António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Rodrigues da Silva (1554 – 1584 Relaxado)

 A mãe era originária de Barcelos e dava pelo nome de Benta Dias. O pai, Garcia Álvares, nascido em Bragança, formou-se em medicina. O casal residiu algum tempo em Bragança e ali terá nascido o filho Luís Álvares. Mudaram-se depois para Vila Flor, onde o Dr. Garcia exerceu as funções de médico do partido. (1) E em Vila Flor, pelo ano de 1554, nasceria o segundo filho do casal, batizado com o nome de Francisco Rodrigues da Silva.
Certamente que se tratava de uma família importante, pelo que, feitos os estudos preparatórios, os filhos rumaram à universidade de Salamanca. Luís formou-se em medicina, enquanto o Francisco se licenciou em advocacia.
Os dois irmãos casaram com duas irmãs, filhas de um advogado de Moncorvo, o Dr. André Nunes. E se Luís Álvares e a mulher, Branca Nunes foram morar para Vila Flor, Francisco Rodrigues da Silva e Ângela Nunes ficaram vivendo em Moncorvo, em casa de André Nunes.
Em Setembro de 1580 na vila de Moncorvo houve “alevantamentos” populares pelo Prior do Crato. A liderar o movimento estaria o Dr. André Nunes e, por isso, foi preso, por ordem do corregedor Diogo Dias Magro, que passou também ordem de prisão contra Francisco Rodrigues da Silva que, entretanto se ausentou para Vila Flor e viajou para Viana do Castelo onde seu irmão Luís e a cunhada tinham, entretanto, estabelecido morada.
Com o “juramento de bandeiras” pelo rei Filipe II de Espanha e a saída do corregedor Magro, em outubro seguinte, a tranquilidade voltaria a casa de André Nunes e Francisco Rodrigues regressaria também. E ele e o sogro retomariam a atividade profissional de advogados; este como proprietário do cargo de procurador da correição e aquele nomeado pelo sogro, coadjuvando-o ou substituindo-o. Adivinhava-se, pois, um futuro profissional muito brilhante para o jovem advogado Francisco Silva.
E como procurador, competia-lhe acompanhar o corregedor pela comarca, significando isso que ele se tornava conhecido nos auditórios dos vários concelhos da região. A título de exemplo, e porque foi acusado de guardar o Kipur de 1582, veja-se a seguinte declaração por ele proferida:
- Provará que no mês de setembro de 1582 o réu andou pela comarca da Torre com o corregedor dela, desde o princípio de setembro, e partiram a uma sexta-feira e chegaram um sábado à vila dos Cortiços e no domingo estiveram em uma boda do licenciado Gaspar Dias e na dita vila estiveram e residiram todo o mês de outubro e ele réu se achou ali sempre presente e não saiu dali, requerendo nas audiências e sendo este lugar 8 léguas da Torre. (2)
Situemo-nos agora em Moncorvo em março de 1583, quando ali esteve em visitação o inquisidor Jerónimo de Sousa (3) e no seguimento da qual se deu início a uma enorme vaga de prisões em Vila Flor e Moncorvo, nela se incluindo toda a família de André Nunes, (4) à exceção da filha Isabel da Mesquita e do genro e sobrinho, o Dr. Gaspar Nunes, médico, que se abalaram para a Galiza e dali chegaram ao Perú.
Acompanhemos agora Rodrigues da Silva, que foi conduzido pelo solicitador do fisco, Domingos Camelo, à cadeia da inquisição de Coimbra, onde foi entregue em 19.7.1583.
Impossível analisar aqui o seu processo que consideramos verdadeiramente exemplar. Na verdade as denúncias de judaísmo feitas contra ele são débeis, se as compararmos com as dos outros membros da família. Uma delas foi feita pelo irmão, Luís da Silva, dizendo que os dois “algumas vezes praticaram sobre a vinda do Messias e diziam que não era vindo”. Outras foram feitas por Diogo Nunes, tio de sua mulher, irmão de André Nunes, dizendo:
- O ano passado, na véspera de S. Miguel de Maio, foi ele denunciante em companhia de Francisco Rodrigues da Silva à feira de Vila Nova de Fozcôa e se tornaram para a Torre e vieram jantar à Veiga de Vila Nova (Pocinho) na Venda da Judia e a merenda que uma cristã-nova lhes deu foi toucinho para comerem e eles comeram. E depois de jantar, vindo pelo caminho, lhe veio dizendo o dito Francisco Rodrigues da Silva que comia toucinho por não poder deixar de o fazer para o não entenderem e que lhe sabia muito bem (…) E poucos dias antes que prendessem ao dito André Nunes, se achou em sua casa, à tarde, às horas da ceia. E o dito Francisco Rodrigues da Silva ceava um coelho e Ângela Nunes, sua mulher, não queria comer dele e posto que ele a importunava e agastava por ela não querer comer; e André Nunes disse que comesse e que fizesse o que lhe mandava seu marido; e então ela comeu (…) e André Nunes andava maldisposto de cólica e comia galinha cozida.
Resta dizer que todas as denúncias contra o jovem advogado foram feitas por familiares seus, igualmente presos. De contrário, ele não denunciou ninguém e sempre negou todas as acusações que lhe faziam, apresentando uma defesa verdadeiramente assombrosa. Dela, vejamos apenas um ponto, que põe em causa a própria justiça inquisitorial, contrária à justiça episcopal.
Com efeito, argumentou R. Silva que em cada 3 anos, a vila de Moncorvo era visitada pelo arcebispo de Braga e em cada ano era visitada pelo vigário-geral do arcebispo. Pois, continuava ele, nessas visitações todos os cristãos eram obrigados a denunciar todos os casos de práticas judaicas. Acontece que a última daquelas visitações terminou poucos dias antes da visita do inquisidor Jerónimo de Sousa. Como explicar que ele e os outros nunca, em nenhuma das visitações do “ordinário” fossem denunciados por ninguém e, de repente, aparecerem tantas denúncias? Das duas, uma: ou sempre andaram a mentir e a pecar à face de Deus e da Igreja, ou agora mentiram e as denúncias foram feitas por ódio e vingança e não por zelo e fervor cristão. (5)
De resto, a sua defesa constitui um verdadeiro libelo acusatório de algumas famílias da nobreza e da governança da terra e um vivo reportório das lutas políticas e dissensões sociais entre as elites cristã-nova e cristã-velha de Torre de Moncorvo e até dos vizinhos concelhos de Vila Flor e Freixo de Espada à Cinta, na medida em que as diversas famílias e comunidades se interligavam. 
Acresce que, logo depois das primeiras prisões, foi elaborado um documento enviado ao Inquisidor-geral, como defesa coletiva das pessoas que foram presas em Torre de Moncorvo, na sequência da visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa. Tudo indica que o autor principal deste documento fosse o Dr. Francisco Rodrigues da Silva. (6)
E aqui, encontraremos talvez a explicação para o estranho facto de todos os outros presos terem sido libertados, com penas mais ou menos leves e apenas o Dr. Francisco Rodrigues da Silva fosse queimado, no auto da fé de 25 de novembro de 1584. Ousou enfrentar a máquina inquisitorial!
O inquisidor geral, D. Jorge de Almeida, ter-se-á sentido incomodado com aquela exposição. E por isso ordenou aos inquisidores de Coimbra especial empenho no despacho dos processos dos presos de Torre de Moncorvo. (7)

Notas:
1-Em Vila Flor, casada com Bernardo Lopes, morava também uma irmã do Dr. Garcia, chamada Maria Álvares, a qual foi presa pela inquisição em 1557 – ANTT, inq. Lisboa, pº 2893.
2-IDEM, inq. Coimbra, pº 8450, de Francisco Rodrigues da Silva.
3-IDEM, Livro 662 da inquisição de Coimbra, pg. 60v – 100v; ANDRADE e GUIMARÃES – Subsídios para a História da Inquisição em Torre de Moncorvo, ed. Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, 2007.
4-Não encontrámos nos ficheiros do ANTT o processo do Dr. Luís Álvares da Silva.
5-Provará que de 20 anos a esta parte, sempre o arcebispo de Braga visitou a vila da Tore de Moncorvo cada 3 anos, em pessoa; e os seus vigários visitaram todos os anos e o ano presente de 83, a visitou o vigário-geral da dita vila e acabou a visitação poucos dias antes que a ela fosse o senhor inquisidor (…) ele réu foi culpado em visitação, por onde se vê claramente que se algumas pessoas o culparam, não foi com zelo e cristandade, senão por ódio e inimizade sua e de seu sogro, porque o houveram de dizer nas ditas visitações ou a seus confessores, mas não o disseram, na verdade por não haver culpas; e o fizeram na visitação do santo ofício porque sabiam que não se saberia quem eram.
6-Este documento (Petição dos cristãos-novos de Torre de Moncorvo) encontra-se transcrito no processo nº 89 da inquisição de Coimbra, folhas 84-87, de Francisca da Silva. MEA, Elvira Cunha de Azevedo – O procedimento inquisitorial garante da depuração das visitas pastorais de Braga (Século XVI), in: Actas do Congresso Internacional do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, Volume II/2, pg. 67-95.
7-ARCHIVO HISTORICO PORTUGUEZ, Vol. IX, p.342: – Senhores. Os treze presos que trouxe Inofre de figueiredo se despacharão em conselho com a diligencia que puder ser, por que parece bem que o auto se não defira mays tempo e se escuse a despesa que se faz com os presos, e ey por bem que os reconciliados da torre de Moncorvo e doutras partes, que tem perdido suas fazendas, se provisão do fisco per tempo de hum mês, ou dous, que me escreveys poderão andar nessa çidade, e quanto aos filhos dos reconciliados folgarey de saber quantos são, e sua idade e o modo em que vos parece se pode prover sobre sua criação e doutrina… Lisboa, 9 de Agosto de 84. O Arcebispo Inquisidor geral.
 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - João Oliveira (relaxado em estátua em 1694-10-17)

O comissário Bartolomeu Gomes da Cruz procurou nos livros paroquiais de Carção o assento de batismo de João Oliveira, mas não encontrou. Foi à cadeia de Bragança onde estava presa Ana de Oliveira, (1) sua irmã, e esta lhe disse que João nascera por 1657, “em um lugar junto à vila de Mansilha de las Mulas, termo de Leão - Castela”, onde seus pais viveram alguns anos, no tempo da guerra da Restauração. Dele ficou ainda o seu retrato físico: “alto de corpo, grosso, cara morena, grande, redonda, olhos correspondentes a ela, cabelo negro, crespo e curto”. E ficou a memória de ter sido o único cristão-novo de Carção relaxado em estátua, no auto da fé celebrado em Coimbra em 17.10.1694.

António de Oliveira, e Catarina de Leão foram seus pais. O casal residiu em Izeda (2) e a família repartia-se ainda por Vimioso, Carção e Argozelo, indo, mais tarde, aumentar a emigração para Castela. De regresso à pátria, António Oliveira fixou-se em Carção, onde foi “obrigado do açougue”.
Em Carção se criou o pequeno João Oliveira que depois casou com Catarina Lopes ou Pires e ali assentou morada, dedicando-se à criação de sirgo e fabrico de seda. E tinha também uma criação de sirgo na aldeia de S. Martinho do Peso, termo da vila de Penas Roias, atualmente do concelho de Mogadouro, onde assistia às temporadas, especialmente no verão, acaso por ali haver maior abundância de alimentos.

Na sequência das denúncias de celebração “pública” do Kipur em Carção, nos anos de 1688 e 1689, bem como das noticiadas “missas” judaicas celebradas pelo seu primo Domingos, também João Oliveira e Catarina Pires, sua mulher, foram mandados prender pela inquisição de Coimbra, em 21.5.1691. A ordem foi dada ao comissário da inquisição Bartolomeu Gomes da Cruz que dessa honrosa missão encarregou o padre Ciríaco Annes, da vizinha aldeia de Santulhão. (3)
Planeou o padre Ciríaco proceder às referidas prisões na igreja, no decurso da missa do domingo, 17 de junho. Prendeu apenas a mulher, já que ele não estava. Disse-lhe aquela que João tinha ido buscar folha de amoreira para os bichos, mas que à tarde regressaria a casa. Não esperou o abade. Meteu-se a caminho da vila de Algoso e ali, deixou a prisioneira, entregue ao juiz de fora. Meteu-se depois a caminho, em busca de João. Foi encontrá-lo no caminho entre Algoso e Campo de Víboras, em sítio “ermo e despovoado”. Vinha conduzindo uma égua carregada com sacos de folha de amoreira.
Astuto, o abade cumprimentou-o e pediu que fosse indicar-lhe o caminho para a aldeia de Matela. Anuiu o criador de sirgo, certamente a custo, pois tinha de voltar para trás. Andaram a distância de um tiro de pistola e João, depois de apalpar os bolsos, disse que perdera o lenço e que tinha de voltar atrás a procurá-lo. Aceitou o padre, tentando nele inspirar confiança. Porém… breve topou que Oliveira se distanciava e não voltaria. Antes cortou as cordas da carga e deixou cair os sacos de folha, montando a égua e pondo-se em fuga pelo monte. Espicaçou o padre a sua égua, em perseguição do fugitivo, que apanhou. Envolveram-se então em luta feroz, corpo a corpo.
A história foi contada com todo o colorido pelo próprio padre e repetida por seus amigos e correligionários como o padre da vila de Algoso. Saboreiem um pouco da sua prosa:
- Tanto que viu que o dito padre se vinha chegando a ele, puxou da espada, requerendo-lhe que se fosse embora, que o deixasse; e com esta deliberação se apeou o dito padre puxando de uma catana que trazia e investiu e estiveram por espaço de meia hora brigando, tirando-lhe muitas estocadas (…) e lhe tirou a espada da mão e tratou de o prender com umas cordas, de pés e mãos, para melhor segurança… (4)
Devia ser forçudo e destemido o abade. Ou teria o Oliveira algum escrúpulo em o trespassar à espada? Facto é que, estando o padre a atar-lhe as mãos e os pés, João Oliveira ripou de uma navalha e “com ela lhe deu duas facadas, uma por baixo da teta esquerda, e penetrante, de sorte que por ela saía a respiração e outra da mesma parte, junto ao quadril; e vendo-se ele dito padre mortalmente ferido…”
Terminou a luta com o Oliveira a deixar no sítio o chapéu, a casaca, a espada e a sua bainha, enquanto o padre pegava na dita espada e, com a mula pela rédea, incapaz de montar, e se dirigia para a estrada. Logo apareceu um homem de Campo de Víboras, com um jumento carregado com duas “saqueadas” de pão que ali deixou para montar o abade no jumento e levá-lo à vila de Algoso onde foi assistido por um cirurgião, pois “vinha todo extravasado de sangue” – no dizer do pároco de Algoso.
Obviamente que de tudo se fez mais tarde um inquérito, com o padre Ciríaco a fazer uma descrição dramática dizendo que apenas queria “um confessor para se confessar e dispor de sua consciência por entender que poucas horas tinha de vida”. João Oliveira, por seu turno, foi visto passar pelo sítio da Fonte do Ladrão, picando a égua e dizendo: “anda égua dum cabrão, para me livrares desta ocasião”. Ali foi conhecido por uma tal Reyna que andava segando para Domingos Vaz, a quem contou que “o conhecera muito bem, indo a cavalo em uma égua vermelha, sem capa, nem chapéu, nem espada (…) e lhe disse que ia para Sendim”. Na verdade não tomou o caminho de Sendim mas o de Uva e Palaçoulo, onde o avistaram também, internando-se depois em Castela.
Claro que a inquisição sempre foi muito generosa para os seus fiéis servidores e, por isso, logo que a notícia do caso chegou a Coimbra ordenaram os inquisidores ao comissário Bartolomeu da Cruz (5) “que da parte desta mesa o busque, significando-lhe o nosso sentimento e mandando-lhe acudir com os cirurgiões mais peritos e médicos necessários e medicamentos que uns e outros lhe receitarem e o familiar Manuel Cardoso de Matos (6) concorra com o dinheiro necessário e a seu tempo mandaremos satisfazer o que se houver gastado”. Em resposta, diria o padre Ciríaco que “beijava os pés de Vossas Senhorias pela honra que lhe deram e que se achava já muito melhorado e livre de perigo e a ferida quase sã; e oferecendo-lhe todo o dinheiro que quisesse para satisfazer aos cirurgiões e mais gasto, o não quis aceitar”.
E pouco mais temos a dizer sobre o consequente processo instaurado a João de Oliveira, pelo tribunal do santo ofício de Coimbra, concluído com a sua condenação à morte, queimando-se a sua “estátua”. Logicamente, a “bandeira” com o seu retrato foi pendurada na igreja da terra de sua morada e seria a única que ali ficou depois do célebre roubo dos sambenitos de Carção, de acordo com o testemunho de Maria Cordeira, dizendo:
- Eram muitos, chegavam da parte da epístola até ao altar de Santo António e da outra parte ainda estava um que era de João de Oliveira que queimaram em estátua, que foi o que deu as facadas no padre Ciríaco de Santulhão e foi este que mais tempo ficou na parede da igreja, pois não tinha parentes no lugar. (7)
Notas:
1-Certamente que Ana de Oliveira estava na cadeia de Bragança à espera que se organizasse a leva de prisioneiros para Coimbra. ANTT, inq. Coimbra, pº 1244, de Ana de Oliveira.
2-Em Izeda viviam também os pais de Domingos Oliveira, que foi relaxado, conhecido como o “rabi de Carção”. – NORDESTE, Jornal nº 1117, de 10.4.2018. Catarina de Leão apresentou-se voluntariamente na inquisição de Coimbra em 30.9.1667 – ANTT, inq. Coimbra, pº 6421, de Catarina de Leão. ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo  - Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso, 2008.
3-IDEM, pº 2173, de Catarina Pires, a Lebrata, de alcunha. Saiu condenada em confisco de bens, cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 17.10.1694.
4-IDEM, pº 9411, de João de Oliveira.
5-Bartolomeu Gomes da Cruz era natural de Caminha, reitor da colegiada da igreja de Santa Maria de Bragança. Foi-lhe passada carta de comissário do santo ofício em 1689 – ANTT, Habilitações, mç. 2 doc. 51.
6-Manuel Cardoso de Matos, boticário, morador em Miranda do Douro, casado com Maria Rodrigues, obteve carta de familiar do santo ofício em 1676 – ANTT, Habilitações, mç. 27, doc. 623.
7-IDEM, pº 7503, de Tomás Lopes.

 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco da Costa Henriques (n. Vimioso, 1623)

Francisco da Costa Henriques nasceu em Vimioso, cerca de 1623, filho de António da Costa e Beatriz Lopes. Tinha meia dúzia de irmãos e quantidade de tios paternos e maternos, muitos dos quais assentaram morada em Castela. Sim, que à época os dois reinos ibéricos estavam unidos pela coroa dos reis Filipes e as rotas comerciais de Vimioso e do Nordeste trasmontano se dirigiam especialmente para aquelas bandas. Aliás, as cidades então capitais da Ibéria (Valhadolid e Madrid) eram mais próximas que Lisboa.
Também Francisco cedo começaria a viajar com mercadorias para Castela, certamente acompanhando seu pai. Não sabemos que géneros de mercadorias levavam e traziam, mas pegariam a tudo o que aparecia, como era normal entre os da etnia. Das andanças por Castela, Francisco dirá que assistiu em Toledo e Valhadolid.
Teria uns 15 anos quando foi viver para a cidade do Porto, parecendo haver coincidência com idêntico movimento de seu tio materno, António Henriques da Costa, mercador, natural de Vimioso que, depois de viver 15 anos em Castela, (1) regressou ao reino para casar em Vila Franca de Lampaças, com Isabel Cardosa e ali viver por 9 anos, posto o que a família se mudou para o Porto. Eles seriam os sogros de Francisco, que, por 1648, casou com Leonor Henriques, filha única do casal, nascida em Vila Franca, por 1630.
Não sabemos onde e como viveria Francisco Henriques no Porto antes de casar. Viveria já em casa do tio e com ele trabalharia, como viveu e trabalhou depois de casado, “porque viviam na mesma casa e tratavam de tudo misticamente”, como ele próprio declarou?
Ao Porto foram ter com Francisco seus dois irmãos mais novos, Manuel e João da Costa (2) que, por 1656 se embarcaram para Pernambuco, Brasil, onde vivia Bento Cardoso, natural de Lampaças, tio materno de Leonor Henriques da Costa.
Adivinha-se a existência de uma rede familiar de negócios, baseada na importação de açúcar do Brasil e sua distribuição a partir do Porto, não apenas em Portugal mas também para Castela e principalmente para os países do Norte da Europa. De contrário, receberiam e fazendas e manufaturas que seriam enviadas para o Brasil. Isso não impedia Francisco de fazer constantes viagens de negócio, nomeadamente a Lisboa, Trás-os-Montes e terras da raia de Espanha onde, nem a guerra da Restauração impedia as transações comerciais.
Floresciam os negócios de Francisco da Costa Henriques e podemos com certeza afirmar que ele integrava a elite da burguesia mercantil da cidade, a avaliar pelo seu relacionamento com outros poderosos mercadores da época. Esta classe viria a ser completamente arrasada pela inquisição que, ao início do verão de 1658, lançou uma terrível operação de limpeza, que levaria à prisão mais de uma centena de pessoas. E muitos mais fugiam, conforme as informações dos familiares do santo ofício que chegavam a Coimbra dizendo:
- A gente da nação desta cidade anda de alevanto para se ausentar da mesma (…) lembro em termo de 6 dias não fica aqui cristão-novo algum… (3)
Logo na primeira vaga de prisões seguiu o nosso biografado, assim como o sogro, António da Costa. Dias depois, levaram também a mulher, Leonor Henriques da Costa. (4) No Porto ficaram 2 filhos e 2 filhas do casal, o mais velho contando apenas 9 anos. Quando o prenderam, Francisco trazia 4 dobrões de ouro que valiam 28. 800 réis, “cosidos no gibão” e mais 150 réis em prata.
No inventário dos seus bens móveis ressaltam 4 cofres, mobiliário de escritório, e mobiliário de casa feito de madeira de castanho, jacarandá, pau-preto ou pau-Brasil… tudo peças marchetadas de marfim, assim como bufetes, cadeiras e tamboretes de couro do Brasil, painéis e espelhos com boas molduras… reveladoras de um ambiente burguês.
Porém, o que verdadeiramente importa do mesmo inventário, são as janelas que se abrem sobre o mundo empresarial deste homem de 35 anos. Vejamos, antes de mais, as mercadorias que estavam embarcadas.
No porto de Viana do Castelo, chegadas no navio do mestre Cosme Vaz Carneiro, à responsabilidade de Heitor Tinoco, tinha 2 caixas de açúcar branco, pesando 47 arrobas.
Em um navio acostado na Foz do rio Douro, que havia de seguir para Hamburgo, tinha, carregadas, 10 caixas de açúcar “e um feito de mascavado” vendidas a Fernando Álvares e António Correia da Mesquita, ali moradores. Na margem do processo aparece desenhado o sinal identificativo destas caixas. Desenho diferente também, para identificar 3 caixas de açúcar branco que iam destinadas a António Henriques do Vale, mercador em Hamburgo. No mesmo navio estavam embarcadas mais 12 caixas de açúcar branco e 10 de mascavado, cujo destinatário não aparece identificado, sendo apenas a terça parte de Francisco, pertencendo as outras duas a Jorge Garcia de Leão.
Imperador Octaviano era o nome de um navio, dirigido pelo mestre João Bernardo, vindo de Hamburgo e atracado no rio Douro, com fazendas dali remetidas por Duarte e José de Lemos a ele e ao sogro e antecipadamente “vendidas” a Domingos Lopes Pereira, filho de Francisco Vaz Artur, mercador no Porto, natural de Segóvia, Castela, significando isso que o nosso biografado era um verdadeiro importador / exportador, ganhando nisso a sua comissão.
Pena que não tenhamos o preço das mercadorias para avaliar a grandeza dos negócios. De contrário, sabemos que ele devia “perto de 200 mil réis” à firma de António Rodrigues Mogadouro, (5) com sede em Lisboa, na Rua das Mudas, se bem que as contas do ano ainda não estivessem apuradas, significando isso que eram parceiros comerciais, não se antevendo o tipo de mercadorias fornecidas. De contrário, devia 20 mil réis a Diogo Lopes Dias, estabelecido na ilha Terceira, Açores, respeitantes a despesas havidas com o embarque de uma caixa de açúcar. Também ao mestre de navios, Manuel Álvares dos Santos, devia 7 mil réis que gastou com o embarque de uma caixa de açúcar. De tudo isto e mais dívidas se acharia registo concreto e preciso no seu “livro da razão” e no “livro que tem do recebimento das caixas que vêm do Brasil”.
Se as dívidas passivas são poucas e quase exclusivamente relativas a embarque ou transporte de açúcar, já as dívidas ativas são mais e de natureza diversa, mostrando que o nosso biografado vendia mercadorias tão diversas como sedas a um mercador portuense morador à Ponte de S. Domingos ou madeiras a um tanoeiro de Aveiro, certamente para a construção naval. E agora, veja-se um estranho tipo de negócio, contado nas próprias palavras de Francisco da Costa Henriques:
- Comprou ele de uns homens de junto a Bragança, cujo nome não se lembra, a herança do padre Amaro Martins que faleceu na Baía, estando no Brasil, do qual padre ficaram testamenteiros Miguel Carneiro e Pedro Vargas Carneiro, da Baía, e remeteram já a ele declarante o que lhe tocava; mas ainda lhe está devendo, da dita herança um Francisco Nunes da Mota, morador no Rio de S. Francisco, do mesmo estado, uma dívida grande, não sabe a quantia ao certo, e era procedida de gados, de que pertence a metade aos herdeiros do dito padre, conforme o contrato que fizeram; e todos os papéis tocantes à compra e cobrança desta herança tinha ele declarante no seu escritório. 
Não vamos analisar o processo de Francisco Henriques que logo começou a confessar as suas culpas e a denunciar familiares e amigos, particularmente trasmontanos e marranos, tal como fizeram a sua mulher e o seu sogro. E foi a partir das suas denúncias que a inquisição lançou em terras de Vimioso e Carção uma grande operação contra a heresia judaica, na qual foram parar ao tribunal de Coimbra umas 7 dezenas de pessoas.
Notas:
1-Em Espanha, António Henriques da Costa viveu 2 anos em Medina de Rio Seco; 7 em Ávila dos Cavaleiros e 5 em Segóvia. Tinha 2 irmãs, uma em Castela e outra em Livorno e um irmão, também morador em Castela, na cidade de Sevilha.
2-João da Costa faleceu em 1657, ainda solteiro, em pleno mar, em viagem de regresso ao Porto. Manuel da Costa continuava no Brasil em 1658 e Bento Cardoso morreu, na tomada de Pernambuco aos Holandeses, em 1654, conforme informação da sobrinha, Leonor Cardosa.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 4603, de Vasco Fernandes Campos, mercador, natural de Vila Flor, morador no Porto, assistente em Lisboa.
4-IDEM, inq. Coimbra, pº 280, de Francisco da Costa Henriques; pº 2256, de António Henriques da Costa; pº 7102, de Leonor Henriques da Costa. 
5-ANDRADE e GUIMARÃES – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, Ed. Vega, Lisboa, 2009.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Tomás Lopes (n. Carção, 1694)

Geralmente, a entrada da inquisição numa terra era seguida de fugas para outros sítios e, sobretudo para o estrangeiro. Em Carção, ao contrário, parece que eles teimavam em ficar e apenas se conhece um ou outro caso de fuga.
Regista-se também, na generalidade das terras, que a inquisição, a mais curto ou longo prazo, conseguiu nelas extirpar “a heresia judaica”, ao menos na aparência, já que em matéria de religião, nunca “uma guerra” se ganha. Pois, em Carção, os filhos, os netos e os bisnetos… ao longo de gerações, continuaram “a luta” de seus pais, avós e bisavós… na resistência à inquisição. Ao contrário de outras terras Trasmontanas, em Carção a “vacina” do santo ofício nunca surtiu efeito e os Carçonenses nunca deixaram de resistir.
A família de Tomás Lopes é disso um exemplo. Outros poderíamos apontar. Por agora fiquemos com seu bisavô, Belchior Lopes, curtidor, nascido por 1615. Foi preso na primeira grande investida da inquisição, em 1664, juntamente com sua mulher, Ana Rodrigues e o genro, Tomás Lopes, regressando a Carção vestidos com o ignominioso sambenito, em março de 1667. (1)
Trinta anos depois, nas grandes levas da década de 1690, foram arrebanhados pelo santo ofício uns 130 Carçonenses. Entre os prisioneiros contaram-se então 5 filhos (as) e 5 genros (noras) de Belchior Lopes. (2) Destes, a filha, Francisca Lopes e a nora, Isabel Luís, a bonita, de alcunha, foram queimadas nas fogueiras do auto da fé de 25.11-1696. (3)
Quando alguém era condenado à morte, a inquisição mandava pintar o seu retrato e escrever o nome em um sambenito que era enviado para a terra do condenado e pendurado na parede interior da igreja matriz. Ficava ali, como bandeira sempre hasteada, para lembrar a ignomínia dos judeus e “domar a soberba dos cristãos-novos”. Era a maior humilhação que podiam sofrer os filhos, netos e bisnetos… dos condenados.
Imagine-se o que sentiriam os netos de Belchior Lopes, quando assistiam à missa dominical e olhavam para aqueles retratos de seus tios, cônjuges, pais ou irmãos!
Outra humilhação foi lançada sobre os cristãos-novos de Carção pelo bispo de Miranda, João de Sousa Carvalho, proibindo-os de servir no cargo de juiz da igreja. E tal proibição terá acontecido exatamente quando o pai de Tomás Lopes ocupava o lugar. E a vara de juiz ter-lhe-á sido ostensivamente tirada da mão pelo pároco, à frente de toda a gente, na missa dominical.
Resilientes, os cristãos-novos de Carção recorreram às justiças eclesiásticas superiores e conseguiram a reversão do decreto do bispo Sousa Carvalho e, em cada ano, revezavam-se no cargo cristãos-velhos e novos. E o primeiro cristão-novo que foi nomeado para o cargo de juiz da igreja foi exatamente o bisneto de Belchior, o nosso biografado Tomás Lopes, no ano de 1721. Tinha então uns 27 anos, era casado com Brites Luís, pai de 4 ou 5 filhos e seria já o homem mais rico da aldeia, morando na casa que fora de Jorge Lopes Henriques que a vendera quando foi para Livorno ao referido bisavô de Tomás.
Uma das obrigações do juiz era manter a igreja limpa, as vestimentas lavadas, os utensílios cuidados e, no dia do orago, ornamentar o templo e pagar a festa.
Pois, nunca em Carção se tinha visto a igreja tão bem ornamentada, com as paredes todas cobertas de papel e seda e brilhantes, como naquela festa! Tudo à conta do juiz Tomás Lopes que até contratou um pintor de Sambade para dirigir os trabalhos.
Particularmente satisfeitos estariam os cristãos-novos da terra que, pela primeira vez, podiam assistir à missa e ouvir o sermão sem ter de encarar os retratos dos relaxados da inquisição, que eram cerca de 20, tapados que estavam com os ornamentos. (4)
Passada a festa e desmontada a decoração, verificou-se que tinham desaparecido 6 ou 7 daqueles retratos, o que não terá motivado qualquer celeuma, não constando que o abade se tenha importado com isso.
Anos depois foi juiz da igreja um primo segundo de Tomás Lopes, chamado Belchior Rodrigues de Lucena e desapareceu a maior parte dos retratos. Os últimos 2 seriam tirados quando o juiz foi Roque Rodrigues da Praça, outro primo segundo de Tomás Lopes, filho da “Bonita”.
No dia de Santo António de 1736, no decurso de uma récita teatral realizada no largo da aldeia, um pastor lançou a seguinte trova:
Graças a Deus para sempre
Agora fará um ano
Que na nossa igreja posta
Naquela parede toda
Ainda se via estopa
E agora por desgraça
Nem uma que ali se topa.

Era o rastilho a atear a pólvora! Logo o roubo dos sambenitos da igreja de Carção se transformou em notícia que correu por toda parte e chegou a Coimbra. Era o maior dos crimes, uma facada na própria inquisição.
De imediato foi ordenada uma devassa, conduzida pelo comissário Pedro da Fonseca Carneiro, abade da igreja de Bouçoães, termo de Valpaços. Confirmada a notícia, mandaram os inquisidores ao comissário António Luís Noga, reitor da matriz de Alfândega da Fé promover uma investigação mais profunda, no sentido de se descobrir os autores dos roubos e a finalidade dos mesmos. Sim, que o receio maior era que os sambenitos fossem usados pelos cristãos-novos como objetos de culto, à imagem do que faziam os cristãos com as relíquias dos santos.
A este respeito, ficariam os inquisidores sossegados, pois nenhum indício apontava para um tal objetivo, já que as vagas notícias colhidas apontavam para os restos de uns retratos que teriam sido vistos enterrados numa vinha e outros metidos debaixo da albarda de um burro. Apenas um Manuel Marinho afirmou que, ”viu ele testemunha em um buraco da parede da casa do banho de Tomás Lopes uma estampa das que estavam na igreja (…) mas passado coisa de 3 horas a quis ele testemunha tornar a ver, já a não achou na mesma parte”.
Sobre os autores materiais do furto, não se encontraram provas concretas e indesmentíveis. Mas todos apontaram que o responsável primeiro foi Tomás Lopes, acompanhado por 4 familiares. (5) Compreende-se a presunção, na medida em que foi com o juiz Tomás Lopes que desapareceram os primeiros retratos; foi em sua casa que alguém disse ter visto um sambenito e ele era o principal entre os cristãos-novos da terra. Ele próprio, aliás, se incriminou, dirigindo-se a Coimbra, ao tribunal, a queixar-se da parcialidade da devassa conduzida pelo comissário Noga e propondo-se pagar do seu bolso uma nova devassa em que fossem ouvidas pessoas indicadas por ele próprio. Que atrevimento!
Obviamente que logo foi mandado prender, seguindo o seu processo os trâmites normais. Não vamos analisá-lo, pois o espaço não permite. Diremos que acabou condenado em 5 anos de desterro para a vial de Cabeção, arcebispado de Évora. Condenado ainda nas custas do processo e nas despesas a haver com a reposição dos sambenitos na igreja de Carção.
Foi a tarefa encarregada ao familiar do santo ofício José da Guerra e Faria que se fez acompanhar do notário Francisco Geraldes da Guerra. Não sabemos como ele houve os sambenitos, já que da generalidade dos que foram roubados se perdeu o rasto. Porventura foram feitos novos retratos, a partir dos originais que se conservariam em Coimbra? Apenas temos a ata certificando que foram pendurados 15 retratos e o nome dos retratados, no dia 27-12-1744. (6)

Notas:
1-Para além de curtidor e agricultor, Belchior Lopes era o responsável pelo fornecimento do pão às tropas aquarteladas na região, trabalhando com o seu irmão Baltasar Lopes de Oliveira, que era o representante, em Trás-os-Montes, da firma dos argentários Mogadouro. Quando foi preso, tinha no “celeiro”, em Carção, uns 400 ou 500 alqueires para o efeito. No mesmo auto, com Belchior Lopes, saíram penitenciados 19 réus de Carção. – ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo, ed. Associação Cultural dos Almocreves de Carcão, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso. 2009.
2- ANTT, inq. Coimbra, 5509C, de Belchior Lopes; pº 5502, de Ana Rodrigues; pº 607, Baltasar Lopes; pº 6652, de Isabel Dias ; pº 8894, de Gaspar Rodrigues; pº 6731, de Isabel Luís, relaxada; pº 4633, de Francisco Lopes; pº 3860, de Francisca Lopes, relaxada ; pº 5204, de Luís Lopes; pº 2703, de Catarina Lopes; pº 394, de Francisco Rodrigues, sargento; pº 9453, de Manuel Jerónimo Pires.
3-Neste auto, saíram 88 pessoas, sendo 43 de Carção; foram 14 os relaxados em carne, 12 deles de Carção e 5 relaxados em estátua, sendo um de Carção.
4-Os números não coincidem, variando entre os 18 e os 30. Nós inventariamos 19 relaxados em Carção.
5-Os outros responsáveis indicados foram 3 netos de Belchior Lopes: (Belchior Rodrigues Lucena, Roque Rodrigues da Praça, Miguel Luís) e um Jerónimo Álvares, genro de Miguel Luís. Todos foram condenados em desterro.
6-ANDRADE e GUIMARÃES – A reposição dos sambenitos roubados na igreja de Carção, in: revista Almocreve 2012, pp. 48-53.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Domingos de Oliveira (Izeda, 1645 - Coimbra, 1696)

Num aglomerado populacional pequeno e remoto, como era Carção no século XVII, o papel do barbeiro era muito importante e para exercitar a função era necessário ser encartado por alvará régio, antecedido de exame após longa aprendizagem com um mestre. E a função do barbeiro não se limitava, como hoje, a cortar cabelo e barba. Competia-lhe também fazer sangrias, aplicar mezinhas e outros curativos, coisas que hoje pertenceriam a um enfermeiro.
Nascido em Izeda, Domingos Oliveira foi levado em criança para Carção onde os pais e avós o terão iniciado no judaísmo. Jovem ainda, rumou a Castela, fixando-se no lugar de Pobladura d´el-Valle, terra de Benavente, onde assistiu 6 ou 7 anos.
Não sabemos se foi em Carção ou Castela que aprendeu a barbeiro e supomos que fosse a oportunidade de exercer o ofício que o fez regressar a Carção. Vivia-se ali, ao tempo, um clima de terror, com a aldeia a ser varrida por uma vaga de prisões lançada pela inquisição. Tal como o pai, a mãe e os dois irmãos mais velhos, Domingos tomou então a iniciativa de se ir apresentar no tribunal de Coimbra, onde chegou no dia 22.10.1667. Depois de ouvido, foi mandado regressar a Carção, sendo chamado depois para ser reconciliado no auto da fé de 14.6.1671, em cárcere e hábito que lhe foi tirado depois de abjurar. (1)
Regressado a Carção e contando já uns 26 anos, Domingos decidiu casar, com sua prima Maria da Costa. Para isso necessitava de dispensa papal, que podia mandar pedir. Decidiu, porém, ir ele próprio a Roma buscá-la. Durou a viagem mais de meio ano, aproveitando ele para visitar muitas terras e comunidades hebreias, de França e Itália, (2) muito especialmente a cidade de Livorno onde terá permanecido mais tempo, com frequência da sinagoga e instrução específica na lei de Moisés. De Livorno terá trazido um livro de orações e textos bíblicos, com uma “tabuada perpétua” que lhe permitia saber o calendário judaico das festas e dias de jejuns.
António Ortuño, um mercador castelhano estabelecido em Bragança, depois de contar que foi a casa de Baltasar Oliveira a vender ferro, acrescentou:
- Seu filho disse a ele confitente se queria ouvir e ver um livro, que havia de folgar de ver que trouxera de Livorno (…) e dizendo ele confitente que sim, tirando o dito Domingos Oliveira do forro dos calções um livro de meio quarto, com 3 dedos de altura e abrindo-o leu nele algumas orações, uma das quais se chamava Shemá e outra Midá e outra sacrifício de Abraão… (3)
Depois que o santo ofício entrara em Carção, nos anos 60, a terra parecia vacinada contra a heresia judaica. Porém, 20 anos mais tarde, ao final da década de 80, começaram a chegar a Coimbra notícias alarmantes, dando conta do extraordinário crescimento religião mosaica. E Domingos de Oliveira era geralmente apontado como sendo o oficiante das cerimónias realizadas em casas diversas, feitas “sinagogas de judeus”. Dizia-se até que ele celebrava missa judaica na capela de Santo Estêvão!...
No seguimento daquelas notícias e de um processo de averiguações conduzido pelo comissário da inquisição Bartolomeu Gomes da Cruz, (4) prior da matriz de S. Maria, de Bragança, começou nova operação, com o rolo compressor da inquisição a esmagar a comunidade hebreia de Carção. A primeira leva aconteceu em Junho de 1691, com a prisão de 10 pessoas, que foram conduzidas a Coimbra.
Domingos não esperou que o prendessem. Abalou para Espanha. E, acaso por não conseguir licença ou clientela para o exercício da profissão de barbeiro, fez-se mercador de açúcares que vinha buscar ao lado de cá da fronteira para vender em Castela. Provavelmente negociava em ligação com familiares seus de Mogadouro e Azinhoso.
Entretanto, na inquisição de Coimbra as denúncias no processo de Domingos iam-se avolumando. Veja-se uma delas, relatando a celebração do dia do Kipur de 1688, feita por João Rodrigues:
- Sendo pelas 10 horas da noite foi a casa de Clara Lopes, viúva e vigiando por um buraco da porta viu estar uma mesa baixa coberta por uma toalha branca com 2 castiçais tendo cada um uma vela amarela, apagados, (…) e sobre a dita mesa uma albarrada (vaso) de estanho e um pedaço de pão e na dita casa estava uma candeia de granado acesa e nela estavam (…) de joelhos diante da dita mesa e os mais e alevantando-se este (Domingos Oliveira) pegara na dita albarrada e a levantara sobre a cabeça e disse para os mais que não cressem nos santos de lá que eram santos de pau e logo pusera a dita albarrada sobre a mesa…
Se a noite do Kipur de 1688 foi assim celebrada em casa de Clara Lopes por um grupo alargado e presidindo Domingos Oliveira, já o de 89 seria em casa deste, para onde foram vistas entrar algumas pessoas pela porta das traseiras. A propósito, contou o padre Manuel Ochoa:
- Domingos Oliveira, barbeiro, tinha um livro que trouxera de Livorno pelo qual ensinava a lei de Moisés a todos os cristãos-novos do dito lugar e que era mestre de cerimónias e que ouvira dizer ao padre Sebastião Vaz que no dia grande estivera fechado em sua casa com Clara Lopes e Maria Fernandes ensinando-lhes as rezas do livro.
Da tal missa na capela de S. Estêvão não temos qualquer relato, antes a afirmação de muitas testemunhas dizendo que era voz pública a sua realização. (5)
Por 1687, faleceu sua mulher e a Coimbra chegaram informações, como esta, produzida por Maria de Morais:
- Disse que estava em casa do réu quando morreu Maria da Costa e ele lançara as pessoas fora e esteve cerca de 2 horas sozinho com a defunta e ela se veio para casa e presume que era cerimónia judaica.
Miguel Fernandes, contou que se encontrara na rua uns dias depois com Domingos e este lhe deu “um bacalhau e uns poucos de ovos e um ou dois tostões para fazer um ou dois jejuns judaicos…”
Uns 3 anos depois, morreu o pai de Domingos e apareceram testemunhas a dizer que este, durante 9 dias manteve uma candeia acesa no quarto dizendo “que a alma do defunto vinha ali descansar naquela cama” e que durante um ano Domingos não comera carne e que pagara 4 tostões às pessoas que faziam jejuns judaicos por alma do pai.
Não vamos continuar o relato das dezenas de denúncias feitas contra o nosso biografado. Vamos antes a Castela, ao lugar de Corposário, para onde fugira, pelo verão de 1691. Terrível acidente: ao passar junto a uma igreja caiu-lhe em cima o badalo de um sino. Pensou-se que o homem morria e logo veio um emissário ao Azinhoso a casa do irmão buscar a mortalha que havia de vestir, que seria amortalhado ao modo judaico. Felizmente que não morreu. Acrescentemos, porém, que no Azinhoso estaria já então desposado para casar com Inês Lopes da qual tinha um filho de tenra idade.
Entretanto e porque em outubro de 1691 a inquisição decretara a prisão de Domingos Oliveira, os comissários, familiares da inquisição e as autoridades… todos andavam vigilantes pela zona da fronteira. Efetivamente foi preso pelas milícias de Penas Roias, em 15.10.1692, junto à fronteira, na região de Lagoaça, onde viera buscar mercadoria para vender em Castela.
Se as denúncias na inquisição de Coimbra eram muitas e de extrema gravidade, a defesa de Domingos foi verdadeiramente desastrosa. Imagine-se: perguntado sobre o livro, respondeu que não sabia ler, quando as testemunhas por ele indicadas diziam exatamente o contrário! Perguntado sobre a “missa judaica” celebrada na capela de Santo Estêvão, respondeu que, ao contrário, ele era mordomo da mesma e que até trouxera de Roma um breve papal concedendo indulgências a quem visitasse a mesma capela. (6)
Domingos terminou os seus dias queimado nas fogueiras do auto da fé celebrado em 25.11.1696.
Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 2865, de Domingos de Oliveira.
2-IDEM - Veja-se o itinerário seguido: - Rio Seco, Vitória, Pamplona que fica na fronteira, com Foix, reino de França e dali passando a Carcassone foi para Montpellier a Marselha onde embarcou para Viareggio, porto de Itália, de onde passou a Roma onde, fazendo o seu negócio só com a dilação de uma doença que ali teve em que tudo gastou 3 meses, se voltou pelas mesmas terras. – Note-se que ele omitiu a estada em Livorno, Bayonne, estas no regresso.
3-IDEM – Francisco Cardoso, seu cunhado, casado com Domingas de Oliveira, fez a seguinte descrição do mesmo livro: - Era ainda novo, dourado por fora e de folhas vermelhas, que seria ao modo de ripanço (breviário) e chegando a par dele viu letras vermelhas e pretas e não pôde ler por lhe parecerem estrangeiras…
4-Bartolomeu Gomes da Cruz obteve provisão de comissário em 3.1.1689 – TSO, Conselho Geral, Habilitações, mç. 2, doc. 51.
5-ANTT, inq. Coimbra, pº 2865. Testemunho de Gaspar Luís: - Por ele testemunha duvidar que o dito Domingos Oliveira dissera missa sendo secular, respondeu então a dita Francisca Lopes que o dito Domingos Oliveira sim dissera missa na ermida de Santo Estêvão que para tudo havia jeito e também (…) tinham assistido Baltasar Lopes, Francisco Rodrigues…
6-IDEM - Disse que trouxe de Roma breves para se celebrarem festas com jubileus, como foi para a Santa Rainha e para Santo Estêvão e para ser privilegiado o altar do Santo Cristo de Carção, trazendo agnus dei e outras muitas relíquias e crónicas de santos que deu pelo dito lugar, com que era muito conhecida a sua piedade cristã.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos: Francisco Lopes de Leão (Vimioso, 1620 – Coimbra, 1667

A história da família de Francisco Lopes na inquisição começará com um Gaspar Pires, seu avô paterno, morador no Vimioso, que terá sido preso em dezembro de 1562 pela inquisição de Coimbra.(1)
Martirizada foi também a parte materna da família, moradora em Sambade, nos anos de 1640 quando o santo ofício ali lançou uma verdadeira operação de limpeza da heresia judaica.(2) A esse tempo já o avô materno, Miguel de Leão, era falecido e a avó, Inês Lopes morava em uma casa que nas sextas-feiras à noite ficava mais alumiada “e muito clara, com diferença dos outros dias da semana”.
Maria de Leão se chamou a mãe de Francisco, a qual casou em Vimioso com Manuel Lopes. E foi em Vimioso que ele nasceu, cerca de 1620. Por 1640 casou com Catarina Lopes, de Carção e ali fixaram residência. Predominavam nesta aldeia empresas familiares de surradores, curtidores, sapateiros e negociantes de solas que a faziam extremamente progressiva. 
Como o pai, Francisco fez-se mercador mas aos 45 anos, vivia de seus rendimentos, não exercitando profissão alguma. Viveu 3 meses em Alcañices e fazia bastantes viagens ao Porto, a Braga e outras terras, especialmente a Lisboa, onde ia “com petições e procurações de várias pessoas sobre negócios que tinham na Junta da Companhia da Bolsa”.
Em 1660 entrou o santo ofício em Carção, iniciando um verdadeiro massacre da população marrana da aldeia. Depois da primeira vaga de prisões, começou uma verdadeira peregrinação de gente de Carção para Coimbra. Iam apresentar-se antes que os mandassem prender, evitando assim o sequestro de bens. Só de uma vez, nos dias que seguiram ao auto de 26.10.1664, apresentaram-se ali mais de 20 Carçonenses.(3)
Entre eles contou-se Francisco Lopes de Leão, que se fez acompanhar de sua mulher e lamentou, perante os inquisidores, não trazer as suas filhas “por ser muita a sua pobreza e ser a distância do caminho perto de 50 léguas”. O facto de ir apresentar-se não significava que Francisco tivesse ideias de abandonar o judaísmo, antes pelo contrário, fazia-o para se livrar da prisão, como ele próprio contou mais tarde aos mesmos inquisidores:
— Em umas casas junto ao Terreiro de Santa Justa se encontrou com (…) e com muitas pessoas de Vila Flor, Carção e Vimioso, os quais naquela ocasião se vinham apresentar nesta Mesa e estavam pousadas nas ditas casas e em outras da vizinhança e ficaram muitos dias na dita cidade tratando de seus negócios, e em ocasião de ele confitente as ir visitar, como crente na lei de Moisés, deu conta às ditas pessoas deste intento de nunca largar a lei de Moisés, animando-as publicamente a que perseverassem na dita crença, sem embargo de se haverem apresentado umas e tratando de se apresentar outras…(4)
Como se vê, parece que o intuito primeiro da sua apresentação no tribunal de Coimbra não era a confissão dos erros e o pedido de perdão mas apoiar, confortar e manter firmes na crença judaica os outros, seus conterrâneos, apresentando-se Francisco Lopes de Leão como um verdadeiro líder (rabi) da nação hebreia de Carção. Aliás, depois de identificar meia dúzia de pessoas que viajaram com ele para Coimbra, acrescentaria:
— Vindo pelo dito caminho em todos os dias da jornada desde Carção até esta cidade, e em todos os dias que aqui esteve, que foram 3 dias, em todos os da volta para Carção, jejuou ele confitente judaicamente, em presença das ditas pessoas (…) e fazia-o para que o Deus de Israel o livrasse a ele e aos mais cristãos-novos de serem presos e castigados…
Desta e doutras confissões, resulta claro que a viagem de Francisco de Leão foi uma verdadeira romagem de fé e reafirmação da lei de Moisés. 
Recebido no tribunal de Coimbra em 24.10.1664, Francisco confessou os seus erros, dizendo que fora alumiado pelo Espírito Santo 20 dias antes. Registada a sua confissão e aconselhado a não cair mais na heresia judaica, foi mandado regressar a Carção.
Entretanto choviam denúncias de judaísmo contra ele, feitas por toda aquela gente de Carção presa ou apresentada, denúncias que os inquisidores iam notando no seu processo. Uma denúncia pesou particularmente. Foi feita por Diogo Henriques Julião, de Vila Flor contando como aquele os andara confortando e animando em Coimbra a que “não desconfiassem e que sofressem os trabalhos” e os castigos da inquisição porque a lei de Moisés era a boa e que a guardassem.
Outra denúncia foi feita pelo carcereiro da vila de Outeiro contando que em fevereiro de 1665 estando ali preso o nosso biografado, este dissera, alto e bom som, perante os outros prisioneiros, que a lei de Moisés era melhor que a dos cristãos, que o Messias ainda não tinha vindo e que ele era judeu e se, por acaso tivesse alguma gota de sangue cristão, nem que fosse apenas um dedo, ele o havia de cortar ou queimar a parte cristã do seu corpo.
Naturalmente que logo foi ordem de Coimbra para o comissário regional da inquisição (5) no sentido de mandar Francisco apresentar-se de novo no tribunal, o que aconteceu em 28.9.1665. E logo ele confessou que nunca deixara de ser judeu e que a sua apresentação anterior fora feita “só a fim de se livrar de ser preso pelo santo ofício e não por estar convertido à fé, como agora está”. Acrescentou que na prisão do Outeiro não só dissera aquelas blasfémias mas inclusivamente fizera jejuns judaicos. Contudo… no dia 15 de fevereiro, vendo passar uma imagem de Cristo em uma procissão, ele lhe pediu “que o alumiasse para se tirar dos erros em que andava, mas a verdade era que a crença durava em seu coração e ele confitente até à hora em que faz esta confissão nesta mesa”.
Desta vez, sim, ficou preso em Coimbra e denunciou dezenas de correligionários que com ele se declararam, não apenas de Carção mas de muitas terras Trasmontanas. Mesmo na chegada a Coimbra, antes de se apresentar na inquisição, ele continuou judaizando publicamente. Vejamos um pouco do seu depoimento:
— Na estalagem onde ele confitente veio pousar na segunda vez que veio a esta mesa, por ocasião de ser chamado a ela, se achou com (…) e estando todos juntos na dita estalagem, publicamente, em presença de todos, jejuava judaicamente todos os dias, exceto ao sábado, na sobredita forma, pregando e praticando as causas da lei de Moisés às ditas pessoas…
Metido na prisão por ano e meio, e muitas vezes chamado a depor, o processo deste homem é bem significativo do drama interior da gente da nação, apanhada entre o judaísmo e o cristianismo. Veja-se este excerto:
— Querendo por diversas vezes encomendar-se a Cristo nosso senhor, pedindo-lhe que o alumiasse e lhe abrisse os olhos da alma para receber a sua fé santíssima, a mesma inclinação perversa do seu sangue o apartava disso, persuadindo-o a não se encomendar ao mesmo Cristo, senão ao Padre Eterno, induzindo-o assim o demónio a não se persuadir que um homem que morreu numa cruz pudesse ser Deus.
Seria ele um homem desesperado? Ou seria um mestre do disfarce e da ironia? Não o sabemos, mas consideramos verdadeiramente extraordinária a sua última confissão, feita no dia 12.2.1667, de mãos atadas, no decurso do auto da fé, sabendo que ia ser queimado. Já não era ele que se dizia alumiado pelo Espírito Santo. Eram os próprios inquisidores que estavam alumiados, a ponto de descobrirem “até o segredo do coração dele confitente”, pois que, apesar das juras em contrário, ele fora “sempre verdadeiro judeu e professor da lei”. Vejamos as suas próprias palavras:
— Reconhecendo o estado em que havia chegado pelas suas culpas e crença na lei de Moisés, esta não lhe aproveitava para a vida, sem embargo de haver sido sempre verdadeiro judeu e professor da lei com a maior pontualidade que lhe foi possível, e vendo outrossim a justiça com que foi julgado nesta mesa por convicto no crime de judaísmo, entende por esta razão que na dita mesa assistia o Espírito Santo, pois chegava a julgar com tanto acerto que até o segredo do coração dele confitente lhe não ocultava…
Pena que o espaço não permita que apresentemos as belíssimas orações judaicas que este “professor da lei” ditou para o processo. Terminamos dizendo que a história da família de Francisco na inquisição continuou com os filhos e os netos e, como ele, foram queimados nas fogueiras dos autos da fé um filho, uma filha e uma nora.
 
 
Notas:
 
1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 12846, de Gaspar Pires.
2 - ANDRADE e GUIMARÃES – Marranos em Trás-os-Montes Judeus-novos na Diáspora o Caso de Sambade, ed. Lema d´Origem, Porto, 2013.
3 - IDEM – Carção Capital do Marranismo – Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso, Carção, 2008.
4 - ANTT, inq. Coimbra, pº 3249, de Francisco Lopes de Leão.
5 - O comissário chamava-se João Machado Pimentel. Justificou o seu pedido de admissão, dizendo que o lugar ficou vago com a morte do arcediago Francisco Luís e que ele é irmão do promotor da inquisição de Coimbra, Dr. Manuel Pimentel. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, João, mç. 6, doc. 224.

 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Jorge Lopes Henriques (n. Miranda do Douro, 1610)

A história de Jorge Lopes Henriques e seus ascendentes desenrola-se por todo o planalto Mirandês e raia de Espanha e prolonga-se pela diáspora de Livorno, em Itália. Os seus bisavós do Vimioso pertenceriam à primeira geração de cristãos-novos e a casa dos bisavós de Mogadouro “era a casa onde mais se conversava na dita vila alguma coisa de judaísmo que em nenhuma outra casa”– no dizer do mestre António de Valença. (1) Outros dirão que tal casa era uma verdadeira sinagoga onde não faltaria uma Bíblia escrita em hebraico, por onde liam o citado Mestre e Bernardo da Rua, explicando-a depois aos circunstantes. Chamavam-se estes seus ascendentes Francisco Vaz e Leonor Lopes.
Catarina Vaz foi uma filha de Francisco e Leonor, nascida por 1560 e que foi casar em Alcañices com Gonçalo de Castro, originário de Carvajal. Nesta vila castelhana da raia, ficou morando o casal. Pouco tempo ali viveram, uma vez que, em setembro de 1578, a inquisição de Valhadolid prendeu Gonçalo e Catarina veio fugida para o Azinhoso, com um filho ainda de colo. Para trás ficaram acusações de judaísmo contra ela, feitas não apenas pelo marido mas também por outros dos muitos cristãos-novos trasmontanos que foram presos na chamada “cumplicidade de Alcañices”. Tais acusações originaram a abertura de um processo em Valhadolid e um pedido de prisão de Catarina dirigido ao corregedor de Miranda do Douro. Metida na cadeia, e interrogada pelo provisor do bispado, este escreveu para Coimbra solicitando ordens. Naquela missiva, datada de 4.4.1580, dizia nomeadamente:
- Desta mulher de Mogadouro depende muito porque, se neste reino há judeus, devem estar na vila de Mogadouro. E lá assistiu também o autor desta apostasia e cumplicidade de Alcañices que se chama Luís Francisco, era de Mogadouro e é de crer que de onde saiu tal mestre não faltem discípulos. (2)
Outra filha de Francisco Vaz e Leonor Lopes chamou-se Beatriz Vaz e foi casar e morar em Vimioso com Jorge Pires. E estes foram os pais de Luís Lopes, nascido por 1565. Luís viveu algum tempo em Quintela de Lampaças, casado com Catarina Álvares, que lhe deu 3 filhos. Ficando viúvo, casou em segundas núpcias com sua prima Beatriz Henriques, do Azinhoso, indo o casal viver para Miranda do Douro, em uma casa da rua da Costanilha, avaliada em 60 mil réis. Eram lavradores remediados, que colhiam mais de 200 alqueires de trigo e outros tantos almudes de vinho e exploravam 22 colmeias. Luís era também curtidor, dispondo de “uma tinaria na ribeira, por cima da ponte” e uma dúzia de pelames. Ambos foram presos pela inquisição de Coimbra, em dezembro de 1618, saindo penitenciados no auto da fé de 29.11.1621. (3) Beatriz voltaria a ser presa, em setembro de 1643, acabando queimada no auto da fé de 25.6.1645.
Com a prisão de Luís e Beatriz ficaram ao desamparo os seus 3 filhos e 2 filhas. Joana era a mais velha e contava uns 11 anos, enquanto o Jorge andaria pelos 8. Sobre a juventude deste, pouco sabemos. Porém, cedo começaria a aprender a curtidor de peles e se introduziria no mundo dos negócios. Sabemos que mantinha especiais contactos com os irmãos Carvalho, de Mogadouro – Felgar e com Baltasar Lopes de Leão, natural de Mogadouro, com loja de mercador em Lisboa na Fancaria de Cima.
Casou em Carção, com Maria Lopes e na “capital do marranismo” estabeleceu residência. Viajava com alguma regularidade para Lisboa e Castela e na raia de Puebla de Sanábria tinha mesmo um irmão empregado como aduaneiro.
Quis o destino que na sexta-feira de 11 de dezembro de 1637, ele se encontrasse na aldeia de Quintela de Lampaças. Chegou ali pelas 10 horas, montado em uma “mula castanha escura” e parou à porta de Martim Rodrigues, “que trata em sabão”. (4) Na casa de Martim almoçou e depois foi com Pero Fernandes a ver “um aparelho de curtir, coisa que tinha que ver, e por lho terem gabado”. Foi também visto a entregar uma carta a Baltasar Dias de Leão, uma carta que vinha aberta e logo ali foi lida pelos dois, ocasionalmente passando na rua o abade da freguesia, Paulo Peixoto de Sá, que nisso reparou.
No domingo seguinte, à hora da missa, tinham planeado os agentes locais da inquisição prender 19 “judeus”, conforme fora ordenado pelo tribunal de Coimbra. Comandava a operação o familiar do santo ofício Lucas Freire de Andrade, irmão do inquisidor Cristóvão de Andrade Freire. Apesar de todo o cuidado e segredo, apenas foi possível prender 10 dos arrolados, tendo os outros 9 fugido. De imediato nasceu a suspeita de que alguém violou o segredo do santo ofício e os avisou que fugissem. E logo o abade de Quintela, Paulo Peixoto de Sá escreveu para Coimbra a contar o sucedido.
A carta do abade originou a instauração de um processo, sendo ouvidas várias testemunhas, todas assentando que fora Jorge Lopes Henriques que viera com uma carta a avisar os que eram de suas relações e iam ser presos. Também foi geralmente entendido que a carta fora trazida de Lisboa por um irmão de Jorge, dizendo-se que fez o caminho em 6 dias. Uma das testemunhas autuadas foi o abade de Sendas, comissário da inquisição, António Rodrigues da Costa que, casualmente, se encontrava em Quintela, de visita a um amigo, cristão-novo, chamado Francisco Rodrigues Sancho, que estava doente. Veja-se um pouco do seu depoimento:
- O dito Francisco Rodrigues Sancho e sua mulher Lucrécia Nunes disseram que um Luís da Serra e os mais que prenderam foram pouco venturosos e acautelados pois se deixaram prender e não fugiram, sendo que tinham tido aviso de Coimbra de como vinha ordem para os prender… (5)
Outra das testemunhas, Gonçalo Esteves, foi mais explícito na acusação a Jorge Henriques:
- Disse que ouvira dizer a Martim Rodrigues, homem da nação e a Leonor Lopes, mulher de João da Serra, a qual está presa e a Guiomar de Leão, mulher de Francisco Rodrigues Sinal, outrossim presa, os quais disseram “que bom juízo tiveram todos em vir um homem de Santulhão ou Carção, que lhe trouxera uma carta de aviso mas que bem pago fora pois todos lhe ajuntaram bastante dinheiro, mas não disseram o nome do homem nem donde vinha a carta.
O comissário Rodrigues da Costa ainda alvitrou que a fuga de informação teria acontecido com algum funcionário da inquisição de Coimbra e por isso aconselhou Lucas Freire a que falasse com o inquisidor seu irmão para se descobrir o criminoso.
Resultou que, em 31 de Março de 1638, Jorge Henriques foi preso em Carção pelo familiar Miguel Sousa Correia, de Bragança, o qual se fazia acompanhar de seu irmão Manuel e por um meirinho da correição. Chegado a Coimbra, o prisioneiro foi interrogado pelos inquisidores a quem ele contou uma história bem simples.
Contou que Baltasar Lopes de Leão, (homem a quem ele “serve”) mandou de Lisboa, por Luís Carvalho, uma carta com um documento de cobrança de 100 mil réis que lhe devia Francisco Rodrigues, o Sinal, de alcunha. Ele recebeu a carta em Mogadouro, da mão do dito Luís Carvalho, com a incumbência de ir Quintela de Lampaças cobrar a dívida. Como o Sinal não estava e lhe disseram que fora a Bragança, esperou que viesse. Como não vinha, foi falar com Baltasar Dias de Leão, cunhado do Sinal, mostrando-lhe a carta e procurando dele cobrar a dívida.
No final, “pareceu a todos os votos que estava bastantemente examinado (…) e que não havia culpa para ser preso o réu nos cárceres”. Foi mandado embora mas… teve de pagar as custas “da cavalgadura que o trouxe (2 400 rs), do homem que veio com ele (2 260 rs), do gasto de seu mantimento (400 rs) e diversos (176)”. Entenda-se que “diversos” significa certamente as cordas e grilhões com que o prenderam.
Deveremos, como os inquisidores, acreditar na história de Jorge Lopes Henriques? A verdade é que, regressado a Carção, logo se meteu em fuga para a cidade de Livorno, em Itália onde livremente podia praticar o judaísmo. E o mesmo caminho seguiram depois alguns de seus conterrâneos e de Livorno para Carção veio pelo menos uma Bíblia, que a trouxe Domingos Oliveira, um dos marranos de Carção queimados nas fogueiras do santo ofício. (6)
Notas:
1-TAVARES, Maria José Ferro – Para o Estudo dos Judeus em Trás-os-Montes no século XVI, in: Cultura História e Filosofia, vol. VI, pp. 371-417, Lisboa, 1985.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 268, de Catarina Vaz.
3-IDEM, pº 3497, de Luís Lopes; inq. Lisboa, pº 2115, de Beatriz Henriques. ANDRADE e GUIMARÃES – Jorge Lopes Henriques, de Carção, e alguns familiares processados pela inquisição, in: revista Almocreve, pp. 65-72, Carção, 2009; IDEM - Judeus em Trás-os-Montes – A Rua da Costanilha - Âncora Editora , 2015.
4-ANTT, inq. Coimbra, pº 8227, de Martim Rodrigues.
4-ANTT, inq. Coimbra, pº 3271, de Jorge Lopes Henriques.
5-ANDRADE e GUIMARÃES- Carção Capital do Marranismo - Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso, Carção, 2008.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Bartolomeu Garcia (n. Lamego, 1608)

Bartolomeu Garcia nasceu em Lamego por 1608, filho de Diogo Garcia e Maria Gomes, que se dedicavam à criação de sirgo. Trata-se de uma família profundamente marcada pela perseguição inquisitorial: irmãos, pais, tios e primos, quantidade deles, foram ocupando celas da inquisição. Por se tratar de casos por nós tratados anteriormente, evocamos a prima paterna, Maria Lopes, casada em Sambade, com António Vaz de Leão e os filhos Rodrigo Vaz de Leão e Miguel Lopes.(1)
Por 1621 Bartolomeu ausentar-se-ia para Castela, com seu tio Pero Vaz, em cuja casa assistia, iniciando-se na vida de mercador. O mesmo caminho seguiram os irmãos, em 1626, quando a inquisição prendeu a sua mãe, no decurso de mais uma operação lançada na martirizada cidade de Lamego. E seria por essa altura que, em Chaves, arrumou o seu casamento com Filipa Alvarenga, como ele próprio contou mais tarde.
- Há 25 anos em Chaves, em casa de Tomás Pinto, seu sogro agora residente na Galiza, e com Beatriz Alvarenga sua mulher, já defunta e com a mulher dele confessante, Filipa Alvarenga, estando todos juntos perguntou-lhe sua sogra porque ia fugido para a Galiza e ele respondeu que ia fugido porque em Lamego prendiam as pessoas que criam na lei de Moisés.
Mas não se pense que ficou parado em Monforte. Pelo contrário, Bartolomeu percorreu então muitas terras de Espanha e muitas vezes voltaria a Portugal, em viagens de negócios. Foram assim, 17 anos de mercador ambulante.
Regressado a Portugal, assentou morada em Vilarelhos, uma terra do Vale da Vilariça, no concelho de Alfândega da Fé. Era já um mercador de grosso trato e cabedais avultados, pelo que iniciou uma nova etapa na sua vida – a de rendeiro.
De entre as rendas que trazia arrematadas, referência especial para as do arcebispo de Braga em terras de Provesende, por 350 mil réis / ano.
Também na mitra de Braga arrematara a renda da abadia de Sambade, devendo pagar 425 mil réis no primeiro ano, baixando depois para 350 000. Mas o dinheiro não era todo entregue na mitra. Assim, descontavam-se 60 000 réis que entregava ao padre encomendado da igreja; 7 ou 8 mil réis destinavam-se a pagar os ofícios da semana santa; 6 ou 7 mil iam para o padre franciscano de Mogadouro que a Sambade ia pregar os sermões da mesma semana; 3 500 gastavam-se com os padres que participavam na festa anual dedicada ao orago da mesma igreja e eram entregues ao mordomo e 8 mil réis eram para o padre coadjutor da mesma igreja. A este, era costume dar ainda o rendeiro em cada ano 22 alqueires de trigo, para sustento.
Outras rendas mais trazia Bartolomeu arrematadas como eram as terças arcebispais de Eucízia e Adeganha ou as sanjoaneiras de Benlhevai e Rio das Cabras. Mas também a do real d´água no termo de Alfandega da Fé que ele tomara, por 20 000 réis, da mão de Pero Marcos e Manuel da Costa,(2) que traziam arrematada “a renda do real d´água de toda a comarca de Torre de Moncorvo”.
A partir dessa altura, a morada de Bartolomeu Garcia dividia-se entre Vilarelhos, onde estava a mulher e tinha casas e terras e Provesende, onde armazenava o produto das rendas. E se em Vilarelhos tinha um feitor (Francisco Martins), para dirigir as atividades agrícolas e comerciais, a quem pagava 4 mil réis cada ano, em Provesende tinha uma criada, que trouxera da Vilariça contratada por outros 4 mil réis. Curioso que em Provesende tinha 4 porcos a criar e em Vilarelhos nada consta. E se a criada é que tratava e cuidava dos porcos, não sabemos quem cuidava de dezena e meia de cabeças de gado ovino e caprino que também possuía. E para as deslocações nenhum animal era mais precioso e frugal que a sua mula, que valeria acima de 25 mil réis. Tinha ainda uma burra de criação.
Porém, acima de tudo, era mercador, mercador de vinhos, sobretudo. Só no mês de dezembro de 1647, o último antes de ser preso, ele vendeu para o Porto umas 30 pipas de vinho, como ele próprio contou:
- Disse que, no Porto, no mês de dezembro passado, vendeu ele declarante 30 pipas de vinhos, os quais eram velhos e novos, que tinha da renda de Provesende, a várias pessoas taberneiras da dita cidade, de quem não sabe os nomes, em preço a pipa a 7, outras a 6 mil réis e outras 4 cada uma como podia, conforme o vinho era, em que montaram 140 mil réis…
Não sabemos quanto pagaria aos barqueiros pelo transporte, rio abaixo, e de “direitos que se pagam na casinha”, que aquelas pipas ficariam em 20 mil réis. O armazenamento do vinho seria o maior problema de Bartolomeu que, na casa que alugara, tinha apenas 5 tonéis, correspondendo a umas 12 ou 13 pipas, cada uma valendo 3 500 réis. E os cascos não eram dele, mas da mitra de Braga. De resto, os toneis, as pipas e as adegas eram emprestados. A título de exemplo, veja-se um pequeno excerto do seu inventário:
- Tem mais 4 toneis de vinho em Provesende, que serão 11 pipas e meia de vinho, pouco mais ou menos, na adega das filhas de Esperança Taveira e 3 cascos são das ditas moças e outro casco é do cego de S. Cristóvão, que lhe deram as ditas moças para recolher o vinho, de graça.
Ao tempo da sua prisão tinha uns 23 tonéis em adegas de 10 pessoas diferentes na povoação de Provesende. Calculou ele que seriam umas 60 pipas, que, somadas às 12 ou 13 que tinha em casa, contabilizamos em mais de 1820 almudes!
Mas ele não era apenas cobrador de décimas do vinho, mas também de outros produtos agrícolas da região. Assim, armazenados na “tulha da mitra arcebispal”, tinha uns 220 alqueires de trigo e 160 de centeio; 25 ou 3 alqueires de feijões; 5 ou 6 pedras de linho; 30 alqueires de azeitona que dariam 10 almudes de azeite (“e ficara outra muita por recolher”); 10 ou 12 arráteis de lã “tingida de azul e branca e preta”; umas 7 arrobas de figos secos; 14 alqueires de castanhas e umas 25 arrobas de sumagre. Nota interessante: também vendia calabres (cordas grossas e compridas usadas especialmente nos carros de bois para prender carradas de lenha, cereal …), calabres que ele mandava vir da feitoria de Torre de Moncorvo.
Nesta contabilidade não entra o azeite, o vinho e outros produtos que colhia nas suas propriedades de Vilarelhos, nem o centeio e trigo das rendas de Sambade, Adeganha e outras que atrás referimos.
E se em Provesende tinha apenas bens provenientes da cobrança das rendas, em Vilarelhos, Bartolomeu era dono dos seguintes bens de raiz: uma casa que valia 30 mil réis; um chão ao Pontão e outro nomeado de Santa Comba; um olival no sítio da Marzoenga e outro junto ao povo e uma vinha, em sítio não referido. Podemos, pois, apresentá-lo também como agricultor.
Desde o ano de 1626 que na inquisição de Coimbra Bartolomeu Garcia tinha processo aberto com registo de várias denúncias, nomeadamente de sua mãe, irmãos e outros familiares, presos ou apresentados no “tempo da graça” decretado por Filipe II, tempo em que, como se viu, ele se abalara para Espanha. Porém, ao início do mês de novembro de 1640, foi recebida em Coimbra uma carta da inquisição de Santiago da Galiza pedindo a prisão de vários cristãos-novos portugueses entre eles o nosso biografado e sua mulher. Vejamos um excerto da carta:
- En este santo ofício están botados a prisión (…) Bartolomeu Garcia, mercador, veciño de la dicha villa de Monforte de Lemos, alto de cuerpo, flaco, de rosto blanco, de poca barba, lampino, de edad de treinta e seis años e Filipa Alvarenga, su mujer, de hasta veinte y sete años…(3)
Foi efetivamente preso ao findar de 1647, pelo futuro comissário da inquisição António de Azevedo,(4) abade da igreja de Sambade, cujas rendas ele trazia arrematadas e ao qual pagava 60 000 réis de ordenado por ano, como atrás se viu. Bartolomeu foi entregue em Coimbra em 4 de janeiro seguinte e Filipa Alvarenga, sua mulher, seguiria o mesmo caminho, meio ano depois. Ambos saíram penitenciados no auto da fé de 10.7.1650.

Notas
1-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos…, Maria Henriques (n. Vila Flor, 1650), in: Jornal Nordeste nº 1113, de 13.3.218. 
2 - ANTT, inq. Coimbra, pº 9486, de Manuel da Costa, o qual era casado com Isabel da Costa, igualmente penitenciada. ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… jornal Nordeste nº 1057, de 14.2.2017
3 - ANTT, inq. Coimbra. Pº 0619, de Bartolomeu Garcia; pº 2907, de Filipa Alvarenga.
4 - António de Azevedo era natural de Paredes, S. João da Pesqueira, filho de Pedro Álvares da Veiga, familiar do s. ofício. Ao habilitar-se, em 1649, para comissário da inquisição escrevia:
- Diz o padre encomendado na igreja de S. Maria de S. Bade (…) que no lugar onde está por Abade encomendado há 18 anos, e nas mais vilas e lugares circunvizinhos tem feito muitas prisões e diligências do santo ofício, por muitos dos senhores inquisidores da inquisição de Coimbra, porquanto nas 6 ou 7 léguas circunvizinhas não há comissário do santo ofício (…) sendo muito necessário por haver por estas partes muita gente da nação… - Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 8, doc. 334.
 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Maria Henriques (n. Vila Flor, 1650)

O pai, Rodrigo Vaz de Leão, nasceu em Vila Real, terra de sua mãe, sendo filho de António Vaz de Leão, originário de Sambade. (1) Casou em Vila Flor com Isabel Henriques, filha de Pedro Henriques da Mesquita, de Lebução e de Violante Henriques, de Vila Flor. Depois de algum tempo de morada em Vila Real e Vila Flor, o casal foi-se estabelecer em Lisboa, na Rua Nova, onde abriram uma “loja de sedas, milanesas, baetas, serafinas e duquesas”. Aos 34 anos Rodrigo era já um poderoso homem de negócios. Imaginem: quando o prenderam, acabava de vir de uma feira do Alentejo e trazia consigo, em dinheiro, a quantia de 2 mil cruzados. Quase um conto de réis, produto de uma feira! (2)
Antes de prosseguirmos, convém dizer que Rodrigo tinha um irmão chamado Miguel, que era médico e casou com Guiomar Henriques, irmã de Isabel, que viveram em Lamego. Miguel foi penitenciado pela inquisição, em 1664 e em 1703, era já falecido. Guiomar Henriques vivia em Roma com os filhos.
Voltemos a Isabel Henriques e Rodrigo de Leão, que foram presos ao final de Agosto de 1663. Este saiu penitenciado em cárcere e hábito a arbítrio um ano depois. Sabemos que 40 anos mais tarde ele abandonou o país e foi para a França, sendo ainda vivo em 1725. Isabel Henriques foi relaxada no auto da fé de 4.4.1666. Chegou até nós o registo seguinte, assinado pelo padre Álvaro da Fonseca:
- Foi-me entregue uma estampa de Isabel Henriques, natural desta Vila Flor, a qual mandei fixar na igreja matriz de S. Bartolomeu, junto a outros retratos que nela estão. Por ser verdade e me ser pedida, passei esta por mim feita e assinada aos 12 de março de 1667. (3) 
Quando foram presos, Rodrigo e Isabel deixaram 3 filhas, a mais velha de 13 anos, a nossa biografada, e a mais nova de apenas 3. Esta chamou-se Leonor e sempre viveu na casa paterna, mantendo-se solteira.
Maria Henriques foi casar em Carrazedo de Montenegro, com Gaspar Mendes Cespedes, natural de Medina del Campo, de uma família ascendência em Quintela de Lampaças. Talvez com receio de ser preso, como prenderam o pai e outros familiares, Gaspar tomou a iniciativa de se apresentar em Coimbra, em 1670, quando tinha 18 anos e era ainda solteiro. Saiu em 18.11.1674, condenado em sequestro de bens, cárcere e hábito que lhe foi tirado depois da leitura da sentença. (4)
O casal constituído por Gaspar Mendes Cespedes e Maria Henriques fixou residência em Lisboa, se bem que ele andasse em constantes viagens pela província, “entretido” na cobrança de rendas, como resulta do depoimento de Manuel Arroja:
- Disse que haverá 8 anos, em Lisboa, ao Correio Mor, em casa de Gaspar Mendes Cespedes, casado com Maria Henriques, natural de Trás-os-Montes, morador em Lisboa, de onde se ausentou à mesma província a cobrar umas rendas… (5)
Gaspar e Maria tiveram 7 filhos. Alguns deles, cedo rumaram a França, ainda solteiros. Foi o caso de Diogo Lopes Céspedes; Leonor Mendes e Ângela Mendes.
Com o nome do avô materno, Rodrigo Vaz de Leão, foi batizado o mais novo dos filhos de Gaspar e Maria Henriques, nascido por 1692. Foi casar em Trancoso, com Ana Maria Guterres e ganhou nome e prestígio na classe dos rendeiros e contratadores. Em 1721, de parceria com Gaspar Lopes Pinheiro, arremataram por 10 00 cruzados/ano, o assento das tropas da Beira, conforme informação colhida no processo do pai de Gaspar:
- No ano de 1721 para 1722 arrematou seu filho, Gaspar Lopes Pinheiro e Rodrigo Vaz de Leão, de Trancoso, o assento da província da Beira, de que ficaram ambos com igual parte, tendo ele declarante uma escritura da sociedade pela qual se obrigava a custear em 5 000 cruzados por parte de seu filho… (6)
Consciente do passado da família no tribunal da inquisição, Rodrigo decidiu ele próprio, em 1727, apresentar-se nos Estaus e confessar suas culpas. Com esta atitude conseguiu que os seus bens não fossem penhorados. Mas não o salvou de ficar encarcerado por dois anos, saindo condenado em cárcere e hábito. (7)
A filha Isabel Mendes, casou com o seu parente Francisco Lopes Céspedes, o qual, em 1725, viria também a conhecer as prisões do santo ofício. Com residência estabelecida em Carrazedo de Montenegro, Francisco era igualmente rendeiro e trabalhava em conjunto com o pai e os parentes. Veja-se, a propósito, o testemunho do mesmo contratador de Freixo de Numão:
- O sobredito Rodrigo Vaz de Leão arrematou o triénio passado a renda do almoxarifado da vila de Chaves na Casa se Bragança, de que é fiador seu primo Diogo Lopes Cespedes e seu filho Francisco Lopes Cespedes cunhado do dito Rodrigo Vaz de Leão, moradores em Montenegro, termo de Chaves, e por serem fiadores deviam de ter sociedade da metade do dito contrato (…) em que tem havido muitos e crescidos ganhos (…) que passavam de 6 contos de réis os lucros… (8)
Branca Mendes se chamou outra filha de Gaspar e Maria. Casou com Mateus de Sousa Henriques, nascido no Fundão, por 1670, filho de Jorge Coelho Henriques e Ana Maria de Sousa, ambos penitenciados pela inquisição de Lisboa. Pelo ano de 1700, o casal foi para França, fixando-se em Bayonne. Na diáspora, assumiram abertamente a condição de judeus, tomando os nomes de Rachel Henriques e Abraham Sousa Henriques. Abraham fez seu testamento em Saint Esprit, perto de Bayonne, em 17.6.1731 e nele pedia à sua “amada mulher que se encarregue das exéquias do meu funeral”. (9) Resta acrescentar que o casal teve 13 filhos, que se espalharam pelo mundo, aportando nomeadamente à Jamaica, com descendência ainda hoje referenciada.
O filho Francisco Lopes Céspedes, nascido por volta de 1682, formou-se em medicina e casou com sua parente Guiomar Henriques. Foi também preso pela inquisição e, depois de retomar a liberdade, abalou para a França.  
Voltemos a Maria Henriques. Contava 50 anos quando foi presa pela inquisição de Lisboa, em dezembro de 1703, juntamente com sua irmã Leonor e o seu filho Francisco, que então era estudante de medicina. Saíram penitenciados em cárcere e hábito, no auto da fé de20.10.1704. (10) Depois foram todos para França.
Notas:
1-ANDRADE e GUIMARÃES – Marranos em Trás-os-Montes Judeus-Novos da Diáspora O Caso de Sambade, pp. 105-112, ed. Lema d´Origem, Porto, 2013.
2-ANTT, inq. Lisboa, pº 2842, de Rodrigo Vaz de Leão. Entre os fornecedores de mercadorias a Rodrigo identificamos vários comerciantes ingleses, um hamburguês, um holandês, três franceses e um italiano, o que deixa antever um forte movimento de importações. Dos muitos fornecedores nacionais, destacamos Diogo Rodrigues Marques, gerente da firma dos Mogadouro. Em contrapartida, Rodrigo Vaz fornecia comerciantes com loja na província, nomeadamente em Coimbra, Trancoso e Mogadouro. Da qualidade dos produtos vendidos, temos notícia de que, querendo o conde de Castelo Melhor oferecer um gibão a el-rei, mandou comprar os panos à loja de Rodrigo. Este, para além de mercador, era rendeiro, trazendo arrematadas as comendas de S. João e S. Salvador de Ansiães, “pertencentes à filha de D. Leonor de Vilhena, que agora está casada com D. Manuel de Melo”.
3-IDEM, pº 7294, de Isabel Henriques, tif 195. Por dois anos e meio, Isabel se manteve no cárcere, negando todas as acusações. Depois confessou que “haverá 18 ou 19 anos, em Vila Flor, foi a casa de Isabel Henriques, tia materna dela confitente, casada com Diogo Rodrigues Coutinho, cristão-novo, mercador e com Ana Henriques, tia materna dela confitente, viúva de Bernardo Lopes, meio cristão-novo, e com Leonor Coutinho e Maria Henriques, todas cristãs-novas, irmãs entre si e primas dela confitente, filhas de Diogo Rodrigues Coutinho e Isabel Henriques, e Leonor Coutinho é já defunta e as outras eram solteiras, ao tempo de sua prisão e viviam com a mãe. E ali se apartou e a dita crença lhe durou até se resolver a confessar”. Nas suas confissões, Isabel procurou sempre salvaguardar a sua família, pelo que os inquisidores a consideraram diminuta e a condenaram a relaxe. Foram dramáticos os últimos dois dias de vida de Isabel. Quando lhe ataram as mãos e a informaram que ia ser queimada, ela pediu mesa e fez novas confissões. Ao outro dia, de manhã e de tarde, novos pedidos de mesa e mais confissões. Finalmente, no decurso do auto, voltou a pedir mesa e “na casa apartada para as audiências” confessou que também se declarara com seu marido como seguidora da lei de Moisés. Concluíram os inquisidores que “as últimas confissões não foram recebidas por deixar de dizer de sua irmã e cunhado, que são testemunhas contra a ré e a denúncia contra o marido é diminuta”.
4-IDEM, inq. Coimbra, pº 2481, de Gaspar Mendes Cespedes.
5-IDEM, inq. Lisboa, pº 3686, de Francisco Lopes Cespedes.
6- IDEM, inq. Lisboa, pº 1437, de António Dias Fernandes, tif. 182.
7-IDEM, pº 3777, de Rodrigo Vaz de Leão.
8-IDEM, pº 1437, pp. 197-198.
9-ANDRADE e GUIMARÃES, ob cit., onde se publica o seu testamento. ANTT, inq. Lisboa, pº 10736, de Jorge Coelho Henriques; pº 10085, de Ana Maria de Sousa.
10-ANTT, inq. Lisboa, pº 1950, de Maria Henriques; pº 5779, de Leonor Henriques; pº 3686, de Francisco Lopes Céspedes.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Guiomar Lopes (n. Rebordelo, 1652)

Filha de Tomé Lopes e Ângela Cardosa, Guiomar nasceu em Rebordelo, por 1652. Em pequena foi levada para Villamandos, Castela e contava uns 15 anos quando foi presa pela inquisição de Valhadolid, saindo penitenciada em cárcere e hábito perpétuo e sequestro de bens, em 31.10.1667.
Depois de libertada e cumprida a penitência de 2 anos, regressou a Portugal e foi para Lebução, onde casou com João Dias Pereira. (1) Em 1672 viviam em Soutelo Verde, Galiza, onde lhe terão nascido os filhos Manuel Dias Pereira e Isabel Pereira.
Regressaram a Portugal e foram instalar-se no Porto, onde residiram 5 anos. Ali nasceu o filho Pedro Dias Pereira.
A família rumou então para Castela e fixou-se em Benavente, ali explorando um estanco do tabaco, arrendado ao contratador Gabriel de Sola que tinha o monopólio da venda nos bispados de Salamanca, Cidade Rodrigo, Ávila e Zamora. Não sabemos se em tal arrendamento exerceu alguma influência a mulher de Gabriel Sola, (2) chamada Ana Maria de Vilhena, que fora companheira de Guiomar na cadeia de Valhadolid. Também não sabemos se ajudou alguma coisa o conhecimento que havia entre o marido de Guiomar e um Fernando da Fonseca que casou em Bragança com Jerónima Ledesma e em Castela trabalhava com Gabriel Sola.
Em Benavente viveram 24 anos e os contactos com os Sola e com Fernando da Fonseca eram algo regulares, assim como as conversas acerca da lei de Moisés. Duas cenas concretas foram depois recordadas pelo Fonseca. Uma aconteceu logo depois que ele saiu da cadeia da inquisição de Coimbra e foi para Castela, em 1689. De Portugal levava para Madrid um carregamento de açúcar e também uma escopeta comprada em Guimarães e, passando por Benavente, foi a casa de João Dias Pereira, vendendo-lhe a escopeta pelo preço de custo.
Tempos depois, estando em Rio Seco, foi mandado por Gabriel Sola a Benavente a comprar umas trutas, com que queria “regalar” alguém muito importante. E regressando com elas, o Sola perguntou-lhe quanto gastara de hospedagem para lhe pagar. Respondeu que não gastara coisa alguma porque comera e dormira em casa de Guiomar Lopes.
Por março/abril de 1691, Gabriel Sola com a mulher, cunhada, sobrinha e seus 5 filhos, passaram por Benavente a caminho de Bragança e João Pereira foi ter com eles à pousada, levando-lhe uns doces que Guiomar preparara especialmente, “dizendo que a mulher não podia vir vê-los por estar de visita a um convento de monjas”.
Em dezembro de 1697, Ana Vilhena e o marido foram novamente presos pela inquisição de Valhadolid e de seguida Fernando da Fonseca. Obviamente que todos acabaram por culpar João Dias Pereira, Guiomar Lopes e seus familiares, antes de serem sentenciados pela inquisição de Valhadolid. (3)
Entretanto os negócios de João e Guiomar tinham prosperado e exploravam não só a venda de tabaco em Benavente, mas também o estanco de Ocaña, na região de Madrid, o de Astorga e os da província de Salamanca, que tomaram depois que Gabriel Sola foi preso. Seria um investimento fantástico, cujo montante ignoramos. Apenas sabemos que o arrendamento do estanco de Ávila montou a 12 mil cruzados – 4 contos e 800 mil réis! Para além de Ávila, a rede incluía uns 19/20 estancos que traziam subarrendados.
Parece que a “estanqueira” Guiomar não viu com bons olhos este investimento do marido e terá mesmo tentado a anulação dos contratos, a crer no testemunho de Francisco Rodrigues Garcia que, por conta de Guiomar e João, estava explorando, como subarrendatário, o estanco de Ávila:
- E na ocasião, disse a mesma que mesmo que perdesse 30 mil reais, deixava com vontade o estanco por ter medo de ser presa pelo santo ofício (…) e somente falaram que Guiomar Lopes queria ir a Madrid para tratar (desfazer) o estanco de Salamanca que seu marido havia tomado.
Obviamente que na rede de negócios de João e Guiomar trabalhavam os filhos e os cônjuges destes, bem como outros familiares, nomeadamente o meio-irmão de Guiomar, Diogo Lopes Marques e um sobrinho de João, chamado Luís Lopes Penha.
Não durou muito a situação pois que, em maio de 1702, a inquisição de Valhadolid decretou a prisão de Guiomar Lopes, do marido e dos filhos Manuel Dias Pereira e Pedro Dias Pereira. Estes, porém, já não estavam em Castela. Pressentindo talvez que fossem presos, regressaram a Portugal, passando a fronteira em Saucelhe e dirigindo-se para Lebução onde estiveram pouco tempo, logo rumando a Lisboa, estabelecendo morada na Rua das Arcas. Prova daquele pressentimento, será uma contradita depois apresentada por Guiomar:
-Também é seu inimigo Francisco Pereira, estudante em Salamanca, porquanto vindo a ré para este reino e meter na casa do dito estudante dois sacos de patacas para lhos guardar, e depois indo busca-los, achou menos em cada um 150 patacas…
Chegados a Lisboa, o filho Manuel e a sua mulher, Isabel Maria, foram Torres Novas, a explorar o estanco de tabaco que a família arrendou. Pedro meteu-se a vender pelas ruas da capital produtos da loja de seus pais. E nesta havia mercadorias tão diversas como sedas, linhos, tafetás, retrós, potes de azeite, legumes, moios de trigo, sacos de arroz, barris de goma, de pimenta e manteiga, quintais de açúcares e de erva-doce… - conforme consta do inventário de seus bens.
Se pensaram estar protegidos, enganaram-se porque a inquisição de Valhadolid mandou para Lisboa o decreto de prisão de todos eles e os respetivos processos. Tal como enviou mais denúncias, entretanto feitas por outros parentes e amigos, nomeadamente o citado Luís Lopes Penha. Em consequência, em 29.11.1702, davam entrada nas cadeias da inquisição de Lisboa Guiomar Lopes, marido e filhos. (4)
Da vivência desta gente em Lisboa, temos testemunhos contrastantes. Um vizinho fala de Guiomar dizendo que “só sabe que a dita ré, pela má condição que tinha e seu marido e filhos, os mais dias estavam a gritar uns com os outros”. Diogo Lopes Marques, também vindo de Espanha e preso em Lisboa na mesma ocasião testemunhou que ela “tinha grande condição, trato e negócios, como foi em Benavente, que era estanqueira e dava as tendas em que vendiam os tabacos e por dar a uns e negar a outros, tinha grandes inimizades, principalmente com Luís Lopes Penha, meio sobrinho de seu marido, em razão de se tirar de sua companhia em que vivia e ir para casa de um homem a quem não sabe o nome, o qual lhe veio a tirar, por ordem d´el-rei, o contrato e administração dos tabacos”. Ela própria, falando de seus inimigos e denunciantes, diria:
- Também é seu inimigo João Lopes Pereira, seu marido, em razão do mau trato que lhe dava e andar em amizade ilícita com várias mulheres e se ausentou da companhia da ré, deixando-a destruída por várias vezes, como foi na cidade do Porto e em Benavente e sempre mostrou má vontade por as pessoas fiarem mais dela do que dele.
Facto é que as testemunhas chamadas a pronunciar-se sobre a sua condição religiosa, todas disseram que era boa cristã e dava muitas esmolas aos pobres. Embora reincidente na prática de judaísmo, foi mais afortunada que os amigos presos em Espanha e relaxados: acabou condenada em cárcere e hábito e 3 anos de degredo para o Brasil, no auto da fé de 12.9.1706. Antes, porém foi condenada a tormento, no qual recebeu 3 tratos expertos, de que precisou de tratamento médico proporcionado em casa de Manuel Tavares, familiar da inquisição, que assumiu a responsabilidade de fiador. De resto todos os familiares de Guiomar que estavam presos, saíram no auto da fé de 9.9.1603. Uma referência para o seu filho Pedro que, por ter denunciado a mãe, acabou por endoidecer, no cárcere da penitência.
Notas:
1-João Dias Pereira nasceu em Madrid, sendo filho de João Lopes Penha, de Mogadouro e da sua terceira mulher, Isabel Dias, nascida em Madrid, mas originária de Lebução.
2-Gabriel Sola e Ana Vilhena casaram na ocasião em que andavam com o sambenito no cárcere da penitência, do qual fugiram. Recapturados, foi-lhe acrescentada a pena em 2 anos mais e ele foi condenado ainda a 200 açoites pelas ruas da cidade.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 2380, de Guiomar Lopes: - D. Juan de la Puebla, notário do santo ofício da inquisição de Vallahdolid certifico que estando celebrando o auto particular da fé no convento de S. Paulo desta cidade em 10.3.1701, (…) saíram no dito auto em pessoa com insígnias de relaxados Gabriel de Sola, natural da Guarda, reino de Portugal, rendeiro geral dos estancos de tabaco dos bispados de Salamanca, Ciudad Rodrigo, Ávila e Zamora onde vendia e tinha os Milhones, de 56 anos; Ana Maria Conde, aliás de Vilhena, sua mulher, natural de Zamora, vizinha de Salamanca, de 56 anos: Fernando da Fonseca, natural de Sevilha, vizinho de Salamanca, tratante de açúcar e lenços, de 46 anos.   
4-ANTT, inq. Lisboa, pº 530, de João Lopes Dias; pº 150, de Manuel Dias Pereira; pº 4553, de Pedro Dias Pereira; pº 4697, de Isabel Maria, mulher de Manuel Dias Pereira.