António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António Pereira (Torre de Moncorvo, 1605 – Coimbra, 1652)

Nasceu em Torre de Moncorvo, pelo ano de 1605, no seio de uma família de mercadores e rendeiros. O pai, Domingos Pereira, era de Chacim e a mãe, Maria Álvares, de Torre de Moncorvo. Esta tinha vários irmãos e outros parentes a morar em Castela. E em Castela também, encomendado na igreja de S. Martinho de Tormes, vivia um tio paterno do nosso biografado, o padre Cristóvão Pereira, facto que não deve estranhar-se, antes era frequente em famílias cristãs-novas de algum prestígio.

Porque os dois reinos ibéricos se encontravam unidos sob o trono dos Filipes e as comunicações eram fáceis, António Pereira contava pouco mais de 15 anos e já se adiantava por terras de Castela a mercadejar, conforme testemunho de Francisco Fernandes, de Miranda do Douro, em 1642:

— Disse que haverá 21 anos, indo com António Pereira (…) de Medina del Campo para Salamanca…(1)

A restauração da independência em 1640 e a guerra que seguiu vieram cortar muitas das rotas comerciais de Trás-os-Montes com Castela. António Pereira, no entanto, era já um homem de cabedal, o que lhe permitia apresentar-se a concursos para arrematação de cobrança de rendas. Assim o encontramos como rendeiro dos “Votos de Braga” em terras de Monforte de Rio Livre nos anos de 1640 a 1646 que arrematou na mesa capitular da sé de Braga por 85 mil réis / ano.(2) E também como rendeiro da comenda de Santa Maria, de Bornes, da Ordem de Cristo, arrematada por 380 mil réis /ano e das rendas que a condessa de Faro tinha em Morais, atual termo de Macedo de Cavaleiros.

Pelo S. João de 1641, a inquisição lançou uma operação de limpeza da heresia judaica em Torre de Moncorvo, operação que, ao longo de uma década, levaria para as cadeias mais de 40 pessoas e destruiria a poderosa “nação hebreia” da vila. Os primeiros a ser presos foram os seus vizinhos Manuel Henriques Pereira, a mulher e a sogra, possivelmente a gente mais endinheirada de entre os da “nação”. Coincidiram tais prisões com a ida de António Pereira para Morais, a cobrar as rendas que ali tinha. Os esbirros da inquisição logo disseram que ele ia fugir para Castela e, passando pela vila de Castro Vicente, o capitão-mor do concelho, Manuel de Aragão, aprendeu-lhe as cavalgaduras, para impedir a suposta fuga. A propósito, veja-se a denúncia feita pelo familiar do santo ofício Francisco Gouveia Pinto, o homem que conduziu António Pereira para a inquisição de Coimbra:

— Disse que, fazendo-se prisões em Sambade e Chacim, o dito António Pereira e sua mulher, vendo que algumas pessoas de Sambade e Chacim suas parentes que vinham presas, ausentaram-se da Torre de Moncorvo para Castela junto a Lagoa de Morais e aí as justiças os embaraçaram…

Interessante a resposta dada pelo réu aos inquisidores que o confrontaram:

— Disse que no tempo que se fizeram algumas prisões em Moncorvo, que segundo sua lembrança foi entre o dia de S. João e o de S. Pedro do ano de 1641, junto às casas dele réu, que ficavam em meio das casas das pessoas que se prenderam, e as casas deles ficavam desertas, e por assim estarem desertas, ele réu se não quis sair delas e sempre no dito tempo nelas assistiu, assim por guarda de sua fazenda como também de sua honra; sendo assim que tinha forçosa necessidade de ir, no dito tempo, a Morais, termo de Bragança, acudir às coisas necessárias à renda que tinha…

As casas ficavam desertas… Sim, o processo de António Pereira é muito interessante a este respeito. Pelas informações nele contidas, podemos povoar a Rua dos Sapateiros que era essencialmente ocupada por gente da nação. O licenciado João Góis era um dos raros cristãos-velhos moradores na Rua e sempre atento ao movimento da mesma. Ele e a ama de seus filhos, Úrsula da Silva, que lhe clamou a atenção para a festa que os cristãos-novos faziam, (celebrando o Kipur?) em casa de Gaspar Cardoso, onde muitos se juntaram e “na véspera antecedente mandaram da dita casa presentes como farinha em alqueires, cestas com grãos, peixe frito e cru, cestas com ovos e azeite a muitas pessoas pobres da nação, somente”.

Tudo isso foi João Góis contar ao vigário-geral da comarca, comissário da inquisição, Paulo Castelino de Freitas, acrescentando:

— Reparando ele na festa que a dita ama lhe tinha dito, pelo tempo que foi seria 1639, 7 de outubro, sentiu que se varriam algumas casas da gente da nação e suspeitou ser a dita festa, porquanto viu levar a casa de Maria da Silva, meia cristã-nova, mulher de Domingos Fernandes de Miranda, cristão-novo inteiro, louça, tachos e candeeiros em canastras a lavar-se para terem naquele tempo serviço da casa limpo. E uma mulher a quem chamam Andali, levava a lavar de casas de Manuel Nunes também o mesmo serviço. E no mesmo dia viu varrer a mulher de António Rodrigues Pinto a casa em que vive, defronte dele testemunha e a vira de tarde enfeitada de cara e cabeça com um mantéu de cochinilha que antes não costumava trazer (…) E logo ele testemunha saiu de sua casa e vindo rua arriba de S. Bartolomeu até à praça vira a loja do dito António Rodrigues varrida, da casa de cima, vira também varridas de fresco as lojas de umas moças cristãs-novas filhas da Gança e o portal da casa de Manuel Nunes e das filhas de Duarte Rodrigues, cristão-novo e da dita Maria da Silva. E também estava varrida a porta de António Pereira, o moço, e a de Francisca Vaz e de sua filha Filipa Henriques, todos cristãos-novos.

Logicamente que António Pereira se defendeu desta acusação dizendo que João Góis era seu inimigo e até tinha batido em um seu filho. Da sua argumentação depreende-se que entre eles existia alguma rivalidade política. Vejam:

— Sendo dado em confiança a ele réu, estando o dito licenciado na cadeia, para sair para ver umas festas de que era administrador, ele réu o fez tornar ao depois para a cadeia e sobre isso tiveram muitas dúvidas…

Porém, o seu maior inimigo era o familiar da inquisição Francisco Gouveia Pinto, que, em tempos, servindo no cargo de alcaide, lhe tomou um macho para, em jeito de requisição, para ir a Lisboa, muito embora António Pereira argumentasse que os cristãos-novos de Moncorvo tinham uma sentença do desembargo do Paço impedindo que lhe tomassem as bestas, recorrendo de tal prepotência para a Relação do Porto. E acrescentou a contradita seguinte sobre o mesmo familiar do santo ofício, a quem puseram a alcunha de “perna calaceira”:

— É homem de má consciência e se diz publicamente que andou publicamente induzindo testemunhas para jurarem contra ele, para efeito de lhe tomar culpa e o fazer prender; e que o mesmo é homem pobre, sem fazenda nem ofício e se sustenta do alheio, que pede e alcança por indústrias de que usa.

Impossível analisar o processo de António Pereira no curto espaço de um artigo de jornal. Diremos que ele foi preso em 21.11.1647 e saiu queimado na fogueira do auto-da-fé celebrado em 14.4.1652.

Nessa altura já a Rua dos Sapateiros estaria completamente despovoada da “gente da nação” a crer na informação que em 21 de fevereiro desse ano mandava para a inquisição de Coimbra o comissário Pedro Saraiva de Vasconcelos:

— Os cristãos-novos desta vila se fugiram todos para Castela e só ficaram 3 casas que também farão o mesmo, porém dizem que alguns estão escondidos em Vila Flor, que é a sua cidade de refúgio, com intenção de passarem a Castela.

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 8786, de António Pereira.

2 - Quando o prenderam, tinha ele em uma tulha na aldeia de Tinhela 300 alqueires de centeio, de rendas recebidas, e deviam-lhe mais de 1096 alqueires assim distribuídos pelas terras de Monforte Rio Livre: na Aguieira, 180 alqueires; em Tinhela, 126; Oucidres, 130; Bobadela, 80; Vilar Seco, 44; Bouçoães, 116; Vilartão, 80; Tronco, 160; Águas Frias, 80; “no lugar de Monforte ainda lhe devem o que se costuma pagar”.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Francisco Marcos Ferro (n. Torre de Moncorvo, c.1655)

Em meados do século XVII, uma das famílias hebreias mais consideradas em Moncorvo era a de Pedro Marcos Ferro, casado com Branca Gomes.(1) A maioria dos parentes de Pedro viviam em Chaves e Lebução,(2) enquanto a parentela de Branca se foi de Vila Flor para Viseu.

Pedro fora casado em primeiras núpcias com uma mulher que não identificamos, que lhe deu um filho chamado Lopo que foi casar e morar em Faro, dedicando-se ao comércio.

Branca Gomes, foi a segunda mulher de Pedro Ferro. Em determinada altura, o casal deixou Moncorvo e foi para Salamanca. E na universidade local se formariam dois de seus filhos: um em medicina e outro em leis. Regressados a Portugal, foram assentar morada em Pinhel, enquanto os filhos casavam e se dispersavam. Vejamos:

Lopo Marcos Ferro, médico, casou com Leonor Pereira e foi estabelecer-se na cidade algarvia de Tavira.

O filho Diogo Vaz Faro, foi grande mercador na cidade do Porto, essencialmente dedicado ao negócio do tabaco. Era casado com Isabel Henriques, de Vila Flor, filha de Vasco e Mécia Fernandes.(3)

Francisco Marcos Ferro, advogado, nasceu por 1655, em Moncorvo. Estudou na universidade de Salamanca e casou com Maria Henriques, irmã da citada Isabel Henriques. O casal cedo se mudou para Viseu e, por 1694, foram para o Porto.

Entre a elite da burguesia Portuense, Francisco Ferro ocupava um lugar cimeiro e tudo parecia correr de feição quando, em 22.10.1698, a inquisição de Coimbra decretou a sua prisão.(4) E enquanto ele recolhia à cadeia, a mulher e os filhos e muita parentela sua, de Chaves, Lebução, e outras terras, procurou os caminhos da fuga, embarcando no navio Nª Sª la Coronada, com destino a Livorno, em Itália. Porém, escalando o porto de Cádis, foram presos pela inquisição de Espanha.(5)

Quando o prenderam tinham acabado de chegar ao Porto os barcos da frota da carreira do Brasil. E neles vinham mercadorias para o Dr. Ferro. Vejam:

— 211 arrobas de açúcar (mais de 3 toneladas!) que valiam uns 330 mil réis; 39 arrobas de carvão, no valor de 140 ou 150 mil réis; 10 arrobas de pau cravo avaliadas em 30 mil réis; 24 moios de solas, que valiam 30 mil réis.

Refira-se que estas mercadorias vinham em diversos navios e à responsabilidade de várias pessoas que, naturalmente, ganhavam a sua comissão e para o Brasil tinham levado mercadorias do mesmo Ferro para vender. Vejam que tipo de mercadorias:

— Espingardas, mosquetes de pederneira e morrão, espadas, adagas, chapéus, facas marinheiras, meias de lã, mantos de seda, panos de peneiras, cachimbos…

Muitos destes produtos eram importados, nomeadamente de Holanda e para as bandas do Norte o Ferro exportava principalmente azeites, em ligação com seu cunhado Manuel Henriques Lopes.(6)

Advogado… mercador… Francisco Marcos era também rendeiro e trazia arrematadas as rendas do morgadio de Moçâmedes, da abadia de Queirã e da Misericórdia de Viseu…

Do inventário de bens, destaque para o preço de um “vestido de primavera” que comprou para uma filha por 50 mil réis e para a sua livraria avaliada em 70 mil réis, constituída por livros de “direito e ordenação” e os 5 livros do Pentateuco.

Foi denunciado por seu primo Francisco Rodrigues Brandão e pelos amigos António e Alexandre Mesquita, todos naturais de Vila Flor e moradores em Viseu.

Outras denúncias chegaram do Porto, em sumário feito pelo deputado da inquisição D. Tomás de Almeida, em 1692. Uma das testemunhas ouvidas neste sumário declarou o seguinte:

— Disse que sabe que Francisco Marcos Ferro, Diogo Vaz Faro e Manuel Henriques Lopes, que são cristãos-novos, e eles o não negam, e Diogo Vaz Faro disse que eles eram mais honrados e que todos os mais eram uns manganos mestiços.

Ter-se-iam estes 2 irmãos e seu cunhado por “mais honrados” que os outros cristãos-novos? A verdade é que, em 12.5.1701, Pedro Furtado, seu companheiro de cela na cadeia de Coimbra, se apresentou perante o inquisidor Mascarenhas de Brito contando que ouvira Marcos Ferro falar de si mesmo nos seguintes termos:

— Disse que ele, Francisco Marcos Ferro, era descendente da Real Casa de David e estimava muito ser cristão-novo inteiro e os que não eram cristãos-novos inteiros eram mestiços, vis e baixos, e que lhe fazia grande injúria quem com eles o comparava.

Esta declaração foi confirmada por outro companheiro de cela, chamado António da Fonseca dizendo que “ele se prezava muito de ser judeu, descendente da tribo de David”. Mais tarde, houve desentendimentos graves entre o Ferro e o Furtado, sendo este mudado de cela. Para o seu lugar foi Domingos Pires. E estas foram 3 testemunhas que contra Francisco Marcos acrescentaram um rol de denúncias.

Desde logo foi acusado de dizer que Cristo não era o Messias prometido, antes era o Anticristo que, em vez de “congregar o povo santo”, viera separá-lo; que nele se não cumpriram as profecias e por isso os teólogos e doutores da Lei o não reconheceram e nele só acreditou “a gente popular ignorante e gentia”.

Com muitas citações da Bíblia, disse que se a tribo de Judá se dispersara pela Sefarad, e que 9 tribos e meia foram para a terra de Assaret, que fica para além dos desertos e está defendida por um rio de pedras que estão sempre a bater umas contra as outras. E com argumentos tirados dos livros dos Profetas, afirmava que o Messias viria no ano de 1708, em que as 12 tribos se juntariam e reconstruiriam o templo de Jerusalém. E, citando o Bandarra, dizia que “nos três que vêm o reo haverá açoites e castigo”, referindo-se aos 3 inquisidores, que ele classificava como “os ministros da crueldade”, que prendiam para roubar os bens dos prisioneiros. E agora veja-se uma esta denúncia do mesmo Pedro Furtado:

— Disse que o santo ofício não prendia ninguém senão por herege, e que a ele réu faziam grande injúria os que o tinham por herege, dando a entender que não fora batizado (…) mas que era circuncidado.

Obviamente que logo os inquisidores mandaram os médicos examinar, concluindo estes que não havia qualquer sinal de circuncisão.

Aquelas foram apenas algumas das heresias apontadas pelos três companheiros de cárcere, das quais Francisco Marcos Ferro (através do seu procurador) soube defender-se muito bem, conseguindo provar que aqueles três homens não mereciam qualquer crédito, que eram padres e que puxavam por ele conversas acerca das Escrituras, que depois deturpavam, e sendo ele cristão-novo e estando preso por judeu não era crível “que se declarasse com os ditos padres e lhes confessasse o que era (…) pelo que se deve julgar que os testemunhos dos ditos padres não são capazes de fazerem prova”.

Na verdade, Pedro Furtado nem sequer se chamava assim, pois o nome verdadeiro era Manuel Carvalho. E entre eles houvera grandes desavenças, ameaçando Francisco que o “havia de açoitar e meter num alguidar”.(7) Este padre era natural de Serpa, cura da igreja de Sambade, filho de António Machado, familiar do santo ofício. Foi preso por sodomia e se fazer passar por mulher.

O padre António da Fonseca, natural de Amarante, morador em Midões, viveu em Coimbra a maior parte do tempo. Dele faria o conservador da universidade o seguinte retrato: “embusteiro, fingido e suspeito da nossa santa fé”, e o escrivão de Santa Cruz o considerava “teólogo de larga consciência” cujas “práticas e conversações eram sempre picantes”.(8)

O padre Domingos Pires era natural de Soutelo Mourisco, Vinhais, pároco de Bouzende, junto a Bragança. Foi preso porque andava amancebado com uma moça e pedia aos fregueses que a “venerassem por santa”.(9)

Na defesa de Francisco surgiu entretanto um contratempo: o seu procurador abandonou o processo dizendo que “lhe parecia que este se defendia maliciosamente e entendia que ele era judeu (…) pelo que entendia do modo e dizer do dito réu ser este fino judeu”.

Apesar disso, a pena de Francisco, lida no auto-da-fé de 18.12.1701, foi relativamente leve: abjuração, cárcere e hábito a arbítrio e 60 mil reis para despesas do santo ofício.

Notas:

1 - Branca Gomes era filha de Francisco Rodrigues Brandão e Isabel Gomes, que foram morar para Viseu.

2 - Neste ramo da família ligado ao Dr. Manuel Mendes, contam-se vários médicos, formados também por Salamanca.

3 - Inq. Coimbra, pº 9984, de Vasco Fernandes Lopes, o Malrasca; pº 2439, de Mécia Fernandes; pº 10572, de Isabel Henriques.

4 - Idem, pº 6198, de Francisco Marcos Ferro.

5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do mundo, Sefardita e Marrano, pp. 89 – 99, ed. Lema d´Origem, Porto, 2014.

6 - Inq. Coimbra, pº 8521, de Manuel Henriques Lopes. Quando foi preso estava carregando um barco de azeites no porto da Figueira da Foz.

7 - Inq. Coimbra, pº 7622, de Pedro Furtado.

8 - Idem, pº 10318, de António da Fonseca.

9 - Ibidem, pº 3011, de Domingos Pires.

Nós Trasmontanos, Sefarditas e Marranos Fernando Montesinos (Vila Flor, 1589 – Antuérpia, 1659)

Seu pai, Manuel Lopes Teles, passou pelas cadeias da inquisição de Coimbra, em 1577, sendo absolvido das acusações que lhe fizeram. Como testemunhas de defesa, apresentaram-se os homens de maior nobreza e fidalguia de Vila Flor e do processo ressalta a ideia que ele era homem de influência e abonado de bens.(1) Faleceu em Vila Flor pelo ano de 1596.

Sua mãe, Filipa Dias, era filha de Pedro Dias, que foi tenente em Monforte de Lemos e tesoureiro da confraria de Nossa senhora do Rosário, passou igualmente pelas celas de Coimbra, empenhando-se particularmente na sua prisão o inquisidor Jerónimo de Sousa que andou atrás dele por terras de Vinhais.(2)

Manuel Lopes e Filipa Dias moraram em Vila Flor e ali criaram 6 rapazes e 2 raparigas, que todos casaram. Apenas a filha mais nova, Beatriz Rodrigues, ficou a morar em Vila Flor, casada com Jorge Fernandes e ali terá falecido, em 1613.

Um dos filhos, Diogo Lopes Teles, frequentou a universidade de Salamanca nos anos de 1592 a 1597, saindo formado em medicina. Exerceu a profissão em Vila Flor, nos primeiros anos do século XVII, ali casando com Isabel Henriques.(3) Mudou-se depois para o Porto e ali comerciava, em rede com seus irmãos. Possivelmente, sentindo o cerco do santo ofício, foi-se dali para Amesterdão, onde se terá circuncidado, tomando o nome de David Arari. Faleceu em 1632.(4)

Os restantes filhos rumaram a Castela e espalharam-se pela Europa, em posições estratégicas, tecendo uma fantástica rede familiar de negócios, em que o líder seria exatamente um dos irmãos mais novos, Fernando Montesinos. No dizer de Markus Schreiber, “os Lopes Teles foram uma das principais famílias de Castela no século XVII”.

Bartolomeu Lopes Teles, seria o primeiro a seguir para Espanha, com mulher e filhos, estabelecendo morada em Valhadolid.

João Lopes Teles foi de casa movida com a família assentar morada em Sevilha, no outro extremo de Espanha.

O irmão Pedro, casado com Guiomar Henriques, estabeleceu-se em Baeza, no sul de Espanha, seguindo mais tarde para Marselha, em França.

A irmã Catarina, casada com Bernardo Lopes Ferro, morou em Medina del Campo. O marido, porém, foi tomar conta da delegação das empresas no Brasil.

Manuel da Serra seguiu para França, passando de seguida à Holanda, para assentar definitivamente em Amesterdão.

Fernando Montesinhos terá começado a viajar e mercadejar entre Vila Flor e Castela com os irmãos. Encontramo-lo, nomeadamente em Baeza, com o irmão Pedro, em 1602. Pouco depois, com o capital de 500 ducados, ganhos por ele ou emprestados pelos irmãos, começou a negociar por conta própria. Nesta situação se manteve até 1612, altura em que se associou ao irmão Bartolomeu, com “lonja” aberta em Valhadolid. Os negócios da “lonja” andavam à volta dos tecidos mas sobretudo da compra de lãs em Portugal e Castela, que eram exportadas para a Flandres e para a França, país este onde ele começou a frequentar as feiras de Ruão, Paris, Lyon e La Rochelle.

Por 1616, Bartolomeu e a mulher faleceram, e Fernando Montesinos mudou-se para Madrid, ali estabelecendo a sede da sua própria empresa e levando também os seus 3 sobrinhos, filhos de Bartolomeu. Era já empresário de nome, um próspero “hombre de negócios” e, por isso, em 1620, alcançou casar com D. Serafina de Almeida, da família dos Lopes de Castro, “banqueiros do rei Filipe”, família onde também casou António Lopes Cortiços. Ligavam-se assim algumas das mais ricas e prestigiadas famílias cristãs-novas de Bragança, Mogadouro, Torre de Moncorvo e Vila Flor.

Fernando Montesinos logo ascendeu à classe dos “asientistas”, apresentando-se a concursos de prestação de serviços à Coroa, serviços que exigiam extraordinária capacidade financeira, forte liderança e recursos humanos especializados. Foi o caso do comércio do sal, cujo monopólio arrematou por 10 anos, nas regiões da Galiza, Astúrias e Andaluzia.

Obviamente que nos lugares de direção nos diversos postos de abastecimento (“alfolis”) estavam colocados familiares e amigos, e que a porta estava sempre aberta para os cristãos-novos de Vila Flor e Trás-os-Montes que para Espanha se iam e demandavam trabalho nas empresas Montesinos. Deve acrescentar-se que a atividade da empresa não se limitava à venda de sal em Castela, mas também à sua exportação para os países nórdicos.

Outro “asiento” que ele conseguiu foi o provimento das tropas estacionadas na praça de Ceuta, que incluía o pagamento dos ordenados, o fornecimento de géneros alimentares e fardas às tropas, bem como a palha e grão para os cavalos. Imagina-se a quantidade de pessoas a trabalhar para o “asiento”, desde a compra do cereal ao fabrico do pão, aos transportes, etc.

Mas não se pense que os outros negócios de Fernando Montesinos pararam. Pelo contrário, cresceram e estenderam-se à Flandres, Holanda e Alemanha, certamente em rede com seus familiares. Contudo, a inquisição vigiava e Fernando Montesinos foi preso pelo tribunal de Cuenca, acabando por ser absolvido e sem grande prejuízo para os seus negócios. O pior estava para vir.

Por 1650, a inquisição iniciou uma série de investigações a respeito da limpeza de sangue dos Cortiços, que haviam alcançado o grau de Cavaleiros da ordem de Calatrava, concluindo que vários “hombres de negócio” tinham prestado falsas declarações. Por outro lado, falecendo Manuel Cortiços Villasante, fizeram-se muitas esmolas por sua alma, em paga de jejuns judaicos, o que também chegou ao conhecimento dos inquisidores. Em consequência, registou-se uma vaga de prisões entre aquele grupo de mercadores e “banqueiros do rei”.

Foi o caso de Serafina de Almeida e Fernando Montesinos, presos em 1654, que saíram penitenciados dois anos depois e condenados a pagar, respetivamente, 2 mil e 6 mil ducados (12 contos de réis, no total), de acordo com a informação de M. Schreiber, se bem que Cármen Sanz eleve a conta para 10 000 cruzados.(5)

Claro que com a prisão de Montesinos pela inquisição, se colocava o problema da reversão dos “asientos” por ele contratados com a Coroa. Porém, nenhum empresário se apresentou a concorrer, para além dos filhos do próprio Fernando Montesinos, sobre quem os conselheiros da Coroa prestaram a seguinte informação:

— Estos hijos de Montesinos son muy inteligentes y por cuyas manos corrían las negociaciones de su padre y ninguno como ellos podrá com la notícia que tienen y com el crédito, acudir tan bién a la uno e a la outro como ellos.(6)

Na verdade, apesar daquele rombo financeiro, as empresas Montesinos continuaram florescentes, dirigidos pelos filhos, Manuel e Bartolomeu que, mutuamente, se conferiram amplos poderes. E para melhor gestão, estabeleceram uma espécie de direção bicéfala e descentralizada, ficando Manuel na agência de Madrid e Bartolomeu em Pontevedra.

Entretanto, retomada a liberdade, Fernando Montesinos e Serafina de Almeida abandonaram Madrid e foram para a Flandres, estabelecendo morada em Antuérpia, onde viriam a falecer. Com eles para a Flandres, viajou o sobrinho/neto Francisco Teles que em Madrid trabalhava de tesoureiro com Fernando Montesinos. Voltará a Espanha e como “hombre de negócios” e mais tarde ganhará o concurso para o abastecimento das tropas espanholas em Marrocos, indo fixar-se em Larache.

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 458, de Manuel Lopes. Este processo é bem revelador das preocupações do arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires, relativamente aos procedimentos da inquisição contra os cristãos-novos, bem como da atuação verdadeiramente estranha e singular desenvolvida pelo inquisidor de Évora, Jerónimo de Sousa, enviado para Vila Flor como abade da igreja matriz.

2 - Idem, pº 9881, de Pedro Dias.

3 - DIOS, Ángel Marco de – Índice de Portugueses en la Universidad de Salamanca (1580 – 1640), in: Brigantia, vol. XII, n.º 3; Bragança, 1992.

4 - 3-SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600-1670, pp. 164 - 171, Stuttgard, Steiner Verlag, 1994.

5 - SANZ, Cármen Ayán – Los Banqueros de Carlos II, Valladolid, Universidad, 1989, pp. 336 – 338. Outros prisioneiros do círculo de F. Montesinos, condenados em “multa” para o santo ofício foram os seguintes: António de Sória, originário de Bragança, agente dos Cortiços – 1000 ducados; Gaspar de Gouveia, empregado da Casa Cortiços – 4000; Diogo da Costa Brandão, “asientista” – 4000; Gaspar Nunes, de Aveiro, negociante de sal – 2000; Francisca da Veiga – 4000; Mência de Almeida, irmã de Serafina – 4000; André da Fonseca, médico de Mirandela – 500.

6 - Idem.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Pedro de Mesquita (n. Vila Flor, c.1600)

Pedro Mesquita nasceu em Vila Flor, pelo ano de 1600. Foram seus pais o Dr. Francisco Vaz, médico, e sua mulher Inês Vaz. Andaria pelos 10/11anos, quando ele e seus dois irmãos foram levados para Castela(1) onde tinha vários parentes, nomeadamente os primos coirmãos Pedro Henriques de Mesquita e Manuel de Mesquita, que o terão iniciado no judaísmo.

Possivelmente foi também com aqueles primos, cujos pais e outros familiares moravam em Pastrana, onde eram fabricantes e mercadores de seda, que se meteu a negociar, a partir de Madrid. As rotas comerciais de Pedro Mesquita estender-se-iam também para o lado de cá da fronteira, trabalhando em rede com seus familiares de Vila Flor onde ficaram seus pais e duas irmãs que ali casaram.(2) Teria até negócios conjuntos com um seu cunhado morador em Vila Flor. A propósito, diria ele mais tarde:

— Que lhe vinham umas sedas e as trazia seu cunhado, marido de sua irmã, ao qual queria mais que às mesmas irmãs, e estava temeroso de lhas tomarem, e dele ser preso, e mais estremecia na prisão deste cunhado de que sua mãe.(3)

E porque as rotas comerciais o traziam para cá da fronteira, quando chegou à idade adulta, regressou a Portugal e a Lisboa para casar com a filha de um cristão-novo, “proprietário” em Montemor-o-Velho chamado Rui Lopes Pinto.(4)

Por 1622, encontrava-se Pedro a morar em Lisboa, na rua do Mata Porcos, com sua mulher, Maria Rodrigues Pinto e, no ano seguinte apresentava-se como um “rico” mercador, com loja de sedas aberta na Rua Nova.

Muito interessante a respeito deste ramo de mercado, é o processo de Pedro de Mesquita que nos fala de uma dezena de lojas de seda da Rua Nova, com identificação de seus proprietários, todos eles da nação hebreia, o que não exclui a existência de outras.

Em 1630, Pedro de Mesquita “quebrou”, ficando embargado pelos “acredores” em 16 000 cruzados (6 contos e 400 mil réis), destacando-se entre estes, Francisco Botelho Chacon e seus parentes Silveira. Os ativos e passivos da loja de Pedro Mesquita foram assumidos por seu sogro e seu cunhado, negociando um plano de pagamento das dívidas aos acredores.(5)

Certamente para acerto da negociação, Mesquita refugiou-se na casa do senhor arcebispo, dali transitando para a “prisão” do Castelo e depois para o Hospital, que funcionava como cadeia. Conheceu ali José Pedroso, cristão-velho, alferes de uma companhia, que estava “retirado no hospital por um homizio de uma morte”. Dias depois, Pedroso apresentou-se na Inquisição de Lisboa, contando que, estando os dois a olhar por uma janela, ele disse: — Como está formosa esta praça e aquela porta da inquisição como está alva! A isto, respondeu Pedro Mesquita: - Sim, sim, arada que seja (a praça) e abrasada (a casa da inquisição)… E ele declarante ficou com o conceito que Pedro de Mesquita era um grande judeu.

Entretanto, na mesma casa da inquisição foi preso um mercador de sedas, com loja na Rua Nova, chamado João Duarte que denunciou Pedro Mesquita por declarações de judaísmo. E estas duas denúncias levaram à prisão do nosso biografado, em 14.5.1630. Depois de preso… surgiram denúncias em série, uma torrente de denúncias, impossíveis de relatar.

Desde logo, em função da linguagem usada por Mesquita, muito desbragada, sendo o seu processo verdadeiramente extraordinário, revelador de um caráter muito irascível. Imagine-se: foi mudado 4 vezes de cárcere, tendo por companheiros mais de uma dúzia de presos de categoria muito diversa e todos eles contaram episódios incríveis, colocando na boca do Mesquita palavras tão insultuosas que eles próprios se recusavam a pronunciar. Exemplo: Pedro da Mesquita dizia que os cristãos tinham santos para tudo e que até deviam ter um santo para o “olho da parte imunda” e se o não tinham que fizessem santo para isso o Conde Redondo!

Particularmente agressiva era a linguagem usada ao falar do papa, dos cardeais e dos inquisidores e quando falava de Cristo e dos santos, apontando para as imagens… A propósito, também este processo é extraordinário pois nos mostra que nos cárceres da inquisição havia quantidade de imagens pintadas nas paredes: Cristo no horto, Cristo na Cruz, Verónica, Senhora do Rosário, milagre da Senhora da Nazaré…

Difícil explicar como é que um homem de 30 anos, preso por crimes contra a religião, continuava dizendo tantas blasfémias e barbaridades, alto e bom som, para os diversos companheiros de cela, incluindo um frade cristão-velho e um ex-carcereiro da inquisição. Era o mesmo que estar a pedir que o queimassem…

Seria um louco) Faltava-lhe uma aduela? Ou, antes, era “soberbo” e amigo de “contradizer”, como os outros o retrataram? E porque se gabava de ter enviado 5 mil cruzados para Livorno e se preparava para fugir e tornar-se ali judeu, como os seus irmãos? Aparentemente era esperto e instruído, a ponto de elogiar a parte do Catecismo de Frei Bartolomeu dos Mártires que falava de Moisés e o resto “estercos, sujidades e mentiras”. E sobre os inquisidores questionava: — Querem ser juízes de nossas consciências, dando-nos Deus livre arbítrio?

Manuel Mesquita, cristão-novo, rendeiro, de Leiria e João Esteves, guarda da inquisição, foram seus companheiros de cárcere e, face à torrente de blasfémias e comportamentos judaicos de Pedro, resolveram-se a escrever uma espécie de diário dos mesmos, para contar aos inquisidores. Veja-se a referência feita pelo ex-guarda, no dia 18.7.1630:

— Rezando o dito Manuel Mesquita e oferecendo a reza a uma imagem de nª sª do Rosário, que na parede estava pintada em papel, o dito Pedro Mesquita se foi por detrás e o empurrou para que desse com os focinhos na imagem, com escárnio e desprezo dela evidente.

 E esta, referida ao dia 24 seguinte:

— O dito Pedro Mesquita disse (…) que fora uma vez a S. Gião, pela quaresma pedir um escrito de confissão a um clérigo por 50 réis,; e que o achara sempre escrito por um tostão de confissão, sem se confessar, por se desobrigar da quaresma…

Pedro e outros prisioneiros de cárceres diferentes comunicavam por código e abecedário feito de pancadas na parede. Assim, ele era conhecido como o Farol da Barra e grave crime cometido por ele cometido no cárcere foi o de tentar induzir outros presos a “dar” no Chacon e outros seus acredores, aconselhando a que as denúncias deviam ser feitas perante o inquisidor Pedro da Silva Faria “que folgava muito dessem em homens ricos”. Em uma das mensagens comunicadas por pancadas na parede, um Fulano Farto que estava noutra cela pediu-lhe: — Dá no Baeça do hábito de Cristo e nos Passarinhos, que já cá estão. A isto respondeu Pedro “pelo ABC, que assim o faria, se eles quisessem dar nos Chacon e que muitas vezes dissera falsamente de muitas pessoas para contentar o senhor inquisidor Pedro da Silva, que folgava muito de darem em muita gente rica e que a gente que nomeara tinha de fazenda mais de 500 mil cruzados”.

Obviamente que a sentença, lida no auto da fé de 2.4.1634, teria de ser exemplar: — Cárcere e hábito perpétuo, sem remissão e em confiscação dos bens e leve mordaça e carocha de falsário e seja açoitado pelas ruas públicas da capital e degredado para as galés por tempo de 10 anos, onde servirá sem soldo.

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 7067, de Diogo Mesquita Muñoz: — O tio Francisco Vaz, já defunto, foi casado com Inês Vaz, cristã-nova de Vila Flor e depois de viúva foi para Madrid, de que tiveram 3 filhos e 2 filhas.

2 - Breve faleceu o pai e, anos depois, o cunhado Manuel Fernandes e, ficando viúvas, a mãe e a irmã de Pedro, foram também para Madrid, ao início da década de 1630.

3 - Inq. Lisboa, pº 9949, de Pedro de Mesquita.

4 - Inq. Évora, pº 6132, de Rui Lopes Pinto. A propósito confessará mais tarde Pedro Mesquita: — Vindo ele de Madrid a esta cidade, de assento, vinham também António d´el-Rei (…) Diogo de Pena, mercador de S. João da Pesqueira ou Chacim (…) e António de Leão, mercador do Mogadouro…

5 - Pº 9949: — Disse que havia quebrado de pouco, com débito de 16 mil cruzados a diversas pessoas as quais se encontram em um rol que lhe foi achado, que começa em Diogo Álvares Pessoa e acaba com Henrique de Sola, em que está a dita quantia, e os que tinham um x na lista tinham já assinado um compromisso que se fez com os ditos acredores para lhe esperarem cada um pelo seu débito 3 anos em cada seu pagamento, ficando por fiadores dele declarante Rui Lopes Pinto, seu sogro e Jorge Gomes Pinto seu cunhado…

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Abraham Israel Pereira (Vila Flor, c.1605-Amesterdão, 1699)

Abraham Israel Pereira terá nascido em Vila Flor cerca de 1605 e falecido em Amesterdão em 1699.(1) Foram seus pais António Pereira, e Beatriz Jerónima, ambos de Vila Flor, que no batismo, lhe deram o nome de Tomás Rodrigues Pereira. Provavelmente, o casal Pereira terá fugido de Vila Flor, na sequência de uma enorme vaga de prisões lançada pelo santo ofício e coordenada pelo inquisidor/abade

de Vila Flor, Jerónimo de Sousa.(2)

Em Madrid, Tomás veio a casar com Beatriz Rodrigues, natural de Vila Flor, enquanto o seu irmão Duarte Pereira, casou com Ana Rodrigues, irmã de Beatriz. Estes dois irmãos ficariam ligados na atividade comercial e no percurso de vida.(3)

Da vida empresarial de Tomás Pereira em Espanha, sabemos que começou a trabalhar como administrador de salinas, passando à comercialização de lãs, que exportava especialmente a Holanda. Nisso amealhou uma enorme fortuna que, antecipadamente, conseguiu transferir para Amesterdão.

Para esta cidade foi também ele, por 1644, fugindo por Veneza, com a família, já então acrescentada com 5 filhos e 3 filhas. De Amesterdão continuou, porém a importar lãs de Espanha e, clandestinamente, faria entrar neste país quantidade de “velon” (moeda pequena e sem valor), em ação de sabotagem económica concertada com outros grandes mercadores judeus estabelecidos na Holanda e Inglaterra. Nestes tratos de importação/exportação, usaria o nome de Francisco de Gurre, e o irmão, António de Gurre.

Chegado a Amesterdão ter-se-á circuncidado aderindo abertamente ao judaísmo, adotando o nome de Abraham Israel Pereira e a mulher, o de Sarah Israel Pereira. 

Tomás integrou-se muito

bem na comunidade sefardita de

Amesterdão, breve se tornando figura principal e mais rica. Ao comércio e importação de lãs, acrescentou o seu tratamento e confeção de tecidos, tornando-se industrial de tecelagem. Em 1656 comprou uma tinturaria têxtil por 8 000 florins e tornou-se um importador de anil e pau-brasil, matérias-primas essenciais para o efeito. Meteu-se também no comércio do açúcar e obteve do governo de Holanda autorização para instalar uma refinaria, a primeira que houve naquelas paragens.

A Amesterdão de Israel Pereira era a mais cosmopolita da época e nela conviviam, em permanente disputa, cristãos, calvinistas, luteranos e judeus. Havia porém uma divisão profunda entre os judeus sefarditas, fugidos da inquisição e os asquenazes, corridos da Lituânia e da Suécia. Aqueles eram tidos por “judeus fidalgos” e estes por “judeus vagabundos”. Mesmo no interior da “nação sefardita” grassava uma profunda divisão, personalizada por livres-pensadores cujo expoente maior foi Baruch Espinosa e intelectuais ortodoxos como Oróbio de Castro.

Muitos dos que foram fugidos da inquisição ibérica viram-se confrontados com uma rigidez ideológica para que não estavam preparados e alguns sentiam-se tão longe do judaísmo ortodoxo, que melhor entrariam numa igreja católica do que na sinagoga.(4) Aliás, não seria por acaso que as autoridades rabínicas e os “hahamans” lançaram “hérem” (excomunhão) contra uns 80 membros da comunidade. E o sofrimento e a vergonha dos excomungados não custariam menos a suportar do que as cadeias da inquisição e os humilhantes “sambenitos”.

Tomás Pereira explicará mais tarde que, à chegada, ficou confuso com as exigências dos rabis, considerando-os mistificadores e que dava mais crédito aos livros profanos do que aos escritos rabínicos. Depois integrou-se na comunidade e passou a ser considerado judeu exemplar.

Foi um dos fundadores da yeshiva (espécie de seminário talmúdico) Tora Hor e o grande financiador da impressão de livros e textos religiosos, sob orientação do rabi Menassés ben Israel. Em 1659, juntamente com seu filho Jacob, financiou a fundação de uma yeshiva na cidade de Hebron, na Palestina. Fantástico: os Estatutos foram redigidos em português, significando isso que a yeshiva seria predominantemente frequentada e dirigida por judeus fugidos de Portugal. A sua influência foi muito para além de Hebron, contribuindo decisivamente para a formação de uma nova geração de “talmidins” (doutores da Lei) o que muito contribuiu para que a cidade de Jerusalém se impusesse, em termos demográficos e de cultura judaica.(5)

Como cidadão israelita exemplar, mandou escrever na fachada principal da sua fábrica esta frase: — Defende-me ó Deus, porque eu procuro em Ti o meu refúgio. E também escreveu dois livros com o objetivo de incentivar os seus concidadãos ao aprofundamento das crenças e práticas da lei de Moisés. Veja-se, a propósito, uma curta citação, extraída do seu livro La Certeza del Camino:

— Estou profundamente chocado, pois considero a religião que alguns professam, de fachada e só se dizem judeus por conveniência pessoal. Valores como a caridade e o amor do próximo perderam-se e o arrependimento deu lugar à arrogância.(6)

Por aqueles anos de 1655/56, o mundo judaico foi abalado por uma nova extraordinária: o aparecimento do Messias, Sabbatay Tsevi, que se fixou em Gaza, Palestina, onde o já então famoso cabalista, Nathan de Gaza, o reconheceu como o Messias verdadeiro e iniciou a pregação da mensagem.

Amesterdão, a Jerusalém do Norte, era então a capital mundial do judaísmo e o impacto da notícia foi enorme. Nada se podia opor à vaga de euforia que tocava os corações dos judeus. Cada um tentava rivalizar com o outro em penitências, orações e jejuns. As casas de jogo transformaram-se em casas de estudos bíblicos e recolha de esmolas. As sinagogas nunca se esvaziavam e estavam abertas 24 horas por dia. Todas as candeias e lâmpadas, nas sinagogas e nas casas particulares ficavam acesas. O rabi Sasportes era um dos raros sefarditas de Amesterdão que não acreditavam no Messias Sabbatai. O seu relato, embora de crítica, retrata o ambiente descrito:

— Os judeus entregam-se a grandes manifestações de alegria, tocando os seus tambores e dançando pelas ruas; os rolos da Torah foram tirados da Arca para uma procissão, com todos os ornamentos, sem atentarem no perigo das invejas e do ódio por parte dos gentios. Pelo contrário, anunciavam publicamente a boa nova.(7)

Mais do que ninguém, Abraham Israel Pereira foi tocado pela mensagem messiânica de Tsevi, até porque ele tinha e sustentava a yeshiva de Hebron e logo decidiu mudar-se para ali, ao encontro do Messias, “depois de ter pedido licença aos magistrados e expressado o reconhecimento pelos favores de que ele e a sua família tinham beneficiado”, não sem antes se dirigir ao rabi Sasportes, admoestando-o e pedindo-lhe que deixasse de expressar publicamente as suas dúvidas acerca de Sabbatai.

Encontrava-se em Veneza, a caminho da Terra Santa, quando recebeu a notícia de que Sabbatai Tsevi se encontrava na Turquia e se tinha convertido ao islamismo e os rabis de Jerusalém tinham lançado “hérem” sobre Nathan. Imagina-se a desilusão de Pereira que, de imediato, deixou Veneza e regressou a Amesterdão. Retomou os negócios e afervorou a crença. Disso mesmo nos dá conta um segundo livro que escreveu, intitulado “Espejo de la Vanidad del Mundo, estampado no ano judaico de 5431 (1671).

Recuperou toda a influência e prestígio social. Prestígio e influência tiveram também os seus filhos, especialmente Jacob Israel Pereira (1629-1692) que, associado a António Álvares Machado, na firma Machado & Pereira, foram fornecedores de géneros aos exércitos holandeses na guerra com a França. O mesmo aconteceu na campanha de Guilherme III na Irlanda, que exigiu aos Machado & Pereira a contratação de 28 padeiros, 700 a 800 cavalos e 300 a 400 vagões.(8)

Mais rico do que Jacob, seria o seu irmão Moisés que, por 1685, pagava de “finta” à “nação” 120 florins e ocupava lugar de destaque entre os 11 magnates financeiros da Academia dos Floridos.(9)

Notas:

1 - ALMEIDA, Marques – Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses Mercadores e Gente de Trato, pp. 549/550, Cátedra de Estudos Sefarditas de Alberto Benveniste, Campo da Comunicação, 2009.

2 - TSO-Conselho Geral, Papéis Avulsos, mç. 7, n.º 2535. Neste documento referem-se 105 pessoas, além das crianças não contabilizadas, fugidas de Vila Flor nos 7 anos que seguiram a 1583. Da lista consta um António Pereira e sua mulher.

3 - SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600-1670, pp. 142, Stuttgard, Steiner Verlag, 1994.

4 - MÉCHOULAN, Henry; MICHEL, Albin – Être Juif a Amsterdam au Temps de Spinosa, Paris, Albin & Michel, imp 1991.

5 - NAHON, Gérard – Métropoles et Périphéries Sefarades d´Occidente, pp. 206: — La yeshiva de Jacob Pereira fut un facteur efficace de l´extraordinaire explosion démographique et rabbinique de la Jerusalém des Lumières.

6 - La Certeza del Camino foi impresso na tipografia de David de Castro Tartas, um cristão-novo originário de Bragança, que tomou aquele sobrenome por ter nascido na cidade francesa de Tartas quando seus pais fugiram da inquisição. O ano de impressão foi 5416, do calendário judaico, ou seja o ano de 1656, da era cristã.

7 - SASPORTES, Jacob ben Aaron – Tzitzat Novel Zvi, obra editada em 1737 por seu filho Abraham Sasportes. Trata-se de um conjunto de textos contra Sabbatai Tsevi e seus seguidores.

8 - SWETSCHINSKI, Daniel M. – Reluctant Cosmopolitans. The Portuguese Jews of Seventeenth Century Amsterdam, pp. 15-17, 138-‑140 e 193, London, The Littman Library of Jewish Civilization, 2000.

9 - BLAMONT, Jacques – Le Lion et le Moucheron Histoire des Marranes de Toulouse ,pp. 396, Editions Odili Jacob, Paris, 2000.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos: Francisco Vaz Eminente (Vila Flor - Castela)

O primeiro Francisco Vaz que nos aparece com o sobrenome de Eminente, era um mercador de Vila Flor, casado com Isabel Pereira, filha e neta de conhecidos rendeiros, moradores na mesma vila. Francisco era já falecido em 1620, segundo a informação de seu filho, o “Eminente Lopo Vaz”, que, em outubro daquele ano, foi preso pela inquisição.(1) Lopo, nascido por 1593, estava ainda solteiro, casando mais tarde com Genebra Alvim. Tinha 2 irmãos e 3 irmãs, todos casaram e parece que todos puseram o nome de Francisco ao filho primogénito. Depois que ganhou a liberdade, Lopo e a família meteram-se a caminho de Castela.
Em 1638, quando a inquisição fez nova investida em Vila Flor, as primeiras pessoas a ser presas foram 3 “Eminentas” – a mãe, Isabel Pereira, que contava a provecta idade de 84 anos e as filhas Eva Pereira e Genebra Henriques, aquela casada com Diogo Henriques e esta com Diogo da Mesquita Muñoz.(2)
Este tinha sido preso no ano anterior, quando passava a fronteira de Miranda do Douro com 13 cargas de linhos e lenços para vender em Castela, juntamente com seu irmão Pero da Mesquita Muñoz e o companheiro Francisco Vaz Faro. Também o pai de Diogo Muñoz se chamava Francisco Vaz, o Amarelo, de alcunha e tinha um tio materno do mesmo nome, médico de profissão, casado com Inês Vaz. Um filho deste tinha loja de mercador em Lisboa, onde foi preso em 14.5.1630.(3) Como se vê, em alguns casos, entra-se num verdadeiro labirinto quando se trata de fazer alguns genealógicos da gente da nação hebreia.
Já então a família de Diogo Henriques se encontrava a viver na cidade de Pastrana e a sua vida era a de mercadejar entre Portugal e Castela. Para andar mais à vontade entre os dois reinos, adotara o sobrenome Muñoz e trazia na carteira uma certidão médica dizendo que lhe fora cortada a pele do prepúcio, por motivos de doença. Ou seria para disfarçar e estaria mesmo circuncidado, como opinaram os médicos da inquisição de Coimbra?
A prisão das “Eminentas” deixou “a nação” de Vila Flor em clima de grande apreensão, de verdadeiro terror, como se depreende do testemunho de Manuel Alvarenga, em 25.4.1642:
— Disse que defronte dele mora Maria Henriques, cristã-nova, mulher de Diogo Henriques Julião, a qual esteve 2 ou 3 meses antes do auto-da-fé último que se celebrou em Coimbra, temendo-se que dessem nela as Eminentas, que lá estavam presa e não apareceu até que veio um neto do Eminente e lhe deu aviso e logo apareceu…(4)
Se as Eminentas e Diogo Muñoz voltaram a Vila Flor, o mesmo não aconteceu com Pero da Mesquita Muñoz, que foi queimado na fogueira do auto de 30.10.1638,(5) celebrado na praça da cidade de Coimbra.
Estes e outros acontecimentos, foram seguidos de dezenas de outras prisões e da fuga da maior parte dos cristãos-novos, (e muita gente da nobreza da terra, falsamente acusada de judaizar) de modo que, a partir de 1671, praticamente deixou de existir “a nação” de Vila Flor. Obviamente que a generalidade fugiu para Castela e dali se dispersou para os mais diversos destinos.
Pastrana era desde há duas décadas a terra de morada dos Munhóz (Henriques da Mesquita) fugidos de Vila Flor, sendo ali presos, em 1626, vários membros da família, conforme declarou Pero Munhóz, em janeiro de 1638, na inquisição de Coimbra:
— Haverá 10/11 que fora preso pela inquisição de Cuenca, onde esteve 4 meses e saiu livre e foi preso por uns mexericos de dar ajuda e haverem fugido uns presos pelo santo ofício; e naquela ocasião foram presos seu pai, seu irmão Manuel Henriques, seus tios Domingos Henriques e Diogo Henriques e a tia Águeda Correia, mulher de António Henriques seu tio.(6)
Em Castela se reencontraram e cruzaram por casamentos os Henriques com os Rodrigues da Mesquita e os Lopes da Mesquita, fugidos de Vila Flor e Torre de Moncorvo. Entre eles, Dinis Álvares, que casou com Genebra Henriques e seu irmão, Bernardo Lopes da Mesquita, casado com Ângela Henriques, irmã de Julião Vasques, dos Henriques de Torre de Moncorvo. Mark Schreiber,(7) um investigador alemão contou a história desse grupo familiar, consubstanciada na árvore genealógica enquadrada neste texto.
Menos estudadas e muito nebulosas se apresentam as origens de um homem, originário de Vila Flor, que ganhou celebridade em Castela, chamado Francisco Vaz Eminente. Seria certamente um dos muitos netos ou sobrinhos-netos de Francisco Vaz Eminente, falecido em Vila Flor antes de 1620. 
A informação mais concreta que temos é de Carmen Sanz dizendo que ele pertencia aos núcleos familiares dos Henriques e dos Pereira, de Vila Flor.(8)
Por 1630, Francisco Vaz aparece referido como mercador e, em 1651, terá arrematado no almoxarifado de Sevilha a cobrança dos impostos sobre os produtos que chegavam das Índias. Por 1653, casou com Violante del Ribero, de origem portuguesa, que lhe deu dois filhos: Tomás António e João Francisco.
Para além dos direitos do almoxarifado, arrendou o fornecimento de géneros aos militares da Armada Real da Andaluzia. Em 1663 conseguiu arrendar o almoxarifado maior de Andaluzia, o que significava o controlo de todos os produtos importados e exportados pelas alfândegas do maior porto de mar de toda a Espanha.
Começaram então os problemas com os grandes mercadores e com os embaixadores e cônsules das nações estrangeiras que se queixavam das excessivas prerrogativas que lhe eram concedidas e que atentavam contra a liberdade de comércio. Acabou por ser preso, acusado de abuso de poder, passando o almoxarifado de Sevilha a ser diretamente administrado pela Fazenda Real.
Foram dois anos desastrosos para a economia do País e para a Fazenda Real, pelo que, em 1667, Francisco Vaz foi reabilitado e voltou à gerência das alfândegas de Sevilha, ainda mais fortalecido. E foi nomeado para um posto de muito prestígio, o de “contador de honor del tribunal de contadoria”. 
A partir de 1680 a direção dos seus negócios passou para a responsabilidade do seu filho Tomás, enquanto ele rumou a Madrid. E porque ficara viúvo, casou em segundas núpcias, com D. Josefa Salazar, de uma influente família de cristãos-novos portugueses.
Na qualidade de “contador de honor” e manifestando toda a sua habilidade comercial, apresentou uma série de propostas de redução das tarifas alfandegárias sobre alguns produtos, de modo a estimular a atividade comercial, não apenas em Sevilha e nos portos marítimos, mas também nos portos secos de toda a Espanha. Esse conjunto de propostas aduaneiras é apresentado como o primeiro regimento de comércio internacional e passou à história sob a designação de “Convénio Eminente”. No essencial, vigorou nos portos de Espanha até finais do século seguinte.
A inquisição, porém, mostrava-se inimiga da liberdade, não apenas no campo da religião mas também vida social e na atividade comercial. Em 29 de dezembro de 1689, Francisco Vaz Eminente foi preso e seus bens sequestrados, acusado de ser judaizante. Com ele foi também preso o seu feitor e secretário, Bernardo da Paz y Castañeda, que faleceu no cárcere.(9)

 

Notas:
1 - Inq. Coimbra, pº 3799. A expressão “Eminente Lopo Vaz” consta de uma informação enviada para Coimbra pelo abade da matriz de Vila Flor, Manuel de Abreu.
2 - Idem, pº 1841, de Isabel Pereira; pº 2174, de Eva Pereira; pº 1843, de Genebra Henriques; pº 7067, de Diogo da Mesquita Muñoz, aliás.
3 - Inq. Lisboa, pº 9949, de Pero da Mesquita.
4 - Inq. Coimbra, pº 6102, de Branca Rodrigues.
5 - Idem, pº 5770, de Pero Henriques da Mesquita, aliás, Pero da Mesquita Muñoz.
6 - Idem.
7 - SCHREIBER, Markus– Marranen in Madrid 1600-1670, pp. 116-119, Franz Steiner Verlag Stuttgart. Inq. Lisboa, pº 5197, de Julião Vasques; pº 2268, de Francisco António Olivares, natural de Cáceres, filho de Manuel Rodrigues e Filipa Nunes, de Vila Flor.
8 - AYIÁN, Cármen Sanz – Los Banqueros de Carlos II, pp. 346-351, Universidad de Valladolid, Secretariado de Publicaciones, 1999. 
9 - ALMEIDA, A. A. Marques de – Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses, Mercadores e Gente de Trato, pp. 246-47, ed. Cátedra de estudos Sefarditas de Alberto Benveniste, Campo da Comunicação, Lisboa, 2009.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos: Francisco Rodrigues Brandão (1663-1717)

Cada vaga de prisões da parte do santo ofício era acompanhada de uma vaga de fugas de cristãos-novos, da terra. Foi o que aconteceu em Vila Flor com Francisco Rodrigues Brandão e sua mulher, Isabel Gomes, pelos anos de 1650. Mudaram-se para Viseu, com seus filhos: 2 rapazes e 2 raparigas.
Tratava-se de uma família de rendeiros e grandes mercadores, ligados a outras famílias igualmente ricas e poderosas, como eram os Marcos Ferro, de T. Moncorvo e os Rodrigues Portelo, da Covilhã.
Contudo, a mudança para Viseu não apagou as vivências marranas anteriores e não abafou as denúncias feitas contra eles. Em consequência, em 1667, a inquisição de Coimbra prendeu Isabel Gomes, o filho, Lopo Rodrigues Brandão, a mulher deste, Isabel Rodrigues Portelo, e o genro, Fernão Rodrigues Portelo, viúvo de Ana Rodrigues Brandão.(1)
Isabel contava 70 anos de idade e era já viúva, tendo o marido falecido ano e meio antes. Falecidos eram já também o filho António Lopes Faro, médico, solteiro, com 26 anos e as filhas Branca Gomes, que foi casada com Pedro Marcos Ferro e a citada Ana Rodrigues Brandão. Apesar da idade, Isabel resistiu por 4 anos e meio às agruras do cárcere, saindo penitenciada em penas espirituais em 14.7.1671.
Quando foi presa, contava 4 anos o seu neto Francisco, filho de Lopo Rodrigues Brandão e Isabel Rodrigues Portelo. Por 1691, Lopo Brandão foi para França e Francisco ficou em Viseu a liderar a rede familiar de negócios que, entretanto, apesar das prisões e dos sequestros de bens pela inquisição, cresceria imenso, muito em especial desde que se meteram também no negócio do tabaco, que então florescia e a rede comercial se alargou ao Porto, Algarve, França e Inglaterra. A propósito, veja-se esta nota tirada do inventário dos bens de Francisco Rodrigues Brandão: 
— Disse que seu pai, Lopo Rodrigues Brandão, lhe deixou 350 libras esterlinas, moeda de Londres, que lhe deve o dito Luís de Castro,(2) e não havia satisfeito porque esperava a aprovação do cunhado dele declarante Domingos Pereira,(3) que assiste na cidade de Bayonne,(4) reino de França, também herdeiro do dito seu pai.(5)
Luís Castro, aliás, Nuno Rodrigues Portelo, primo direito de Francisco Brandão, não era apenas depositário daquelas 350 libras, mas também de “250 ducatões de 11 250 réis, cada um deles, (…) e lhe mandou o dito dinheiro para efeito de o ter lá seguro, por recear o prendessem pelo santo ofício”. Era uma boa fortuna: quase 3 contos de réis, um terço do orçamento anual da câmara de Lisboa naquela época. De resto havia largas contas abertas e ligações comerciais estreitas entre os dois primos. Ele próprio contou:
— Que tinha contas com Luís de Castro, morador em Londres, de diversas carregações que lhe mandava de fazenda, à cidade do Porto, por mão de Rodrigo Álvares da Fonseca e à vila de Viana, por mão de João Reimaste, estrangeiro; e das ditas carregações não sabe o que está devendo ao mesmo Luís Castro, com quem tinha a parceria nas ganancias das ditas encomendas (…) e lhe poderia estar devendo quatro mil cruzados…(6)
Eram largas contas, na verdade: 4 mil cruzados, um conto e 600 mil réis. Resulta claro também, que Francisco Rodrigues Brandão se preparava para abandonar Viseu e Portugal, receoso de ser preso. E os esbirros andariam de olho nele, especialmente o padre António Chaves, seu vizinho. Veja-se a seguinte declaração feita por Francisco:
— Vindo ele declarante para sua casa, a sua criada Isabel lhe dissera que o padre António Chaves, clérigo de epístola, morador em Viseu, duas casas acima dele confitente, viera a sua casa e andara vendo os seus papéis e entrando ele declarante em desconfiança que o dito padre lhe metesse entre os seus papéis alguma coisa que lhe pudesse prejudicar, para efeito de ser preso pelo santo ofício; e lembrando-lhe que entre os mais papéis, tinha o conhecimento dos 250 ducatões, para evitar que soubessem da dita remessa prendendo-o da parte do santo ofício, rasgou em bocadinhos e os lançou da janela abaixo; e depois viu que, por ordem do dito padre, que então estava na loja de António Teixeira Imaginário, viera um rapaz chamado José, filho de Ana de Castilho, e apanhara os bocadinhos de papel e os entregara ao dito padre (…) e este juntara os bocadinhos de papel e formara o conhecimento.(7)
Digno de um moderno filme de espionagem!... Obviamente que, com as suspeitas de fuga evidenciadas pelo conhecimento dos ducatões enviados para Londres, foi logo decretada a prisão de Francisco Rodrigues Brandão e sua mulher Guiomar Rodrigues,(8) em dezembro de 1698.
O processo de Francisco Brandão é verdadeiramente exemplar, a vários níveis. Desde logo no que respeita a ritualidade marrana, jejuns e orações judaicas. Vejam, por exemplo, como se preparavam para o dia grande:
— Lavavam todo o corpo em água quente e depois botavam um cântaro de água fria pelas costas abaixo e vestiam roupa de linho em folha e os melhores vestidos e estando sem trabalhar, rezavam a oração da Formesura de Adonay e outras mais… 
Exemplar também, pelas informações que nos dá acerca dos movimentos de mercadores e mercadorias entre Portugal, a França e a Inglaterra naquele período. Contudo, nós vamos apenas olhar para o inventário dos seus bens, o qual nos permite afirmar que ele era um homem muito rico. Vejamos:
Em dinheiro vivo, em casa, para além do que estava por conta de sua mulher para gastos quotidianos da casa e cuidados dos filhos, tinha 3 contos, 500 e tantos mil réis, o que revela uma extraordinária liquidez financeira.
Em prédios urbanos, para além da casa em que vivia, sita na Rua Nova de Viseu, avaliada em 250 mil réis, era proprietários de mais 5 moradias na mesma rua e uma sexta na Rua da Carvoeira, que todas valeriam 275 mil réis. Em Lisboa possuía metade de uma casa e uma atafona anexa, situada junto à igreja de Santa Engrácia, que valia 750 mil réis.
O serviço de louças de sua casa foi avaliado em 120 300 réis, enquanto os objetos de ouro e prata valiam 235 500, o mobiliário 144 500 e o vestuário dele 103 500 réis.
Em tecidos, chapéus, vasilhas de azeite e odres de vinho, balanças, adereços de espadas, e outros objetos contaria o valor de uns 300 mil réis.
Para se fazer uma ideia do movimento comercial de Francisco Brandão, bastará dizer que numa feira de S. Mateus fazia vendas de tecidos importados de Inglaterra, no valor cerca de 500 mil réis ou que na sua loja tinha 6 dúzias de peles de boi importadas de França. De contrário, vemo-lo a exportar lotes de anil no valor de 250 mil réis e quantidades indefinidas de vinho e aguardente. Vejamos uma das remessas:
— Disse que tinha mandado para a cidade do Porto 35 almudes de aguardente a seu primo Diogo Vaz Faro, para lhe vender na dita cidade e remeter para o Brasil (…) de que vieram em resposta 3 arrobas de pau-cravo, que estavam na dita cidade do Porto, na mão do dito Diogo Vaz Faro, como ele lhe mandou dizer.(9)
No entanto, Francisco não se considerava mercador de profissão, antes se dizia rendeiro. E trazia arrendadas as décimas do bispado de Viseu em Besteiros, Santa Eulália, Figueiredo d´Alva, Tondela… Mas também fora do bispado como era o caso de algumas terras de Pinhel. Em Besteiros, para recolher décimas do vinho, dispunha de “30 tonéis e algumas pipas” e na Sabugosa tinha o alambique instalado a fabricar aguardente.
Resta dizer que Francisco R. Brandão saiu condenado em cárcere e hábito no auto de 18.12.1701 e faleceu em 20.10.1717, sendo enterrado no convento de Santo António dos Capuchos. Esta informação foi-nos dada por seu filho Lopo Rodrigues Brandão, preso em 1724, juntamente com 5 de seus irmãos.

 

Notas:
1 - Inq. Coimbra, pº 2642, de Isabel Gomes; pº 6581, de Isabel Rodrigues Portelo; pº 10466, de Fernão Rodrigues Portelo. Não conseguimos encontrar o processo de Lopo Rodrigues Brandão.
2 - Inq. Coimbra, pº 9938, de Francisco Brandão.
3 - Luís Castro foi nome adotado por Nuno Rodrigues Portelo, quando chegou a Londres, para não comprometer os seus correspondentes comerciais em Portugal. 
4 - Domingos Pereira era natural de Tavira, boticário em Viseu onde casou com Isabel Gomes Brandão, filha de Lopo Brandão e sua segunda mulher, Maria Gomes, fugindo depois para a França.
5 - Inq. Coimbra, pº 8867, de Francisco Rodrigues Brandão.
6 - Idem.
7 - Ibidem.
8 - Idem, pº 7621, de Guiomar Rodrigues, filha de Fernão Rodrigues Portelo, da Covilhã e de sua segunda mulher, Leonor Mendes, de Trancoso. A esse tempo, Leonor era já viúva e ausente em França. Quando foi presa, Guiomar ia grávida e na prisão teve um filho, que foi batizado com o nome de Matias.
9 - Idem, pº 8867.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Vasco Fernandes Campos (n. Vila Flor, 1618)

Nasceu e foi batizado em Vila Flor por 1618, sendo filho de Garcia de Campos e Leonor Henriques, ambos de Vila Flor. Criança ainda, seguiu para Castela com seus pais e dois irmãos. Viviam em Andújar quando o Vasco recebeu o crisma. O irmão mais velho, Pedro Rodrigues, casou já tarde, cerca dos 40 anos, e morava em Jaén, vivendo da mercancia. O outro irmão, Jusepe Henriques, foi casado com Marquesa Cardosa e morador em Jaén, falecendo em um desafio.

Em Jaén viveu também Vasco Fernandes e ali casou com Isabel Luís, nascida na mesma localidade. Tiveram 5 filhos, o mais velho nascido por 1647.

Por 1636 Vasco Fernandes e os pais viviam em Madrid. E então, numa das suas deslocações a Jaén onde vivia seu tio Manuel Henriques Valentim, este o terá doutrinado e introduzido no judaísmo. Vejamos a sua confissão, pois nos apresenta aspetos muito importantes para o estudo do marranismo e comportamento dos marranos:

— Seu tio lhe disse que as pessoas que viviam em Portugal e Castela não podiam observar (o judaísmo) porquanto a carne de vaca e carneiro que comessem se vende nos açougues e era morta contra a forma que mandava a lei de Deus de Israel; e procurou ensinar umas orações que havia de rezar e lhe disse que o nome que Deus mais se agradava era de Adonay, Dio de Israel, e que era uma só pessoa e que o verdadeiro batismo era a circuncisão e que se achasse em lugar próprio não deixasse de a fazer porque sem a circuncisão não era certa a salvação…(1)

Repare-se: em Portugal e Castela não podia cumprir-se a lei de Moisés e sem a circuncisão não havia salvação.

Fica implícito que, mais cedo ou mais tarde, todo o judeu devia procurar uma terra onde pudesse circuncidar-se e viver abertamente o judaísmo, cumprindo as regras da lei de Moisés, ou melhor, a lei de “Adonay, Dio de Israel”.

As mesmas certezas lhe foram transmitidas um mês depois por seu pai e, de seguida, pelo tio e padrinho de crisma Valentim Fernandes. E a verdade é que todos 3 agiram em consequência. Assim, o tio Manuel, pelo ano de 1645/6, deixou Castela e foi-se com a família para Livorno onde se fez circuncidar. O mesmo fez seu pai, pelo ano de 1657, o qual, na circuncisão, tomou o nome de Abraham. E o mesmo tinha feito o tio Valentim que, em 1650, vivia já em Bayonne, antes de rumar a Livorno. Àquela cidade francesa foi Vasco encontrar-se com ele e com ele celebrar a festa do Kipur.(2) Para além do tio, Vasco teve outros contactos de “edificação” e aprofundamento da lei judaica, devendo referir-se um Francisco Nunes de Leão “que fora a Holanda, de onde então vinha e se circuncidara e lia por uma Bíblia em castelhano e explicou algumas coisas”.

Enquanto o tio Valentim se abalava para Livorno, Vasco Fernandes regressou a Castela e, certamente em plano comercial de rede familiar, pegou na mulher e filhos e regressou a Portugal, fixando morada em Sendim, terra de Miranda do Douro, próximo da fronteira. A sua vida, porém, passava-se sobretudo nas alfândegas e nas feiras, como diria António Lopes Fernandes, mercador da vila de Muxagata que acrescentou:

— Sempre anda, de ordinário, de terra em terra, umas vezes assiste em Freixo de Espada à Cinta, outras em Vila Chã de Miranda, Porto, Entre Douro e Minho e no Alentejo e nestas partes fazia muita demora porque muitas delas eram de um mês, dois meses, três, e às vezes muito mais tempo…(3)

Por exemplo, no ano de 1655, desde 15 de julho até 9 de setembro andou pelas feiras do Alentejo. Enquanto isso, andando ele pelas “feiras, alfândegas e guindas”(4) e a família vivendo em Sendim, o filho mais velho tinha-o em Muxagata, hospedado em casa do mercador Gaspar Fernandes, a aprender as letras na escola da localidade.

Breve o mercador Vasco Fernandes Campos se fez conhecido “por ser homem de grosso trato” e por isso mudou a casa da família e a sede da sua empresa para a cidade do Porto, na Rua de Belmonte, assistindo ele por largas temporadas em Lisboa. O seu “trato grosso” era então baseado na importação de bocaxim de França, tafetás de Espanha, pólvora e panos de Holanda… com exportação de açúcar e tabaco que recebia do Brasil.

No seu processo desfila quantidade de mercadores Trasmontanos, como ele, estabelecidos no Porto e geralmente encontravam-se na “casa de jogo” de António Ledesma, oriundo de Bragança e que, na generalidade foram presos pela inquisição naquela vaga de 1658.

Relações especiais tinha-as Vasco com seu primos segundos Diogo e Francisco Vaz de Oliveira, de Freixo de Numão. Com o primeiro tinha mesmo a parceria de um armazém alugado e ao segundo estava devendo 345 mil réis, de fazendas que lhe forneceu.

De início, quando vivia em Sendim e ao chegou ao Porto, Vasco teve negócios com Francisco da Costa Henriques e seu sogro, António Henriques, naturais de Vimioso.(5) Depois desentenderam-se e passaram a inimigos capitais, com lutas e um processo judicial instaurado por aquele em 11.8.1656. Vamos contar, pois que o caso ajuda a entender as linhas do mundo comercial da época.

De Amesterdão, compradas por Vasco Fernandes, chegaram ao Porto 30 peças de sarjes dirigidas àqueles, no valor de 253 mil réis. Para além daquela fazenda, por ordem de Vasco foram entregues aos mesmos, por João Molendes, duas partidas de dinheiro no montante de 87 212 réis, por ordem de Vasco Fernandes. Comprometiam-se os de Vimioso a empregar aquele dinheiro e o procedido das fazendas em tabaco e açúcar que mandariam vir do Brasil. Obviamente que não trabalhariam de graça e receberiam a sua comissão.

Vasco deu ordem para que mandassem, por José Henriques Correia, uma carga de tabaco para Sendim. Efetivamente seguiu a carga de tabaco mas… ao fazer as contas, Vasco dizia que lhe levaram 2980 réis mais que o devido, já que o tabaco pesava menos 280 arráteis do que o faturado.

E vindo do Brasil 4 caixas de açúcar mascavado, Fernandes Campos encarregou Digo Vaz Oliveira de as receber. Só que, Francisco da Costa Henriques antecipou-se e levantou o açúcar, dizendo que lho enviara António Rodrigues Mogadouro.

Não sabemos como terminou o processo judicial instaurado por Vasco Fernandes Campos contra Francisco da Costa Henriques, nem isso é importante. Significativo é ver que um mercador que então estava estabelecido em Sendim e andava “de ordinário de terra em terra”, fazia compras e vendas em lugares distantes (Holanda, Porto, Brasil…) bastando a palavra ou um escrito e a identificação da mercadoria com um “selo e sinal”.

Nada era mais importante para aquela gente do que ser “mercador de muita verdade e consciência e muito verdadeiro em seus contratos” e a pior injúria seria de não dar contas certas, “chamando-lhe ladrão, pois retinha em si o que era alheio e que não era mercador nem pessoa de consciência”.

Resta dizer que Vasco Fernandes Campos saiu condenado em confisco de bens, abjuração em forma, penitências espirituais, cárcere e hábito perpétuo, no auto-da-fé celebrado em Lisboa em 17.10.1660.

Notas:

1 - Inq. Lisboa, pº 4603, de Vasco Fernandes Campos, tif 367.

2 - Idem, tif 368: — Porquanto se acharam em Bayonne de França e fizeram ambos o jejum do dia grande e naquela ocasião lhe declarou o dito seu tio Valentim Fernandes que se ia para Livorno e que sabia que na dita cidade estava o dito seu irmão Manuel Henriques, havendo-se circuncidado, e com efeito seu tio Valentim se passou a Liorne e ali vivia ao tempo da sua prisão, conforme notícia que teve…

3 - Idem, tif 325.

4 - Guindas eram postos da fronteira do Douro internacional onde, em boa parte do ano, não era possível atravessar o rio e a troca e as mercadorias eram passadas por cordas presas em ambas as margens.

5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo, pp. 29-35, ed. Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso, 2008.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Henrique Nunes (n. Madrid c. 1620) – 2

Andava Henrique Nunes ainda a cumprir a penitência, sem que lhe tivessem tirado o sambenito quando, em Lisboa, se viu acusado da morte de Baltasar Rodrigues Cardoso,(1) cristão-novo, de Vila Flor, contratador das alfândegas de Trás-os-Montes, que tinha casamento marcado com uma filha de Pero Henriques Ferro. Preso pela justiça civil, foi então metido na cadeia do Limoeiro, onde penou 6 anos, saindo em 1660, degredado para o Brasil. Conseguiu evitar o degredo, fugindo, de barco,(2) para Espanha, via Cádis, em companhia de seu genro, mercador que acabava de “quebrar”, ali se juntando depois as suas mulheres.

Por 10 anos andou Henrique negociando em Espanha, assistindo em muitas terras. E terá também viajado por França e Itália, ali frequentando sinagogas de judeus, conforme testemunhos chegados à inquisição, nomeadamente o de um mercador de Nice, chamado João Batista Mariz que ali o encontrou usando o nome de Jorge Torres, acrescentando:

— Assim se tratava e ele denunciante o viu ir à sinagoga, na forma que fazem os mais judeus na dita cidade, e também o viu ir às sinagogas de Liorne e Génova, estando ele denunciante nas ditas cidade e a última vez que o viu foi em Génova, em uma casa de pasto de Catarina Ferroya, aonde comeram ambos e falaram muitas vezes nas ditas cidades.(3)

Jorge Torres, Henrique Salvador Selozo, Henrique Selozo Castilho, Alferes Castilho… foram nomes que ele usou durante aqueles 10 anos, disfarçando a sua identidade, não apenas por receio de o conhecerem e matarem os familiares do malogrado Baltasar, mas também os esbirros da inquisição, que por toda a parte os havia.

Málaga foi a cidade castelhana onde primeiro se estabeleceu e viveu até 1666. E falecendo-lhe a mulher e o genro “quebrando” mais uma vez, foi-se para Madrid, passou à Galiza e depois à Mancha, trocando o nome e o vestuário, para não ser reconhecido, conforme ele próprio contou:

— Em todo o tempo não saiu da dita cidade mais do que à dita vila de Osuna e às feiras da Estremadura, Andaluzia, Ciudad Real, Vila Carrilho, Madrid, Castela-a-Velha e Mancha. E no ano de 1666 sucedeu quebrar o dito seu genro deixando-o empenhado a ele declarante, com fazendas que ele declarante tinha deixado ao dito seu genro e por esse respeito se ausentou da dita cidade de Málaga, para não ser preso, e se foi para Madrid onde assistiu 5 ou 6 meses no hospital S. João de Deus; e para não ser conhecido mudou o nome e se chamava Alferes Castilho; e dali passou à Galiza, em trajo de lavrador, para não ser conhecido; e não tinha lugar certo porque andava de feira em feira…(4)

Em janeiro de 1671, Henrique Selozo Salvador deixou Castela e foi morar para Vilar Torpim, terras de Ribacôa, na raia de Castela, sítio dotado de “aduana” e, por isso, privilegiado para negociar em ambos os países, que acabavam de assinar as pazes, ao fim de 28 anos de guerra. Vilar Torpim era uma espécie de plataforma comercial entre os dois países e eram muitos os mercadores que ali se fixavam temporariamente despachando e recebendo mercadorias e alguns deles foram depois chamados a testemunhar no processo que a inquisição lhe instaurou.

De janeiro a outubro de 1671, Henrique tocaria a sua vida com saídas pelas feiras da região. Em outubro atreveu-se a dar um salto até Lisboa, onde esteve 19 dias, hospedando-se numa estalagem do Beco das Comédias. No mês seguinte foi à feira de S. Martinho, na Golegã e dali passou a Lisboa. Ter-se-á esquecido que os “olheiros” da inquisição eram persistentes? Ou ele era um resiliente inveterado, em fuga constante?

A verdade é que, no dia 16 daquele mês foi avisto pelo mercador Batista Mariz, atrás citado e que contou:

— Esta manhã, indo aos açougues, viu estar tomando um carro a 3 homens, um dos quais, que é o mais velho, trás uma cabeleira postiça castanha e vestido de pano azeitona com casaca curta e abotoadas as mangas por diante, de 50 anos de idade, barba rapada, de pouco buço e pinta de branco, de meã estatura, magro e trigueiro, e este conheceu ele denunciante em Nice, sua pátria, onde se chamava Jorge Torres (…) e disse ser natural deste reino e professava a lei de Moisés.(5)

Ignoramos que interesses ligavam este mercador à inquisição de Lisboa. Sabemos é que ele trabalhava como espia para o familiar da inquisição António Ferreira, a quem foi de imediato, dar conta do sucedido e ambos foram espiar o suspeito à Rua Nova, e dali foram ter com o inquisidor Pedro Mexia. Não sem que antes o Ferreira encarregasse o vestimenteiro Manuel Pereira, outro de seus “bufos”, de seguir o suspeito e nunca o perder de vista. E antes, que fosse ter com o familiar João Andrade Leitão, que era “auditor”, para que, sob qualquer pretexto, levasse preso o mesmo suspeito para a prisão civil do Tronco, sem deixar perceber qualquer pormenor ligando tal prisão ao tribunal do santo ofício.

No dia seguinte foi o familiar António Ferreira encarregado de ir ao Tronco buscar o prisioneiro e entregá-lo nos Estaus e “enquanto o trouxe para os cárceres, que foi à boca da noite, observou que falava trémulo”.

Era o início de um longo calvário. Durante os anos em que andou fugido, a inquisição recolheu dezenas de denúncias de judaísmo feitas contra ele por gente que então passou pelas cadeias da inquisição. O caso era ainda mais grave por se tratar de um homem que tinha fugido sem cumprir a penitência que lhe fora imposta 19 anos atrás e por voltar ao judaísmo, não cumprindo o juramento que fizera.

Henrique, porém, era um resiliente e a sua resistência impressiona, mesmo do ponto de vista físico: durante 19 anos aguentou todas as agruras das húmidas e sombrias cadeias da inquisição de Coimbra e Lisboa e do Limoeiro! De resto, o seu volumoso processo é deveras interessante, a vários níveis. Por um lado, nele aparece a grande maioria dos seus correligionários de Vila Flor, em cenas e vivências as mais diversas, proporcionando um autêntico retrato da sociedade Vilaflorense da época. Defendendo-se perante os inquisidores, ela apresenta-se como o forasteiro, o homem que vem de fora, desprezado e criminalizado por todos os outros. Veja-se um excerto das suas declarações:

— Provará que em razão desta morte e ser o dito morto contratador das alfândegas de Trás-os-Montes e aparentado com toda a dita vila, por si e por sua mulher, filha de Dinis Álvares, com quem foi casado da primeira vez e da segunda vez estava desposado o dito morto com a dita filha de Pedro Henriques Ferro, na mesma vila, ficou ele réu odiado de todos os moradores daquela vila de Vila Flor, porque todos eram parentes uns dos outros e coligados por sangue e afinidade, e ele réu era forasteiro (…) temendo-se o réu dos sobreditos inimigos o matarem ou mandarem matar no Brasil…(6)

E essa foi a razão que apresentou para justificar a fuga para Castela e explicar que, sendo ele bom cristão e não tornando a judaizar depois que abjurou em 1652, aqueles inimigos lhe lançaram, malevolamente, as culpas por que estava preso. Esquecia-se, no entanto, que havia muitas mais denúncias contra ele, aportadas por gente de outras terras. E porque nos mostra o significado e a importância que para esta gente, que se tinha como vivendo em cativeiro, tinha o rito da circuncisão, transcrevemos a denúncia feita por Manuel Mendes Cardoso, o racha-broquéis, morador em Vila Chã, junto a Miranda, em 1661:

— Haverá 18 anos, em Escalhão, em uma casa que servia de aposento dos mercadores, se achou com Gaspar Jerónimo e com Henrique Lopes Pereira (…) e com Henrique Nunes, que ouviu dizer, já fora preso, e com Diogo Pereira, casado, e com Dinis Álvares, defunto e com Baltasar Cardoso, defunto, todos de Vila Flor, e estando todos juntos, por ocasião de ele ter vindo há pouco tempo de Liorne, se declararam. E acrescentando ele confitente que o principal fundamento da crença da dita lei era serem circuncidados e como eles o não eram, não a sabiam guardar.(7)

Resta dizer que Henrique Nunes saiu condenado em cárcere e hábito perpétuo sem remissão, diferenciado com insígnias de fogo e degredo por 3 anos em Castro Marim, no auto-da-fé de 10.5.1682. Resiliente, pouco tempo depois, já estava a pedir que lhe fossem perdoados os 3 anos de degredo…

Notas:

A imagem da assinatura foi cedida pelos ANTT e retirada do processo da inquisição de Lisboa, nº 2747.

1 - Manuel de Sampaio e Melo, senhor de Vila Flor, assistente na sua quinta, junto à vila de Sesimbra, deu o testemunho seguinte: — Recolhendo-se um Baltasar Rodrigues Cardoso às horas das Ave-Marias para uma estalagem aonde pousava, indo a cavalo, lhe meteram uma espada pelas costas de que morreu em poucos dias.

2 - O capitão do barco estivera preso com ele no Limoeiro e costumava andar no tráfico negreiro.

3 - Pº 2747-1, de Henrique Nunes.

4 - Idem.

5 - Ibidem.

6 - Ibidem.

7 - Ibidem.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Henrique Nunes (n. Madrid c. 1620)

Henrique Nunes nasceu por 1620 na vila de Colmenar, arredores de Madrid e ali foi batizado. Foram seus pais Francisco Nunes, de Torre de Moncorvo e Ângela da Veiga Nunes, natural de Viseu.(1) Pelos 11 anos vivia em Jaén, onde seu pai o terá iniciado na religião judaica e onde também foi crismado, como verdadeiro cristão. Posteriormente, a família ter-se-á mudado para Ciudad Real, terra da Andaluzia.

Em 1635, Henrique Nunes deixou Castela e veio para Portugal, a viver em casa de seu tio paterno, Jorge Nunes,(2) em Vila Flor. O tio Jorge era casado com Branca Dias e o casal não tinha filhos. Com eles vivia Inês Dias, sobrinha de Branca. Muito naturalmente seguiu-se o casamento de Henrique Nunes e Inês Dias a quem, por certo, foi logo destinada a herança do mesmo tio, falecido poucos anos depois.

Breve se apresentava ele como um mercador “de tenda grossa” e homem de cabedal. Muito viajado e frequentando as mais diversas feiras, ele conhecia muita gente e andava em deslocações constantes “pelo reino, com seu trato de comprar e vender e dar provimento à sua loja que tem na dita vila”.

Ao findar da década de 1640, as comunidades hebreias de Trás-os-Montes sofriam um verdadeiro arraso, por parte da inquisição. E, baseados nos testemunhos de António Lopes Álvares, do Mogadouro, Diogo Lopes, de Chacim e Francisco Brandão, de Torre de Moncorvo, presos em Coimbra, com quem Henrique Nunes se terá declarado seguidor da lei de Moisés, os inquisidores decretaram a sua prisão. Deu entrada na cadeia de Coimbra em 17.3.1651, ali conduzido pelo familiar Manuel Coelho de Azevedo, de Torre de Moncorvo.

Correu o seu processo com bastante celeridade, pois ele entrou logo a confessar seus erros e denunciar seus cúmplices. Saiu no auto-da-fé de 14.4.1652, condenado em cárcere e hábito perpétuo, significando isso que, no regresso a Vila Flor, tinha de se apresentar vestindo o sambenito e com ele ir à missa aos domingos e outros dias santos.

Era uma situação humilhante e Henrique, como outros mais, procurava escusar-se o mais possível ao cumprimento da pena, metendo-se em constantes viagens de negócios. Obviamente que os olhos dos esbirros da inquisição, beatos e padres que em Vila Flor havia, andavam em cima dele e a notícia chegou a Coimbra. E dali foi expedida uma carta que, na rua pública foi entregue ao destinatário, o padre Domingos Pimentel, conforme ele próprio escreveu na resposta:

— Hoje, 3 de agosto (1652), recebi uma carta de Vossas Mercês em que se me ordena faça e obrigue a Henrique Nunes, desta vila a cumprir sua penitência, na forma da dita carta. Tanto que me foi dada, logo fiz diligência por ele e achei ser partido para Lisboa há dois dias. A dita carta fica em meu poder e tanto que ele vier, farei toda a diligência com a pontualidade que farei todas as mais que da parte do santo ofício me forem mandadas…(3)

Henrique Nunes só voltou a Vila Flor quase um ano depois, a crer na informação do padre Pimentel, que dava para o facto uma explicação. É que a carta do santo ofício lhe foi entregue em público, quando estava com outras pessoas e na ocasião lhe exigiram um registo de entrega da mesma. E isso fez logo levantar a suspeita de que a carta respeitava ao comportamento de Henrique Nunes. Este terá sido avisado e, por isso, concluía o dito padre, em mais uma missiva para a inquisição:

— Se ausentou há coisa de 11 meses, entrando e saindo ocultamente desta vila, sem eu o poder admoestar e que fizesse o termo. E porque me constou que não trazia a penitência imposta por VV MM, nem tão pouco acudia às missas, antes vendia fazenda de raiz sem necessidade e se desfazia da tenda que tinha, publicando seus amigos que ele se ia para Castela, e confessando-o a sua própria mulher e filhos.

Logo que pôde, o padre não esteve com meias medidas. Arranjou testemunhas a confirmar que Henrique estava a preparar a fuga para Castela e, no cartório do notário apostólico de Vila Flor, padre Gaspar de Meireles Almeida, mandou fazer um “auto de fuga”(4) que enviou para Coimbra.

Em simultâneo, também o sambenitado escreveu aos senhores inquisidores uma longa exposição dizendo, nomeadamente:

— Vindo ele suplicante do Vimioso, onde andou cobrando certas dívidas, no mesmo dia, o padre Domingos Pimentel e seu tio Belchior Rodrigues Pimentel, juiz ordinário, por serem seus capitais inimigos, e bem o mostram, pois sem ser cura nem pároco, amotinando o povo, com o dito seu tio prenderam a ele suplicante, sem lhe dizerem a causa nem porquê.

Com esta carta mandava uma certidão assinada pelo padre António Gil, cura da igreja matriz, em como ele cumpria a penitência indo à missa com o sambenito, confessando-se e comungando como obrigação cristã. De resto, justificava alguma falta escrevendo que “lhe é necessário algumas vezes ir a Lisboa, Porto, Lamego e outras partes comprar fazendas em que trata, para sustentar sua mulher e família, porque de outro modo perecera a pura necessidade”. E queixava-se de possíveis testemunhos falsos do padre Pimentel e “outros muitos seus apaniguados, que são capitais inimigos dele suplicante” e terão dado informações falsas aos senhores inquisidores. E a súplica que fazia era como que um desafio ao tribunal: que o mandassem soltar e deixar ele ir a justificar-se e a provar a sua inocência ou então que mandassem um comissário da inquisição a averiguar se tinha alguma culpa e merecia algum castigo, pois o padre Pimentel não merecia confiança.

Pragmáticos, os inquisidores ordenaram ao padre Pimentel que mantivesse o preso por 8 dias e que da cadeia fosse levado por 2 oficiais de justiça à igreja em dois dias santos a ouvir missa, vestido com o sambenito. As custas com os mesmos oficiais de justiça seriam pagas pelo réu.

Henrique Nunes tinha a cobertura do padre Gil mas, para maior eficácia e menos escandalosa se tornar, certamente de combinação entre ambos, Henrique queixou-se ao vigário-geral da comarca dizendo que o padre Gil, cura da igreja, se negava a passar-lhe a certidão que, naquele ano, precisava mandar para a inquisição. Claro que o padre Gil logo a passou “em cumprimento do despacho do reverendo vigário-geral”, em 27.4.1653.

Nota-se bem que entre o padre Pimentel e o padre Gil haveria uma luta surda mas intensa. E se aquele era um executor de ordens da inquisição, este teria mais apoio no paço arcebispal de Braga, pois fora nomeado cura da igreja matriz, lugar antes ocupado pelo outro. E agora, a propósito, saboreiem um naco de prosa enviado pelo padre Domingos para a inquisição em 9.8.1653:

— Suspeitando ele (padre Gil) que eu tinha ordem de VV. MM. para lhe fazer cumprir sua penitência, o meteu, domingo passado, de madrugada, no coro para de lá ver a missa e depois lhe dar certidão. Disto sabem os padres António Correia, Gaspar Meireles, Manuel Correia e António Luís, que iam ao coro cantar a missa como de costume. E o dito que serve de cura, lhe proibia que fossem ao coro porque tinha lá fechado Henrique Nunes; e eles padres porfiando, com provança de força, abriram a porta e acharam dentro Henrique Nunes, a um canto do coro, coberto com a capa. Este clérigo António Gil já em outro tempo, tirando o vigário-geral desta comarca, Paulo Castelino de Freitas, uma inquirição secreta, meteu um Diogo Henriques Julião debaixo de uma escada, de onde ouviu tudo…

Nota - No próximo texto veremos o desenvolvimento do processo de Henrique Nunes.

 

Notas:

1 - Ângela da Veiga, em 1629 morava em Viseu, sendo presa pela inquisição de Coimbra. Saiu no auto-da-fé de 17.8.1631. ANTT, pº 9969. Para além de Henrique, Ângela e o marido tinham 5 filhos vivos, todos casados, todos morando em Castela.

2 - Henrique Nunes tinha mais 2 tios paternos casados, moradores em Torre de Moncorvo, 1 em Vila Flor, 1 em Vilar Torpim, 1 em Ciudad Real e 1 em Cidade Rodrigo.

3 - Inq. Lisboa, pº 2747, de Henrique Nunes.

4 - Testemunharam neste auto: Manuel Alvarenga, homem nobre, de 58 anos; Sebastião Coelho Meireles, filho do anterior; Francisco Borges de Lemos, homem nobre, morador em Freixo de Espada à Cinta, capitão de ordenanças e Gregório Montes Coelho, homem nobre, capitão de infantaria. Veja-se um pouco das declarações deste último: — Sabe que o dito Henrique Nunes se deixou penhorar nas casas de viver e outra mais fazenda, por quantia que bem pudera remir com móveis e o não quis fazer; de onde se presume que é conluio e que os homens da nação desta vila, quando se querem ausentar do reino, se deixam executar, como poucos dias há, fez um Manuel Mendes da dita vila, que se foi para Castela.