Adriano Valadar

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O poder e os abusos

O poder corrompe mesmo? É uma questão que emerge recorrentemente e que alimenta diariamente as nossas conversas. Mas o que é esta alegre potencialidade de ser capaz de impor a sua vontade aos outros ou aos acontecimentos, diz-nos muito sobre a nossa humanidade? E quando falo de “poder”, não aludo ao exercício dessa forma brutal do forte sobre o fraco. Refiro-me mais a esta forma de obrigar pelo cargo que se recebeu, duma autoridade superior ou dum escrutínio, duma delegação de poder que permite decidir. Esta forma moderna, democrática e assumida do exercício do poder dá asas ou sobe sistematicamente à cabeça? Se nos limitarmos aos factos, forçosamente constataremos que sem o exercício do poder, as nossas realizações coletivas seriam bastante pobres. Quando é erigida a ponte 25 de abril, o Burj Khalifa, ou uma nave espacial quando se faz o túnel no Marão, trata-se efetivamente duma série de decisões impostas, delegando, numa cascada hierárquica, uma vontade em múltiplas formas de poder. Neste sentido, o poder é libertador, emancipador dos constrangimentos naturais, físicos e humanos. Quando, inversamente, o mesmo não passa da expressão de opções arbitrárias, é limitador, comprime, restringe, apesar da aspiração geral para a liberdade, que suporta mal esta imposição discricionária da ambição individual. E neste momento coloca-se a questão de saber se o poder é corruptível, se muda, transforma o que o exerce num tirano com pés curtos. Conhecemos todos estes indivíduos que, a pretexto de deter uma onça de poder, usam e abusam sem complexo, muitas vezes para seu proveito, ou para o proveito do grupo a que pertencem. Nenhuma fatia da sociedade é poupada, a empresa, o mundo político, as associações e fundações, as igrejas, todas e todos se encontram implicados neste fenómeno, o poder sobe à cabeça e o que o assume converte-se em déspota, sem temer atingir ou ferir. E não lhes falo das figuras nacionais ou internacionais, dos Staline, dos Hitler, da descendência dos Kim na Coreia do Norte, e de todos estes tiranos sanguinários que esfrangalham o curso dos séculos. Não, sejamos modestos, e olhemos à nossa volta. O nosso chefe de serviço, o nosso eleito local, o presidente da nossa associação, que, a pretexto de que são eles que decidem, impõem uma vontade individual no desdém do bem comum ou da concertação. Perdem a passada, deslizam, prendendo-se à satisfação do seu ego sobredimensionado em detrimento do interesse geral. Então, como pavões, ouvem- -se falar, rebolam-se, e geram à sua volta pequenos motivos de gracejo e troça, mas em murmúrio, o poder que têm sobre nós convida à maior circunspeção. O nosso mundo vibra com tantas palavras detestáveis: “abusos”, «assédio moral», “ riscos psicossociais”, que são a parte imersa dum iceberg cuja imensidão provoca arrepios por todo o corpo. É preciso portanto coletivamente interrogar esta noção, é preciso pôr em causa o poder quando o mesmo é funesto, e instaurar os limites que o contêm no enquadramento justo e íntegro do interesse geral. Não se trata somente duma avaliação, dum desejo piedoso, ou de injunções vazias de sentido, é um projeto de sociedade, duma sociedade democrática e adulta, ou então o verdadeiro poder permanece com aqueles que o confiam de forma temporária e institucionalizada. O direito- direito do trabalho, Constituição, doutrinas- está bem presente para ser aplicado a todos os que, duma forma ou outra, ultrapassam esta delegação para sacar do exercício do poder um interesse pessoal, nem que seja simplesmente egótico. Desta forma sim, o poder corrompe e a este título é preciso encerrá-lo num tecido de regras que permitam ultrapassar os possíveis abusos. Resta a cada um de nós interrogar-se sobre a sua atitude face ao poder, porque todos, somos alvejados por este fenómeno. Em família, no trabalho, nas nossas relações sociais, representamos, cena após cena, uma comédia do poder em que somos os atores implicados. Que nós sejamos vítimas ou déspotas – e podemos ser sucessivamente os dois- devemos questionar- -nos sobre a melhor das formas de usar o nosso poder, poder sobre os outros, poder sobre os acontecimentos, para tirarmos daí partido para crescer e não para nos rebaixarmos num exercício abusivo do mesmo. Há a nossa parte de humanidade, do nosso ser e da nossa vida espiritual.

O poder da vida

Durante muito tempo mantive-me distante desta questão. E nunca fui capaz de responder, talvez um pouquinho, nem sei bem. Mas hoje, persigo, com esta questão da ressurreição, a minha pequena meditação pessoal sobre a possibilidade de acreditar. Tinha- -me parado em tempos sobre a noção do impossível, pensando ser possível pensar o impossível (perdão), e que esta via seria a saída escarpada para um senão e conseguir pelo menos antecipá-la. Mas chego ao ponto de me interrogar: seremos nós capazes de suportar o nosso pensamento? Não será isso mesmo o que chamámos fé? Esta tenacidade no combate de ter de pensar o impossível. Sei que a palavra combate em grego (mais exatamente, o lugar do combate) é agôn, “agonia” em português. A agonia do Cristo é, para mim, este lugar onde devo lutar para suportar o meu pensamento sobre o que é o amor, a morte e a esperança. Pode parecer abstrato mas penso que é o que vivi, como tantas outras pessoas confrontadas com a perda, com o desaparecimento. Havia estes sonhos, meus amigos, estes sonhos recorrentes durante meses, em que se vê a pessoa de quem gostamos e desaparecida toda na sua carne e luz terrestres, com detalhes duma precisão assassina, destes pequenos pormenores que teríamos imaginado indiscerníveis na noite absoluta. O sonho não ressuscita nada nem ninguém contudo, pela queimadura da falta, faz reaparecer o outro de forma exorbitante, impossível. Neste mesmo sonho, o outro perguntou-me o que fazia ali. Era o desaparecido para sempre que se preocupava pelo meu desertar, pela minha errância. Porquê que que não tinha ficado lá em baixo com os outros, com o resto da família e amigos? O que fazia ali, naquele não-lugar? Acordei alagado em suor quando a agonia, a luta, se tornava insuportável. Creio que pelo meu sonho pretendia encurralar a vida na prisão do meu pesar, encontrava-me eu mesmo prisioneiro aos olhos da pessoa que procurava em vão. Muitas vezes, transformamos a vida, mergulhados no nosso desespero, num pequeno prisioneiro. E fixava-me unicamente na ideia de que aquilo que tinha sido possível já não o era, ter- -se-ia tornado impossível. Mas a ressurreição, o seu trabalho em nós, se posso pronunciar- -me deste modo, começa quando cessam os sonhos e as aparições. Crer na ressurreição prende-se com esta reviravolta, aquela que vejo no torpor e deslumbramento das mulheres do Evangelho perante o túmulo vazio. Esta ekstasis (S. Marcos 16, 8) que em grego designava uma perturbação do espírito, um desregulamento e uma inspiração sagrada. Uma revolução do pensamento; já nada é impossível. O impossível já não nos prende. Percebo muito bem que prender-se ao impossível não passava da nossa imperfeição. Das nossas falhas, no sentido original da palavra “pecado” (falhar o alvo). Não nos era pedido acreditar no impossível, mas sim pensar que a vida era, perdurava inteiramente no possível do mundo. O que é radicalmente diferente da perversão do sonho que me fazia crer que o que era impossível se tornava possível. Oh, sei que é muito difícil de apreender, mas direi as coisas desta forma: na fé na ressurreição, não tenho que procurar salvar o ser, um ser amado que perdi. Além disso o sonho indicava-me que, acreditando nisso na minha pena, eu é que pedia desesperadamente para ser salvo pela pessoa que eu pretendia salvar da morte e do esquecimento. Acreditar na ressurreição liberta-me do impossível e entrega-me à vida, ao seu infinito possível. Para falar como S. Paulo na primeira epístola aos Coríntios, é uma questão de poder, que se revela na escuta do outro. Quando percebemos o que nos mostra a fé (na esperança) - são as palavras de Paulo. Como os dois amigos amedrontados após a morte de Cristo e que no caminho de Emaús vão ter a experiência de que Cristo está ainda bem presente possivelmente entre nós. Basta ler, orar, caminhar juntos, descansar juntos, amar- -se, e pôr-se ao serviço dos outros como Ele-mesmo se pôs definitivamente ao nosso serviço. E nada conservar do que foi vivido, mas acreditar no poder que nos faz avançar e viver. Sim, a fé na ressurreição destrói todos os nossos conservantismos. Os do medo, do ressentimento, da angústia e do luto. A ressurreição confia-nos aos possíveis do mundo. O que aconteceu está bem vivo. Não tenho nada a conservar, tudo está aí com a Vida. Oh, não tenho qualquer certeza de perceber muito. Contudo guardo agora esta compreensão da ressurreição: o túmulo está vazio, o que acontece está na vida que se vive. Eu é que tive que me erguer, que me levantar, no possível da vida. E manter assim qualquer coisa do objeto da minha esperança. É a condição necessária para estarmos libertos do impossível.

Obrigado aves do céu

Quando nos aproxima - mos dos pássaros, estes afastam-se. Alguns saltam, outros põem-se a correr, muitos tomam o seu voo. Gostaria de dizer algumas palavras sobre eles, mas com medo de que fujam, falemos baixinho. Recentemente, os especialistas do mundo inteiro publicaram um relatório sobre a diversidade: “ um mundo sem aves, seria…” Este título deixou-me numa tristeza tão profunda que me pareceu mesmo excessiva. Mais triste me senti ainda quando vi que o meu país também fazia parte do estudo. Sobretudo que na minha infância vivi íntima e harmoniosamente com o meio rural onde abundava a passarada. Desde há décadas que se fala do desaparecimento das espécies, do empobrecimento da natureza, da ameaça sobre os recursos naturais; constata-se uma destruição com peso e medida, a das florestas, dos solos, dos mares, do ar, do mundo animal… Como há também esta invisível destruição do nosso equilíbrio íntimo que pretende que, para suportar o destino, necessitamos de tudo o que vive e particularmente dos animais. Confidentes sem o saber, aliviam o nosso fardo e apoiam a nossa marcha, até a encantam. Não sei de nada, mas abrigam qualquer coisa de nós mesmos. Não os deixemos fugir. A tristeza habita todos os países e todo o género humano. E o fenómeno parece agravar-se a um ritmo muito acelerado. A estimativa é que de ano para ano esta aumenta um por cento; da tristeza e do ódio juntamente com a ausência de alegria. A esta velocidade de propagação, não vai demorar que nos atiremos todos pela janela do céu, à procura dum buraco negro que nos acolha para nos libertar dos problemas que nos desassossegam e que resume a palavra: existência. No palmarés mundial, os países mais pobres parecem ser os países ivadidos pela Guerra, o sorridente continente latino-americano sabe levar a vida apesar de todos os defeitos dos regimes que sofre, da fome que perdura e da violência permanente. Ao lado do pequeno monstro omnipresente e invisível que invade os nossos dias, a perda da biodiversidade é também uma das causas maiores do nosso blues atual. A crise das espécies, que faz com que um milhão de entre elas esteja ameaçada a curto prazo (antes do fim da nossa própria vida!), assusta toda a humanidade. Quando se fala da ausência da alegria humana, não podemos impedir-nos de invejar os pássaros sobreviventes do desastre que saúdam cada aurora nascente com os seus chilreares alegres. Acreditam no dia que começa, acham que o que se segue será bonito, que terão grãos caídos para apanhar e que os congéneres que, de longe, os saúdam serão simpáticos e companheiros. Com o aproximar da bela estação, lembro-me, com saudade, duma tardinha e dum longo passeio pelo campo, um pouco fastidiosa, com o tempo algo húmido. Mas chegou a hora em que certos pássaros, que até ali se mantinham em silêncio, se puseram a cantar. Será que se preparavam para anunciar o anoitecer? Ter-seiam apercebido da noite iminente? O vento tinha caído, até ali fazia tremer a copa das árvores, sentiriam que o seu canto tinha ecos longínquos e que era o momento de dizer o que haviam que declarar? Ou estavam a prevenir os seus semelhantes do lugar em que se encontravam, estariam a avisá-los da nossa passagem, informariam a colónia sobre um lugar identificado de nova pescaria? O cortejo sonoro dava ao campo a sua densidade, às árvores a sua altura, aos caminhos a sua razão de ser. Apeteceu-me dizer-lhes “obrigado, aves do céu”. Porquê que não somos como as aves do céu, disponíveis para esta alegria nativa, para esta despreocupação evangélica, em suma! Porém, temos de ser invadidos pela inquietude do nosso futuro comum, desta “ sexta extinção” que nos anunciam para o fim da nossa caminhada quando, todas as espécies tendo já desaparecido, só nos restará descampar quando chegar a nossa vez piedosamente em direção à saída definitiva, deixando o palco livre para os seguintes – mas que seguintes? A morte individual não é nenhuma novidade na terra. Estamos prevenidos desde a origem, contudo o que ignorávamos, é a hipótese da morte coletiva, universal, o desaparecimento de todos juntos. A nossa nave de loucos vai certamente afundar-se, teríamos estado prevenidos. Difícil, à espera, de assobiar como um pintassilgo feliz ou viravoltear como um latino a dançar.

Não o reconheci!

“Este rosto éme completamente desconhecido.” Eis a fórmula, que agora pode substitui a inversa, a de antigamente quando encontrávamos uma pessoa raramente vista mas algo familiar, arriscamos a fórmula que funciona sempre, hoje inusitada desde que o Covid a impediu, e aboliu mesmo as nossas capacidades de visão e reconhecimento facial: “Esta cara não me é desconhecida”. Por pouco que os fulanos encontrados na rua consintam em equipar a parte inferior do rosto com a famosa “máscara” que se tornou o tema central das nossas conversas e o centro das nossas preocupações, ninguém vê ninguém quando nos cruzamos. Não passam de testas mais ou menos cheias, rugas sem significado, têmporas estriadas pelos elásticos de diversas cores, orelhas contidas, óculos embaciados que deslizam pelo nariz. Bochechas ausentes, nem cheias, nem magras. Cabelos ao vento como se procurassem o caminho. Por conseguinte, os nossos contemporâneos, através do rosto, perderam uma grande parte da sua personalidade e, poder-se-ia dizer, o essencial do envelope corporal. Diógenes que procurava um homem ter-se-ia talvez perdido completamente no meio da multidão e só teria encontrado silhuetas sem asperezas. Com a dissimulação dos traços que nos destinguem, só vemos zombis similares. Nos tempos felizes anteriores ao Covid e da invenção dos “ gestos -barreiras”, cada encontro era a ocasião duma nova descoberta dos nossos semelhantes através do olhar. Parecia-nos ter a ilusão de ver desde logo de quem se tratava. Rostos abertos joviais e simpáticos, semblantes fechados, caras bonitas, boa pinta, rostos bondosos, caras lisas, peles de pêssego, marcas de antigas borbulhas, artifícios à base de UV, peles envelhecidas, tudo era rosto. Os rostos tinham um carisma; e que belos rostos por vezes! Assim, sem forçosamente gostarmos de toda a gente gostávamos de nos ver uns aos outros, nas nossas semelhanças. Hoje escondemo-nos uns dos outros como ladrões que procuravam fazer-se perdoar pelos delitos cometidos. O que procuramos dissimular com esta invisibilidade organizada e universal dos nossos rostos? Restam os olhares alcançados pelos únicos sobreviventes deste imenso jogo nacional de esconde-esconde. Confirmam ao mesmo tempo a sua utilidade, por vezes o factício do que aparentam revelar. Cruzam-se todo o tipo de olhares. Os das crianças, estupefactas, nos seus carrinhos, por cima do tecido, qualquer coisa de humano. Há olhares acolhedores e amáveis, encorajadores nos piscares da pálpebra em forma de convidados. Outros completamente bloqueados, como se proibissem a passagem a uma qualquer intimidade. Há olhares duma indiferença granítica e duma frieza de ciclope. Estes olhos, única parte visível do iceberg dos rostos, transportam todos os sentimentos de que ainda somos capazes. Por vezes distinguimo-los húmidos ou orvalhados, marcas do drama duma vida. Cruzamos olhares brilhantes, traços de intensos momentos de felicidade. A verdade da observação é que a maior parte parecem apagados duravelmente, como desligados. Nem nos fixam um momento que seja. Deslizam como a água nas penas dum pato e passam a outra coisa. Já não se troca qualquer tipo de amabilidade através dos olhos, apenas sentimentos pesados que traduzem mais o desespero do que a alegria do encontro. Olhares mauzinhos abatem-se sobre os que não trazem máscara. Olhares enfurecidos quando por inadvertência uma pequena falha lhes molha o vestido ou o casaco. Contudo sejamos objetivos e não tenhamos um olhar unicamente negativo sobre as pessoas que cruzamos nestes tempos de pandemia. Vemos também muitos olhares simpáticos e mesmo divertidos, alguns que só esperam a possibilidade duma pequena conversa como no balcão dum bar. Não, o que mais falta faz ainda, na impossibilidade de mostrar o rosto completo, são sobretudo os sorrisos. A qualidade do olhar nunca poderia compensar a força e pertinência dum sorriso acompanhando os lábios na sua manifestação de contentamento. O sorriso é o que mais falta faz à nossa sociedade, aos nossos contemporâneos mascarados, fantasmáticos. Poder-se- -ia imaginar um mundo privado do sorriso até ao fim dos tempos? Seria um inferno de glaciação relacional. Uma ausência total de intercâmbio de sentimentos positivos nas relações interpessoais. O universo sem sorriso seria inabitável, mal-humorado. Sufocante. Como é que as crianças poderiam adivinhar que a vida tem o seu peso grande de alegria quando não poderiam nunca mais ver desenhados os sorrisos dos pais?

À procura do abraço perdido

No passado dia 21 de janeiro, dever-se-ia ter festejado o dia internacional dos abraços. Não instaurado este ano o que, tendo em conta as distanciações sociais de rigor, trairia para os seus inventores um lamentável humor negro. Teve origem nos Estados Unidos há trinta e cinco anos pelo reverendo Kevin Zaborney. Este religioso sonhava ver a população inteira dos Estados Unidos a abraçar-se, convicto pelas recentes descobertas científicas de que um abraço durante vinte segundos desencadearia nos abraçados uma segregação de ocitocina, hormona do bem- -estar. O reverendo foi confrontado na sua escolha com revelações meteorológicas que previam que no dia vinte e um de janeiro seria atingido o pico das depressões invernais. Era preferível, conclui ele, apertar um desconhecido nos braços a tomar um Xanax num copo de whisky. Ele mesmo beneficiaria da euforia da nova instituição mais recente do feriado de vinte de Janeiro, em honra do pastor Martin Luther King e da sua pastoral que se estribava na não-violência. Rapidamente, a iniciativa deste movimento público de ternura geral seduziu outros países. A Austrália, o Reino-Unido, a Alemanha, a França, a Polónia… Em Portugal temos o dia do abraço a 22 de maio. A verdade é que o reverendo americano não foi o único pioneiro na matéria. Mais ou menos na mesma época, uma Indiana, Mata Amritanandamayi, “Mãe da Plenitude imortal” sentiu a mesma intuição e criou a ONG ETW. Pôs-se a curar e pacificar ela-mesma o espírito humano, abraçando incondicionalmente e por todo o mundo. Terá abraçado, só no ano de 2017, 37 milhões de pessoas pelo mundo fora, todas elas se teriam encontrado algo “ perturbadas”. É claro que teria de haver controvérsia à volta deste guru e das suas ações caritativas. Porém, as críticas e acusações nunca infirmaram o poder reparador das embaixadas do coração e das almas dos homens, sejam quais forem as suas origens. E não é neste momento, em que nos sentimos cruelmente privados desse afeto, que vamos contestar o poder deste contacto que nos parecia, ainda ontem, tão banal e por vezes mesmo constrangedor. Talvez nunca mesmo, se tenha sentido uma necessidade tão forte, tão urgente. Ah! Estar de novo pertinho do fôlego de outra pessoa, agarrá- -la, apertá-la contra si em intermináveis efusões de amizade e afeto! Ah! Um pouco de ternura por fim! Um pouco de calor e ternura, de corpo inteiro, sem medo do outro. Porque não é na ternura que encontramos nesta calorosa manifestação física do abraço amigo? Uma inclinação para a delicadeza, e por conseguinte uma disposição de espírito infinitamente superior à da retribuição e da violência, que é anulada com um simples sorriso. Há na ternura a expressão suprema da inteligência – a lucidez. Esta manifesta um autodomínio, a contenção dos nossos mais baixos instintos; a violência e os seus inúmeros avatares- o ressentimento, o ódio, a maledicência, a inveja. Inspira-nos a doutrina de Jesus “porque Eu sou manso e humilde de coração”. Na verdade, estas são duas virtudes inseparáveis. Econtra-se entre as bem-aventuranças:  “Bem- -aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra” (Mt 5,4). Como é simples imaginar a estupefação das multidões perante este anúncio, a insolente revolução dos corações que esta não deixa de suscitar desde há séculos! Na idade média, inspirou o amor cortês erigindo-o como qualidade de vida, uma arte da delicadeza e de respeito pelo outro. Algo inspirado pelo amor confundido com a nobreza da alma. Uma serenidade que não tem nada de adocicado, mas toda uma firmeza, de humildade, de caridade, «a amabilidade própria à verdadeira sabedoria que vem do alto” dizia S.Tiago ( Tg. 3,13). Este dia mundial dos abraços convida-nos a esta serenidade, e a meditar sobre ela, sobre as suas virtudes, neste período de violência extrema e crescente, e de grande solidão. A deixar-se converter por ela, a rogar-lhe que nos torne mais lúcidos, li ou ouvi: “ Fecham- -se os olhos dos mortos com ternura, é também com esta ternura que é preciso abrir os olhos dos vivos”.

Velhacosefeios.com

Quatro anos depois e ele vai por fim embora, e nós perdemos um tema de conversa. É que ele fez-nos falar, o burgesso, com os seus exageros e provocações, com a sua palavra em roda livre espalhada por toda a Terra através da graça ambígua das redes sociais. Durante estes quatro anos, são milhares de tweets que jorraram do seu smartphone pessoal, mais duma dezena por dia mesmo assim, um por hora fora do sono, incluindo aos domingos. Inundou metodicamente o planeta com os seus pontos de exclamação, com as suas frases brutais e sintaxe truncada, com as palavras em maiúsculas que não passam da mímica dos seus murros em cima da mesa. Com a sua altivez insensata, falava diretamente ao povo sem passar pelas subtis modalidades do governo. É como se houvesse um painel eletrónico plantado em todos os cruzamentos de todas as cidades do mundo. Um modo de informação municipal extensível ao planeta, onde desfilava em permanência o fio ininterrupto da sua palavra. Toda a gente troçava dele, estávamos bem enganados. Havia inventado qualquer coisa nova, em germe no princípio das redes sociais mas que ele desenvolveu até ao absurdo, como forma de conquista e modo de exercício do poder. Munido dos conceitos inéditos de verdade hiperbólica e de acontecimentos alternativos, construía um mundo mental desligado do real e que ganhava sobre a realidade. Não compreendemos, acreditando na estupidez, troçávamos dele saboreando as caricaturas, e durante esse tempo agarrava-se ao poder, e depois governava. Ninguém acreditava, como se o Mickey tivesse saído do seu cartoon para saltar para a realidade, sem ter abandonado o seu caráter simplificado e a sua espessura de papel, e que nos dava bofetadas, mas verdadeiras bofetadas que nos deitavam por terra. Nada sério, dizíamos nós, meio abalados. O nós de que falo refere- -se aos que acreditam no Estado, na democracia, no consenso razoável, na verdade que emerge do debate, todas as coisas das quais demonstrou por exemplo que não teriam nenhuma importância. O que ele vociferava no Twitter não fazia sentido e depois foi eleito, apoiado, agora cobarde mas somente por pouco. Certamente não medimos a profundidade do fosso que separa os que têm dos que não têm, não percebemos que o ódio em geral vence sobre a verdade, não desconfiámos que o real seja tão frágil quando as redes sociais se tornam a porta de acesso, estas redes em que o verdadeiro e o falso coexistem até diluir a verdade. Não levámos a sério o palhaço com a crina cor de laranja que parecia falar como o tio embaraçoso das refeições de festa em família, contudo, além do conteúdo dos seus propósitos, era ele que usava sempre da palavra, era ele que decidia dos temas de conversa, e a cada hora que passava lançava um novo tema, cuja pertinência não tinha qualquer importância porque mudaria um pouco mais tarde. É fascinante esta mudança de paradigma do governo, e é preocupante e perigoso para o futuro da política. Então quando Twitter lhe cortou a torneira por um instante sentimo-nos aliviados, e logo depois nova afogo aparecia. O pretexto foi uma mensagem que anunciava a sua ausência na entronização do seguinte, interpretada como sendo uma incitação codificada à violência. Por conseguinte não era a mensagem que justificava a sanção, mas sim todo o personagem. E em quatro anos, ninguém se apercebera de nada? E cortam desta forma o som a uma pessoa, sem debate nem decisão de justiça? Através dum tardio desdém de democracia, punem alguém que desde há quatro anos põe a saque a democracia? Não sei se vamos num melhor caminho … Mas de qualquer forma, Twitter, antes da passagem de poder, fica do lado do cabo. Por natureza as redes sociais veiculam tudo e mais alguma coisa e, quando os seus proprietários se ofuscam, isso faz-nos sorrir, e depois preocupa-nos. Se fossem simples fornecedores de acesso, sem responsabilidades sobre os conteúdos? Tanta hipocrisia! Deparamo-nos com um modo de regulação transparente, exterior às redes, porque a lei, é apesar de tudo mais clara. Não é muito são que a palavra pública seja regulada pelo arbitrário privado.

Adeus Teófilo

O Agrupamento de Escolas Emídio Garcia está de luto duma das personalidades mais marcantes dos seus corredores enquanto homem e professor. Permitam-me tão somente que reúna alguns traços da sua imagem que ficarão certamente gravados nas nossas memórias. Com a sua passada serena, mas sempre firme no seu pensamento, claro nas suas palavras e nas suas decisões: O Teófilo era sincero e leal. Inimigo de grandes compromissos, contudo era profundamente humano, duma amizade certa e de conselhos esclarecedores. Ninguém o conheceu sem se prender no seu estilo atípico, acabando mais tarde por lhe dar razão. De cultura clássica, quem de nós não conheceu a sua alegria e fecundidade intelectual, percorrendo o mundo greco-romano. Os seus alunos deleitavam-se com a precisão e clareza das suas aulas e das solicitações que lhes testemunhava e sugeria. Ninguém esquecerá tampouco a sua participação no Conselho Geral; as suas intervenções breves, tantas vezes lapidares, sempre pertinentes que esclareciam utilmente as questões debatidas e facilitavam as soluções. Não esquecerei tampouco a precisão de pensamento e elevação dos seus pontos de vista quanto à educação do presente e visão do futuro. Amigo das artes, sabia como parar o tempo na sua contemplação. Tentava assim transformar a sua arte e a sua vida na sua arte de viver. À colega Fernanda, aos seus filhos, em nome dos colegas e amigos, deixo as minhas tristes condolências e calorosa simpatia de todo o Liceu, para quem ele ficará um exemplo de probidade intelectual, de coragem, de actividade, de entrega e de recordação de que, sabemo-lo todos, a sua imagem nunca se apagará. Adeus Teófilo.

Nascimento e crescimento de um anjo

No momento em que se retoma toda a preocupação com a escola e o «eterno regresso» dos conceitos de como educar, também a mim me interpela esse universo de uma forma nova. Nasceu há exactamente um ano, dia 9 de agosto. Como ele é recente nesta terra. Os primeiros meses passou-os com o rosto mergulhado no seio da mãe que o alimenta. Nunca se separam, esses dois, o que torna as poucas visitas algo ciumentas por não pertencerem a esse mundo mágico e fusional. Pouco a pouco foi abrindo os olhos sobre as coisas e os seres. Mostra- -se surpreendido, estupefacto, por constatar a existência dos outros depois de alguns meses de confinamento. Tudo isto acompanhado por sorrisos que põem à vontade ou em êxtase qualquer ser humano que o vê. Ainda não viu nada da verdadeira vida, este inocente. Há tanta coisa para descobrir. Não pode imaginar que o universo irá limitar-se, durante a vida, ao que gira à volta da sua pequena pessoa. Nem que tudo vai resumir-se à ternura incansável da mãe, às carícias apoiadas dos avós omnipresentes. Será preciso pensar desde já que tem de ser prevenido sobre tudo o que o espera? será necessária a crueldade de lhe dizer a verdade sobre a forma como, na realidade, as coisas e as pessoas funcionam na nossa velha terra ? Seria desperdiçar a inocência da sua primeira juventude; seria correr o risco de desencorajar uma jovem vida nos seu princípio, dissuadir desde logo toda a força de optimismo e capacidade de vitalidade feliz. Não se destroi uma energia no seu despertar. Tão perto do seu nascimento, pode-se fazer muito melhor do que pintar a um menino puro e sem qualquer mau pensamento um quadro representando tudo o que o homem é capaz de inventar no domínio da maldade e da violência, das guerras, das fomes organizadas, das dominações, dos cortejos de refugiados onde se vêem tantas crianças e bebés à espera diante de tanques cheios de água, algo tão raro por esses lados, corpos de afogados no mediterrâneo. Sem falar da abominável estupidez, esta vigorosa imbecilidade que leva tantas pessoas a separar-se, a dividir- -se, a odiar-se, a oporem-se uns aos outros com a única finalidade, dir- -se-á, de acabarem sozinhos na terra, sem o aborrecimento dos que são diferentes. Não, por favor, vamos poupar-lhe estes horrores ainda que estejamos impacientes para o prevenir, para que possa encontrar caracter e valentia para enfrentar e dominar tudo isso, mais tarde. Contudo não se espalham num berço os horrores e bestialidades de que é capaz o ser humano. Há prendas mais simpáticas. Neste estádio do seu desenvolvimento, limitemo-nos a anunciar- -lhe aquilo que, na sua vida futura, pelo menos é o que esperamos, será para ele fonte de alegrias e satisfações de toda a ordem. Descrevamos-lhe a opulência das coisas belas, a magnificência das paisagens terrestres das quais não tem ainda a mínima ideia; falemos-lhe das montanhas que escalará quando for grande, às costas dos pais antes de o fazer sozinho. Façamos-lhe ouvir a fonte palpitante de água pura e o canto do riacho percorrendo a verdura dum prado tranquilo. A catarata duma cascata sobre o rochedo e a suavidade do tapete húmido duma floresta profunda. Evoquemos aquilo que poderá ser o prazer de contemplar um céu imaculado duma beleza de gelo no fundo dum lago duma montanha cheia de neve e a impressão feliz que provocarão nele o canto dos pássaros das auroras radiosas duma primavera que estará sempre de volta. Mostremos- -lhe como se podem oferecer flores e toalhas de lindas cores às avós na festa da vindima para retardar o inverno e as 52 semanas do ano. Haverá tanto e tanto para lhe contar e prometer estes pequenos pedaços de felicidade simples que reserva uma existência, que seriam precisas muitas páginas para fazer uma lista parcial de tudo isso. Será preciso mostra-lhe e contar-lhe o sorriso das pessoas simpáticas e amáveis que estão perto de nós, a beleza dum rosto dum transeunte que passa a pé, num autocarro, ou num comboio. O sorriso duma rapariga bonita que se volta para trás. Ficará essa recordação para toda a vida mas nunca mais será vista a não ser em sonho. Será necessário fazer valer mil e um encontros e gestos de solidariedade, mãos estendidas que socorrem após um drama ou um crime cometido por desconhecidos cobardes, como quando surge um atentado que desperta o sentimento de pertença a uma grande família humana da qual se diz : esta vale a pena. Será preciso dizer-lhe, ao miúdo, quando for mais crescido, que quando aprender a ler e a escutar, terá acesso às maravilhas acumuladas da literatura, às melodias perturbantes da música, Mozart, Bach, Verdi : as suas criações esperam sabiamente o menino em discos que não se usam. Parecidos aos milhares de filmes, obras primas que esperam os nossos desejos de os ver. Será preciso vislumbrar que um dia, talvez, ele possa também pretender tocar um instrumento para fazer vibrar a vida. Ou uma pena para a descrever. Até que, como qualquer um de nós, cruzará o amor no olhar de outra pessoa, apaixonado tanto quanto possa e cheio de projetos… Nunca chegaremos a terminar de lhe contar a beleza da existência, a este menino cujo olhar nos comove e o sorriso nos ilumina a alma. É preciso dizer-lhe a riqueza da poesia, a maravilhosa pintura, e os talentos dos génios de outras épocas, de todas as categorias, de todas as nações. Essas pessoas que foram também elas bebés vendo a vida com avidez e interrogando-se sobre a forma como as coisas giravam à sua volta e em que mundo viveriam. Esse menino de Bragança, por enquanto, afastado de toda a infelicidade humana bem à sua frente, disponível para viver os aspetos positivos e as juventudes perpétuas da existência. Acaba de chegar. Vai ver tudo. Atravessará as portas do futuro. Tudo lhe é permitido e possível. Amámo-lo e quase temos ciúmes pelo que ele é e pelo que virá a ser.

Do outro lado da pena

O que há do outro lado da pena, o que é que nos espera, quem seremos nós, depois? Mais ou menos formulada, a questão impõe-se rapidamente depois do choque sofrido. Quando perdemos alguém que amávamos desde sempre, a mulher ou o homem de quem estamos apaixonados vira-nos as costas para sempre, e quando é um pai ou um irmão mais novo… A pena é algo muito diferente da infelicidade. Aquele que perde o seu trabalho, aquele que perde a casa, aquele que perde o seu país, aquele cujo filho acorda muito doente, essa pessoa não se questiona sobre o que há do outro lado, sabe que tudo vais ser muito difícil e que o desemprego, a rua, o exílio, o tormento vão durante muito tempo absorver todas as forças de que dispõe, a cada instante de cada dia da sua vida, num sombrio e longo presente. Como para a explosão das torres em Nova York, a queda do muro de Berlim, ou quando soubemos que Notre Dame de Paris estava a arder. Gostaríamos de o contar, mas contemo-nos, sabemos que isso não interessa a ninguém. Toda a gente estava em qualquer lado, toda a gente teve um sentimento arrepiante, assim como uma grande incredulidade face ao que via. Dor penosa, aconteceu há dois meses e já parece ter sido há muito, porque o tempo passa muito depressa. Para esta ideia de que em poucos dias, conseguiríamos de alguma forma habituar-nos aquilo que nos impedia de respirar e nos cortava o coração, atravessou-nos e revoltou-nos também no mais profundo de nós mesmos. A transformação em nós aconteceu e dura. Parece que por vezes até temos a consolação dum amigo, dum parente que nos quer aliviar o sofrimento partilhando-o connosco. Aquele que tenta consolar-nos não é forçosamente aquele que nos alivia. Pode ser um desconhecido de passagem, que nos liberta sem o saber, nos abre portas, nos põe em movimento. Além disso será que queremos mesmo abandonar essa pena que nos liga à nossa perda, ao nosso luto? Esta dor que é a nossa forma de amar ainda, que é o amor posto à prova da renúncia, queremos mesmo ser curados? É a memória do que foi, o rasto duma plenitude que nos fugiu. É-nos precioso e merece ser cultivado. Como tudo o que vive, conhecerá as estações, sonos e auroras resplandecentes, acompanhar- -nos-á para todo o lado onde formos. Os consoladores são aqueles que nos vão permitir levar connosco esta pena em vez de lhe sofrer o peso. Não é fácil admitir que há uma vida do outro lado da pena, do outro lado do arrancamento, do silêncio, da morte. Não é assim tão fácil aceitar mudar, para viver plenamente para além das lágrimas. Poderemos nós aceitar um dia secar as lágrimas e viver serenamente no companheirismo da ausência? Não seremos tentados a remoer? Nada é urgente. O tempo é nosso aliado. Não foi no dia seguinte que o Cristo voltou, foi ao terceiro dia! E três dias é o mínimo para admitirmos que a vida nos espera, do outro lado da pena. 

O verão em parábola

Os rostos das pessoas, como as folhas das árvores, começam a ficar mais manchados, pálidos e tristes. É o verão e o sol que nos estão a fugir. Que fizemos nós, que travessias fizemos nós neste verão e que desejávamos tão impacientemente? Há poucas semanas atrás, esperávamos ardentemente o tempo do calor e do descanso. Desejávamos o sol. Espreitávamos os sinais do verão. Ora, muitas vezes faltam-nos os sinais, pensamos nós. Os sinais que confortariam os nossos desejos, que reparariam os nossos erros, que preencheriam as nossas necessidades ou que viriam apaziguar as nossas preocupações. Acabámos por deixar de ver os sinais que entrevíamos impacientemente e por confundi-los mesmo com o objeto dos nossos desejos. Não é o verão que nós esperávamos mas tão somente a excitação das nossas angústias, das nossas dúvidas e insatisfações. 

Há uma estranha e breve parábola no evangelho, a dita da figueira, que faz parte duma série de parábolas extremamente fortes sobre a iminência do fim dos tempos. Jesus confiará aos seus apóstolos: “A minha alma está profundamente triste até a morte” (S. Marcos 14, 34).

Qual é o objeto da nossa espera? Qual é o significado da nossa impaciência na descoberta das provas daquilo que esperávamos ver realizado? “Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já o seu ramo se torna tenro, e brotam folhas, bem sabeis que já está próximo o verão” (S. Marcos 13, 28). Na realidade, o sentido que parece emergir é que temos à frente dos olhos os sinais que tanto receamos não ver. E é para nos perguntarmos se não tememos mais ainda a identificação dos nossos próprios desejos.

Alguns rebentos, algumas folhas novas. O verão aparece com toda a sua esperança. Mas nós preocupamo-nos em saber, em compreender… Ora o resultado não será o que nós esperamos. A nossa inquietação não deve ser o conhecimento do que vem, quando e como, mas sim acolher o que vem. Preferiria dizer que há duas naturezas de conhecimento, um que não passaria da impaciência de saber e que viria preencher uma necessidade qualquer, dissipar um segredo ou um mistério, e a outra que consistiria em acolher em nós precisamente o que não conhecemos, o que esperamos mas sem querer forçosamente retirar-lhe o mistério, a parte de sorte ou azar. Nem que para isso seja preciso atravessar “esta profunda tristeza”.

Vemos por nós-mesmos que o tema da nossa espera foge aos sinais visíveis e previsíveis. Queremos a toda a força verificar os sinais das nossas expetativas, tendo-os diante dos nossos olhos e que de certa forma vemos sem ver.

Oh meus amigos, devemos agir com aquilo que muitas vezes não compreendemos, com aquilo que nos foge. E devemos talvez aprender a resistir ao querer “saber tudo”. O que não significa cultivar a ignorância ou o segredo, mas mais autenticamente viver com uma parte de desconhecimento das coisas, sem a qual nenhuma procura, nenhum desejo seria digno de interesse. Muitas vezes, a nossa espera por sinais e significações é tal que a mesma faz obstáculo em nós ao que surge, ao que é novo. Como a nossa paixão insaciável pelas origens.

Pelos vistos mais de oito milhões de pessoas pelo mundo já testaram o seu ADN, para ter a confirmação das suas origens, interrogar um segredo de família, prever uma doença… de que verão desaparecido para sempre somos nós feitos? Lembro-me duma Torre Eiffel dentro duma bola em vidro cheia de partículas brancas que parti em pedaços quando era criança, querendo desvendar e compreender o acontecimento, como era feita. Percebo só agora que as nossas vidas não passam destes pequenos objetos que se partem quando queremos compreendê-los e saber como é que são feitos.

As nossas vidas não passam da montagem destes pequenos pedaços em aparência tão frágeis, tão íntimos, e destes momentos esperados, desejados, em que convocamos e contamos um por um certos fenómenos que não são mais do que as nossas interrogações e hesitações perante o que nos acontece ou que nos foge, e que desaparecem com o tempo e o vazio das coisas como dos seres, sem nunca ter a certeza das convenções para os suster e exprimir claramente. É verdade, o verão fugiu-nos mas algo se passou. E ainda não temos forçosamente o conhecimento disso. E espreitamos novamente os sinais. Continuamos a caminhar sobre os pedaços de vidro dos nossos segredos e das nossas esperanças.