António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Jorge de Leão (n. Mogadouro, 1507)

António de Leão e Maria Lopes eram judeus castelhanos. Terão vindo para o Mogadouro depois do decreto de expulsão, em 1492. Seriam “batizados em pé”, tomando então aqueles nomes. Trata-se de gente importante, a avaliar pelos casamentos e cursos de vida seguidos pelos filhos que tiveram e foram os seguintes:

Catarina de Leão, que casou em Mogadouro com Gaspar de Carvajal. Estes foram os pais de Luís de Carvajal, o Conquistador do México.

Duarte de Leão que foi para Cabo Verde como fator da Casa da Guiné e se fez mercador, metido especialmente no tráfego negreiro. (1)

Isabel de Leão casou em Mirandela com Diogo Pimentel.

Francisco de Leão que estudou em Salamanca.

Afonso de Leão, o mais novo, que vivia em Mirandela, em casa da irmã.

Álvaro de Leão, nascido por 1511, casou com Leonor, filha de Luís de Carvajal, morador em Sambade. Ali viveram também algum tempo, e Álvaro, para além de outras atividades e mercancias, era então sócio de Francisco Carlos, (2) de Trancoso, ambos arrematando a cobrança das rendas do arcebispado de Braga, na região de Freixo de Espada à Cinta. Também nesse tempo, pelos anos de 1539/40 quando lhe disseram que andavam os cristãos-novos quotizando-se para “trazer de Roma uma bula” que os livrasse da inquisição, ele se apressou a contribuir com um dobrão, quota bem avultada que ele justificou dizendo “que dera por ser rico e mal quisto”. Posteriormente estabeleceu morada na vila de Cortiços, onde foi preso com a mulher e levado para a cadeia de Algoso e dali para Évora. Na cadeia, por várias vezes tentou suicidar-se e “em uma noite do mês de janeiro do presente anos de 1546, meteu com as suas mãos um ferro no umbigo que fez com ele uma ferida de 4 dedos em comprido”. (3)

Em Cortiços se tinha já estabelecido Jorge de Leão, outro filho de António de Leão e Maria Lopes. Nascido por 1506, em Mogadouro, tinha uns 12 anos quando a mãe faleceu e seu pai casou novamente. Então ele abandonou a casa paterna e foi-se para Mirandela, iniciando uma bem-sucedida carreira de mercador. Teria uns 24 anos quando casou, com Branca de Leão, natural de Vinhais. O casal teve uma filha, chamada Catarina de Leão, que casou nos Cortiços com Francisco Domingues, cristão-velho, ”cavaleiro e homem honrado, que não tinha muito de seu, sendo ele réu homem rico e abastado que podia casar sua filha com o mais rico e honrado cristão-novo que houvesse”.

Se Álvaro era homem rico, muito mais o era seu irmão Jorge. Grande mercador, especialmente de produtos de seda que eram fabricados por sua conta e sob seu controle, para o “que ele tem continuadamente duas rodas de seda em sua casa e que fiam seda de noite e de dia. E que tem 3 ou 4 candeeiros de noite acessos (…) e isto são todas as noites de toda a semana que são de trabalho”.

Provavelmente era o homem mais conceituado da terra, pois que em sua casa ficavam hospedados os “clérigos que vinham ajudar ao santo ofício e lhes dava de comer quando estavam no dito lugar (…) e sempre tratou e comunicou com licenciados, abades, clérigos e pessoas de qualidade e pousava em suas casas e comia e bebia com eles”.

Porém, a maior prova do elevado estatuto social de Jorge de Leão era uma bula que o autorizava a que rezassem missa em sua própria casa, tendo para isso, vestimenta para o sacerdote, frontal para armar o altar e as mais coisas necessárias a tal cerimónia.

O ano de 1539 foi de grande escassez de colheitas e muita fome em terras Trasmontanas “despovoando-se a maior parte da comarca em redor” dos Cortiços. Ali, porém, Jorge de Leão deu ordem para dar mantimentos aos pobres, de modo a que não morresse ninguém de fome.

Foi ao início do verão de 1544. Francisco Gil andava em Trás-os-Montes “à caça de judeus”. Aos ouvidos deste, terão chegado denúncias contra Jorge, contra seu irmão Álvaro e contra as suas mulheres. Em consequência, em nome do santo ofício e usando os poderes de que estava investido pelo inquisidor geral, mandou prender os quatro. (4)

A partir daí foi um verdadeiro calvário. Juntamente com outros prisioneiros apanhados em outras terras Trasmontanas, num total de 11, foram metidos no inóspito castelo de Algoso e ali sujeitos aos maiores tormentos. (5) Em determinada altura, os guardas fariam uma fogueira no largo fronteiro e nela queimaram um cão, para exemplo do que estava para eles destinado.

Os prisioneiros imploravam que os levassem para as cadeias da inquisição e homens nobres da região apresentavam propostas para os levar, pagando 80 mil réis, comprometendo-se a proporcionar bestas para os prisioneiros e suas tralhas. Um deles foi Afonso Galego, da Granja “que é um dos homens honrados e ricos e abastados que há na maior parte da província” e comprometia-se com uma fiança de 100 mil réis a entrega-los em Évora. Outro foi António de Reboredo, vedor da alfândega de Miranda, “cavaleiro, da Casa de el- Rei”.

Possivelmente instruído por Francisco Gil, o corregedor da comarca, Dr. Pedro Lopes da Fonseca, responsável pelo castelo e pelos prisioneiros, rejeitou todas as propostas. Em determinada altura apresentou-se em Algoso, por ordem do corregedor, o meirinho da correição, Diogo Osorez, acompanhado de Luís do Vale e Duarte Martins, com vários criados e cavalgaduras, dizendo que iam levá-los a Évora.

Saíram do castelo os prisioneiros, arrastando os grilhões por umas centenas de metros, até à ermida de S. Sebastião, que fica no extremo do povoado. Aí montariam nas bestas e seguiriam viagem. Ilusão! Certamente o espetáculo foi montado para humilhar os prisioneiros, com o povo cristão a assistir e vomitar impropérios sobre os judeus. Humilhados, os presos foram mandados regressar ao castelo onde continuaram, por mais duas semanas a sofrer afrontas escarninhas.

Terminado o verão, com os dias a diminuir e as chuvas a dificultar a marcha, foram os prisioneiros levados para Évora. Obviamente que, em vez dos 80 mil réis acima referidos, tiveram de pagar mais do dobro.

Os pormenores desta trágica aventura foram contados em uma exposição enviada pelos prisioneiros ao inquisidor geral, o infante D. Henriques, exposição que anda a fs 56-58 do processo de Jorge de Leão.

Para além das queixas contidas nesta carta para o inquisidor-mor, Jorge de Leão denunciou perante os inquisidores outros abusos cometidos por Francisco Gil, dizendo que tinha tomado a ele e a seu irmão as bestas e dinheiro, em fiança. “Muito dinheiro” também lhe tomaram, abusivamente, no decurso da viagem e disso culpava também o corregedor Pedro Lopes da Fonseca. Responderam os inquisidores da seguinte forma:

- Se o dito Jorge de Leão pretender ter algum direito contra o dito corregedor ou outra alguma pessoa, que demande a quem de direito e o deve fazer.

Terminamos com um excerto do mesmo processo, muito interessante, por nos revelar a sua forma de estar face às romarias e os Caminhos seguidos para Santiago de Compostela:

- (…) Foi a Santiago da Galiza em romaria, para ganhar as indulgências do jubileu e no caminho visitou a casa do Bom Jesus, que é de grande romagem e devoção e mandou dizer uma missa, que ouviu; e dali se foi a Orense e visitou o famoso Crucifixo, e mandou dizer outra missa, que ouviu; e dali se foi a Santiago, onde esteve quatro dias e mandou dizer muitas missas (…) e estando doente que tomou com as quartãs pelo caminho, uma jornada de sua casa, e por cumprir sua romaria, se não quis tornar a casa e visitou o corpo de Santa Susana, que está fora da cidade e mandou ali dizer uma missa que ouviu; e dali foi ao Padrão e ali mandou dizer uma missa na igreja velha de Santiago; e dali se foi para Tui e visitou o Corpo Santo e mandou dizer uma missa e a ouviu (…) de Tui se veio para Braga e se tornava já para sua casa e pegou-lhe tanto a doença que esteve em passo de morte e como bom católico cristão, mandou trazer as relíquias de S. Geraldo (…) ao qual aprouve de lhe dar saúde, sendo já desconfiado dos físicos que o curavam…

 

Notas:

1-ANDRADE e GUIMARÃES – Marranos de Trás-os-Montes na rota do comércio de escravos da Guiné para as Américas, in: jornal Terra Quente de 1.7.2012.

2-Francisco Carlos, era natural de Trancoso, filho de Mestre Carlos, que fora rabi com o nome judeu de Ça-Cohen. Maria Draga, mulher de Francisco Carlos e, com ele, presa na inquisição de Évora, pertencia a uma família igualmente célebre, repartida por Trancoso, Vinhais e Bragança.

3-Inq. Évora, pº 8779, de Álvaro de Leão. Até hoje não foi identificado pelos arquivos da Torre do Tombo o processo de Leonor de Carvajal.

4-Idem, pº 11267, de Jorge de Leão; pº 9019, de Branca de Leão.

5-GUIMARÃES, Maria Fernanda – Antes em Miranda que no Castelo de Algoso, in: jornal Terra Quente de 1.6.2003.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Pereira da Mesquita (n. Mirandela, 1655)

Por 1600, no sítio de Golfeiras, hoje freguesia da cidade de Mirandela, então uma quinta do termo de Lamas de Orelhão, vivia um casal de cristãos-novos constituído por Gaspar Vaz e Mécia de Leão. Tiveram uma filha chamada Violante Nunes que casou com Gabriel Pereira e estes foram os pais do Dr. Mirandela.

Tiveram também um filho chamado Jorge da Mesquita, que casou com Beatriz Pereira, irmã do citado Gabriel. Em 1662, Jorge foi preso pela inquisição de Coimbra(1) e nessa altura era já casado em segundas núpcias, com Maria Pimentel e vivia em Murça de Panoias.

A morada de Jorge e Beatriz era em Mirandela e ali tiveram um filho, nascido por 1655, a que deram o nome de Manuel Pereira da Mesquita. Este aprendeu a profissão de prateiro, que não era limitada à compra e venda de prata mas incluía o fabrico de objetos de uso diário ou de adorno. Era uma profissão de muita dignidade e projeção social.

Casou com Violante Pereira, natural de Vinhais, e foram morar para Chacim, uma terra que então conhecia um grande surto de desenvolvimento, graças a duas indústrias, dominadas pela gente da nação hebreia e que eram: o fabrico da seda e o trato das peles e solas. Aliás, a nação hebreia de Chacim aparecia dividida entre os fabricantes de sedas e os curtidores de peles. Estes moravam na parte baixa da vila, no Bairro da Ribeira e aqueles moravam na zona alta, em redor da Praça do Pelourinho.

Era ali, na Praça, que vivia o Prateiro, em uma casa de sobrado, com quintal anexo, que confrontava com a de Ana Pereira, viúva de António Cardoso e com rua do concelho. A sua oficina dava para a praça e nesta, ele estabelecia mesmo banca de trabalho e tenda de vendas. A propósito, diria Joana Lopes, cristã-nova:

— Observou e viu Manuel Pereira (…) em os sábados de trabalho não fazia coisa alguma, antes o via com os melhores vestidos, de camisa lavada, passeando pelo seu quintal e detrás da igreja, por tudo se descobrir das casas onde ela denunciante vivia, sendo que nos mais dias ia trabalhar para a Praça, na sua tenda de prateiro.

No seio da comunidade eclesiástica de Chacim, Manuel Mesquita era homem de muita consideração, pois que chegou a ser mordomo da Confraria das Chagas e fez que o seu filho fosse nomeado mordomo da Senhora do Rosário, onde costumavam apenas servir os filhos dos cristãos-velhos da nobreza e da governança da terra. E então, “mandou fazer, às suas custas uma imagem dourada e estofada”, que lhe custou 10 mil réis.

Alguns pensarão que a comunidade cristã-nova formava um corpo unido, no seio da sociedade. A realidade, no entanto, era bem diversa e o caso de Manuel Mesquita é, a este respeito, verdadeiramente exemplar. Ele próprio escreveu um texto que poderíamos mesmo apelidar de racista, se o alvo do seu desprezo não fosse gente da sua raça. Vejam apenas um curto excerto:

— Toda a gente curtidora de Chacim me quiseram sempre muito mal e me tiveram grande ódio, por eu nuca vizinhar com eles, nem fazer deles conta para nada; mas antes fugia das suas conversas, porque sempre me tive por mais do que eles; nem me ia a suas casas, nem lhe dava ocasião a eles entrarem na minha, sem coisa de negócio que eu tivesse com eles ou eles comigo (…) tanto me desprezei sempre dos curtidores que, tendo de minha mulher o banco na igreja ao pé das suas, a fiz mudar de assento para que não estivesse misturada com eles e depois se sentou sempre com as mulheres nobres que era com quem nós corríamos e tratávamos e disso o sentiram muito, conhecendo que era por desprezo.(2)

Manuel Mesquita não era o único cristão-novo de Chacim a manifestar desprezo pelos curtidores. Outros testemunhos temos, muito semelhantes, e podemos afirmar que havia uma divisão profunda entre o grupo de cristãos-novos que moravam na parte alta de Chacim e os que moravam na parte baixa. Podiam os curtidores de peles ser muito ricos mas, por se tratar de trabalho sujo, eram desprezados pelos outros, essencialmente fabricantes de seda.

Porém, se o Prateiro se tinha “nos seus tamancos” e desprezava os outros, também ele era desprezado por uma parte da família que se considerava superior. Eram os seus parentes, que frequentavam o palácio dos Távoras. Gabriel Pereira, seu tio materno, era um deles. Vejam o que ele dizia:

— Tinham outro parentesco, por direito lado, em Chacim, Manuel Rodrigues Pereira, Manuel Pereira da Mesquita e outros (…) costumavam todos os desta parentela dizer que ele réu e seus tios e cunhados eram fidalgos, que não costumavam falar senão com homens graves e dignos (…) e falecendo Duarte Lopes Pereira, em Alfândega da Fé e indo a enterrar-se em Mirandela, por ser parente do réu, tios e cunhados trataram de lhes fazer as exéquias, com pompa o funeral a que assistiram os marqueses de Távora e homens cavaleiros daquelas terras e não deram recado aos ditos Manuel Rodrigues que era irmão do defunto, nem a Manuel Pereira da Mesquita, cunhado e Diogo Pereira, o perdido, de alcunha, que era irmão, razão por se darem todos por queixosos, por não serem chamados para aquelas honras funerárias.(3)

Fazer contratos de casamento numa comunidade fechada como a deles era coisa séria e grave. Não nos referimos ao problema de manter segredo da fé e ritos judaicos, o que levava geralmente a casamentos endogâmicos. Referimo-nos a questões de riqueza e promoção social. E, neste campo, o Prateiro teve alguns problemas, sobretudo com o casamento da filha mais velha, Leonor. Tentou casá-la com Pedro Álvares de Sá, morador em Rebordelo, um bom partido, ao que as testemunhas diziam. Porém, houve alguém que viu uma caixa de prata nas mãos de um tal João da Rocha, cristão-velho, escrivão, logo depreendendo que fora dada pela Leonor que com ele andaria de amores secretos. Pedro Álvares já não casou com ela, mas com outra sua irmã mais nova, Brites Pereira, o que, para o pai constituiu uma desonra e para ela uma infâmia tremenda.

Metida de amores com um cristão-novo andava também uma criada do Prateiro, cristã-velha, dos lados de Vale das Fontes. E a família do moço, avisou o amo, pedindo-lhe que expulsasse a criada, o que viria a acontecer, gerando, no entanto, alguma tensão entre as duas famílias.

Ainda a respeito de contratos de casamento, veja-se a seguinte declaração do Prateiro, que, em simultâneo, ataca os seus parentes de Mirandela, tidos por mais nobres:

— Provará que Francisco da Fonseca, filho de Isabel Antónia e Gaspar da Fonseca, de Mirandela, ficou seu inimigo porque estando em casa dele réu a aprender o ofício de prateiro, se ausentou para o reino de Castela e quando tornou, haverá 5 ou 6 anos, lhe pediu a ele réu uma filha para casar, o que ele não consentiu por ser o dito Francisco Fonseca moço extravagante que não tinha assento em terra alguma, tanto que voltou para Castela aonde vive.

Um grande sarilho em que o Prateiro se viu metido foi por cercear moeda, acusado que foi por Francisco António Mansilha, também prateiro, em Chacim. Defendeu-se, dizendo que o outro inventara aquilo para o fazer despejar da terra e ficar ele sozinho com o ofício.

Manuel Pereira da Mesquita foi preso pela inquisição de Coimbra, em janeiro de 1700, no âmbito de uma vasta operação de limpeza do sangue judeu na vila de Chacim, lançada em 1697, e que, nos anos seguintes, arrastou para as masmorras do santo ofício mais de uma centena de homens e mulheres.

Um dos argumentos usados para se defender, acabaria por se voltar contra ele. Com efeito, contou que, quando a sua mulher, Violante Lopes “entrou em perigo de morte, lhe mandou logo chamar o padre cura para o ofício da agonia”.

O abade de Chacim, Manuel Gouveia de Vasconcelos, era natural de Torre de Moncorvo e comissário da inquisição. Foi ele próprio (coisa rara) administrar-lhe os últimos sacramentos. E reparou que em nenhuma ocasião lhe ouviu chamar pelo nome de Jesus, nem o marido a isso a incentivou.

O mesmo disse o cura da igreja, padre Belchior de Morais, acrescentando que ela foi amortalhada em um lençol, como usam fazer os crentes da lei de Moisés e não em um fato do hábito de S. Francisco, como na vila costumavam os bons cristãos.

Manuel Pereira da Mesquita saiu condenado em cárcere e hábito perpétuo no auto da fé de 18.12.1701.

Notas:

1 - Inq. Coimbra, Pº 2714.

2 - Inq. Coimbra, pº 9710, de Manuel Pereira da Mesquita.

3 - Idem, pº 2773, de Gabriel Pereira.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Gabriel Pereira (n. Mirandela, 1629)

Foi seu pai Manuel Pereira, natural de Chacim. Pertencia a uma família de mercadores, com dois irmãos casados em Torre de Moncorvo. Uma filha de Manuel e de sua primeira mulher (Brites da Costa), chamou-se Filipa Pereira e na sua descendência, nasceu Jacob Rodrigues Pereira,(1) que se notabilizou em França, com a criação de um alfabeto para educação dos surdos-mudos.

Isabel Antónia se chamou a segunda mulher de Manuel, mãe de Gabriel. Era natural de Mirandela, filha de André António e Maria Luís. Por esta parte, se ligam à família Isidro, de Torre de Moncorvo.(2)

Manuel Pereira e Isabel Antónia estabeleceram morada em Mirandela, dedicando-se ao comércio de panos. Ali lhe nasceram os filhos, nomeadamente o Gabriel Pereira, pelo ano de 1629, que, como o pai, seguiu a vida de mercador.

Casou com Violante Nunes, que lhe deu uma filha que batizaram com o nome de Isabel Antónia, a qual viria a casar com Gaspar da Fonseca Henriques, mercador, natural de Trancoso, estabelecido depois em Mirandela.

Ficando viúvo, casou segunda vez com Grácia Mendes, de Trancoso, irmã do dito Gaspar da Fonseca, filhos, ambos de Francisco da Fonseca Henriques, mercador em Trancoso e rendeiro, mais conhecido pela alcunha de Manico. Temos, assim, Gabriel Pereira sogro e cunhado de Gaspar da Fonseca Henriques.

Em casa de Grácia e Gabriel vivia também uma irmã deste, chamada Violante Pereira, que nunca casou, aleijada de um pé e de uma mão, o que a não livrou de ser presa pela inquisição.

Dos filhos do casal, diremos que o mais velho se chamou Manuel Henriques Pereira, nascido por 1658. Frequentou a universidade de Coimbra, onde se formou advogado. Foi escrivão dos Contos do Reino, uma espécie de diretor-geral de Finanças, dos nossos dias.(3) O facto de ser um alto funcionário do Estado e ter de assistir em Lisboa, não o impediu de criar uma boa casa agrícola em Carvalhais, junto a Mirandela, chegando mesmo a ser o maior produtor de linho da região. Em Carvalhais construiu também uma bela moradia que durou até aos anos de 1970. Foi contemplado com várias mercês pelo rei D. Pedro II.(4)

Outro dos filhos do casal chamou-se, como o avô materno, Francisco da Fonseca Henriques e passou à história com o epíteto de Dr. Mirandela, o célebre médico do rei D. João V.

Um terceiro filho do casal foi batizado com o nome de Fernando. Nasceu no dia em que a inquisição prendeu Gabriel Pereira e tinha pouco mais de meio ano quando a mãe foi igualmente levada para a cadeia de Coimbra. Dele, nenhuma outra notícia encontramos, depreendendo que terá falecido em criança. 

O ano de 1662 foi terrível em Trás-os-Montes, no que respeita à perseguição inquisitorial. Só em maio desse ano foi decretada a prisão de 78 cristãos-novos Trasmontanos.(5) A vila de Mirandela não foi exceção, constando daquela lista 19 decretados, incluindo a família de Gabriel Pereira e Grácia Mendes que foi toda arrastada pelo vendaval.(6)

Gabriel Pereira foi preso ao início do mês de Junho de 1662,(7) juntamente com outros 5 cristãos-novos, todos aparentados. Como parentes eram vários outros presos na mesma altura em Chacim, Vila Flor, T. Moncorvo e outras terras. O responsável pela condução até Coimbra da coluna de Mirandela foi Miguel Pina, de Torre de Moncorvo, certamente familiar da inquisição, como era recomendado pelo regimento do santo ofício.

As celas da cadeia estariam então superlotadas, e assim se explica que o metessem em uma delas com dois conhecidos seus: João Mendes, de Trancoso e Manuel da Fonseca, de Lebução. Este último, inclusivamente, frequentava a sua casa, em Mirandela e era conhecido como o maior passador de cristãos-novos para Castela.

Olhando o processo de Gabriel Pereira, verifica-se que ele foi acusado de judaizar, por 32 pessoas, a grande maioria familiares, mais ou menos próximos. Por sua vez, ele confessou que se tinha declarado por judeu ou feito cerimónias judaicas com umas 70 pessoas. Era a atitude normal, para ver o seu processo despachado mais facilmente: denunciar todos os familiares e amigos, para não falhar nenhum e ser acusado de diminuto. De resto, confessou que fora ensinado na religião mosaica em casa de seu pai, por sua meia-irmã Filipa Pereira e que se declarou com seu pai e seus irmãos. O seu processo nada apresenta de especial, se bem que constitua instrumento importante para identificação de muita “gente da nação” que com ele se relacionava. Ficou concluído ao cabo de quase dois anos de meio, saindo ele condenado em cárcere e hábito perpétuo, com sequestro de bens, no auto da fé de 26.10.1664.

Voltemos a Mirandela, ao casamento de Gabriel e Grácia. A casa onde ficaram a morar situava-se junto ao palácio dos Pinto Cardoso, senhores do opulento morgadio de Santiago, uma casa que ainda hoje embeleza a antiga Praça intramuros da vila, classificada de monumento nacional, mais conhecida como o palácio dos Condes de Vinhais. No dizer de Grácia, “eram umas casas muito fermosas, em que viviam, que de uma banda a outra partiam com casas de“ Manuel Rodrigues e Jorge da Mesquita, cristãos-novos, irmãos entre si, parentes de Gabriel Pereira, que com ele foram presos.

Os primeiros tempos de vida do casal não seriam fáceis pois que ela se foi de volta a viver em Trancoso, dizendo alguns que o marido lhe dava maus tratos. Outros dizem que se foi por motivos de doença, derivada do clima de Mirandela e que foi curar-se na casa paterna. Facto é que por algum tempo ele assistia em Mirandela e ela em Trancoso. E terão mesmo planeado ir viver para Trancoso, pois que venderam a casa a André Cardoso Pinto, o que os citados parentes seus vizinhos lhe não perdoariam.

Depois, foi na Rua de Santo António, que estabeleceram morada. Era uma casa de sobrado, que ele comprara, 6 ou 7 anos atrás, a António Lopes,(8) cristão-novo, o Mourisquinho, de alcunha. No r/chão tinham a sua loja de fazendas, avaliando-se o recheio em 450 mil réis, quando foi preso.

Dizia-se mercador mas podemos também classifica-lo como industrial de moagem de pão, pois tinha uma azenha no rio Tua, junto a Chelas, equipada com 2 pedras de moer e que valia 150 mil réis. Tinha também diversas propriedades agrícolas para cultivo de cereais, além de uma vinha e uns olivais. Para o serviço de transporte de fazendas, especialmente para as feiras e para o trato das terras, tinha dois machos e com ele trabalhava de empregado um moço solteiro dos lados de Monforte Rio Livre.

 

Notas:

1 -ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do Mundo, Sefardita e Trasmontano, ed. Lema d’Origem, Porto, 2014.

2 – IDEM – OS ISIDRO, a Epopeia de uma Família de Cristãos-Novos de Torre de Moncorvo, ed. Lema d’Origem, Porto, 2012

3 - TT/Chancelaria de D. Pedro II, lv. 32, f. 148v – Carta de Provedor dos Contos do Reino, dada em 29.11.1685, com o ordenado de 120 mil réis.

4 - Idem, lv.53,f.81v –Alvará para Manuel Pereira da Fonseca, hebreu de nação, ter um tostão por dia, dado em 20.12.1698. Idem, lv. 26, f. 66 – Documento de emprazamento de umas propriedades em Carvalhais ao licenciado Manuel Pereira da Fonseca, irmão do Dr. Francisco da Fonseca Henriques.

5 - Inq. Coimbra, Decretados, lv 71 (1640-1773).

6 - Inq. Coimbra, pº 2773, de Gabriel Pereira; pº 5289, de Grácia Mendes; pº 5659, de Violante Pereira; pº 6882, de Isabel Antónia; pº 6654, de Gaspar da Fonseca.

7 - ANDRADE e GUIMARÃES – O Dr. Francisco da Fonseca Henriques e a sua Família na Inquisição de Coimbra, in Brigantia, vol. XXVI, pp. 189-225, Bragança. 2006.

8 - Inq. Coimbra, pº 4258. António Lopes saiu no auto-da-fé de 9.7.1663. Faleceu em Mirandela em outubro de 1664. Morava na Rua da Ponte, junto à casa do morgado Luís Sequeira, construtor da capela de S. José.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Gabriel Pereira (n. Mirandela, 1629)

Foi seu pai Manuel Pereira, natural de Chacim. Pertencia a uma família de mercadores, com dois irmãos casados em Torre de Moncorvo. Uma filha de Manuel e de sua primeira mulher (Brites da Costa), chamou-se Filipa Pereira e na sua descendência, nasceu Jacob Rodrigues Pereira,(1) que se notabilizou em França, com a criação de um alfabeto para educação dos surdos-mudos.

Isabel Antónia se chamou a segunda mulher de Manuel, mãe de Gabriel. Era natural de Mirandela, filha de André António e Maria Luís. Por esta parte, se ligam à família Isidro, de Torre de Moncorvo.(2)

Manuel Pereira e Isabel Antónia estabeleceram morada em Mirandela, dedicando-se ao comércio de panos. Ali lhe nasceram os filhos, nomeadamente o Gabriel Pereira, pelo ano de 1629, que, como o pai, seguiu a vida de mercador.

Casou com Violante Nunes, que lhe deu uma filha que batizaram com o nome de Isabel Antónia, a qual viria a casar com Gaspar da Fonseca Henriques, mercador, natural de Trancoso, estabelecido depois em Mirandela.

Ficando viúvo, casou segunda vez com Grácia Mendes, de Trancoso, irmã do dito Gaspar da Fonseca, filhos, ambos de Francisco da Fonseca Henriques, mercador em Trancoso e rendeiro, mais conhecido pela alcunha de Manico. Temos, assim, Gabriel Pereira sogro e cunhado de Gaspar da Fonseca Henriques.

Em casa de Grácia e Gabriel vivia também uma irmã deste, chamada Violante Pereira, que nunca casou, aleijada de um pé e de uma mão, o que a não livrou de ser presa pela inquisição.

Dos filhos do casal, diremos que o mais velho se chamou Manuel Henriques Pereira, nascido por 1658. Frequentou a universidade de Coimbra, onde se formou advogado. Foi escrivão dos Contos do Reino, uma espécie de diretor-geral de Finanças, dos nossos dias.(3) O facto de ser um alto funcionário do Estado e ter de assistir em Lisboa, não o impediu de criar uma boa casa agrícola em Carvalhais, junto a Mirandela, chegando mesmo a ser o maior produtor de linho da região. Em Carvalhais construiu também uma bela moradia que durou até aos anos de 1970. Foi contemplado com várias mercês pelo rei D. Pedro II.(4)

Outro dos filhos do casal chamou-se, como o avô materno, Francisco da Fonseca Henriques e passou à história com o epíteto de Dr. Mirandela, o célebre médico do rei D. João V.

Um terceiro filho do casal foi batizado com o nome de Fernando. Nasceu no dia em que a inquisição prendeu Gabriel Pereira e tinha pouco mais de meio ano quando a mãe foi igualmente levada para a cadeia de Coimbra. Dele, nenhuma outra notícia encontramos, depreendendo que terá falecido em criança. 

O ano de 1662 foi terrível em Trás-os-Montes, no que respeita à perseguição inquisitorial. Só em maio desse ano foi decretada a prisão de 78 cristãos-novos Trasmontanos.(5) A vila de Mirandela não foi exceção, constando daquela lista 19 decretados, incluindo a família de Gabriel Pereira e Grácia Mendes que foi toda arrastada pelo vendaval.(6)

Gabriel Pereira foi preso ao início do mês de Junho de 1662,(7) juntamente com outros 5 cristãos-novos, todos aparentados. Como parentes eram vários outros presos na mesma altura em Chacim, Vila Flor, T. Moncorvo e outras terras. O responsável pela condução até Coimbra da coluna de Mirandela foi Miguel Pina, de Torre de Moncorvo, certamente familiar da inquisição, como era recomendado pelo regimento do santo ofício.

As celas da cadeia estariam então superlotadas, e assim se explica que o metessem em uma delas com dois conhecidos seus: João Mendes, de Trancoso e Manuel da Fonseca, de Lebução. Este último, inclusivamente, frequentava a sua casa, em Mirandela e era conhecido como o maior passador de cristãos-novos para Castela.

Olhando o processo de Gabriel Pereira, verifica-se que ele foi acusado de judaizar, por 32 pessoas, a grande maioria familiares, mais ou menos próximos. Por sua vez, ele confessou que se tinha declarado por judeu ou feito cerimónias judaicas com umas 70 pessoas. Era a atitude normal, para ver o seu processo despachado mais facilmente: denunciar todos os familiares e amigos, para não falhar nenhum e ser acusado de diminuto. De resto, confessou que fora ensinado na religião mosaica em casa de seu pai, por sua meia-irmã Filipa Pereira e que se declarou com seu pai e seus irmãos. O seu processo nada apresenta de especial, se bem que constitua instrumento importante para identificação de muita “gente da nação” que com ele se relacionava. Ficou concluído ao cabo de quase dois anos de meio, saindo ele condenado em cárcere e hábito perpétuo, com sequestro de bens, no auto da fé de 26.10.1664.

Voltemos a Mirandela, ao casamento de Gabriel e Grácia. A casa onde ficaram a morar situava-se junto ao palácio dos Pinto Cardoso, senhores do opulento morgadio de Santiago, uma casa que ainda hoje embeleza a antiga Praça intramuros da vila, classificada de monumento nacional, mais conhecida como o palácio dos Condes de Vinhais. No dizer de Grácia, “eram umas casas muito fermosas, em que viviam, que de uma banda a outra partiam com casas de“ Manuel Rodrigues e Jorge da Mesquita, cristãos-novos, irmãos entre si, parentes de Gabriel Pereira, que com ele foram presos.

Os primeiros tempos de vida do casal não seriam fáceis pois que ela se foi de volta a viver em Trancoso, dizendo alguns que o marido lhe dava maus tratos. Outros dizem que se foi por motivos de doença, derivada do clima de Mirandela e que foi curar-se na casa paterna. Facto é que por algum tempo ele assistia em Mirandela e ela em Trancoso. E terão mesmo planeado ir viver para Trancoso, pois que venderam a casa a André Cardoso Pinto, o que os citados parentes seus vizinhos lhe não perdoariam.

Depois, foi na Rua de Santo António, que estabeleceram morada. Era uma casa de sobrado, que ele comprara, 6 ou 7 anos atrás, a António Lopes,(8) cristão-novo, o Mourisquinho, de alcunha. No r/chão tinham a sua loja de fazendas, avaliando-se o recheio em 450 mil réis, quando foi preso.

Dizia-se mercador mas podemos também classifica-lo como industrial de moagem de pão, pois tinha uma azenha no rio Tua, junto a Chelas, equipada com 2 pedras de moer e que valia 150 mil réis. Tinha também diversas propriedades agrícolas para cultivo de cereais, além de uma vinha e uns olivais. Para o serviço de transporte de fazendas, especialmente para as feiras e para o trato das terras, tinha dois machos e com ele trabalhava de empregado um moço solteiro dos lados de Monforte Rio Livre.

 

Notas:

1 -ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do Mundo, Sefardita e Trasmontano, ed. Lema d’Origem, Porto, 2014.

2 – IDEM – OS ISIDRO, a Epopeia de uma Família de Cristãos-Novos de Torre de Moncorvo, ed. Lema d’Origem, Porto, 2012

3 - TT/Chancelaria de D. Pedro II, lv. 32, f. 148v – Carta de Provedor dos Contos do Reino, dada em 29.11.1685, com o ordenado de 120 mil réis.

4 - Idem, lv.53,f.81v –Alvará para Manuel Pereira da Fonseca, hebreu de nação, ter um tostão por dia, dado em 20.12.1698. Idem, lv. 26, f. 66 – Documento de emprazamento de umas propriedades em Carvalhais ao licenciado Manuel Pereira da Fonseca, irmão do Dr. Francisco da Fonseca Henriques.

5 - Inq. Coimbra, Decretados, lv 71 (1640-1773).

6 - Inq. Coimbra, pº 2773, de Gabriel Pereira; pº 5289, de Grácia Mendes; pº 5659, de Violante Pereira; pº 6882, de Isabel Antónia; pº 6654, de Gaspar da Fonseca.

7 - ANDRADE e GUIMARÃES – O Dr. Francisco da Fonseca Henriques e a sua Família na Inquisição de Coimbra, in Brigantia, vol. XXVI, pp. 189-225, Bragança. 2006.

8 - Inq. Coimbra, pº 4258. António Lopes saiu no auto-da-fé de 9.7.1663. Faleceu em Mirandela em outubro de 1664. Morava na Rua da Ponte, junto à casa do morgado Luís Sequeira, construtor da capela de S. José.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Mendes Flores, o Bicho (n. Toledo, 1669)

Terá nascido por 1669, em Vila Nueva de la Fuente, do bispado de Toledo, em Espanha. Dizia-se cristão-velho mas não sabia o nome do pai e da mãe, hesitava entre chamar-lhe Maria ou Francisca de Tunes. De avós e tios paternos nada sabia e da parte materna, indicou um tio que se chamava Alonso de Tunes, o qual era mercador em Toledo. E indicou outro que era padre, beneficiado na igreja de S. Nicolau da cidade de Toledo e comissário da inquisição. Porém, ele desconfiava que o padre Francisco, dito seu tio, era o seu pai, pelo carinho que lhe dedicava.
Na verdade, embora os inquisidores de Coimbra tivessem feito diligências, nunca se averiguou com certeza a paternidade e maternidade do réu, e menos ainda a pureza do seu sangue. Apenas ficou provado que existiam os dois irmãos e que o padre Francisco de Tunes nunca pertencera aos quadros da inquisição. 
Manuel Mendes terá vivido 4 anos na terra natal, sendo depois levado para Toledo, para casa do tio Alonso, onde se criou. Andaria pelos 8 anos quando foi para Madrid, e ali permaneceu uns 3 anos e meio, posto o que rumou a Salamanca. Tinha 14 anos quando veio para Portugal, fixando-se em Chaves. A sua vida era andar de feira em feira e certamente não lhe faltavam recursos financeiros. Quem estaria por detrás, abonando dinheiro e ajudando a dar rumo à vida deste jovem?
Facto é que, por 1687, contando apenas 18 anos, recebeu como esposa, em Mirandela, a Francisca Henriques, uma menina de 12 anos, de uma importante família cristã-nova, onde se destacavam um tio médico (Francisco da Fonseca Henriques) e dois advogados (António e Manuel Pereira da Fonseca), os três em serviço na Casa dos Távoras.(1) Claro que nada disto aconteceria por acaso e não seriam os lindos olhos do jovem a ditar o sucesso. Provavelmente o contrato nupcial e as andanças do jovem viriam a ser preparadas, de antes, pelas respetivas famílias, como era de uso. Possivelmente a família Furtado, de Trancoso, não seria alheia a tais negociações. 
Certamente que o casamento lhe abriu também as portas do Palácio e “Corte” que então governava metade da província de Trás-os-Montes e Alto Douro, sendo nomeado feitor da Casa dos Távoras,(2) o que, além dos proventos económicos, lhe dava muito poder, nomeadamente na contratação de operários e serviçais e na administração da justiça, em nome do Senhores Marqueses, tal como no recrutamento de soldados.
Cedo faleceram os pais de Francisca, de modo que o seu irmão, mais novo uns 5 anos, Gabriel Pereira da Fonseca,(3) foi viver para sua casa, criando-se com Manuel Flores, sempre apoiado pelos tios de Francisca. E quando se tratou de fazer as partilhas da herança dos pais, Gabriel vendeu a sua parte ao cunhado, por 150.000 réis. Nessa altura andaria estudando na universidade de Coimbra ou estaria já formado em medicina.
As propriedades em causa eram constituídas à base de olivais. E, já que falamos disso, deitemos uma olhada para a relação de bens que Manuel Flores apresentava:
O mobiliário da casa foi avaliado em 175.000 réis, um valor muito elevado, sendo constituído por mesas e contadores de pau-preto, cadeiras e bancos encourados, painéis com molduras douradas… não entrando nestas contas as roupas e os talheres, que disso sabia sua mulher.
A casa de morada, de dois pisos, com quintal anexo, partia com a capela do Dr. Luís Bernardo Melo Morais Sarmento e valia um conto de réis. Em frente, do outro lado da rua, tinha outra morada de casas, com adega, que valia 70 mil réis. Junto à Ponte tinha um palheiro, avaliado em 35 mil réis e, por cima do arco de S. António, tinha um lagar de azeite que devia ser monumental pois estava equipado com 3 casas de mós, de duas varas, e valia 250.000 réis.
De propriedades agrícolas, referência para uma dúzia de olivais e muitas oliveiras espalhadas, que todas valeriam cerce de 2 contos e 500 mil réis. Os sítios desses olivais, começando pela Quinta de Golfeiras, permitirá fazer um verdadeiro mapeamento da cultura olivícola em Mirandela ao início do século XVIII. Na Quinta do Gorrão, Carvalhais, avaliada em 200 mil réis, dominava o cultivo da vinha e, por isso, estava dotada com um lagar de vinho. 
Manuel Mendes ganhou a alcunha de Bicho, certamente porque a criação de sirgo e o negócio das sedas era atividade importante da sua casa. Para além das sedas, a sua loja, na Rua de Santo António, então a mais comercial da vila, estava sortida de “panos de reinos estrangeiros” e o “sortimento” avaliado em um conto e 600 mil réis.
Muito mais dinheiro, somavam as dívidas ativas. Destas permitimo-nos destacar as derivadas do fornecimento de fardas ao regimento do coronel António do Couto Castelo Branco, cujo montante ele não lembrava ao certo mas constava de um assinado do mesmo coronel. Dos fornecimentos às tropas do Conde de Sampaio, acontecido mais de 20 anos atrás, faltava-lhe receber 140 mil réis e do Conde de S. João, o montante da dívida ascendia a 800 e tantos mil réis.
Manuel e Francisca tiveram um filho, nascido por 1701, que batizaram com o nome de António Luís Flores, o qual foi casar a Trancoso, com Leonor Maria Furtado,(4) cuja mãe era natural de Toledo… 
A história da família de Francisca na inquisição era já longa, nomeadamente os seus pais: Gaspar da Fonseca e Isabel Antónia,(5) presos em maio de 1663. Novo sobressalto em agosto de 1706, quando foi preso o seu irmão, médico.  E, como cumprindo um fado de tragédia, em fevereiro de 1727, a inquisição de Coimbra levou presos Manuel Mendes e Francisca Henriques.(6)
Não vamos falar dos seus processos. Diremos apenas que abonando o seu comportamento cristão se mobilizou muita gente importante de Mirandela e que a sua defesa foi consequente. Os processos são sobremodo interessantes para o estudo da família, repartida por Trancoso, Chacim e outras terras trasmontanas, uma das famílias cristãs-novas mais importantes de Trás-os-Montes e Beiras. Embora fossem ambos postos a tormento, acabaram sentenciados em sala, com penitências espirituais.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Francisco Brandão (n. Torre Moncorvo, 1600)

Francisco Brandão nasceu em Moncorvo por 1600, sendo filho de Jorge Fernandes e Inês Rodrigues. Pequeno ainda, foi levado para Málaga, Espanha. Ali se criou, em casa de Ana Brandoa, sua tia materna, casada com Pedro Pinto, tio de sua mãe.

Em 1626, Francisco e os tios viveriam já em Madrid, conforme ele próprio contou na inquisição em 1652:

— Haverá 26 anos, se achou em Madrid, em casa de Pedro Pinto, casado com Ana Brandoa, irmã da mãe dele confitente, e com Duarte Pinto, irmão do sobredito, casado com Leonor Brandoa, mercador e Francisco Vaz Pinto, irmão dos sobreditos, casado com Isabel Vaz, todos naturais de Moncorvo e moradores em Madrid.(1)

Pouco depois, Francisco Brandão regressou à terra natal, para casar e estabelecer sua casa de morada e comercial. Situava-se esta na praça municipal, entre a Rua do Cano e a Rua dos Mercadores. Confrontava com Henrique Rodrigues, ferrador(2) e este com Luís Correia de Paiva, esta com entrada pela Rua dos Mercadores. As três casas davam, pelas traseiras, para um largo em que cada um teria um pequeno quintal, onde cultivariam alguns legumes, ou utilizavam para secar e espadar o linho, como era o caso de Francisco. E todas tinham varandas e janelas para o quintal.(3) As casas do Brandão e do ferrador comunicavam entre si, conforme testemunho da mulher daquele:

— Haverá 12 anos em sua casa e por um buraco de sua casa, que estava junto de outro de Henrique Rodrigues, ferrador, chegou ao dito buraco Susana Mendes, mulher do mesmo e doutrinou-a.(4)

Para além de rendeiro do real de água, Francisco Brandão era tendeiro e a loja funcionava no r/chão de sua casa. Nela assistia mais regularmente o filho David, então de 14 anos. Na loja vendiam-se sobretudo panos e linhas, mas também produtos tão díspares como resmas de pólvora, papel, sal, açúcar e muito em especial, sabão, já que Francisco tomou do “estanqueiro e contratador do sabão nesta comarca” o exclusivo da venda do produto na área do concelho. Por isso e principalmente nos dias de feira, à sua loja acorria também muita gente das aldeias do termo, de modo que “nem tinha tempo para comer”- dizia a sua mulher.

O acesso ao piso superior era feito por um lanço de escadas a meio da loja. Muita gente subia estas escadas porque, em cima, funcionava uma “casa de jogo”. E havia também uma divisão onde Maria Rodrigues trabalhava, no ofício de doceira, “quase de contínuo, sem dela sair”. E esta é a primeira doceira que encontramos na história de Torre de Moncorvo.

Entre outros doces que fabricava e vendia contavam-se os massapães, feitos de amêndoas pisadas, ovos, farinha e açúcar. E deles comprava frequentemente o advogado João Góis. Um dia, porém, a doceira não quis aceitar os dois tostões com que a ama do advogado queria pagar os doces, porque eram de chumbo. Pediu que lhe mandasse pagar com outro dinheiro, que não aceitava “aquelas falsidades”.

Em outra ocasião, o mesmo advogado mandou o sogro comprar uma resma de papel, mas antes queria ver a qualidade. A vendeira, “pela pouca confiança que dele tinha, mandou 4 ou 5 folhas para amostra”. Foi com a amostra e “tornou muito agastado, dizendo que seu genro não era homem de quem se desconfiasse, e com cólera lançou as folhas de papel da mão, muito inchado, fazendo mostras de que a ameaçava”.

Embora não sendo homem de nobreza, nem de fortuna, Francisco Gouveia Pinto conseguiu ser distinguido com o colar de familiar do santo ofício, em 1640,(5) o que lhe dava uma grande importância e distinção social, para além de isenção de impostos e proventos monetários nomeadamente quando o encarregavam de efetuar prisões e conduzir os presos à cadeia de Coimbra.

Explica-se, assim, que Gouveia Pinto andasse em permanente vigia “à caça” de “judeus” e, em junho de 1646, tenha escrito uma carta para Coimbra, denunciando, entre outros, Francisco Brandão e sua mulher. Escrevia que, nas sextas-feiras, da parte de tarde, deixavam de trabalhar e se sentavam nas escadas da loja sem fazer nada, o mesmo acontecendo aos sábados. Também mudavam de fato e “Maria Rodrigues se conserta no rosto melhor que nos outros dias”.

Acrescentava que, na sexta-feira à noite em sua “casa de jogo” se juntavam ”em sinagoga” o ferrador Henrique Rodrigues, o médico Francisco Nunes Ramos, o tendeiro Rodrigo Nunes, seu vizinho e Francisco da Cunha, da Covilhã, estanqueiro do sabão.

Estas coisas, viu ele e de outras ouviu falar a pessoas que depois foram chamadas a depor, em devassa conduzida pelo comissário Pedro Saraiva de Vasconcelos.(6) Uma delas foi o “distribuidor e contador desta vila”, que trabalhava com o advogado Gois que confirmou:

— Maria Rodrigues, durante a semana não vem abaixo à tenda, por estar em cima a fazer doces, que é o seu trato principal, e nos sábados vem assistir na tenda, mais concertada de corpo e rosto e mais alegre do que o costume.

Mais estranho foi o depoimento de uma Ana Ferreira. Disse que, 10 anos atrás, foi comprar linhas à loja de Francisco Brandão. E subiu onde estava a doceira e ficaram à conversa. E chegando outras pessoas e chamando-a, teve de descer. Ficou só a outra que, olhando para baixo de uma arca, viu um chapéu com qualquer coisa dentro. “E ela testemunha tirou o chapéu e achou dentro dele uma tourinha de metal”.

Francisco Rodrigues e a mulher acabaram presos, juntamente com vários outros cristãos-novos de Torre de Moncorvo. Verdadeiramente dramática foi a partida para Coimbra. Primeiro saiu a coluna dos homens. Depois a das mulheres. Joana de Gouveia, mulher nobre em cuja casa foi a ré “guardada” os dias que precederam a organização da coluna, condoída da prisioneira, pediu que a levassem pela Rua das Quatro Esquinas para que os filhos a não vissem assim algemada. Os carcereiros, porém, fizeram-na passar pela praça, para que os filhos a vissem e acrescentar a ignomínia. Entre os mais de 50 curiosos que acompanharam a “procissão” pelas ruas da vila, um se pavoneava particularmente: o familiar Francisco Gouveia Pinto que, vendo a mãe e os filhos em lágrimas, ironizava:

— Valham os diabos, bravazona! – ao que ela respondeu:

— Não quer que chore pelos meus meninos? Pois vou presa por falsários e traidores.

Contando a cena aos inquisidores, Maria Rodrigues, concluía:

— Entende ela ré que o dito Francisco Gouveia disse aquelas palavras como que raivoso, por lhe não cometerem a ele a prisão, nem vir com ela ré nem com os mais presos, a ganhar dinheiro.

Ao cabo da vila, avistou a coluna dos homens, que iam à frente. E pôs-se a gritar:

— Meu Brandão, pai dos meus filhos!

Fizeram parar o macho em que ela seguia, para a outra coluna se distanciar e o marido não ouvir as suas “palavras amorosas” – como disse uma testemunha. De contrário, Gouveia Pinto continuava rindo-se da desgraça da doceira que, entre lágrimas, dizia:

— Traidor, falsário, quanto me tens comido!

Não vamos falar dos quase 4 anos que passaram nas cadeias da inquisição de Coimbra. Diremos que, depois de ganhar a liberdade, Francisco e a mulher se foram viver para o Porto, cidade onde sua filha mais velha casara com Heitor Rodrigues Chaves “escrivão da correição” e mercador.(7)

Em 1655, o casal vivia em Lisboa, ao Lagar do Sebo, de onde se mudaram para a cidade da Guarda onde Francisco instalou uma “casa de Jogo”. Finalmente, por 1661, foram-se a viver para Madrid.

O filho mais velho, David Brandão, estava então casado com uma prima e vivia em Castelo Branco, servindo de “administrador das terças do reino”. Dois outros filhos, Diogo e Luís, estavam casados em Mogadouro, na família de Baltasar Lopes Oliveira, familiar e agente das empresas Mogadouro em Trás-os-Montes. Ambos foram presos, em 1662.(8) Inês Brandoa, a filha mais nova, essa casou em Moreira, Trancoso, e ali vivia, com 2 filhos pequenos.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães - Joseph (David) António Pinto (n. Cótimos, 1647)

Na década de 1640 a inquisição lançou em Torre de Moncorvo aquela que seria a última grande operação de limpeza da heresia judaica e o início da decadência da “capital de Trás-os-Montes”, com a fuga de gente e capitais do elemento mais dinâmico e empreendedor da sua população.
Entre as famílias que abandonaram a terra, contou-se a de António Rodrigues Pinto, mercador e sua mulher Violante Rodrigues, com os seus 4 filhos e 2 filhas, que foram fixar residência na cidade da Guarda.

Uma das filhas, batizada por 1625, em Torre de Moncorvo, com o nome de Branca Rodrigues, casou na Guarda com Francisco Mendes Paredes, surrador e curtidor. Ambos viriam a ser presos pela inquisição, ao início da década de 1660.(1) Um dos filhos do casal chamou-se Belchior Mendes, o qual tinha 20 anos quando os pais foram presos e ele decidiu ir apresentar-se na inquisição de Coimbra, saindo penitenciado no auto-da-fé de 5.2.1668.(2) Mais adiante voltaremos a falar dele.

Um dos filhos de António e Violante dava pelo nome de Jorge Pinto. Foi casar a Cótimos, termo de Trancoso, com Beatriz Gonçalves. Em Cótimos residiram uns 9/10 anos e ali lhe nasceram 2 filhos: Luís, o mais velho e António. Este, batizado em 14.3.1647, adotaria o nome de Joseph António, uns 10 anos mais tarde, ao ser crismado em Málaga, terra para onde os pais e outros familiares se abalaram, por 1650, certamente fugindo da inquisição.

Fugidos do leão, foram cair nas garras do urso – como usa dizer-se. Com efeito, instalados em Málaga, foram levados para os cárceres da inquisição de Granada o pai e o avô, António Rodrigues Pinto. Por 1659, depois de saírem penitenciados e cumprirem a penitência, o avô e o tio Manuel Pinto terão regressado a Portugal.

Jorge Pinto e Brites Gonçalves, ao contrário, pegaram nos filhos e numa criada portuguesa que tinham e foram-se a Cádis e Alicante onde embarcaram em uma nau(3) com destino à cidade italiana de Livorno, sendo hospedados à chegada, em casa de Daniel e Jacob França,(4) com eles aparentados. Ali aderiram publicamente ao judaísmo, fazendo-se circuncidar e tomando nomes judeus: Isaac Israel Pinto, o pai; Sara Pinto, a mãe; Jacob Pinto, o irmão e David Pinto, o nosso biografado, que então andaria nos 12 anos.

É muito completa a descrição daquela cerimónia, que ele fez mais tarde, perante os inquisidores, bem como das orações, jejuns e frequência da sinagoga. Aliás, ele revelava uma boa instrução, sabendo ler e escrever em português, espanhol, francês e italiano.

Entretanto, o irmão atingiu a maioridade e dirigiu-se para o norte de África, a comerciar, estabelecendo-se na cidade de Tetuão. Certamente trabalhavam em rede, como era geral entre os da nação e, sendo já casado, deixou a mulher em Livorno a tomar conta da casa. E David, quando chegou aos 18 anos, seria mandado pelos pais a ter com o irmão, com ele assistindo em Tetuão uns 3 meses. Ali se apresentava como judeu, frequentando a sinagoga, se bem que “não andava de traje, como não costumam mudar os que vão só a negociar”.

Por ordem do irmão, dirigiu-se a Espanha, a cobrar um vale de 8 500 réis em Antequera e a comprar fazendas que enviaria para Tetuão. Talvez para melhor se movimentar num país que perseguia os judeus, David Pinto decidiu apresentar-se na inquisição de Sevilha dizendo que era judeu e vinha fugindo de seu pai e irmão, o qual “dissera que gastaria sua vida e fazenda para o matar, pelo propósito que tinha” de se tornar cristão.

Apresentado em 8.1.1670, contaria algumas pequenas mentiras, dizendo, nomeadamente, que se criara em Lisboa, que seu pai se chamava Jorge Saldanha Pinto e seu irmão era Don Luís Saldanha y Pinto. Em Sevilha travaria amizade com Don Henrique de La Torre, capitão de uma companhia de tropas estacionada em Mansilha, 5 léguas de Sevilha, certamente originário de uma família de Torre de Moncorvo, pois que o tratava por parente.

Pensaria que a inquisição o mandava logo batizar e lhe passava um salvo-conduto para se movimentar por Espanha. Mandaram, porém, que aguardasse e que não saísse da cidade. Demorando já uns 9 meses a decisão dos inquisidores, Joseph deixou Sevilha e foi-se a Madrid, dali seguindo para a Guarda. Ficaria hospedado em casa de seu primo Belchior Mendes, curtidor, de que atrás se falou.

Da Guarda foi para Lisboa, alojando-se numa estalagem ao Beco das Comédias, certamente com intenção de embarcar dali para Tetuão. Foi a sua desgraça. É que, entretanto, a inquisição de Sevilha mandou um relatório do caso para a sua congénere de Lisboa. E nesta cidade ele encontrou-se com dois negociantes originários da Arménia, seus conhecidos de Tetuão, que não tiveram quaisquer rebuços em denunciá-lo na inquisição, se bem que ignorassem o seu nome. Entre outras coisas, um deles, chamado Jacome Assucar, disse:

— Vindo a esta cidade ele denunciante viu nela o dito Fulano Pinto, o qual lhe falou e perguntou como ficara o seu irmão, Jacob Pinto. E ele lhe deu novas como o vira há perto de 2 meses, em Tetuão. E perguntando-lhe onde vivia, ele lhe respondeu que era junto onde faziam as comédias. Mas depois, ao outro dia, lhe disse que tinha tomado outra pousada, sem dizer aonde, tendo ele denunciante deduzindo que andava com receio de ser conhecido, porque nesta cidade não se trata como judeu público, antes o encobre. E anda vestido com uma capa de barregana, de cor cinzenta, forrada de baeta e uma casaca que não lhe lembra de que cor e chapéu branco.(5)

Idêntico testemunho foi dado pelo outro mercador arménio, companheiro daquele, que particularizou:

— Haverá um mês e meio que, vindo a esta cidade, viu nela o dito moço irmão de Jacob Pinto e em razão do conhecimento que tinha com ele em Tetuão, falou com ele muitas vezes e o levou a sua casa algumas vezes, e ele testemunha lhe perguntou como se atrevera a vir a esta terra sendo judeu. E o dito moço disse (…) que se aqui soubessem que ele era judeu, havia de dizer que era filho de pai judeu e que se queria fazer católico…

Ficava muito complicado o problema daquele homem de 23 anos, pois logo a inquisição o prendeu. No decurso do processo muita coisa teve de esclarecer mas, para nós, o mais importante são as informações que ele deu sobre outros marranos Trasmontanos, especialmente de Torre de Moncorvo, que ele conheceu em Livorno e Florença, vivendo como judeus assumidos.

Preso em Agosto de 1670, prolongou-se a sua estadia nas celas do santo ofício de Lisboa até dezembro de 1674, saindo condenado a 3 anos de degredo para o Brasil “e usará hábito penitencial por cima dos seus vestidos”.

Não estava, porém, em condições de viajar. Os 40 meses em que esteve metido nos cárceres, “durante os quais padeceu as doenças que são notórias e por sua matéria ficou arruinado de saúde” e o tormento que lhe deram (um trato esperto e outro corrido) deixou-o tolhido de braços e mãos e “para se vestir e calçar, lho faz qualquer preso, por amor de Deus”.

Assim, em Janeiro de 1674, requereu que lhe dessem licença para se ir curar. Foi-lhe concedida mas, “dando fiança segura e abonada”.

Como haveria de dar fiança e pagar aos médicos, se até para comer tinha de recorrer à misericórdia? Pediu, por isso que o recolhessem na enfermaria do Hospital de Todos os Santos. Pouca esperança de cura do “tolhimento de braços e mãos” lhe restava e, desesperado, dizia que era “melhor que o embarcassem nas naus e no mar morra de doença, que de fome em terra”.

Decidiram então os inquisidores mandá-lo cumprir a pena de desterro em Almeida. Certamente algum parente ou amigo, de Torre de Moncorvo ou da Guarda o haveria de ajudar.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Rodrigues Isidro (n. Torre de Moncorvo, 1576)

O pai chamou-se João Rodrigues e pertencia a uma destacada família de cristãos-novos de Mirandela. (1) A família tinha, inclusivamente um padre – Sebastião Rodrigues, que se orgulhava do seu ofício e dizia que se fizera sacerdote para denunciar os que judaizavam.

Não menos importante, era a família de sua mãe, Beatriz Lopes, (2) natural de Torre de Moncorvo, filha de Vasco Pires do Castelo e sua mulher, Isabel Vaz. Esta faleceu bastante cedo, casando o Vasco em segundas núpcias, com Francisca Fernandes, (3) que faleceu na inquisição de Lisboa, denunciada exatamente pelo padre Bastião.

Manuel Rodrigues Isidro tinha 3 irmãos inteiros e um meio-irmão, repartindo-se a família por Moncorvo, Vila Flor, Vila Real, Porto e Castela. Aparentemente teria ligação mais estreita com seu irmão Vasco Pires Isidro. E quando Filipe III tomou posse e os cristãos-novos Portugueses começaram a negociar um terceiro perdão geral e a libertação dos prisioneiros da inquisição, foi lançada uma finta e, na comarca de Moncorvo, os fintadores foram os dois irmãos Isidro, sinal do seu grande prestígio e capacidade financeira.

Por outro lado, Vasco Pires era tesoureiro da infanta D. Francisca de Aragão, o que lhe abria muitas portas na Corte de Madrid. Assim, apoiados nestes conhecimentos e nos do primo tesoureiro do duque de Ossuna, os Isidro viveriam em Torre de Moncorvo com alguma ostentação de poder. E isso provocava certamente inveja e má vontade entre a classe da nobreza e dirigentes do clero, habituados a ser “os donos” da terra.

Muito em particular cresceram as desavenças entre Manuel Isidro e Francisco da Rosa Pinto. A tal ponto que, no dia 27.5.1599, na rua dos Sapateiros, Francisco da Rosa, acompanhado de Álvaro Falcão e Diogo Monteiro se lançaram em luta com Manuel Rodrigues Isidro, resultando que o Rosa lhe cortou um dedo da mão esquerda e tê-lo-ia morto se não fugisse para dentro de casa. Não satisfeitos, foram-se os três a casa do Castro, que morava na mesma rua e, pouco depois, eles e outros mais “armados de espadas, rodelas e cascos e ouras de antas e chuços, saíram de casa de Jerónimo de Castro e se trataram de alborroar as portas e certamente as casas por todas as partes para que ele suplicante não pudesse sair e o acabarem de matar (…) e o desonraram de nomes muito feios chamando-lhe cabrão, judeu (…) dando com as espadas e chuços nas portas…”

Manuel Isidro fez petição a Sua Alteza e… Francisco da Rosa Pinto foi preso.

Diogo Monteiro era o meirinho dos clérigos e lidava muito bem com o comissário da inquisição e vigário-geral da comarca, licenciado Gregório Rebelo de Abreu. Que melhor forma haveria de se livrarem do Isidro e lhe comerem a fortuna senão metê-lo na inquisição?! Trataram assim, de arranjar testemunhas que fossem jurar que ao sábado vestia camisa lavada e sem trabalhar, que comia carne em dias proibidos pela igreja e outros crimes semelhantes…

Só que Manuel Isidro foi sabendo dessas diligências e fez nova exposição a Sua Alteza contando o que se passava, que induziram testemunhas a jurar falso contra ele como foi uma Ana Rodrigues, a Cagança, de alcunha, manceba de Francisco da Rosa Pinto, a qual arregimentou outras mulheres “miseráveis e alcoviteiras e mulheres do mundo, vagabundas do seu corpo, que por qualquer coisa que lhe deem, dirão o que não sabem”.

Foi nomeado o Dr. António Cabral, da Relação do Porto, para investigar a natureza desses juramentos e desses conluios e, em consequência, foram condenados a prisão 8 ou 9 dos homens de mais evidência em Torre de Moncorvo. O caso tornava-se também complicado para o vigário-geral que tinha enviado as denúncias apresentadas pelo meirinho Diogo Monteiro para o Sr. Arcebispo e este para o tribunal da inquisição de Coimbra. Claro que o vigário Rebelo de Abreu se desfez em desculpas, dizendo que a informação não transpirou por causa do meirinho e que tudo resultava do facto de Manuel Isidro ter grande parte da gente da vila de Moncorvo na sua mão e, através de ameaças ou com dinheiro tudo comprar, até mesmo a justiça. Vejam um pouco da sua prosa:

- A gente da nação anda muito favorecida nesta terra e especialmente nesta vila, de alguns cristãos-velhos que vivem deles e com as valias e poder que têm, ainda que tenham culpas pode-se mal administrar e executar justiça contra eles porque deram agora em ameaçar testemunhas e espancar outras e peitar algumas (…) E vai o seu despejo em tanto crescimento que por denunciar Diogo Monteiro, meirinho deste auditório, de um Manuel Rodrigues Isidro e outros seus parentes, teve ordem no recuar (…) por não haver quem ouse testemunhar contra eles a verdade… (4)

Podemos concluir que em Torre de Moncorvo se vivia em autêntico clima de guerrilha e luta política, com a inquisição a ser considerada como palco privilegiado dessa luta, mais do que um tribunal da fé, como era suposto ser. 

Com aquelas prisões e o perdão geral, o ambiente de guerrilha terá esfriado. Aliás, os Isidro passariam a viver menos tempo em Torre de Moncorvo, com os seus negócios a crescer no Porto e em Madrid e as suas empresas a internacionalizar-se. A ponto de Vasco pagar mais de 200 mil cruzados/ano de direitos alfandegários quando, em 1613, tratou de mudar a residência para Madrid e Manuel Isidro já em 1599 pagava 100 mil.

Por 1616, Manuel tornou-se contratador dos impostos reais da comarca de Torre de Moncorvo e as dissensões com os homens nobres, ricos e da governança da terra ter-se-ão novamente agravado. E ele escreveu novas exposições dirigidas a el-Rei Filipe, denunciando tropelias e roubos de vereadores da câmara e outros detentores de ofícios e empregos reais.

E de novo, os seus inimigos da nobreza e clérigos e familiares da inquisição se meteram em campo, movendo-se por Lisboa e Madrid, até porque, então, foi nomeado um novo inquisidor-geral, que logo ganhou fama de ser venal e partidário, vendedor de empregos e favores, correndo rumores de sodomia com um cristão-novo. E foi então lançada pela inquisição de Coimbra uma enorme vaga de prisões entre a próspera comunidade mercantil hebreia da cidade do Porto, onde se contavam muitos amigos e parceiros comerciais de Manuel Isidro. As ondas da tempestade estenderam-se a Trás-os-Montes onde, entre outros, foi preso um Pedro de Matos, natural de Muxagata, morador em Lagoa de Morais. Este, no tormento, disse que 5 ou 6 anos atrás, passeando na praça de Moncorvo com Vasco e Manuel Isidro, se tinham declarado judeus.

Com este testemunho, algo duvidoso porque obtido no tormento, os inquisidores de Coimbra, acharam que não havia motivos para prender Manuel Isidro. No entanto a sua deliberação foi enviada ao conselho geral que, com o inquisidor-mor Fernão Martins Mascarenhas a presidir, decretou a sua prisão “com sequestro de bens”. 

Preso no dia 1.12.1618, Manuel Isidro, suportou os horrores da prisão durante 4 anos e meio, sendo pura e simplesmente absolvido e mandado soltar, sem qualquer abjuração, em 19.6.1623.

Na primeira e uma das poucas audiências que com ele tiveram, às perguntas dos inquisidores, respondeu simplesmente:

-Isso são falsos testemunhos de Pero de Matos! (5) – explicando que era seu inimigo por lhe ter lançado 400 mil réis de finta quando foi da recolha de dinheiros para pagar o perdão geral a Filipe III. (6)

De resto, o processo de Manuel Rodrigues Isidro revela-se de extraordinário interesse para o estudo da vida política e da sociedade Moncorvense da sua época. E não seria por acaso que, no tempo dos reis estrangeiros, a Torre de Moncorvo conheceu um extraordinário desenvolvimento no que respeita a obras públicas. O processo de Manuel Isidro testemunha a construção do telhado da igreja matriz e o chafariz Filipino e o topónimo de Rua do Cano constatam isso mesmo.

Manuel Isidro, quando saiu da prisão, tinha uns 48 anos. Mesmo sofrendo de gota e com a saúde abalada, ele ganhou forças para se dirigir a Madrid e reconstruir a vida interrompida pela inquisição. Aonde? Ficaria por Castela? Iria para algum sítio onde fruir de liberdade religiosa? A informação que temos (7) é que seus netos não sabiam que era feito do avô.

 

Notas:

1-Um membro desta família seria médico dos Távoras e do rei D. João V.

2-Um irmão de Beatriz Lopes chamou-se Diogo Fernandes e foi casar a Vila Real. E este foi o pai de António Fernandes Vila Real, tesoureiro do duque de Ossuna, governador de Navarra, em Castela. António Fernandes era casado com Jerónima Fernandes, sua prima, irmã de Manuel Isidro.

3-Inq. Lisboa, pº 12 663. 

4-Inq. Coimbra, pº 5151.

5-Inq. Coimbra pº 448.

6-Pedro de Matos até seria rico e, de repente, foi à falência. É que, como então se mudou para Lagoa de Morais, foi também taxado, em outros 400 mil réis, pelos fintadores da comarca de Miranda do Douro.

7-SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600-1670, Franz Steiner verjag Stuttgart, pp. 161-163.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Catarina Henriques (Torre de Moncorvo, 1593 – Coimbra, 1660)

António Júlio Andrade
Maria Fernanda Guimarães
Catarina Henriques nasceu em Torre de Moncorvo pelo ano de 1593, numa casa da Rua dos Sapateiros, sendo filha de Pedro Henriques Julião e Francisca Vaz. Tal como as suas duas irmãs, aprendeu a ler e escrever, o que era bastante normal entre as mulheres hebreias de Torre de Moncorvo e outras comunidades.
Casou com Manuel Francisco da Mesquita, natural de S. João da Pesqueira. O casal fixou residência “na Rua Nova de Baixo, da Vila Nova do Porto, integrando-se bem na elitista classe mercantil da Invicta, constituída, em grande parte, por gente oriunda de Trás-os-Montes, conforme ressalta da lista de quase uma centena de prisioneiros que a inquisição fez naquela cidade pelo ano de 1658, contando-se entre eles a nossa biografada.
Não sabemos muito bem qual o modo de vida do casal. Adivinhamos que fossem mercadores pois se fala de lotes de baetas recebidos de países do norte, de vendas de pólvora, de mercadorias embarcadas para o Brasil. E também de umas letras não aceites e dívidas difíceis de cobrar, indiciadoras de atividades prestamistas.
Facto é que tinham em casa uma criada cristã-velha, chamada Francisca Gramaxa, um escravo negro, um moço flamengo e um criado vindo da China, que depois que a patroa foi presa, aprendeu a sapateiro e se tornou conhecido no Porto como “o sapateiro de Lisboa”.
Dissemos já que o casal morava em Vila Nova (de Gaia), certamente em uma das “duas moradas de casas, ambas juntas, sitas na Vila Nova do Porto, que de uma banda partem com casas de Inácio de França e de outras com casas de João Garcia, ambos da cidade do Porto, as quais casas houve seu marido, Manuel Francisco da Mesquita, por título de arrecadação de uma dívida em preço de 500 mil réis, pouco mais ou menos”.
Para além disso, tinha “um armazém, sito defronte da porta da travessa de Santa Maria, igreja matriz de Vila Nova do Porto, que é livre e foi feito de novo pelo marido dela declarante, não sabe quanto vale, mas anda alugado aos ingleses”.
 E tinha também “um campo cercado de per si, com uma casa térrea pequena, sito na estrada que vem de Vila Nova do Porto para a ermida de São Roque, o qual campo chamam do Pinheiro, que de uma banda parte com terras de Bento Nunes, já defunto, que vivia de sua fazenda, e da outra banda com Madalena Francisca, que houve o marido dela declarante por arrematação de Frutuoso de Faria”. 
Para além do mais, estas notas do inventário dos bens de Catarina, terão algum interesse para o estudo da evolução urbana da Vila Nova e talvez haja registos notariais que possam ser investigados com vista à identificação do armazém construído por Francisco Mesquita que já então trazia alugado aos ingleses.
O casal teve 5 filhos, mas só uma filha, chamada Francisca Vaz, como a avó materna, chegou à maioridade, vindo a casar com António Mendes de Almeida, (1) mercador, natural de Trancoso, com casa comercial estabelecida no Porto, filho do médico Belchior Mendes. Filha e genro moravam com Catarina Henriques.
Entre os muitos familiares do santo ofício existentes no Porto havia então um que se chamava Domingos Rodrigues Chaves. Obtivera carta de familiar em março de 1656 e, desejoso de mostrar serviço, em 24 de abril de 1657, escreveu para Coimbra “advertindo que hoje são nesta cidade do Porto tanta gente da nação que são mais que os cristãos-velhos” e informando que corriam rumores de práticas judaicas, nomeadamente em casa de Catarina Henriques. Ouvido oficialmente sobre o assunto, em 7.5.657, pelo comissário Manuel Seabra e Sousa, a mando dos inquisidores, concretizou tais rumores:
- Disse que estando conversando algumas vezes com Manuel Pereira, mercador, morador no Terreiro, o dito Manuel Pereira, em presença de sua mulher, Margarida Cardosa, lhe dissera que ouvira dizer a uma criada que fora de Manuel Francisco da Mesquita, defunto, o qual é tido e havido por cristão-novo e sua mulher e sua filha, que faziam cerimónias que lhe pareciam judaicas (…) e que a dita criada referia que Manuel Francisco da Mesquita, sua mulher e filha se despiam algumas vezes nus, sem camisas e punham os braços em cruz e assim estavam orando algum espaço, o que lhe parecia mal… (2)
Estranha coincidência! No mesmo dia, no convento de S. Domingos, no Porto, uma escrava forra de Ângela Cardosa, apresentou-se perante o padre superior denunciando como judaizantes e que faziam jejuns judaicos um conjunto de 18 pessoas das relações da sua patroa, entre elas Catarina Henriques.
De seguida, foi um arraso: dezenas de pessoas foram presas e levadas para a inquisição de Coimbra, entre elas Catarina e Francisca, sua filha. A generalidade desses prisioneiros logo confessaram suas culpas e, pelo menos 33 delas, lançaram denúncias de judaísmo sobre Catarina Henriques, muitas deles dizendo que era em sua casa que se reuniam para fazer cerimónias e jejuns judaicos. António Fernandes, por exemplo, acrescentou que Catarina Henriques, na páscoa, cozia bolos de pão asmo e os mandava a casa de alguns amigos e correligionários, “por guarda da lei de Moisés”. Nicolau de Oliveira, natural de Madrid, morador no Porto, filho de Luís Oliveira, natural de Vila Flor testemunhou o seguinte:
- Disse que, haverá 5 anos, em Vila Nova, no Porto, em um quintal de Catarina Henriques, cristã-nova de Torre de Moncorvo e moradora no Porto, se achou com ela e com Francisco Brandão, de Torre de Moncorvo, cristão-novo, mercador, não sabe onde era morador porque naquele tempo tinha sido reconciliado no auto da fé de Coimbra, por ocasião de o dito Francisco Brandão pedir a Catarina Henriques que deixasse ficar em sua companhia uma filha sua, enquanto ele dali passava a Castela e, estando juntos, se declararam.
Metida no cárcere, em companhia de Maria Cardosa e Maria Ledesma, suas conhecidas e amigas do Porto, as três mulheres meteram-se ali a fazer jejuns judaicos, certamente não imaginando que eram vigiadas.
Também Catarina confessou que judaizava e que fora ensinada 20 anos atrás, no Porto, por sua comadre Ana Gomes de Morais, que depois fora para Madrid que, entre outras, lhe ensinou a seguinte oração, que devia rezar no primeiro dia de lua nova de cada mês: 
- Lua nova valerosa / pela pubeira que tendes / me alcançai de Deus / tal e tal coisa que lhe peço.
O que mais impressiona no processo é a descrição dos gestos de amor de Catarina com o marido. A criada que a denunciou disse que quando ele chegava a casa, a mulher vinha para ele “salmodiando, dizendo: meu escolhido na limpeza, meu limpo e outros nomes”. E quando saía, rezava ao Deus do céu, dizendo: “guardai-mo, trazei-mo e livrai-mo”. A própria filha “chamava a dita criada e lhe mostrava o modo como seu pai estava com sua mãe”. 
Não vamos falar dos interrogatórios e “exames da crença” a que foi submetida pelos inquisidores, dizendo ela que rezava orações cristãs em honra da lei de Moisés. Aliás, era mesmo dentro da igreja cristã que ela e outras se declaravam judias. Muitos outros factos poderíamos apontar em prova da sua forma de viver marrana. Por outro lado, as contraditas que apresentou revelam um quadro bem colorido da sociedade mercantil do Porto naquele tempo.
Ao fim de quase dois anos de cárcere, em 16.3.1660, foi-lhe comunicado que estava condenada a ser relaxada. Vomitou confissões, nomeadamente os muitos jejuns judaicos feitos pela alma de seu marido, falecido por janeiro de 1656. Tais confissões não satisfizeram os inquisidores que, em 22 de maio seguinte, confirmaram a sentença de morte, nos seguintes termos:
- E depois das confissões, a sentença não foi alterada, porque a ré não denunciou a sua filha Francisca Vaz, nem declarou os jejuns que fez no cárcere, que eram os principais fundamentos do dito assento.
Saberia a Catarina que a filha falecera em 12.11.1658, poucos meses depois de dar entrada nas masmorras da inquisição? A propósito, refira-se que o seu processo só foi despachado 25 anos depois, no auto da fé de 21.2.1683! Veja-se o teor da sentença: 
- Confisco de bens, absolvida na forma de direito, sepultura eclesiástica, ofertar a Deus por sua alma os sacrifícios e sufrágios da igreja. (3)

 

Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 3645, de António Mendes de Almeida, apresentado em 1667, casado em segundas núpcias com Ana Mendes de Brito.
2-IDEM, pº 7575, de Catarina Henriques.
3-IDEM, pº 1860, de Francisca Vaz, falecida aos 23 anos de idade.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Pedro Henriques de Guevara (n. Torre de Moncorvo)

Fernão Mendes Pinto foi o mais famoso aventureiro e explorador português, que no século de quinhentos andou pelo Oriente. Deixou-nos um relato fantástico das suas aventuras e a sua “Peregrinação” tornou-se a obra exemplar da literatura portuguesa de viagens.

Aventureiro também e explorador, foi um cristão-novo de Torre de Moncorvo, chamado Pedro Henriques de Guevara. O sobrenome não é da família e tê-lo-á ganho depois que se foi para as Índias de Castela.

Guevara não deixou livro escrito a relatar as aventuras e os itinerários seguidos pelo Oriente, como o Mendes Pinto, ou pelo Ocidente como o Che Guevara. Esses relatos e notícias desses itinerários foram escritos por diversos comissários e familiares da inquisição que lhe seguiam os passos. Deu que fazer aos inquisidores do México, de Toledo, de Goa e de Lisboa que acabaram por concluir que “não constava coisa bastante para haver de ser preso”.

Não conhecemos os papéis que possa haver nos tribunais do México e de Toledo, mas tão só os que vieram remetidos do tribunal de Goa para Lisboa e que serviram de base à elaboração deste texto.(1) É provável que existam outros, já que do México e Toledo chegariam as denúncias contra ele e a consequente ordem de prisão, que os familiares e comissários da inquisição de Goa não conseguiram executar, como se verá. Por agora vamos até à Torre de Moncorvo, em busca das suas raízes.

Terá o Guevara nascido por volta de 1600. O seu pai chamou-se Luís Vaz Henriques, o alto, de alcunha, rendeiro de profissão. Rendeiro também foi o avô paterno, Francisco Vaz, o frade, de alcunha, casado com Catarina Henriques, irmã de Pedro Henriques Cavaleiro. A história da família na inquisição começou em 1556, com a prisão de Luís Vaz, o bisavô de Guevara.

Isabel da Penha se chamou a mãe. Era natural de Vila Franca de Lampaças, filha de Álvaro Cardoso e Mícia de Penha. Nesta família entronca Diogo Henriques Cardoso, grande mercador Portuense que casou com uma filha de Vasco Pires Isidro. E também Miguel Cardoso, o administrador da Companhia de Comércio do Brasil, no Rio de Janeiro. A história desta família na inquisição remonta aos anos de 1597, com a prisão de Belchior Álvares.

A respeito desta família, fora da Sefarad, importa referir às andanças do Cavaleiro por terras de África. Tal como um tio-avô paterno (Duarte Ribeiro) que morreu nas Índias e os tios paternos Pedro de Oliveira e Gabriel Ribeiro que se foram para as Índias de Castela. E foi esse também o caminho seguido por Pedro Henriques de Guevara e seu irmão Félix Henriques. Deste não sabemos mais nada.

Dos caminhos seguidos por Pedro Guevara em terras Americanas, pouco sabemos nem temos notícias do seu modo de vida e das suas aventuras. É possível que tenha andado por terras do Perú, já que um dos seus perseguidores, o dominicano frei Gaspar de Carvalho escreveu de Manila:

— O Perú o tinham entregue os judeus ao grande Turco; prenderam mais de 400 no México; estão os troncos ocupados e presos muitos em casas particulares. Pedro Henriques de Guevara, esse vizinho de VP, (Vale Paraíso?) é grande judeu. Veio aqui um familiar do santo ofício a prendê-lo e sequestrar-lhe o fato, por ordem do México. Todo o dinheiro que tem é alheio, até os moços. Vai ordem para prendê-lo e eu levo outra via, para se acaso se escapar…

Passando ou não pelo Perú, participando ou não na “Grande Cumplicidade”,(2) Pedro Guevara andou pelo México e dali fugiu para não ser preso. A fuga terá sido por Acapulco em direção à cidade de Manila, nas Filipinas.

De imediato correu a notícia e, por todo o Oriente, comissários e familiares da inquisição foram mobilizados, tal como os frades de S. Domingos, verdadeiros guardiões da pureza da fé. Atrás dele, com ordem de prisão passada pelo tribunal de Toledo, terá ido também o alferes Benito de Loyola, familiar do santo ofício que, em Manila teria todo o apoio do comissário local, frei Domingos Gonçalves da ordem de S. Domingos.

Não encontrando o fugitivo, dirigiu-se a Macáçar, nas ilhas Celebes, Indonésia, por lhe constar que ali estaria. Corria o mês de Abril de 1645 e ele não estava em Macáçar, Mas encontrava-se ali, um tal Gonçalo de Lima, acabado de chegar do Camboja e lá estivera com o “capitão” Pedro Guevara. Contou que dois dias antes de Guevara deixar o Camboja e rumar a Macau, lhe roubaram uma escrivaninha. E, depois de muito a procurar e não a encontrando, deixou ordem ao mesmo Gonçalo de Lima que, por qualquer modo, a recuperasse, que ele pagaria todos os gastos. A escrivaninha acabou por aparecer em casa de uma tal Mónica Fernandes, encontrada por um Tomé de Caminha que no Camboja vivia casado e a resgatou, comprando-a e entregando-a a Gonçalo de Lima. As fechaduras estavam rebentadas e, para além de uma gaveta cheia de papéis, havia um espelho, “umas meias velhas e outras ninharias”.

A escrivaninha foi de imediato sequestrada, com os papéis, de tudo se lavrando uma ata que foi assinada pelo vigário da igreja local, padre António Fernandes, pelo familiar Benito Loyola e pelo escrivão.

Os papéis terão sido levados para Manila e entregues ao comissário local da inquisição que, por sua vez, os remeteu para o comissário da inquisição de Macau, padre Manuel Fernandes, com pedido de prisão de Pedro Henriques de Guevara.

Obviamente que era uma grande oportunidade para este comissário mostrar serviço e brilhar dentro da estrutura inquisitorial. Havia, porém, um pequeno obstáculo: não tinha mandado formal dado pelas vias competentes para executar a prisão, uma vez que Macau era território dependente da inquisição de Goa e não da inquisição do México ou de Toledo.

Na verdade andava o Guevara comerciando em Macau, tendo chegado em setembro de 1644 no navio de Gaspar Borges. Bem gostaria o comissário de lhe deitar a mão mas, foi aconselhado pelos dominicanos que o não fizesse… Desdobrou-se então a escrever cartas para a inquisição de Goa, cartas que enviou por todos os barcos que, depois da monção navegavam de Macau para a Índia. Veja-se o ânimo do comissário, expresso numa dessas cartas e sabendo que o “capitão-mercador” viaja para a Índia, em liberdade:

— Muito me remorde a consciência ir este Guevara no navio de Cochim onde se presume que vá a Goa, como dizem; receio que vá para Cochim de Cima e para outros judeus que ali há. E VVMMM o remedeiem e mandem o que for serviço de Deus. Eu, esta mesma ordem mando no mesmo navio e nas vias que faço à mesa do santo ofício com os papéis feitos. E no galeão de António Fialho Ferreira, para que, se lá chegar primeiro, estejam VVMM de aviso. Este Pedro Henriques é rico e leva cabedal que passa de 15 ou 16 mil pardaus empregados… Macau, 3.12.1645.

Também o comissário da inquisição em Manila escreveu cartas para o tribunal de Goa cujos membros reuniram em mesa, em 29.4.1646. Porém, o homem que eles por unanimidade, entenderam devia ser preso, tinha embarcado já para Lisboa.

Decidiram então escrever para a inquisição de Lisboa e para ela enviar todos os papéis. Em simultâneo, mandaram passar ordem ao juiz do fisco na cidade de Goa “para fazer inventário e sequestro dos bens e fazenda que tem nesta cidade o dito Pedro Henriques, nos navios Conceição e Santa Cruz”.

Andaria o Guevara por Lisboa, quando o tribunal desta cidade reuniu em mesa e decidiu:

— Foram vistos na mesa do santo ofício os papéis juntos (…) e pareceu a todos os votos que neles não constava coisa bastante para haver de ser preso, porque nem há neles culpas de judaísmo nem a certeza que esteja decretado à prisão em nenhuma inquisição, por serem os ditos papéis pouco jurídicos, sem se reconhecerem por tribunal algum. De mais da dificuldade ou impossibilidade que há em se comunicarem as inquisições de Portugal com as de Castela… Lisboa, 17 de janeiro de 1650.

Possivelmente encetou então o Guevara uma nova luta a fim de reaver as fazendas e os bens que a inquisição de Goa lhe sequestrou. Disso, porém, não temos qualquer notícia. A última informação que temos foi-nos dada por sua prima, Catarina Henriques, moradora no Porto, presa pela inquisição de Coimbra em 1658 dizendo que tinha um primo chamado “Pedro de Guevara que também embarcou para as Índias de Castela e depois esteve em Portugal e depois em Lisboa, não sabe em que rua ou bairro seja morador”.

 

Notas:

1 - Inq. Lisboa, pº 13643, de Pedro Henriques de Guevara.

2 - Por 1630, os Portugueses dominavam o comércio na capital do Perú, onde eram numerosos. Em 1635, a inquisição de Lima lançou uma vasta operação, prendendo muitos deles, acusados de judaizarem. A operação culminou no auto da fé de 2.1.1639 em que foram sentenciados 72 prisioneiros, 11 dos quais queimados na fogueira. Tal operação ganhou o nome de “Grande Cumplicidade”. WACHTEL, Nathan – A Fé da Lembrança Labirintos Marranos, p. 85, ed. Caminho, 2003.