Adriano Valadar

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A queda e o riso são indispensáveis e humanos

É uma questão infantil, os joelhos esfolados, as palmas das mãos arranhadas. Uma questão que me surgiu estranhamente duma grande atualidade. Acaba de cair e despois dos choros, quer saber. Porquê que te ris? Sim, sim, riste-te - percebo eu na sua expressão- por me ver cair. É verdade e lamento-o desde logo por tê-lo feito, mas é uma situação irresistível. Como as quedas de Charlot no cinema. Cair, é a talvez a prova mais simples, mais nua, da nossa humanidade. Na mais pequena infância quando ainda mal nos mantínhamos em pé. Na plena noite do Princípio quando o dia cai. Na imensa noite do universo. Antes da gravidade. Antes das maçãs e das pedras que nos caiem em cima. Em qualquer queda, ao mínimo falso passo, é um pedacinho do nosso fim que se desenha, que nos lembra algo. Digo à criança que também eu, caio muitas vezes, e que todos nós, caímos. E se me rio quando vejo alguém cair é porque a pessoa atingiu um limite, o meu, o nosso. Junta-se brutalmente a qualquer coisa que tem a ver com a nossa fragilidade, com a nossa mortalidade. Quando caio, aproximo-me, nem que seja por alguns segundos, do nosso próprio fim, do fim de todos nós: cair no túmulo. Cair é aproximar- -se do solo, da terra, do pó. É recordar-se de repente que somos feitos para cair. A terra torna-se o lugar donde levantamos o olhar para o céu imaginando que caímos aqui, entre tantos outros. E porque te riste? Repete-me a criança. Quando vejo alguém cair vejo a sua pequena sombra desajeitada atrás do seu elã de homem direito. Respondo-lhe: não tenhas medo de rir. A maior parte dos corpos caiem quando os largamos! Mas responde a criança, o fumo que sobe a partir do fogo não cai! Nem o pedaço de madeira que flutua na ribeira. Respondo: imagina o mundo em que as pessoas nunca caíssem. Parecer-nos-íamos todos com estranhos cosmonautas flutuantes, largados no espaço negro e estrelado. E nada seria igual, sem graça nenhuma. Nunca mais a vida seria um lugar onde cair. Uma vez a criança consolada, reconheço voluntariamente: preferíamos levantar-nos, erguer-nos, pelo menos ficar direitos, mas a verdade é que caímos! O riso nasce a partir desta angústia. Alguém afirmava que o riso é essencialmente contraditório, ou seja, que é ao mesmo tempo duma grandeza infinita e duma miséria infinita. Ser humano é aprender a conjugar os dois: grandeza e miséria. Só no céu angélico é que os seres estão seguros de não cair. Há assim para nós a necessidade de cair para nos podermos levantar ou levantarmo-nos novamente. É o que se designa empirismo, ou a experiência. Fazer a experiência do nosso equilíbrio na terra, é a nossa tarefa humana, a nossa condição. Daí a indispensável presença entre nós dessas figuras trémulas, vacilantes e únicas. Para aprender a tornar-se alguém benevolente perante o que resta do fardo na ligeireza geral, como se a gravidade fosse uma graça, um dom, como se a graça tivesse de repente a densidade específica duma criança que tropeça. E o nosso riso faz a experiência dos nossos limites, entre o céu e a terra. A terra torna-se então o lugar a partir do qual podemos contemplar o céu mas na condição também de saber rir da nossa falta de jeito. Através do riso conseguimos libertar-nos das forças do medo que nos habitam e que estão sempre prontas para acordar os nossos moinhos, os nossos fantasmas. O riso torna- -se dessa forma a única expressão aprazível da nossa soberania.

 

Geração baralhada

Se conhecem alguns, certamente não lhes escapou despercebida esta situação inquietante: os nossos jovens não estão bem. Todos os estudos mostram que os jovens com menos de 30 anos, pelo menos uma grande parte deles, são as primeiras vítimas da agravação das desigualdades a partir da pandemia de ovid. No ensino superior essencialmente, torna-se cada vez mais difícil fazer um percurso coerente, com aulas e seminários que saltam, com intermináveis túneis de aulas em videoconferência, com exames mais ou menos assegurados e a ausência de qualquer
atividade coletiva. Stress, ansiedade, depressão, solidão: há mais dum ano que o ensino superior vem alertando para a saúde psíquica dos estudantes. No que diz respeito aos que estão no mercado de trabalho, a situação não para de se degradar; entre a dificuldade de inserção profissional, precarização dos empregos e disparidade das desigualdades. Nas empresas, se contratar era difícil, é-o agora ainda mais.

Os estágios e os contratos a termo, que permitiam adquirir uma primeira experiência tornaram-se raros, as empresas cada vez menos inclinadas a aumentar os seus efetivos pois a pandemia
de covid complica especialmente a gestão dos recursos humanos … Além do desaparecimento dos pequenos empregos na restauração, entre outros, algo que foi desastroso para estes jovens.
Salários muito baixos, contratos precários e altas taxas de desemprego: hoje, mais dum jovem em dez encontra-se em situação de pobreza… As consequências são inúmeras: mal alojados,
isolamento social e, também aqui, repercussão na saúde psíquica. Safam-se alguns que podem contar com uma família sólida, presente, unida. E os outros?

Os sociólogos falam duma “geração covid”, baralhada e inquieta, para caraterizar estes estudantes ou estes jovens ativos cujos projetos foram claramente imobilizados pelas restrições ligadas
à crise sanitária.

Por fim, temos também o teletrabalho. Não é intenção contestar aqui as medidas tomadas ainda hoje que visam travar a circulação do vírus, mas, mesmo neste campo as principais vítimas
são os jovens trabalhadores. Isolados muitas vezes, porque são solteiros na sua grande parte, têm de passar oito horas sozinhos frente ao ecrã, e por vezes só lhes resta regressar a casa
dos pais para não se encontrarem esmagados pela solidão. As empresas não deveriam apressar-se a este ponto no desejo de querer generalizar o famoso teletrabalho,
com o pretexto de favorecer a flexibilidade - suave eufemismo para poderem  ganhar as despesas fixas - de superfície afixada e de produtividade. Porque, que geração de novos
assalariados estamos nós a fabricar? Que espírito de empresa pretendemos favorecer quando se toma o hábito de ziguezaguear nos open-spaces meio cheios?
Com é possível formar uma comunidade de indivíduos a partir dum projeto quando se ignora tudo a partir daqueles com quem é suposto trabalhar?
Gostaríamos de lhes mostrar o significado de tudo isto, que a única coisa que interessa, é a sua força de trabalho, que a relação e a colaboração com o outro
não passam duma perda de tempo, que tudo não pode ser visto doutra forma.
Nada espanta em relação ao que estamos a assistir, com muitos dos jovens em questão, seja pondo em causa a sua orientação profissional, seja as suas opções de
vida remetidas para a sua satisfação individual, o trabalho não passando assim duma variável de ajustamento.
Fala-se de esforços do governo em relação a estes jovens em grandes dificuldades. Mas não deve ser unicamente o governo.
Neste momento em que se fala de “empresa cidadã”, não podemos esquecer que o trabalho, a empresa é um lugar de socialização. E que também é seu dever preparar as novas gerações para
os compromissos do futuro.

Por que vieste incomodar-nos?

Nestes tempos de campanha eleitoral verdadeiramente, ando com a cabeça à roda. Até me dói o coração. Sim, sinto-me como enjoado com a propaganda das pessoas e viaturas que passam. De todo este clima estranho acordo assim todas as manhãs. Alguns títulos de jornais como exemplo também não ajudam, com frases já deslavadas: o Expresso: “ Rui Rio espera ter vitória na humanidade”; “ António Costa: acredito pela primeira vez na maioria absoluta”. DN: “Jerónimo fora pode acelerar mudança, mas não tira votos ao PCP”; “ Deus, pátria, família e trabalho” (André Ventura no estado novo): “André Ventura chama “cobardolas” a Ricardo Araújo”; Expresso “ BE assusta-se com sondagens e quer nova geringonça”; “ Rui Rio não tem medo das sondagens”; “ Comandante Ventura vestido de camuflado e de mão ao peito”; “ Cotrim diz que André ventura lhe faz lembrar Catarina Martins”; (e ainda, deixo o Karcher na garagem …) Então, como sempre quando não estou bem e me sinto algo desorientado, tento respirar um pouco mais alto e volto-me para a literatura. Acabo de reler, no livro de Dostoievski Os irmãos Karamazov, a lenda do grande inquisidor. É um conto filosófico, um poema, uma parábola … uma obra-prima que é difícil de reduzir a uma pequena apresentação. Trata-se do diálogo entre dois dos três irmãos Karamazov: Aliócha, um jovem monge, e o seu irmão mais velho, Ivan, poeta niilista, que lhe vai ler o poema que escrevera (a famosa Lenda …, portanto). Estamos em Sevilha, no século XVI, em plena Inquisição. Jesus decide descer à terra , “ visitar os seus filhos”, que o reconhecem de imediato: “ Deus aparece; não fala, só está de passagem. (…) atraído por uma força irresistível, o povo apressa-se a segui-lo.” Estende-lhes os braços, bendi-los e ressuscita uma criança. “No mesmo momento passa o cardeal grande inquisidor. (…) e pede aos guardas para o apanhar. (…) O povo está tão habituado a submeter-se, a obedecer, que a multidão afasta-se para permitir aos guardas prendê- -lo.”te O inquisidor vai visitar Cristo à prisão, e pergunta- -lhe: “ por que vieste incomodar-nos?” Porque enquanto Cristo propusera aos homens: “ Uma liberdade que, segundo o grande inquisidor, lhes metia medo”, ele, anulou essa liberdade, para que fossem felizes, porque, perguntou ele: “ Será que as pessoas revoltadas podem ser felizes?” Mais tarde, e quando Cristo o fixa em silêncio “ com o seu olhar meigo e penetrante”, acrescenta: “ será que te esqueceste de que o homem prefere a paz e mesmo a morte à liberdade de discernir o bem e o mal? Não há nada mais sedutor para o homem do que o livre-arbítrio, mas também não há nada mais doloroso. (…) há três forças (…): o milagre, o mistério e a autoridade! (…) e o homem inclinar-se-á perante os prodígios dum mágico, os sortilégios duma bruxa (…) provar-lhes-emos que são loucos, que não passam de míseras crianças.” Para Ivan Karamazov, os ensinamentos de Jesus são demasiado subversivos. Tentado três vezes por satanás no deserto, não recusou também transformar a pedra em pão, lançar-se da montanha e ajoelhar-se frente ao demónio? Estas tentações de Cristo no deserto são as tentações da humanidade, mas para resistir, o que exige como coragem moral é impossível ao homem normal. O grande inquisidor procura portanto substituir a crença pela liberdade, uma crença pelo constrangimento, e à liberdade da fé, uma fé imposta pelo medo. Hoje os políticos agitam essas bandeiras, as deste medo, lançam-nos a ameaça à cara para nos forçar, num reflexo defensivo, a fechar os olhos, e a segui-los como cegos. Tentar pensar livremente por si-mesmo é uma exigência esgotante e que a preguiça pode claramente substituir. Mas recusar o nosso livrearbítrio, é fazer parte do grande rebanho medroso, e ter, como quando éramos crianças, angústias irracionais, colocadas aos pés dos nossos pais, figuras de autoridade, do saber absoluto e da segurança encontrada. Esperando encontrar alguma paz, entramos na submissão, condenámo-nos à ignorância e passamos ao lado da nossa própria transcendência. Não abdicar, preferir as questões às respostas, acreditar na nossa força moral, na dos outros também, pode ajudar-nos a ignorar os títulos e frases medonhas duma campanha eleitoral que oferece, aliás, tão pouca esperança ao cidadão.

Amor pelos livros

“ É possível que o livro seja o último refúgio do homem livre” escreveu André Suarès. Que profecia nestes tempos de confinamento! Neste momento em que muitos de nós nos encontramos fechados em casa, o livro mantém a porta escancarada para o mundo. Oferece-nos a chave para nos evadirmos em direção a outros lugares, empreender verdadeiras viagens, contar aos filhos e netos deliciosas histórias e inocular-lhes o único vírus do qual esperamos nunca curar – a leitura. “ Ler, é beber e comer. O espírito que não lê emagrece como o corpo que não come”, proclamou Vítor Hugo. Além dum alimento, nunca como hoje em dia o livro se revelou como um tão poderoso ato de liberdade. É já uma aquela que oferecemos às livrarias quando compramos um livro. Confortam-se assim estes aventureiros na sua paixãoporque é sempre por paixão que eles investem na criação duma livraria, que procuram dar-lhe a atmosfera dum lar e um tom inimitável na escolha do fundo e dos conselhos aos leitores. É- -lhes deste modo oferecida a possibilidade não somente de poder viver do livro, mas também de comunicar esta paixão aos curiosos que, um dia, atraídos por uma capa, exposta na montra, um título, um excerto dum poema que eles terão escolhido, empurrarão a porta da sua caverna de Ali Baba. Há também a liberdade oferecida aos autores, nos quais pensamos raramente. É que estes não desfilam quando as reformas do seu estatuto mordiscam um pouco mais os seus direitos de autor ou quando, por causa da pandemia, os ofícios vão passando de mão em mão sem que as suas obras sejam publicadas. Solitários no seu trabalho, cada vez menos protegidos como artistas, e pouco escutados na extrema singularidade das suas vozes, é de liberdade que os escritores precisam eles também – daquela, única, que lhe promete o círculo dos seus leitores fiéis e atentos, e generosos. No marasmo geral, continuam a erguer a sua pena bem alta e direita, esperando que o seu livro belisque o curioso que, um dia, vai empurrar a porta da livraria, pedirá conselho, e ver-se-á designado por este cúmplice de sempre como o autor capaz de comover ou reconfortar este desconhecido tão só, tão tristemente confinado, que entrou por acaso naquele “ comércio” de extrema necessidade, que não se compara a nenhum outro pois aí está em jogo o futuro da cultura. Hoje, temos mais do que nunca o privilégio de oferecer esta liberdade aos escritores comprando os seus livros e, evidentemente, falar deles à nossa volta. E depois, que felicidade poder partilhar com os amigos o entusiasmo dum texto, dum romance, de receber assim esta prenda rara e inesgotável dum autor que, por sua vez, sem que ele mesmo o saiba ou que nós o saibamos ainda, se tornará o nosso amigo íntimo. Conheço poucas expressões tão ricas em promessas como a que evoca os “livros de cabeceira”. Sugere as presenças tácitas e amadas de autores, de histórias. Estende-se a mão a partir do travesseiro, e eis que um poeta nos murmura ao ouvido, ou um versículo qualquer sempre luminoso do evangelho, ou um excerto daqueles escritores que nos fazem voltar sempre atrás – segundo as suas afinidades, as suas espectativas. Pegamos no livro, folheamo-lo, que perfume, que regalo, poder retomar o fio do romance começado alguns dias antes. As paredes do quarto caiem. A noite desaparece, sentimos olhares, conversas que retemos, que nos falam e nos protegem contra as tentativas de desmoralização aguda que a atualidade prazerosa planeia contra nós. Por fim, há a liberdade que lendo oferecemos à criança que permanece em nós, e que não queremos desmerecer. A criança que sonhava com mundos maravilhosos e forçosamente melhores, devorando este alimento vital - a leitura. Temos todos um livro que a desperta, e que traz ao adulto que nos tornámos a deliciosa inocência, o Supercalifragilisticexpialidocious que, em qualquer circunstância, nos devolve a admirável leveza dos nevões de antigamente. Recordemo-nos: “ Era uma vez …” Que fórmula, que sésamo! Que momentos cheios de tremores deliciosos para quem alcançou ou pretende encontrar talvez -como eu- através deste incipit, sem dúvida o mais conhecido de toda a literatura, um vigor mesmo para - ler, escrever, ler mais ainda. O mesmo que dizer ser livre, como exige de nós o livro, e o nosso destino.

A supremacia das cartas de Natal

Recebi o primeiro postal de Natal deste ano. Senti um arrepio pelo prazer cada vez mais raro de encontrar na caixa do correio um envelope manuscrito, coberto por uma caligrafia que parece dançar mais aos olhos do que os carateres de imprensa das cartas administrativas que têm pés de chumbo e poucos carateres. Não resisti à tentação ou à necessidade de cheirar o perfume da tinta antes de a abrir delicadamente para não a rasgar, incapaz de esperar até poder usar o corta-papel. É uma das inúmeras felicidades de dezembro, estas prendas de cartas e postais “escritos à mão”, dirigidas pelos correios com tudo o que este envio supõe: o tempo oferecido, o cuidado tomado na escrita, a intimidade deste diálogo único e tão particular que inicia uma correspondência. As cartas de Boas-festas permitem manter o contacto com pessoas que não queremos perder de vista (costumo dizer que cada encontro releva do milagre) ou afeições por momentos negligenciadas. Poder-se-á sempre acusar estas cartas por versar no elíptico, no maquinal das nossas existências. Isso não tem qualquer implicação. Estas dão-nos a oportunidade de ressuscitar um modo de conversação delicado- a relação epistolar, graças à qual tomamos o tempo para escrever o que realmente pensamos e para pensar o que realmente escrevemos. Há já alguns anos, tive uma cadeira de literatura cujo título era: “O texto epistolar” (incluía o romance mais sério do séc. XVIII, Júlia ou A Nova Heloísa, de J.J. Rousseau e o romance mais libertino, as Ligações Perigosas de Laclos), tema que permitiu encontrar outras intertextualidades, como por exemplo encontrar Hermann Hesse ou conhecer melhor o texto ambíguo de Guillerages, Cartas amorosas de uma religiosa portuguesa ou Stefan Zweig que já em 1927, consignava: “ Há uma arte nobre e preciosa: a arte da correspondência. O que a tornava tão maravilhosa e lhe conferia uma vida tão universal, uma riqueza era que, contrariamente a todas as outras formas de arte, esta não ficava ligada aos únicos artistas: era possível a cada pessoa restituir nas suas cartas essas brechas de ânimo interior e de movimentos de alma simplesmente transitórios. Nasceram assim no passado inúmeras pequenas maravilhas de verdade num mundo tranquilo onde a carta tinha ainda um valor de envolvimento, e a mensagem de pessoa para pessoa uma força tranquilamente evocadora.” Escrever, escrever-se abre um território à intimidade, talvez o último que esta conheça, de tal forma a correspondência epistolar torna as coisas do espírito no tom de diálogo próprio à intimidade das almas. Certos escritores maravilham- -nos nesse terreno e tocam- -nos tanto como através das suas obras literárias. Quem não se emociono um dia com uma carta? A maior parte do tempo, a relação epistolar é tanto melhor quando não é destinada a ser lida por outros que não o destinatário. Murmuram- -se segredos, conselhos que têm acentos de confidências e o tom inimitável da sinceridade. Revela-se aí o rosto do autor, e no plano da retaguarda o retrato da época: “ O génio quando se tem a tua idade, escreve o poeta Armel Guerne que conheceu a guerra, a um dos seus jovens admiradores, é chegar a desconfiar profundamente das suas ideias, de se convencer, seja qual for o pensamento, que não será possível verdadeiramente encontrar o desejado a não ser mais tarde, não somente após as experiências que tenhamos feito e desejado, mas sobretudo depois das mais altas provas que tenhamos merecido. O problema, é manter a confiança, amar tudo o que está fora de si para avançar, respeitosamente, com a esperança de se juntar si- -mesmo à empreitada, um dia. Desde que descobri o texto epistolar tento manter- -me ao corrente e adquirir mesmo algo da correspondência de alguns autores que conheço. Desta forma não hesitei – como o carteiro de Neruda- em fazer minhas as cartas que Hermann Hesse enviava aos seus admiradores que lhe escreviam – às centenas por ano depois de ter recebido o prémio Nobel. Comecei por folhear estes inéditos. Uma frase cativou o meu olhar. “ Aceito o apelo que a hora presente lança aos pensadores, como um chamamento de Deus aos que dormem.” Seguidamente outra: “ pode ser decerto discutido infinitamente, discutir para saber se “adaptar-se” não é efetivamente baixeza, se não seria mais bonito e mais corajoso sofrer e sombrear do que adaptar-se à maledicência do mundo.” Sentei-me e li duma só vez o conjunto generoso destas missivas que abraçam as duas guerras mundiais. A correspondência começa há alguns cento e vinte anos, e consegue o milagre de nos falar como se fosse murmurada ao ouvido nos tempos presentes. Hermann Hesse alerta- -nos para os perigos dos quais nos protegemos tão pouco- a radicalidade odiosa das posições políticas, as incertezas económicas, as tragédias devidas à violência. Além de nos impressionar pela sua lucidez acerca do curso dos acontecimentos e de nos tocar pelos conselhos, (“ sede fiéis aos poemas, não para negar a “realidade” mas para resistir, com uma força inspirada, aos absurdos, colocando-vos aos serviço do que tem sentido”), ensina-nos e mostra-nos as delícias da arte epistolar. Bem, vou-me despachar para poder escrever as minhas cartas de Boas-festas.

Melancolia das rotundas

Gostava - e gosto ainda - de passear de carro sozinho, pequenas felicidades surgiam através das nossas terras, dos campos e florestas. E uma conversa com um cantoneiro? Emergiam os passeios secretos e aventurosos da minha infância. Cada um tem as aventuras que pode, mas recordo-me duma espécie de êxtase que me invadia quando, à saída duma aldeia, vila ou cidade, investia numa dessas estradas sinuosas ou direitas com as bermas cheias de flores, giestas, estevas e árvores bem perfumadas e vivas que me conduziam a um mundo novo, desconhecido e desejado, como uma espécie de linha de fuga, uma bela escapada e misteriosa. Há já alguns anos, e tudo mudou. Não há um concelho que não tenha a sua zona artesanal ou industrial como tantos tentáculos dum polvo monstruoso que o fecharia na sua fealdade. Não há um que não tenha as suas rotundas. Ah, as rotundas! No conselho de Bragança, conheço poucas aglomerações, até à mais pequena aldeia, que tenham conseguido fugir a uma pequena rotunda. Quantas rotundas existem em Portugal? Centenas, milhares? Ninguém sabe bem ao certo e não encontrei nenhuma referência ao tema! Mais do que um princípio, é uma mania, uma moda sombria, uma obsessão. Uma espécie de delirium tremens de alcoólico mal arrependido. Somos o país das rotundas. E pagámos certamente o preço, milhares de euros pelas mais modestas e milhões pelas mais imponentes e majestosas. Que importa que estejamos sobre- endividados. Dir-me-ão, isso faz funcionar os serviços das administrações territoriais, sem falar das empresas de trabalhos públicos. Os presidentes da câmara e outros presidentes de tudo (concelhos, regiões, comissões de urbanismo, enfim todas os vereadores locais), que no entanto passam a vida a dar lições de economia ao Estado, amam- -nas apaixonadamente como amariam o filho dos seus amores ilegítimos. É que a rotunda deu-lhes a ocasião única e inesperada de exprimir o seu génio artístico, toda esta criatividade reprimida que o mundo inteiro deveria invejar-lhes. Se, pelo menos, ficássemos pelas rotundas bucólicas plantadas com ervas, flores e árvores, contudo a maior parte transportam literalmente os fantasmas artísticos – ou a sua vacuidade como queiramos – dos seus vereadores. Há de tudo nas rotundas, há as literárias com bustos de grandes nomes ou mais imponentes no seu cavalo, há as futuristas, como a dos anzóis em Torres Vedras ou a das minhocas em Albufeira, ou tantas outras em ferro oxidado por esse Portugal fora, há sobretudo muitas etnográficas e são as mais engraçadas. Já não é preciso o guia Michelin. No caso de não saber qual é a atividade da terra onde se entra, é-nos anunciada a cor pelas esculturas das rotundas: sacos de batatas ou cantarias de Vila Pouca, cantarinhas de Bragança, barcas em Almada que anunciam o mar próximo, alegorias do mundo dos bombeiros, vacas como a lembrar que aí há leite e queijo, e passo pelas melhores. Estamos de alguma forma em Alice no país das maravilhas, ou na feira popular. Tudo isso respira a melancolia do vazio e da futilidade. Além do mais, as rotundas são no man’s land constrangedores onde só passamos. Abreviando, as rotundas por si sós, tema tão recorrente nas conversas, não passam dum sintoma da nossa esquizofrenia. Ficam muito caras, descaraterizam a paisagem e o país, podemos ver nelas a metáfora dum país que anda completam à roda.

Depois das máscaras

Azuis, brancas, pretas. Aí estão elas no chão, jazendo no seu pequeno espaço urbano tendo caído no passeio. Negligenciadas ao serem tiradas duma carteira ou dum bolso demasiado cheio, lançadas dum automóvel colado ao passeio. As máscaras de todo o tipo de tecido e de forma. Bicudas ou lisas, para serem cravadas na parte inferior do rosto que aspira a respirar o ar puro das cidades e dos campos. As máscaras virão a cair muito em breve, o verão tendo passado por aí, tudo não passará duma má recordação. Péssima recordação tendo emoldurado por mais ou menos dois anos a memória dos portugueses. Recordação de polémicas maiores e indignadas no início, quando escasseavam, quando, tendo compreendido que os enormes stocks tinham impunemente desaparecido, demo- -nos conta que seria preciso adquirir mais máscaras, e não em pequena quantidade: dezenas de biliões à China promovida imperatriz do Centro dos nossos rostos. As nossas caras furiosas e vergonhosas então a amaldiçoar a “nulidade” das autoridades incapazes de no- -las fornecer em pequenos pedaços de tecido com uma utilidade discutida. Depois foram vertidas sobre todo o país, como sobre o Egito das pragas, nuvens de grilos peregrinos de todas as cores. Foi preciso trazê-las em todo o lado. Tornava-se a arma mágica essencial, obrigatória contra o maldito vírus. Uma arma substituída por fim na preocupação de uns e de outros pela imperiosa necessidade de vacinação. Os diatribes mudaram de objeto mas em nada de intensidade. Houve, depois da penúria das máscaras, penúria das doses, das doses boas, eficazes e seguras. O debate durou longas semanas. Toda a gente, tendo- -se posto a usar máscaras para cobrir a boca não percebíamos nada sobre o que diziam os peritos nas televisões. Não percebíamos nada tampouco das injunções contraditórias nem das afirmações opostas. Ao acreditar que alguns defendiam tal marca e outros defendiam a sua concorrente preferida. Foi assim que, saltando de pedra em pedra por cima dum riacho de montanha acabámos por nos encontrar perante este novo debate embaraçoso, neste último início de verão: até quando perdurarão este raio de máscaras nos nossos rostos doentios? O facto de se ver sem elas significaria o fim da pandemia. Deste modo foi lançada a última polémica opondo os avisados, os prudentes aos impacientes que não se viam bronzear somente a metade do rosto. Assistimos às últimas bufadas delirantes à volta destas máscaras cuja ausência insuportável e o desaparecimento desejado enquadram a vida do nosso país desde há muito tempo. Figuravam, retrospetivamente, estas máscaras cariátides como dois prensa livros numa cheminé, mantendo em pé livros de horas, das memórias de confinamento, de trabalho à distância, dos (re)confinamentos. O primeiro capítulo tinha como título o “ Negócio das máscaras”. O último poderia ter tido exatamente o mesmo título. De pedra em pedra e destas duas sequências iniciais finalmente só recordaremos as máscaras. Não somente máscaras, mas máscaras sem fim como se chovessem máscaras por todo o lado. Qualquer dia, sem máscaras por fim, sem a preocupação de colocar a máscara no rosto, por fim! Entretanto, dezenas de agonias invisíveis de humanos que nós teremos deixado morrer sozinhos cheios de tubos, sem máscaras auto-portáteis. Mortos que nos terão deixado completamente à beira do poço fatal onde as nossas ambições terminam sem recuperação. Só nos resta o murmúrio lancinante e as lamentações dos defuntos que terão partido antes de nós. Terão eles até ao fim, atrás do acrílico de proteção das suas câmaras fúnebres e brancas, ouvido o zunzum das nossas querelas, o bombardeamento mediático recorrente das nossas maldades, dos nossos insultos e golpes baixos?

Bom regresso letivo para todos!

O céu de porcelana reflete ondas de luz que ficaram demasiado tempo prisioneiras. Pela manhã, tudo é inundado de azul; a transparência do ar peroliza as ervas que cintilam. Ao cair da tarde, o ouro derrama-se e escorre sobre as colinas e os vales. A ceifa dos campos parece ter cansado as fouces, e os frutos superam a promessa das flores, os verdes- -violetas dos cachos de uva sob as borlas das ramadas, os figos roliços sob as suas folhas de bronze e o incomparável perfume das primeiras maçãs na sua queda ou no descanso da fruteira plácida da linda dona de casa. Tudo parece um pouco mais pesado, lento, lânguido neste verão que quase não o foi, que tenta recuperar e se atarda. Pela cidade, nalguns jardins, canteiros e vasos, os jardineiros compuseram para o regalo dos nossos olhos algumas paletes impressionistas, alguns jogos florais. Os bancos convidam-nos cordialmente a parar alguns instantes, só o tempo de dar graças à delicada educação dos espaços -alguns espaços novos na cidade - e sobretudo a escutar. Ouvem-se as polifonias da cidade voltar como sempre neste tempo de regresso às aulas – os gritos das crianças nos recreios das escolas e o piar dos enxames de estorninhos nas piedosas tílias. “ Meu Deus meu Deus, a vida está aí, simples e tranquila” ensina-nos o poeta, tranquila pela presença do céu, pela da árvore que balança os seus ramos. Simples ser vivo que participa por sua vez e com todas as suas forças no canto da criação em toda a sua evidência. A vida está bem presente, podemos louvá-la no oásis das igrejas abertas, no seu silêncio ou nos arbustos de velas, a oração sempre prestes a jorrar, em nós, em direção a Deus, para nós. E talvez a oração nunca tenha sido tão necessária e vital como hoje, nestas férias algo ao inverso, neste verão algo atípico em que os acontecimentos do mundo e os sobressaltos da terra reverteram, no sentido acima abaixo, e parecendo laborar, subtraindo dia após dia todos os símbolos destas férias tão esperados e cujas memórias embelezam as recordações – a despreocupação, os risos, a deliciosa leveza, os passeios, a pausa sobre a partição dos meses que passam. Certamente, os motivos das lágrimas, dos alarmes e da aflição não faltam, urbi et orbi, e talvez a nossa sobrecarga crónica os faça parecer mais pesados, mais temerosos ainda do que o rochedo de Sísifo que agora nos sentimos incapazes de empurrar, exceto a nossa contínua lamentação. É certo, temos muitas vezes o sentimento de ficar presos no tempo estático da infelicidade. E a nossa alma? O Espírito maravilhoso e móbil que a bafeja, se soubermos guardá-la porosa em relação à esperança e aos sinais dos quais o céu e os céus abundam? Sinais, coincidências, lições de coisas e de sabedoria. Os céus, vemos a sua suavidade voltar nos apaziguamentos do verão indiano. Quanto aos Céus, têm a sua agenda e as suas festas, e quem amuaria perante as mesmas. Mais afastados do profano desta vez, a Sra da Serra ou do Naso tão perto de nós. A do S. Gregório, mais longe, S. Jerónimo e sua amiga Santa Paula a quem devemos a Vulgata latina. Nenhuma resignação nestes ídolos festivos. Firmes no desmoronamento do seu século e ardentes no reverdejar da fé, e até outubro as festas das duas Santas Teresas, lutadoras cada uma à sua maneira, fortes contra as derrelições do seu tempo, abandonadas ao amor de Deus mas nunca resignadas, nada de capitulação com elas. A Castelhana e a Normanda. E a festa de Francisco de Assis e a sua lição de alegria perfeita (meus tempos de Cernache do Bonjardim!) – “ a força de vencer-se”. Vencer a nossa inclinação para a morosidade. Tantas vidas legadas por nós, cujos modelos purificam os nossos olhares, curam as nossas tentações de se afundar na acédia e convidando-nos, que digo eu, obrigando-nos a erguer-nos, a tomar na nossa vez o nosso tempo, custe o que custar, a fim de tentar, aguerridamente, prodigar um pouco dessa luz que revigora e ilumina, para que esta faça brotar sobre os nossos e mais longe ainda talvez a insubstituível fé naquilo que o homem tem de melhor - o amor, a alegria, a coragem da esperança. Recordemos estas palavras de Sta Teresa: “ Basta-me colocar os olhos no santo Evangelho, logo respiro os perfumes da vida de Jesus e sei para onde correr”. Corramos, corramos, mais admirativos e determinados sabendo ainda que esta frase da “pequena” Teresa foi escrita algumas horas antes de morrer, o corpo mortificado por dores terríveis, depois de pensar que Deus a havia abandonado. Teria ouvido nesse momento a profunda resposta que lhe lançava, através da noite dos tempos, posto no horizonte com todos os outros santos, santo Inácio que continua a lembrar-nos: “ Quem possui a palavra de Jesus pode ouvir mesmo o seu silêncio.”

Lavrar o silêncio

Recentemente, tive o privilégio de fazer uma pequena visita a um familiar muito próximo lá fora e visitar uma cidade com polifonias diferentes, ancorada num passado longínquo e muito rico a todos os níveis. Coincidência ou não, o meu amigo Manuel teve no domingo passado esta bela fórmula: “ O luxo, é o espaço, o tempo e o silêncio.” Encontrei a ideia fantástica e justa; nós que passamos a vida a correr atrás do terrível fantasma do sucesso material, esta definição de luxo é suscetível de nos fazer refletir sobre o sentido que damos às nossas vidas. Pensei logo também nas catedrais e ruinas de abadias e mosteiros, dois que visitara no meu recente périplo. Longe do tumulto do mundo, constelam tantos lugares, no nosso país também; um mosteiro trapista muito novo em Palaçoulo, concelho de Miranda do Douro. Barcas de pedra consagradas na mais completa solidão, são um refúgio de paz para quem pretender dar um sentido à sua vida. Seriamente, e se o luxo fosse simplesmente a contemplação serena duma paisagem, tomando o tempo necessário para se inscrever nos minutos que passam, num relicário de silêncio? E se o verdadeiro luxo, para toda a humanidade, fosse retirar-se do mundo para, por fim, viver? Os anacoretas não pensavam doutra forma, estes que fugiram da desordem para construir uma existência de oração no deserto. Na penúria e na indigência mais completa, pararam o curso do tempo e elevaram-se para o Altíssimo, com toda a humildade, com a visão dos enormes espaços, o tempo e um silêncio imposto. Sonho também com essas pequenas capelas cercadas por grutas, colocadas no cimo das colinas, onde grupos de ermitas se instalavam no princípio da Idade Média, edificante num estilo românico privado de artifícios, santuários para praticar as suas devoções à Virgem, a Cristo Jesus ou a um santo. Ainda hoje, atingir a capela requere alguns esforços, e se uma estrada alcatroada nos conduz a ela, a estreiteza e o declive da via exigem uma certa coragem para chegar lá. Retiradas do mundo, pessoas muitas vezes simples praticaram nesses lugares uma vida dedicada aquilo em que acreditavam, no meio das estridulações das cigarras sussurrando num oceano de pinhos. Tenho uma profunda admiração por quem têm a audácia de renunciar à agitação contemporânea a fim de escutar somente o seu coração e dar graças a Deus. Sou incapaz de o fazer e lamento muito. Penso que todos temos a experiência nem que seja mínima da meditação ou de algum retiro espiritual. Nem que seja passar alguns momentos isolado na natureza no silêncio da noite, quando cessa o último pio de uma ave noturna, experiência arrepiante e enriquecedora ao mesmo tempo. Contudo nada me levou a mudar a minha relação com o tempo, com a minha vida e com o sentido que lhe quero dar. Porém as palavras do meu amigo fazem eco em mim como um mantra, como uma oração, e agradeço-lhe por ter tornado mais claros os meus pensamentos da semana. Boas resoluções e decisões, eis o que nos faz falta. Iluminar as nossas vidas de espaço, darmo-nos o tempo de ser, saboreando o silêncio, em nós e à nossa volta. Como isso nos parece simples, mas como é difícil pô-lo em prática, reconheçamo- -lo. Talvez possamos vestir a interrupção voluntária das nossas existências com algumas notas de música, talvez tomar o tempo para si, caminhar, passear. Alguns de nós acreditaram, pobres de espírito é o que somos, que o confinamento nos levaria a um mundo do Depois, no qual a experiência da pandemia nos permitiria ser mais sábios e mais serenos. Sonho ilusório não passou disso. De qualquer forma, podemos ainda, individualmente, cultivar o silêncio e a paixão dos grandes espaços, e darmo- -nos ao luxo de existir para nós, em plena consciência, no amor dos outros, dos que nos são próximos e daqueles que nos são queridos. O verdadeiro cristão é talvez aquele que consegue encontrar a calma e a serenidade em si-próprio, acalmar as suas tempestades mais íntimas para praticar o bem nos preceitos de Cristo. E praticar o luxo, o verdadeiro, o essencial: espaço, tempo, silêncio. Deste tríptico primordial nascem a benevolência e a ternura, virtudes cardinais para quem se diz humano, para quem se afirma cristão. À imagem de todos aqueles que optaram por fugir do mundo, podemos também encontrar o indispensável, e fazer das nossas existências um caminho luminoso em direção ao Céu. Praticando simplesmente o culto que escolhemos, mas decididamente, ligando-nos ao próximo, estendendo a mão; religio, em latim, ligar, prender-se. Em suma, ter o luxo de estar e viver plenamente, no respeito pelos outros e por si-mesmo, ancorado no tempo, cultivando o silêncio, percorrendo o espaço em total liberdade.

Será possível deixar de duvidar de si?

Conheces as palavras que gostarias de dizer mas não as dirás. Preferes guardar uma certa reserva. Sabes o que se passa. É uma situação banal para já. A noite cai. Queres ir rapidamente para casa, esconder-te em suma. Leste recentemente o que um personagem do romancista americano Herman Melville dizia aos quinze anos ao irmão, quando acabava de deixar o lar da família para ir trabalhar com um tio numa quinta: « De todos estes projetos magníficos que fiz para a minha vida, não resta nada. Gostaria de afrontar um grande perigo e cessar por fim de duvidar de mim-mesmo.» Mas já não tens quinze anos há muito tempo. E nunca te habituaste verdadeiramente a escrever aos teus irmãos. Será que só um “grande perigo” poderia conduzir-te a uma espécie de adequação contigo mesmo? Os perigos que atravessaste, na maior parte, não os procuraste. Duvidar de si- -mesmo, é-te familiar. E nunca encontraste verdadeiramente que relação clara fundar entre ti e os outros. Geralmente, dizes aos outros aquilo que imaginas que eles querem ouvir de ti. Estás bem convicto de que é preciso ceder a uma forma de comédia social. Mas experimentas também uma forma dolorosa de rutura. Vês, como num sonho mau, Aquiles virar-se contra ti e repetir-te como o faz na Ilíada: “ É-me odioso como as portas do inferno, aquele que esconde uma coisa nas entranhas e diz outra” (canto  IX, 312-313). Ficas com um enorme nó no ventre. Quem ousa confessar que sofre muito da imagem que se fez dele próprio? Ou que ele pensa que os outros têm dele. Gostarias de confiar ao teu filho ou filha, a tua adolescência, eles que vivem com alguma angústia também na híper-confiança das redes sociais. Eles também acham que o que são, o que eles valem não corresponde aquilo que os outros lhes reconhecem. Também sofrem do fosso entre o ser verdadeiro e o seu ser social, as imagens veiculadas nas redes sociais, por exemplo. Quantas vezes, perante pequenas discussões, não ouvimos: “ não sou forçosamente a pessoa que tu imaginas.” Pedimos perdão. Todos passamos por certas máscaras, fabulações e superficialidades. Que necessidade, que carência nos leva a dissimular ou a escondermo-nos? Será possível agir de outra forma? Sofremos do desejo de coincidir connosco mesmos e da dificuldade de o conseguir, sofremos de autenticidade (fantasmagórica muitas vezes) e de duplicação ou multiplicação. Que imagem de nós-mesmos nos provoca tanto medo? Porquê querer a toda a força tirar a máscara? Não dormes. As insónias são muitas vezes ligadas às perturbações da personalidade, às incertezas da identidade, à perda de confiança em si-mesmo. As máscaras pertencem à noite. Incomoda-te a altivez dos outros, a convicção quando falam deles mesmos. Apesar de saberes pertinentemente que também se trata dum artifício, duma ilusão. Uma forma de fugir ao confronto com o duplo, de se esquivar à perda de si-mesmo. Não nos possuímos a nós-mesmos, só possuímos a perda daquele ou daquela que pensamos ser. Somos feitos de diversos rostos. Apagam-se e reaparecem por vezes. Não ouves verdadeiramente os que fazem ofício de condenar as aparências. Atrás de tantos chamamentos à sinceridade e à transparência, há muitas vezes abismos que gostaríamos de esconder. Criança, não suportavas que os adultos opusessem as seguintes palavras às tuas fraquezas: “ é muito fechado, muito calado, introvertido…”. Não, efetivamente nunca me entendi muito bem comigo- -mesmo. Talvez fosse necessário preservar a possibilidade de não ser o que somos. Saber humildemente que se trata duma eventualidade. Gostaríamos de ser inteiros, plenos, seguros de nós-mesmos. Não passamos de vazio e tremor. A tua adolescência confia- -te que gostaria que fosses feliz. Que precisa de saber que estás bem. Gostarias de lhe responder que preferes sentir a felicidade dos outros em vez da tua própria felicidade. Calas-te. Sorris-lhe. Percebes que vos pareceis muito um ao outro.