Adriano Valadar

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O Advento

A ambivalência da nossa relação com o tempo é a espera. E o Advento é certamente um período propício para ensinar aos mais jovens a esperar, a transformar a espera num espaço de desejo e de criação. A espera significa um vazio, basta seguir os movimentos duma criança, das nossas crianças num consultório médico – é um lugar-comum, já todos assistimos a essa espécie de incómodo - perante uma refeição, perante um brinquedo … Mas também os adultos na fila do supermercado, no restaurante, num aeroporto ou ao telefone, a espera suscita reações contrastadas; alguns tomam o mal em paciência, enquanto que outros se agitam ou parecem habitados por um ódio impotente. Vivemos num clima de aceleração social que impõe a redução do tempo de espera. Este tempo é considerado como um tempo morto ou perdido, é desvalorizado, porque não é produtivo. Quando há desacordo entre o tempo do relógio e a temporalidade da criança, esta entra em sofrimento. Submetida a ordens ou injunções contraditórias, sendo sempre solicitada pelo seu entorno, a criança é obrigada a adaptar-se ao ritmo de vida do adulto. Através dum efeito de excitação, a criança vive no imediato, não suporta esperar. Isto porque a espera significa para ela o vazio. Privada deste tempo de desejo, de sonho e de criação, a criança não tem acesso ao seu mundo interno, não adquire as capacidades para estar só. O que pode provocar nela perturbações da separação e de adormecimento. Respeitar o tempo da criança, diferente do dos pais, ajudá-la a interiorizar a noção de duração, utilizando uma ampulheta ou um cronómetro, dar-lhe referências concretas (antes, durante, depois) desenvolver a sua imaginação… Em vez dum «espera!» vazio de sentido, poder-se-ia perguntar-lhe: « o que poderias fazer enquanto esperas?» Penso que os pais têm um trunfo na mão para permitir à criança adquirir uma temporalidade mais feliz, pois não é tanto a espera o problema, mas sim a forma de esperar. Esperar faz parte da vida. Nós esperamos sem sofrimento as estações do ano, o nascimento dum filho ou neto, a quadra natalícia, porque se trata de promessas, que se inscrevem num tempo espiritual. A espera vivida num tempo materialista, consumista é mais difícil de viver porque nos confronta com a frustração. Uma voz vem insinuar-se em nós: «não esperes, usufrui de tudo, e já!». Nós estaríamos mesmo programados para isso: procurar a satisfação imediata. E ensinar a esperar faz parte da educação. Cabe-nos iniciar aos pequenos prazeres a medio e a longo prazo a fim de desenvolver a paciência, humanizar o desejo. Na escola oficial -ou nas escolas da vida- a entrar no mundo do pensamento, a respeitar a palavra do outro, o tempo de espera para preparar a pergunta, para alimentar a interioridade, a reflexão. Neste período do Advento, pais e avós, podem ouvir a necessidade ou a vontade da criança, calcular se é possível ou não deferir e, caso contrário, propor outro caminho, outra possibilidade. «O que não podes obter agora, tê-lo-ás mais tarde. Esperemos pelo Natal e vais ver que será ainda mais bonito porque soubeste esperar». Este prazo permite à criança construir o seu desejo. E a promessa torna a espera suportável. E o que é o Advento senão a promessa dum resultado, duma teleologia? As decorações lembram-no-lo: o Natal está à porta! Mais discretamente, a liturgia do Advento convida-nos a uma preparação simples e alegre em que a espera vence o que é imediato e a sobriedade é mais fecunda que o consumo. É graças ao seu imaginário que a criança vai esperar. Precedendo a chegada que representa o Natal, o Advento é um período propício para fazer trabalhar a imaginação e pôr em ação os seus próprios recursos. Este tempo pode ser habitado por rituais que vêm alimentar o desejo; decorar o pinheiro, preparar o presépio. Fazer uma lista de pequenas prendas para construir por si-mesmo ou para comprar para os outros, depois embrulhá- -las, escondê-las. Tantos gestos que vão permitir à criança ocupar o espaço interno da espera e desenvolver as suas qualidades de ser humano. Ler contos, ouvir canções de Natal em família pode contribuir para alimentar o imaginário das crianças. O Advento torna-se assim um tempo de espera ativo e de abertura aos outros. Cada dia que passa representa uma ocasião de abrir uma janelinha do famoso calendário. Descobrindo nos modelos tradicionais; a imagem duma personagem do presépio, dum anjo, duma luz… a beleza, a riqueza do Natal, revelam-se pouco a pouco, reforçando o prazer, até à apoteose. Esperar obriga a criar, não somente a ter, mas a Ser. É isso que falta talvez à minha criança no consultório médico.

Que bonitos os cemitérios nestes dias

Aqueles de entre nós que receberam uma verdadeira educação católica, identificam-se de imediato nos primeiros dias de novembro. Sabem a quem são dedicados, sabem dessa vocação bem específica. Para os outros, estes dias são marcados por reuniões em família, pelo halloween dos filhos e uma volta pelo cemitério por vezes. Os cemitérios nunca estão tão bonitos como nestes dias. Ao longo do ano, quando uma campa resplandece, submersa pelas coroas, pelos feixes de ramos, marca a chegada dum novo inquilino, duma nova residente. Através das flores escolhidas, das fitas que serpenteiam ainda sobre o papel transparente, não é difícil adivinhar quem veio juntar-se aos eternos. Um homem ou uma senhora, demasiado jovem, ou já não muito jovem, tendo deixado ou não o cônjuge, os pais, filhos, netos, colegas de trabalho, colegas de associação, de club. Mas o dia um de novembro, dia Santo, é um feriado que facilita os encontros à volta das campas da família, é o cemitério na sua totalidade que resplandece, e no brilho dos crisântemos, todos os mortos pertencem à mesma vasta morada, às mesmas unidades de medida. Mortos de ontem ou de outrora, estão ali todos, onde nos conduz qualquer que seja a vida que tenhamos. A sua companhia faz-nos bem, eleva-nos. O tempo deste encontro, largamente partilhado, nada que tenha a ver com o frenesim terrestre nos vem perturbar ou cansar. As vozes ajustam-se ao silêncio do lugar, apesar de haver sempre gente nos corredores. O ruído dos passos nos paralelos ou na gravilha, a água nos regadores, crianças que circulam e saltitam ou os vasos colocados sobre a pedra tumbal, não fazem barulho, ou pouco mais do que o amassar das folhas quando uma brisa de vento se levanta ou a canção duma mãe que embala uma criança. Os mortos nesse dia guiam os nossos passos e os nossos pensamentos. Efetivamente são eles que tratam de nós. Quando se aproximam estes primeiros dias de novembro, digo-me por vezes “nunca mais chega o dia”, sei que no cemitério posso contar com a aprazível e exigente vizinhança dos defuntos para enviar a uma espécie de insignificância tudo aquilo que me ocupa nos outros dias, mesmo aquilo que dá todo o sentido à minha vida. Perto dos túmulos, o mundo pode esperar. A administração, a casa, as compras, o email, os passeios, claramente. E a leitura, os amigos, a família, até as crianças. No dia dos mortos, ou digamos, no dia do cemitério, nada é urgente. Não quer dizer que nada mais conte para nós, ou a vida perderia todo o seu sentido! Quer dizer que nos recordamos, que esse dia, sabemos, que esse dia, a nossa vida é eterna. Que o amor é eterno. Que os que com carinho nos chamam frente a esta campa onde os depositámos, não nos abandonarão nunca. É mais fácil dizê-lo, mais fácil vivê-lo, quando são muitos os primeiros dias de novembro que nos levaram perto deles. Apesar de continuar viva a surpresa; um mês depois, um ano depois, dez anos depois, vinte anos depois. Olha- mos para os nomes, para as datas. Por vezes, há tão poucos anos – há tão poucos meses, dias mesmo!- entre a data de nascimento e a da partida, que os números nos apertam o coração. Como é possível, como é que continuámos a viver depois de nos termos afastado pela primeira vez desse cemitério ao qual, habitados por dores profundas e silêncios infinitos, confiámos alguns que tinham nascido para nos enterrar a nós mes- mos. Mas, quando foi há mui- to tempo, coabitávamos com estes mistérios, e aceitamos que os mesmos sejam demasiado grandes e complexos para nós. Quando foi ontem, por outro lado, quando a pedra está gravada de fresco, quando qualquer coisa em nós nos pergunta o que fazemos ali, ou seja, perto daqueles que estavam perto de nós, em todo o lado, o tempo todo… O dia, o momento que nessas primeiras horas de novembro queremos e o pode- mos organizar à volta duma visita ao cemitério é, no en- tanto, um momento precioso. É como uma festa de família alargada aos ausentes, sendo o poder que convida e que sabem poder contar com a nossa presença. No cemitério, estamos com eles, sabemos que nos amam e se, somente pudéssemos fazê-lo, dar-lhes-íamos muitos beijinhos.

A educação e a vida

O que é educar e ser educado? Peço desculpa por colocar a questão desta forma abrupta, mas ocorre-me sempre no início do ano escolar, isto provocado pelo ruído rouco dos colegas e de alguns debates que emergem espontaneamente; pedagogias convictas, posturas claras, inteligência das situações para começar o ano letivo. Educar não é uma ciência mas sim uma história, uma narração. Crescer, aprender, isso não se avalia forçosamente nem sempre, e não se pode aparentar ou reduzir simplesmente a um lucro, a aquisições. Não. Saber ler, escrever, contar, isso está resolvido. Assim como descobrir, obter, experimentar. Conseguir e não conseguir. Ter sucesso e não ter sucesso, conseguir na vida e conseguir a vida. E isso não se produz nem sempre nem forçosamente ao mesmo ritmo para todos, diria mesmo que isso não tem forçosamente nem sempre a mesma intensidade, o mesmo valor para cada indivíduo. Que tudo isso jamais bastará. Seria preciso reconhecer antes de qualquer discurso especializado, sabiamente técnico sobre a educação, o seguinte: crescer é sempre um falhanço. Que há sempre numa vida construída uma renúncia necessária e fecunda. Quero dizer que foi necessário, como sempre, como para cada um de nós e a sua pequena trajetória tremente, tão emocionante quanto indecisa, na existência, que bastaria um nadinha para que não fosse aquilo em que me tornei. Poderia ter sido outra pessoa, melhor ou pior. Não sei se outras vidas me esperavam mas cresci com o pensamento, que ao mesmo tempo me desfazia por dentro, que me fazia acelerar o coração, que outras vidas eram possíveis, e que na maior parte, estas outras vidas, não poderia vivê-las. Crescer, alguma coisa se perdia, se destruía incessantemente e nunca consegui segurá-la. Ora talvez isso tenha também feito parte da minha educação; aprender e aceitar que uma parte da minha vida pudesse fugir-me, que não pudesse ser explorada. Educar, é abrir o outro à experiência da vida onde nós nem sempre temos a possibilidade de viver como desejaríamos, segundo os nossos apetites, os nossos sonhos, as nossas frustrações. E que tudo isso, apetites, sonhos e frustrações, sirva para construir o somatório nunca certo e justo, nunca completo, duma existência honesta. A honestidade, deveríamos sabê-lo, nunca é uma conta redonda. Não surge fazendo unicamente preencher aos outros todas as linhas da grelha. Cada um de nós pode pretender ter mil e uma vidas, mas todos devemos fazer a aprendizagem da fragilidade de cada vida vivida, assim como da insignificância duma vida entre outras vidas. Lembro-me da réplica dum autor, Flaubert,; (as citações sempre foram cigarras para mim!) que dizia qualquer coisa como: “ Nós as pessoas insignificantes, com as nossas palavras, os nossos atos, preparamos a vida de muitos heróis,” Nós não seremos forçosamente heróis mas isso não significa que não participemos no heroísmo da existência. O caminho dos nossos sucessos é muitas vezes mal combinado com a mediocridade das oportunidades, mas convém então pensar que a educação não é somente um acumular de cultura, de saberes, mas sim e profundamente uma transformação da existência, dando tanto o desejo duma vida vivida como a consciência de não poder viver todas as vidas, todas as experiências. Ensinar a crescer, no meio dos outros, e todos os outros, é tolerar com paciência, e se possível com amor, que o nosso sentimento de exceção, os nossos desejos mais fortes, sejam também confrontados com a nossa insignificância. Educar, é assim permitir a cada indivíduo aproximar-se da satisfação dos seus desejos e das suas expetativas sem por isso se transformar em alguém intolerável para os demais, como para si mesmo. Talvez assim se pudessem evitar, por exemplo, alguns dos comportamentos que invadem tantas vezes a imprensa, e que revelam o quanto certos jovens carecem precisamente dessa educação, a saber que uma vida bonita e inquieta, é uma vida feita de tudo o que vivemos e de tudo o que não vivemos, das experiências vividas assim como de todas as que nunca tivemos. E de facto, o que obtiveram eles, e que desejavam tão violentamente? Uma insatisfação sempre recomeçada, uma vida nunca é vivida verdadeiramente porque viver nunca é querer viver tudo, permitir-se fazer tudo, ou então tem que se fazer da satisfação um ídolo. Em quê que se tornaria então o sonho, a fantasia, a esperança, as nossas vidas desconhecidas que tornam a nossa vida tão misteriosa e tão desejável? Há uma forma de valentia viver no meio de todas estas vidas vividas e não vividas, possíveis e impossíveis, sonhadas, evitadas, desviadas, e não possuir nenhuma delas. Estou a exagerar? Talvez, sim. Mas proponho dois pequenos paradoxos. É possível que nos dirijamos mais seguramente em direção a um mundo que se harmonize com os nossos desejos sem por isso viver a realização de todos eles. E as nossas vidas só serão plenamente vividas não tendo vivido tudo.

Cabelo negro

Tinha os olhos sombrios, envoltos por longas pestanas, remontados por sobrancelhas abundantes e desenhados como um ícone, profundos e tristes, melancólicos e tenebrosos, impregnados dum charme algo distante, com uma expressão graciosa, talvez submetida, talvez não; baixava os olhos por pudor, não estava habituada a enfrentar o olhar dos outros, nem a procurá-los, ela queria trabalhar, ir às compras, sair e dançar, conversar com as amigas, tomar um chá ou um lanche em paz. Tinha uma boca carnuda realçada por um baton vermelho, cor de sangue, uma pele cor de pergaminho, cor de areia, de mel e de ouro. Tinha um nariz fino, discreto, suave, buchechas altas realçadas pelo brilho do blush, tinha um sorriso sibilino como uma Gioconda, um pouco nostálgica, não do passado, mas do que ainda não viveu, um brilho algo malandro, sem ser desconfiado e sem desafiar, somente um ar de dizer sem ousar fazê-lo, e fazer o necessário para inspirar a mudança- pensa-o e um dia, sim, um dia dirá tudo o que tem no coração, e nesse dia, o mundo inteiro sabê-lo-á. Vestia uma túnica preta sobre o seu corpo de jovem mulher, corpo que escondia desde os seus 10 anos, apesar de ser tão jovem, mas por afastamento, por pudor, por vergonha, por medo, por terror, porque não era preciso mostrá-lo, dissimulava as suas formas em baixo duma massa disforme, um tecido que lhe cobria os dois ombros, o busto, as pernas, tudo o que não pode ser mostrado, sugerido, que não deve atrair o olhar dos homens, porque um corpo é uma ameaça, uma afirmação de si mesmo, porque um corpo deseja e é desejado, porque um corpo vestido é um corpo político. Ela não tinha nada de política, ela não era tampouco angélica, ela não se encontrava em nenhum tipo de ação militante, talvez na sua reflexão, aquela que coloca as questões sem encontrar resposta, ela era um ponto de interrogação colocado sobre o mundo. Ela era amotinada, órfã do seu próprio país, estava naquele lugar, não se sabe muito bem porquê, nem porquê ali, ela não sabia de nada, era certamente demasiado jovem, inexperiente, contudo corajosa. Era feliz apesar de tudo, e isso ressalta no seu sorriso que é suficientemente claro sobre o resultado da sua reflexão, e talvez uma decisão: a de não se deixar vencer pelo medo. Um dia teria talvez a ousadia de dizer e fazer o que pretendia segundo a sua vontade, reivindicar as suas decisões e opções, nem que fosse preciso enfrentar os olhares desprezíveis, repletos de ódio e mal-intencionados, nem que fosse preciso enfrentar os gritos e os uivos. Nem que tivesse que receber todos os açoites do mundo. Mas seria preciso que ela os recebesse? Porquê ela e não outra? Porque as outras são somente anónimas, e ela fez-se conhecer num mundo onde tudo está fechado, amordaçado, num mundo cortado do mundo, onde só são filtradas algumas imagens, uma mulher que aperta o seu carrapito, uma jovem que canta, e que de repente dá a volta ao mundo graças às redes sociais. Tinha um lindo e longo cabelo negro, espresso como uma lã escura, negro como os seus olhos, negro como o seu véu, cabelo tão negro que podia reluzir, e refletir o brilho do sol, cabelo como um espelho onde era possível perder-se, e certamente pendorar-se de amores, nessa cabeleira tão abondante, tão espessa, tão sombria e tão sedosa, tão livre que ela mesma pode inspirar o medo, tão longa que pode seduzir qualquer um, que podia enfeitiçar e fazer desmaiar os corações mais recalcitrantes e apoderar-se deles, encadeá- -los, talvez, engoli-los, fazer um nó à volta dos pescoços de alguns e sufocá-los para sempre. Ou simplesmente, muito simplesmente, como qualquer outra jovem, simplesmente seduzi-los tão belo era aquele cabelo, e vivo e escuro, e negro como a morte.

Uma carta!

Há trinta anos, não tinha endereço email, nem caixa do correio tampouco, nem computador; tinha uma morada onde podia receber cartas. Para escrever uma carta, pegava numa folha que comprara numa livraria, às vezes folhas de diferentes cores, com a minha parker oferecida num aniversário, e que carregava com tinta preta ou azul, mais tarde com as recargas pelikan que são estandardizadas. Seguidamente escrevia, querido tio, estimado amigo, queridos pais, estimado vizinho … Era preciso um certo tempo para escrever uma carta. Não era uma obra, era menos do que isso e era mais do que isso, porque colocava no papel algo de sentimental, num gesto ao mesmo tempo íntimo e universal, importante ou superficial, fosse ela curta ou longa. Através duma mensagem, contava uma história. Por vezes apagava, por vezes reescrevia a fim de melhorar um pouco o estilo, tornar o pensamento mais preciso, formular de forma mais concisa. E também para evitar demasiadas rasuras, rasgava e recomeçava. Depois pegava num envelope, colocava a morada, colava um selo que havia tido o cuidado de comprar antes. E levava- -a aos correios, a uma caixa de correio onde estava inscrita a última hora de levantamento, ou a um marco no exterior. A carta partia, chegava, mais ou menos depressa, para um país estrangeiro, podia levar algumas semanas. Ah. no seminário, em Cucujães, tínhamos todos um amigo virtual em Moçambique ou Angola com quem corrrespondíamos, o meu correspondente tinha uma caligrafia perfeita e invejável. Talvez por essa razão ainda tenha hoje uma pequena paixão pela caligrafia. Não sabíamos quando é que o destinatário a recebia. O processo completo (compra, escrita, envio) levava algumas horas. Nessas cartas, falava da minha vida, dava notícias, talvez banais, também as solicitava, falava dos meus sentimentos, era capaz de descrever as minhas atividades dum dia completo, quando os dias ainda eram longos, contar tudo o que fazia. Escrevia a amigos que tinham emigrado, a alguns que se mantinham na aldeia. Escrevia ao meu pai em França, à família ou timidamente a alguma rapariga que me despertava interesse. E lembro-me da alegria de receber uma carta, quando ela é assim bem pesada, inchada dentro do envelope e onde há leitura. A excitação no momento de a abrir, sem a rasgar, e lê-la, e relê-la, dobrá-la, desdobrá- -la, guardá-la, olhar para ela ou queimá-la. Algumas cartas dizem o amor. É um prazer lê- -las e relê-las. Há este tipo de cartas que só se recebe uma vez na vida. Há-as que são sinceras, apaixonadas e sedutoras. Outras recheadas de repreensões e azedume. Outras ainda, anunciadoras de algo novo. Há- -as visionárias e algo loucas. Há aquelas que nos derretem. Através duma carta, duas pessoas singularizam-se numa forma de introspeção, para manter uma relação, para se manter em contacto, para dizer que pensam uma na outra, que precisam uma da outra, e esta ausência materializa-se pela carta. Quantas cartas eram lidas às esposas dos emigrantes, quantos casamentos aconteciam a partir dessa correspondência epistolar. Isto é muito forte. O papel estala, e ao abri-la, é como se se espreguiçasse, feliz pela felicidade de ser desdobrada. Alguns anos mais tarde, quando as relemos continuamos intrigados, surpreendidos e emocionados. O papel, espesso, resistiu, a escrita da caneta permanente com as letras bem ligadas e um pouco inclinadas mantem-se legível; denunciam o tempo que passa, a tinta que se apaga, as letras rodadas soltas e desvanecidas. Adivinham- -se certas palavras que se vão tornando quase invisíveis e se tornarão pouco a pouco uma espécie de palimpsesto só meu. Acaricio o papel já algo amarelado, vejo-o de forma transparente, cheiro-o, respiro-o, e é toda uma vida que regressa; à imagem da madalena de Proust. Uma carta é verdadeira, é autêntica, é real. Agora, a minha caneta dorme no seu estojo, e espera que lhe pegue e a acaricie novamente. Mas, para quê enviar cartas? Nem sei já muito bem o que contava nelas: passo bocados a responder aos emails. Não tenho muito tempo, nem vontade de escrever uma carta, não sei a quem escrever, não tenho força para ir buscar um selo, um envelope, nem ficar na fila nos correios. Até estes se fazem raros e distantes. Para quê sair à rua para enviar a minha missiva, quando posso escrever um email, e num pequeno clique enviar a mensagem para outro endereço email, instantaneamente? Hoje, não vou escrever nenhuma carta, contudo, gostaria tanto de as receber.

Aí estão as férias, não me esqueço de nada?

Cadeiras de praia e biquínis nas montras, publicidades sobre mares e praias mais do que azuis e longínquos, embarcações para Cítara, librarias ornadas para as leituras de verão. As férias estão aí novamente. Cuidado com a partida, com o voo! Há já umas semanas que o comércio organiza, com o seu habitual e incurável cinismo, a nossa amnésia sazonal, fazendo da areia das praias o assunto da atualidade. Ocultando a guerra, esquecidos do estado da crise iminente, das derivas políticas, das vociferações da ágora, dos desastres ecológicos. Por alguns instantes pelo menos. Concordamos evidentemente. Ignorantes para a ciência, seduzidos pelo conforto. Acontece comigo e com os outros. Desejamos todos esta subscrição periódica à leveza, esta atração por uma pausa tranquila e lúdica. Como é possível resistir às delícias da ilusão oferecidas por este ciclo de juventude – as férias grandes, essa viagem sazonal que traz sempre recordações, ao entusiasmo picado pela nostalgia? Não aparece sempre, no momento da partida, alguém que embarca connosco, a criança que fomos e as suas palpitações? E depois, será possível agir doutra forma? Podemos imaginar mergulhar nas ondas e sonhar que outros se encontram mergulhados sob as bombas e permanecer inocentes?

Para acalmar os remorsos que sentimos, sem nos privarmos dos nossos passatempos claro, é-nos oferecida a possibilidade de aprender a ser resilientes como o metal que dobra com a força dos golpes, mas que não parte, até se apruma. É para ver a ausência de lucidez da natureza humana e a pouca consideração pela sua casualidade angustiante e necessária desenvoltura, o que Kundera chamava a insustentável leveza do ser, a que, no fundo, nos couraça e nos permite sobreviver a tudo. Alguns recusam-no, e vão salvando a nossa honra. Os santos, os heróis. Seríamos iguais se decidíssemos fazer greve às férias? Despirmo-nos desse peso, entrar em ascese, cobrirmo-nos das cinzas? Porque não há um meio-termo, o pior de tudo é a lição de moral dada aos outros para nos libertarmos do peso da consciência, a um preço mais baixo.

Não farei isso tampouco. Não entrarei em ascese. Não rasgarei o peito para oferecer o meu coração sangrento e sinto-me impotente e infeliz por essa razão.Vou, portanto, abster-me de me dar lições de moral a mim mesmo partindo do princípio, é claro, que me encontro do lado da virtude. Vou de férias eu também, à sombra, ao calor do meu casulo familiar, atento a que seja preservado o sorriso dos meus filhos e netos, e tentando afastar para longe deles e de mim, os horrores da atualidade. Alguém dizia: “o santo intercede com a sua oração, o pecador com o seu pecado”.

E eu que tinha vontade de vos contar quais as leituras que mais me embalaram, que espetáculo me havia entusiasmado, tomado pela euforia da partida, lembrar aos apaixonados pela música alguns espetáculos ou exposições a não peder, e dizer-vos que os passeios a pé ou bicicleta são uma forma interessante de melhor usufruir dos espaços e lugares a visitar. Que as costas marítimas oferecem a embriaguez do abandono à pulsação do cosmos. Apetecia-me contar algumas anedotas das minhas transumâncias passadas, de carro e autocarro, o prazer dos encontros com os amigos e com a família, porque também são iguais às vossas e que há qualquer coisa da ordem da comunhão quando, juntos, desfolhamos as recordações à maneira dos malmequeres. Perguntei-me a mim mesmo se tinha esse direito, tendo em conta tantos acontecimentos e dramas.

Seguidamente dei-me conta que era preferível falar do mar, do verão, das colheitas, dos prados e das horas de serenidade. Que lembrasse tudo isso com este espírito de criança, a fim de o alimentar, e lembrar o porquê de nos levantarmos cada manhã - tentar destilar um pedacinho de felicidade e imaginar poder transformar o mundo num lindo jardim. Que tenha entusiasmo e razões para falar desse assunto. Para que essas horas de deliciosa despreocupação que esperamos exatamente das férias, iluminem as encostas do nosso vale de lágrimas. Mas necessitava de algum tempo de recolhimento.

Fica para o regresso.

Homenagem ao Dr. Eduardo Santos, Diretor do AE Emídio Garcia

A “A tua família, os teus amigos, os teus colegas, todos os que te conheceram e apreciaram, todos estamos presentes para te prestar esta última homenagem. Partes antes de nós, muito cedo, demasiado depressa … e o teu desaparecimento lembra-nos o quanto somos bem pouca coisa e que é preciso usufruir de cada segundo, de cada minuto enquanto estamos aqui por baixo. Por mim, fiquei muito feliz por me teres concedido alguns pedaços de vida. Tu, sabias fazer muito com pouca coisa, sabias cultivar a amizade. Como esquecer o amigo fiel e generoso, o colega apreciado, sempre fiel ao seu lugar, sempre positivo, otimista, e que trabalhador! Ser-nos-á necessário muito tempo antes de realizar que partiste, que não refaremos o mundo, nem a escola que era o teu “locus amoenus” e por quem deste tanto. Os nossos encontros mais banais, mas tão saborosos guardarão o ruído dos teus passos. Alguns testemunhos escolhidos arbitrariamente: “ Até sempre Eduardo…Não tenho palavras para expressar o pesar e a tristeza por esta súbita partida. Ficam as saudades do que passámos, do trabalho e da segurança que sentíamos, da confiança que transmitia, da superior humanidade e amizade que nunca regateava. Partiu um homem bom…”; “ Excelente diretor, grandíssimo amigo. Fica uma dor imensa. Mas há-de ser lembrado pelo seu companheirismo, disponibilidade, e alegria”; “ O Eduardo sem ser perfeito, era um ser humano bom. Muito humano, com uma capacidade de trabalho extraordinária, inteligente, disponível para ouvir, bom companheiro e amigo do seu amigo. Paz à sua alma” . Eu, como não tenho palavras, deixo uma citação da pequena bíblia que tenho na mesinha de cabeceira e que dispensa apresentação tal é a sua relevância e tantas são as suas polifonias: “ … As pessoas têm estrelas que não são as mesmas, Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes. Para outros, os sábios, são problemas. Para o meu negociante, eram ouro. Tu porém, terás estrelas como ninguém… quero dizer: quando olhares para o céu de noite (porque habitarei uma delas e estarei a rir), então será como se todas as estrelas se rissem! E tu terás estrelas que sabem sorrir! Assim, sentir-te-ás contente por me teres conhecido. Tu serás sempre meu amigo (basta olhar para o céu e estarei lá). Terás vontade de rir comigo. E abrirá, às vezes, a janela à toa. Por gosto… e os teus amigos ficarão espantados ao ouvir-te rir olhando para o céu. Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!” Deixas um vazio enorme atrás de ti Eduardo. E é com muita tristeza e compaixão que apresentamos os nossos mais sinceros pêsames à tua esposa e colega Céu, aos teus filhos e familiares para lhes testemunhar o nosso apoio neste momento tão doloroso. Sem esquecer toda a comunidade educativa do Agrupamento de Escolas Emídio Garcia que ficam órfãos dum bom homem e dum excelente Diretor. Até sempre Dr. Eduardo.”

Falai com os vossos filhos!

Conversando com as pessoas mais velhas, não é difícil descobrir que alguém, um parente direto mesmo; um avô, tio, tia, tiveram um passado perturbado, ou de órfão, ou que fora mais ou menos abandonado, e consigo hoje medir e sentir o peso do segredo, por vezes o poder da vergonha, as repercussões desta infelicidade sobre toda uma genealogia, quando tudo isso é silenciado. E digo para mim mesmo que se somente … essas crianças, esses adolescentes “assistidos”, esses jovens adultos tivessem tentado falar, ousado contar de donde vinham, o seu percurso, tudo aquilo que atravessaram, teria sido uma confissão, um diálogo aberto e um alívio para todos. E hoje sinto a vontade de dizer, a cada um de entre nós e quaisquer que sejam os passados, a família, o percurso, a cada um de entre nós apetece-me dizer: falai com os vossos filhos. Falai com os vossos filhos, dizei-lhes donde vêm, dizei-lhes que cada destino carrega a sua coragem, as suas feridas e a sua nobreza. Dizei-lhes que todos somos mais ou menos corcundas, que ninguém é verdadeiramente campeão, nem mesmo aquele que recebe medalhas, prémios, votos, não há ninguém sem as suas lutas nem derivas, toda a gente têm dúvidas e vacila, toda a gente um dia ou outro dança num só pé, perde o equilíbrio, toda a gente num momento da vida levanta os olhos para o céu e fica com vertigens, e treme e se agarra aos ramos, às convicções, ao apelo das sereias por vezes, aos falsos profetas e aos verdadeiros sábios. E seguidamente de tempos a tempos, também se escuta com alguma confiança, ouve os seus próprios murmúrios, as suas intuições e os seus desejos mais inesperados. E lança-se de corpo e alma na aventura duma vida. Falai com os vossos filhos, dizei-lhes que eles vêm de algures. Que desde sempre o homem viaja e passa e ultrapassa fronteiras, na alegria e na pena, legal ou ilegalmente, o homem procura sempre fugir para salvar a pele, reencontrar os seus ou descobrir o mundo, percorrer, escapar-se, evadir-se, quer-se e por vezes crê-se livre, e por vezes num instante de resplandecência e luz, é-o. Dizei-lhes que é o direito inalienável de cada ser humano de ser deste lugar e doutro mais, do mais distante dos traçados oficiais, das montanhas e dos mares, das pontes e das barragens, dizei- -lhes que somos todos de sangues misturados, todos o resultado de cruzamentos sucessivos e selvagens, incontroláveis, surpreendentes nesse aspecto, magníficos. Dizei-lhes que nenhum de entre nós nasce por acaso, mas sim pela surpresa, e que se alguns não foram desejados, a revolta é possível. Dizei-lhes que cada ser humano nasceu para nos surpreender, para nos mostrar algo diferente, e que com eles, construímos a fabulosa aposta da diferença. Dizei- -lhes que nasceram de relações apaixonadas ou aventurosas ou fugazes, ou brutais, arranjadas ou pouco razoáveis, mas que estão bem presentes, e que o mundo esperava por eles. Dizei-lhes que têm todo o direito de dançar nos passeios, de cantar à chuva, de seguir a sua própria melodia, a sua comédia musical mais íntima. Ensinai-lhes os contos, as fábulas, os mitos, e as lendas familiares também, contai-lhes, não são mentiras, são a trama do tecido duma família, dum grupo, dum casal, duma aliança. Sede generosos! Contai-lhes as epopeias, histórias de coragem e valentia. Contai-lhes os livros que vos transformaram, cantai-lhes as canções que ouvistes aos vossos pais, e antes aos pais deles, fazei- -os ouvir música, as narrações das quais são feitos os vossos sonhos, as utopias que nunca abandonastes, tudo o que vos embalava na vossa infância e adolescência, todos os possíveis, lembrai-o, encontrai o poder da exaltação. E depois dizei-lhes que são bonitos. Que não esperáveis tanto, que não esperáveis nada, mas que os esperáveis a eles. Dizei-lhes para não ter medo. Dizei-lhes que as contradições e reviravoltas da vida não são erros, que as hesitações não são fracassos, e que é preciso de tudo um pouco para fazer um mundo; solitários e chefes de fila, líderes e sonhadores, desertores e entusiastas, derrotistas e perfeccionistas, contemplativos, hipersensíveis, homens e mulheres de acção, maratonistas e apaixonados pelo vagar. Dizei-lhes que os amais. 

Desejos de primavera

Chegou desta vez no meio da chuva a que anuncia a epifania das cores; amarelas em primeiro lugar nas flores de forsítia, os pompons da mimosa e a trompete dos narcisos. Há já alguns dias, a primavera pinta de cor- -de-rosa as bochechas envergonhadas dos transeuntes. Agudiza o grito das crianças, assim como o passo mais largo dos que passeiam e acalma o passo dos namorados. A primavera, finalmente! A primavera, como uma embriaguez. Este ano mais do que nunca, sentimos subir em nós a jovem seiva, pretendemos ficar aturdidos. Eis-nos objetos consentidores duma metamorfose que toca tudo o que vive, tudo o que cresce, tudo o que vibra. A primavera, deleita-nos vê-la em ação, no poder arrebatador das tonalidades verdes por todo o lado em fusão, e a explosão vegetal dos rebentos. Respira- -se o seu perfume de violeta. Ouve-se no bico dourado dos melros, e no canto de tantos passarinhos irrequietos e velozes. A brisa larga da primavera arremanga-nos a alma. A transparência dos céus de abril dá- -nos uma leveza, parecidos às bolas de praia. Eis-nos ligados a uma realidade mais alta – o renascimento para o qual nos sentimos todos convidados, e ao qual condescendemos todos a partir dum novo fôlego. É que tudo se torna noutra coisa que aquilo é – uma promessa, uma subida, um regenerar completo. A primavera lembra-nos que a beleza da vida renascente duplica-se sempre de outra beleza, a que cria o jogo profundo das correspondências com a natureza, com toda a criação. Sente-se mais profundamente a oposição entre a noite e o dia, a relva e o gelo, as brumas e o sol, a vida e a morte. Ah, a primavera! Quanta felicidade na sua celebração por fim, deixar-se intoxicar pelo seu vigor. A primavera, esperamo-la contagiante. Pedimos para que dê aos que partiram para o combate em guerras absurdas o desejo bem mais vivo de se alegrar perante a vida que lhes foi concedida. Sonhamos que toque, pela sua juventude, tão tenra, dos soldados russos e que abandonem então, como quem deixa os sapatos à beira mar, as armas, os uniformes, que desobedeçam às ordens que recebem. Que a primavera lhes traga com a sua brisa leve algo da sua força, que perturbe os suspiros das namoradas tão longe no seu país. Que os contamine com a doçura dos sonhos, com as agitações da longa espera e do fogo do desejo de serem livres e felizes. Alguns de entre eles, pretende-se que já teriam sido atingidos, que se demarcaram da solidariedade com Putine. Apelam ao fim da guerra. Segundo um responsável da defesa, dois ou três batalhões “ teriam deliberadamente furado” os reservatórios dos veículos para evitar ir combater. Outros teriam sabotado os tanques. Outros teriam fugido das suas unidades para não disparar contra as melícias, prontas a defender até à morte a proximidade das maiores cidades da Ucrânia. Satisfaz-me dizer que no ressurgimento da primavera, na carícia dos seus mornos raios de sol, perante o trigo em erva ainda, outros soldados serão tentados a desertar e correr para a vida. Penso para mim próprio que foi por esta razão – convencer os soldados de que a primavera só pode ser a estação em que tudo é amor – que se apresentou este ano um dia mais cedo. O equinócio não aconteceu dia 21 de março como o anunciam os nossos calendários, mas sim dia 20 de março, às 16 h 33 exatamente. Foi nesse dia, a essa hora precisa, que o Sol se alinhou com o equador, com a perfeição que exige o equinócio. Mas porquê este desvio no calendário? A Terra gira à volta do Sol como um aro colorido à volta da cintura duma menina. E como acontece com o aro, a Terra escorrega por vezes um pouco mais e desvia-se da elipse perfeita do seu eixo. Estas fantasias giratórias perturbam as estações. “Temos de nos habituar. O fenómeno deverá durar muito tempo; a próxima vez que a primavera cairá dia 21de março, será em 2102, e tendo sido inventados os anos bissextos para corrigir estas diferenças horárias astronómicas, estes não poderão fazer nada”, dizem os astrónomos. 2102 ! Dentro de noventa anos! Terão ouvido bem os soldados que vivem e lutam hoje, a injunção de Vladimir Jankélévitch : « Não percais a vossa única manhã de primavera”.

Avô

O que é isso, um avô, uma avó? É um simples facto. Alguém teve um filho que teve um filho. Lógico, Biológico, em francês diz-se “ Grand- père”, grande, que não tem nada de grandioso. Porém, este acontecimento não tem nada de anedótico. Porquê que o Pai Natal, ou o S. Nicolau, e Deus mesmo no teto da capela Sistina, têm traços de avós? O quê é que nos tranquiliza tanto na figura dos avós? A Heidi teria sido tão popular sem ter ao seu lado, a presença ao mesmo tempo rude e doce do avô? Se, para viver a sua vida ano após ano, basta amá-la tanto para não a interromper, consentir a tornar-se pai supõe um amor mais profundo: ama-se a vida ao ponto de, não somente a conservar, mas de a dar a alguém. O avô foi mais longe, sem mesmo se dar conta: amou tanto a vida a ponto de a conservar até aos velhos ossos. Seguidamente para a dar, enfim, ô milagre, para gerar no filho a vontade de a dar por sua vez. O avô, somente pela sua presença, deu a bênção à vida três vezes. A minha esposa conta que passava horas com o seu avô materno, no campo, ou somente a olhar para ele. A sua avó, diferente, nas suas tarefas domésticas e a cozinhar os pratos que ainda continuam a ser as suas/nossas madalenas. A sua presença, a sua existência, bastavam para recordar que a vida é boa. Deus o Pai, quando cria o homem e a mulher, e através deles todas as gerações, não diz somente que isso é bom, mas sim “muito bom”, “ Deus o Avô” portanto, que se apraz a viver e a dar a vida, a criar filhos que farão filhos! Vitor Hugo teve ao seu encargo os netos, cujo pai acabara de morrer. Retirou desse acontecimento uma coletânia de poesia: A arte de ser avô. É a arte de ceder face à inocência infantil, encantar-se pelo seu encanto. Esta arte não é uma técnica da qual qualquer pessoa poderia apropriar-se. Se há por vezes avós de substituição, não existe avô profissional. O seu lugar é indicado pela história familiar. Mas é um lugar que deve ser tomado. Do mesmo modo que não basta ter um filho para ser pai, pode-se passar ao lado da vocação de avô. Lugar a ser conquistado, portanto, mas também a deixar. Lugar para sustentar … e com que força! Tendo educado um filho que se tornou pai ou mãe, os avós já representaram o seu papel. A sua parte está feita. Não servem para mais nada, a não ser amar. Efectivamente, acolher os netos supõe que se ergam limites e isso ocasionará, aqui ou ali, alguns alertas ou avisos. Porém a educação depende sobretudo dos pais e da avó, apesar de esta constatar dolorosamente a inexperiência da sua nora ou filha; contem-se muitas vezes e não intervém … Quando o pai se torna avô, o que cresce é a sua aptidão para diminuir. Estar presente nas suas leituras, tricotar, jardinar, e basta. Isso vale por todas as lições de vida. Mas isso não é dado. Supõe que os pais confiem o filho aos avôs e que os mesmos tenham com ele tempo a perder, a tomar, a dar. Ser, e simplesmente ser, usufruir tranquilamente da vida sob o olhar atento dum neto, como sob o olhar de Deus benevolente, é por vezes o mais difícil.