros e pintassilgos.

Há já algum tempo que esta alegria se estriba também numa grande tristeza, porque me pergunto, como tantas outras pessoas, durante quanto tempo ainda poderemos ouvir essas risadas e esses trinados. Sabendo que na Europa se perderam 421 milhões de pássaros em três décadas, os efetivos de certas espécies aviárias declinam inexoravelmente, essencialmente nos nossos campos onde pesticidas e herbicidas se tornaram os dois mamilos do massacre. Adeus cotovias dos campos, pintassilgos melodiosos, canários negros e pombos-torcazes? Adeus passarinhos e perdizes? Como o desaparecimento anunciado de tudo o que era imemorável, estes anúncios fazem-nos tremer e apertam-nos o peito.

Metáfora das catástrofes que vamos vivendo, o fim das aves como o de tantas outras criaturas vivas remete-nos para a nossa indiferença, para a nossa surdez enraivecida, para o arsenal das nossas loucuras. Há certamente centenas de insectos que desaparecem também, mas os pássaros estão ligados a um simbolismo mais forte e mais significativo apontando para a elevação e para a liberdade. 

Pelo menos é o que nos ensinam as diversas tradições espirituais; a sufista, a Conferência dos pássaros de Farîd-Ud-Dîn’Attar (chantre do amor universal) ou a católica.

Religiões e mitologias sempre lhes reservaram um lugar simbólico de primeiro plano, reconhecendo-lhes uma importância capital a fim de abrir o caminho sombrio dos nossos destinos. A sua forma de estar no mundo, em harmonia com os ritmos naturais, designa-os como sendo “os mestres pensantes”, apesar do homem evitar converter-se à humildade e não se ver como um mero elemento entre outros no planeta Terra. Na religião católica os pássaros atravessam a caridade, a compaixão, o louvor de muitos santos como S. Isidoro ou S. Francisco cujos sermões às aves são habitados por uma poesia inesquecível: “Enquanto S. Francisco lhes dizia estas palavras, todas as aves começaram a abrir o bico, a alongar o pescoço, a esticar as asas e a inclinar respeitosamente as pequenas cabeças em direcção ao solo, e a mostrar através dos movimentos e dos seus cantos que as palavras do Pai Santo lhes causavam uma grande satisfação. E S. Francisco alegrava-se e deleitava-se com elas, e maravilhava-se ao ver uma tal multidão de aves, da sua tão bela variedade, e da sua atenção e familiaridade…”.

Os pássaros oferecem-nos também o espetáculo de muitos momentos de bem-estar, de diversão, de quietude, de despreocupação e serenidade.

Não precisamos de ir mais longe. Ver uma galinha tomar um banho de terra dá-nos uma ideia do que pode ser uma das maiores felicidades do mundo.

Acreditem ou não, mas quando terminei de escrever este texto, um belo melro com as suas penas negras brilhantes e um ar curioso fez-me uma visita durante alguns instantes no peitoril da janela. Alma dum poeta descontente? Poder tutelar ou um anjo da guarda? Ignoro completamente a razão, mas a sua presença muda e segura ainda me perturba agora, como a luz de cada manhã de maio.

A mais bonita metade do céu

A sabedoria chinesa ensina-nos desde há séculos: “As mulheres carregam a metade do céu.” Contudo esta homenagem é algo ambígua se se deixar perceber que os homens carregam a outra metade e que as mulheres só transportam o céu e em nada a terra. Cada dia, sábio ou não, mostra-nos que as mulheres carregam o fardo do mundo e das civilizações, na totalidade, a começar pela espécie masculina que se distingue pela sua violência, pela sua cobardia, pelo desprezo por tudo o que não é macho, e pela sua fundamental brutalidade. As mulheres ao aceitar carregar a metade do céu consentem, efectivamente, em transportar a totalidade da humanidade e a sua condição, que não é ela tão famosa por vezes.

Estas encontram-se na primeira fila de todas as infelicidades porque elas sabem chorar, algo que os homens já não fazem há centenas de anos, desde o fim das guerras antigas. Os heróis de Homero são os últimos na história universal a ter derramado lágrimas de tristeza, de pena e de luto. As mulheres, elas, nunca cessaram de o fazer. Nas filas de populações famintas de refugiados que se arrastam por caminhos de lama dirigindo-se para os inúmeros campos de refugiados, elas carregam claramente aos ombros e às costas a metade da terra. A mais rude, a mais pesada, aquela que os homens deixaram atrás deles. Eles confiaram-lhes a carga toda e ficaram nos terrenos de combate para continuar o massacre e poder alimentar os ódios.

Frente às tendas onde se reúnem com as suas crias com olhos grandes e tristes, continuam a fazer boa figura, esboçando pobres sorrisos sem alegria perante a evidência da fatalidade. Elas ficam aliviadas por serem salvas, contudo infelizes. Perderam toda a liberdade de ir e voltar, toda a autonomia, que já não tinham antes quando, reclusas e pioneiras dos maridos com quem tinham sido obrigadas a casar, não tinham qualquer margem de manobra para a sua liberdade. Só existiam para servir. Como se fossem objetos domésticos.  

E aí estão elas a chorar os maridos.

Quando se fala no nosso país da “ condição feminina” e da sujeição da mulher e da sua dependência, esquecemo-nos de que, na terra, uma imensa maioria de mulheres vive praticamente em escravatura sob o jugo masculino. É apenas exagerado afirmá-lo desta forma. As nossas preocupações nas carreiras e igualdade homens-mulheres são, duma certa forma, preocupações de ricos, de pessoas mais ou menos bem inseridas na sociedade. Pensemos no que vivem milhões de mulheres indianas, chinesas, árabes, indonésias, africanas ou da América latina relegadas para segundo plano da humanidade, negadas na sua identidade própria, na sua dignidade e nobreza de mulher, de mãe e de esposa. Manipuladas como se fossem mercadoria pelos guerreiros ébrios que, por todo o lado, fazem sangrar o género humano. Violadas e abandonadas como farrapos depois da batalha.

O cansaço da esperança

Recentemente, o papa Francisco dirigindo-se às pessoas consagradas, lembrou os danos para a sua igreja, falando de “cansaço da esperança”. A espantosa associação destes dois termos, na boca dum papa que sempre rejubila de alegria faz mergulhar qualquer pessoa que se esforça por manter a esperança a partir das duas extremidades que são a evidência da tristeza do ser humano que sofre o peso da tragédia na história, na sua história. Tudo isso afirmando o ponto Ómega da fé cristã que permanece na ideia de que tudo isso tem um sentido e que no fim de tudo haverá para cada um uma luz acolhedora e pacificadora num paraíso com a cor das nossas esperanças e onde Deus guarda o nosso lugar bem ao quentinho. Ao lado daqueles que nos precederam.

Mesmo assim. Há razões para desesperar por vezes quando nos encontramos confrontados, direta ou indiretamente, com a morte de alguém. Sobretudo se era jovem, bonito, e se tinha tudo para ser feliz hoje e amanhã, realidade e promessa. De donde lhe veio a ideia de acabar com a relação humana, de cortar as pontes com os outros? Onde nasceu essa necessidade interior que o levou a destruir brutalmente, duma só vez, o diálogo com os seus? A levar-nos todos para o universo do insondável silêncio racional e do aparente vazio duma doce conversa interrompida?

A morte não se explica. Não se julga. Deixa depois da sua passagem um sulco de incompreensão e de culpabilidade. Não releva duma mecânica explicativa do tipo causa/efeito. É mistério, escuridão, infelicidade espessa simplesmente. Fugidia. «Não percebo». Ligar este tipo de acontecimentos ao conceito de esperança como tentam fazer os mais valentes, nestes casos, não basta para convencer ou tranquilizar os que sobrevivem a estas provas.

Vive-se o luto.

Não, os mortos não estão connosco, nós é que queremos - custe o que custar – acreditar e permanecer perto deles. Quem já teve a experiência da morte duma pessoa mais próxima, esta injustiça muito frequente – e estamos todos nesse caso – sabe muito bem que o voluntarismo da esperança é uma arma com uma eficácia limitada, que não funciona porque o seu gume perde rapidamente o fio. Qualquer experiência do luto é a da vontade de tentar manter um contacto com a pessoa amada apesar da evidência e da distância que foi posta entre ela e nós.

A morte separa, arranca, e é preciso muita fé ou amor para se convencer de que não passa da primeira etapa dum percurso que leva em direção a uma reunião futura. A morte está efetivamente no centro do que provoca este cansaço de que fala o papa. Cansámo-nos de exercer continuamente a virtude cristã que consiste em dizer-se a propósito de toda a infelicidade que aparece que não passa duma etapa em direção à nossa felicidade futura, um mau momento a passar se tentarmos considerar o resto do caminho. Há também esta insuportável ideia repetida em certas épocas não assim tão distantes de que estas “provas nos são enviadas por Deus” para alimentar a nossa fé e testar a nossa capacidade de esperança. Compreende-se menos o (“ Deus mo deu, Deus mo levou …”) e ainda bem. A esperança cristã, à força de ser levada a contribuição, usa-se e cansa-se se a utilizamos muito. Seria preciso reinventá-la cada manhã.

Há revolta no absurdo? Há, mas também há absurdo na revolta. Aconteça o que acontecer há muitas auroras. Frescas, cinzentas ou radiosas, pálidas ou coloridas. O fundo de tristeza que dá o cansaço da esperança não pode ser combatido por outros sentimentos nascidos do prazer de existir, da paixão de estar no mundo, consigo mesmo, com os outros? Apesar da solidão profunda que deixa a morte dum ser querido continua, na atualidade das nossas existências de rescapados provisórios elementos de felicidade possível. Luzes nas nossas noites.

Há pessoas que nos rodeiam e que apertamos nos braços, seja por ternura, amor, seja por uma amizade tenaz, forte. Há músicas celestiais, Bach, Mozart, Schubert, Chopin, óperas admiráveis que fazem palpitar o coração.

Os filmes magníficos donde saímos perturbados nos nossos afetos e onde as inteligências procuram seguidamente os alimentos, pelo tempo que que teremos para resistir nesta terra, nesta vida. Há livros que nos impedem de morrer estúpido e que nos prendem pelo que há de mais nobre no homem; o espírito e a cultura. Há a beleza duma paisagem, a beleza duma mulher, a ternura, dada ou recebida, a oportunidade duma carícia, o azar dos encontros entre milhares de células humanas que se cruzam e se entrecruzam nas nossas terras, nas nossas cidades. Há um lindo gesto de solidariedade dos outros em relação a nós mesmos, ou o contrário, que aquece o coração tanto do que recebe como do que dá. Há o sorriso dum bebe que descobre após alguns meses neste planeta que a vida, segundo parece, vale a pena ser vivida. Há a ternura duma mão que se aperta do velhinho à velhinha esposa na noite dum mundo cada vez mais difícil. Há a ternura desordenada da mão duma mãe velhinha que acaricia no regaço o seu filho cansado. Existe a beleza dum êxito desportivo, como nós seríamos incapazes de o fazer, deixando aos mais fortes o cuidado de nos maravilhar. Há tudo isso e muitas mais coisas que valem por preencherem as nossas vidas, por revigorar as nossas esperanças terrestres.

Tudo isso não impede em nada de considerar com lucidez e por vezes raiva a estupidez humana presa ao choque de interesses e ao gosto pelo poder. Tudo isso não impede de tomar partido com firmeza pelo partido da justiça e da verdade contra a generalização da falsidade e da maldade. De denunciar os impostores que, pelo que parece, nos nossos dias, são cada vez mais numerosos entre os dirigentes do mundo. Há isso e muito mais coisas que valem a pena por preencherem as nossas vidas, por alimentar as nossas esperanças terrestres.

Depois de tudo isto pode haver, entre os prazeres da existência o de considerar a batalha planetária que vivem, cada um na sua especialidade, os imbecis e os escroques na sua competição pela estupidez recorde e a idiotice máxima. Pode ser um prazer estético, denunciar tudo isso porque, apesar de tudo é preciso, duma forma ou de outra, denunciando as travessuras do tempo, reforçar as nossas defesas para melhor vingar o cansaço da esperança, rebaixando-o ao estatuto de tentação.

As “pelotas” do desespero

Os inícios de cada ano são sempre difíceis. Persiste tudo aquilo que o ano anterior não conseguiu “desembaranhar”, e todas as dificuldades, segredos, enigmas, desafios, que colocou na paisagem das nossas existências enroladas agora em cachecóis de nevoeiro. A minha mãe repete isto com alguma regularidade, a vida é complicada (eufemismo). No entanto, a sua vida está reduzida agora a uma infinidade de nadas que se repetem, quase transparentes como as suas mãos que ainda vão fazendo meias coloridas com pelotas da Rua Nova. Mas as nossas vidas são, até ao fim, o lugar frágil e precário destas lutas obstinadas, por vezes grandes mas a maior parte das vezes sombrias, e sem que tenhamos verdadeiramente a certeza nem de vencer nem de ter totalmente fracassado. Será que vamos sempre saber amar os outros? E dizê-lo? E nós mesmos, poderemos contar sempre com o seu amor? Como é que é possível conciliar os desejos, os deveres, as obrigações, as vontades? E onde encontrar a força para cada dia avançar alguns passos mais?

Guardei da minha infância a recordação de muitos serões densos, envencilhados como pelotas de fios, onde nenhum de nós – com um pai muito ausente – sabia como alegrar um pouco os outros nem desfazer os cordéis desta existência confusa que formava uma infinidade de minúsculos nós embaralhados.

Na pequena lojinha de cada vida humana, todos gostaríamos de ter tudo arrumado de forma impecável, todas as cores da alegria e da tristeza bem distintas, as dos sucessos e dos fracassos. Gostaríamos de encontrar, sem ter de procurar muito, uma solução para cada um dos nossos problemas, uma resposta simples para as nossas perguntas. Mas ficamos quase sempre confusos, embaralhados numa confusão de fios. Somos então obrigados a mergulhar nas traseiras da loja, mal iluminada, e na desordem, sem sabermos muito bem se isso nos irrita, nos assusta ou nos comove.

Espaços sentimentais, bazares da existência, mercearias desertas mantidas pelas mesmas velhas pessoas, as últimas que sabem onde se encontra o quê, em que gavetas sombrias e desordenadas. Ninguém, a menos de ser obrigado, pretende entrar nesses escuros e íntimos armazéns dos nossos corações e das nossas almas. Estas lojinhas de humanidade onde cada um tenta, desajeitadamente, puxar uma ponta do fio da sua vida e das suas inúmeras pelotas que se chamam desespero, desencorajamento, inveja, discussão, rancor ou tristeza… A ideia finalmente não é tanto encontrar o fim, mas sim conseguir a paciência de desfazer uma pouco mais cada dia estas temíveis pelotas. E ter a curiosidade de visitar o claro-escuro da nossa loja, procurar os sentimentos mal arrumados, as nossas emoções, os projectos perdidos, os nossos desejos vazios mas tenazes.

Aí pode-se cruzar uma senhora idosa e cansada, que se parece estranhamente com a minha mãe hoje. Deixa cair silenciosamente as suas mãos usadas, cansadas pelo insucesso dos seus esforços. Ou então uma filha que acaba de adquirir um belo vestido com o tecido e as cores do amor. Ou ainda uma amiga perdida nos seus pensamentos, com a sua pelota de lã escura que aperta contra o peito. Por vezes cruzam-se pessoas tranquilas e benevolentes que passam algum do seu tempo connosco, a desembaralhar todas as nossas desordens bem vivas. Muitas vezes desconhecidos. Alguém mais afável. Soldados anónimos na frente tenebrosa das nossas vidas. Alguns com aquelas tesouras enormes e bem afiadas. Assustam-nos. E compreendemos deste modo que algumas feridas são necessárias. Vamos descobrindo que o fio da vida é assim feito de nós, de cortes, de emendas, mal feitas e pouco sólidas. Dura o que durar, diz a minha mãe ao coser um botão ou tricotando o calcanhar das meias ou das roupas rotas ou rasgadas. Tantas coisas que estão presas por um fio, um fio usado em certos sítios, refeito com mil e um fios multicolores.

E o mais espantoso, é que continuemos a ter ainda a força e o desejo de continuar a remendar ou a redecorar tudo isto, a procurar todos os dias na parte mais recuada da loja para encontrar o fio que nos salvará. E nos desenrascará mais algum tempo. Na escuridão, na desordem, o mais reconfortante é fazer parte de toda essa gente, com os nossos fatos de arlequim, cosidos com diferentes pedaços de humanidade, com pedaços recuperados. Cuidado com as lojas demasiado iluminadas e ricamente decoradas, bem ordenadas, com as etiquetas bem visíveis sobre tantas coisas desejáveis. Continuemos a procurar nas traseiras das nossas lojas. Aí não encontraremos o segredo da felicidade nem as receitas do sucesso, mas enfrentaremos a possibilidade de continuar a coser os nossos segredos mais difíceis com doçura e indulgência.

É aqui, bem no fundo desta loja de humanidade que vimos encontrar o silêncio, a presença, sonhar, tentar, reparar as nossas vidas. Uma forma de ecologia, finalmente. Preservar o que deve ser preservado, nem que seja um bocadinho de fio sem pés nem cabeça. Ajudará a viver melhor mais um ano.

 

O Inverno e sua utilidade

Quem terá inventado o Inverno e para que serve? Quando fomos expulsos do paraíso terrestre, nesse local, o que se sabe é que era sempre Primavera e Verão: uma sucessão de dias magníficos, luminosos, cheios de sol, amenos e tépidos, até mesmo algo quentes por volta do meio-dia. Todos os cantos de pássaros e vastidões de verduras, coloridas de florzinhas, suavizavam a austeridade mineral do big bang que precedera a Criação propriamente dita seguida de todos os equipamentos e acompanhantes animais de todas as espécies. 
O Génesis não fala em nenhum momento das estações frias e intermediárias. Nem do Outono fresco em que começam a murchar as belezas do mundo nem dos Invernos rugosos que beliscam e endurecem tudo aquilo em que tocam. O programa de Adão e Eva não compreendia nada disto. Ficou claro portanto, desde o início, que a mais bonita das estações, na terra, não poderia durar muito.  
Os arrepios da carne e os calafrios não enganam sob o efeito maléfico do Inverno com os seus ventos escorregadios, as suas trombas de água gelada ou de neve que tarda a fundir.
Não passa duma fuga permanente o Inverno. Nunca deixa ninguém sossegado nem o espírito descansado através do suave ar purificado. Bate forte, martiriza, vergasta as portas das nossas casas, fustiga as nossas janelas geladas, espalha por todo o lado um cinzento radicalmente triste e sem perspectivas e vai reinando através do barulho que vai espalhando. É perverso o Inverno. E teimoso. Para que serve então? Acentua as desigualdades e torna-as aos pobres ainda mais insuportáveis. A sua única vantagem é, nesta ótica, conduzir o nosso olhar na sua direcção e estimular pequenos reflexos solidários com os nossos semelhantes mal alojados, pouco aquecidos, mal alimentados. Fiquemos por aqui. Não é alegre o Inverno quando os cortejos gelados circulam pelas ruas da aldeia, pelos nossos cemitérios. Mais uma tia, mais um amigo, mais um…“mais velho”, “muito novo”.    
A sua única utilidade, pelo que parece: é ensinar-nos, pela sua imposição, a virtude da paciência e a sabedoria da espera. Sabemos pertinentemente que o Inverno não pode durar mais do que uma estação, com os seus longos e escuros dias nas duas extremidades, entrada e saída.
Pela experiência, sabemos que se trata dum túnel com duas saídas e que a recompensa das nossas esperas, são praias de luz acrescida, da aurora ao pôr-do-sol. Ninguém o ignora; enquanto ele nos castiga, as plantas e os animais aproveitam para se preparar – com um ar de quem dorme – para um renascimento primaveril, para uma ressurreição dos ramos e das folhas, asas de verdura e de cor, alegrias renovadas. 
Basta esperar. Com toda a confiança, por bem encostados que estejamos num cantinho do mundo, pequeno e recuado. Esperar é uma arma que não engana nunca aqueles que sabem utilizá-la. Os impacientes acabam sempre por tropeçar no tapete, escorregam no chão vidrado, constipam-se com a mínima corrente de ar. Apanham todo o tipo de vírus. Os que têm paciência, estes, insensíveis à dor das manhãs frias e das noites trespassadas de humidade, esperam pela saída com a calma lentidão dos produtos que saem do frigorífico para serem descongelados. Estes sábios entre os sábios são os melhor colocados para acolher antes dos outros a chegada muito previsível do momento climático mais extraordinário do nosso planeta: a Primavera!
A primavera bendita em que o frio nos impediria por pouco de acreditar ainda, na permanência provada desta perspectiva, na ideia de que em confiança, a Primavera triunfará atrás do cinzento, do nevoeiro cerrado e do vento gelado, no momento escolhido pelos planos misteriosos da natureza: as flores, a suavidade, as nuvens brancas, as doçuras do mel e do azul do céu tal é o primeiro ensinamento do Inverno, este mestre é a esperança.

As folhas e a sua linguagem colorida

As folhas secas apanham-se com pás e outras máquinas mais imponentes hoje em dia. Com a preocupação da competitividade, nestes dias, vemos trabalhar inúmeros funcionários das câmaras, apetrechados até à cabeça, varrer e transportar montões e montões de folhas secas. Despejam-nas depois nos contentores do lixo. Como deve ser prático desembaraçar-se rapidamente ad patres, em grandes quantidades, das invasoras e incomodantes chuvas de folhas deste outono avançado.  

Nada de aditamento, nenhuma piedade, pouca consideração por estas infelizes que, mal se desprendem das árvores sobre as quais viveram o seu tempinho de folhas, são transportadas em direcção à saída, ao exílio.

E mesmo assim ! Fixemo-las um momento, estas folhas ditas “mortas”, antes da sua colheita. Mortas? Que impostura! Não é porque mudaram de cor que deixaram de viver. Não é porque caíram da árvore que renunciaram a toda a sua vida interior. Ou cessaram de nos interpelar, na sua própria linguagem. Se falamos da “linguagem das flores”, porque não da linguagem das folhas?

Vede as folhas amareladas como mil sóis que correm ainda sobre o alcatrão com o mínimo sopro de vento. Vede como estas anunciadoras das primaveras vindouras se alegram (sem razão) querendo despertar os nossos olhares. Vede rodopiar as outras, mais pequenas, como asas de borboletas brancas. Têm um ar feliz e parecem dizer que embelezam o chão negro das nossas ruas e passeios. E como nos devem deixar alegres. Vede os tapetes de folhas ainda verdes juntar-se ao pé das árvores ou nos cantos dos jardins, ou nas valetas, bem vivas, persuadidas da sua imortalidade. O mais pequeno raio de luz fá-las brilhar. Que belo otimismo!

Vede os ramos cujas folhas caiem no chão em família, juntinhas. Parecem passar-se a palavra: “ upa, vamos? Mantenhamo-nos unidas, hein, meninas ». E atingir o solo, confiantes. Ignoram ainda, enquanto cobrem o chão, que não passarão o inverno e que o homem cujos pés indiferentes as esmagam, têm uma única preocupação: vê-las desaparecer para sempre. E as mais resistentes, alaranjadas, acastanhadas, secas, largas, que fazem mais barulho quando deslizam ou quando são empurradas com os pés, será por já não serem verdes que podem ser consideradas defuntas?

Escutemos as mensagens das folhas, por mais alguns dias ainda, depositadas diante dos nossos olhos como testemunhas das lindas estações de antigamente. Escutemos o seu otimismo inato, natural, estas luzes que deixam no chão como para nos dizer que o sol voltará, que o ciclo das estações é a única certeza que temos, que a forte ligação entre os ramos resiste a tudo. Vejamos como estas se movem em grupos bem organizados, em multidão percorrer os paralelos. Lá em cima moviam-se com o vento, aqui em baixo movem-se em espaços maiores, como numa liberdade reencontrada. 

Porquê que não as deixamos, no seu louco otimismo, correr pelos caminhos fora ou dormir em montes serenos, longe do ruído dos homens? Porquê essa necessidade de as amontoar, de as colher em sacos negros ou verdes e transparentes para as levar onde? Para que cemitério de folhas, em que incinerador, em que morgue administrativa? Onde é que as folhas ditas mortas podem viver tranquilamente (digamos: na natureza), não poderão permanecer onde caíram? Estas fabricam o húmus. Na cidade, nada de húmus, é o grande problema das cidades. A sua limpeza (relativa…) é um sinal do seu desprendimento. E talvez da sua desumanidade.