António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Vasco Fernandes, o Pataranha (n. Vila Flor, c. 1485)

Domingo de Páscoa de 1497 aconteceu em Portugal o mais terrível ato de religiocídio. Com efeito, por ordem do rei D. Manuel, as crianças judias foram tiradas aos pais e entregues a famílias cristãs que as levaram às igrejas a batizar e com elas ficaram para as educar. Não cabe aqui descrever as violências dos carrascos, os gritos dos inocentes e os clamores desesperados dos pais. Bispos como D. Fernando Coutinho ou D. Jerónimo Osório condenaram vivamente o ato e declaram-se pela nulidade do batismo forçado.
Vasco Fernandes foi uma das crianças assim batizadas em Vila Flor. Tinha 12 anos “quando tomaram os meninos” aos judeus e o levaram à igreja de S. Bartolomeu, como ele contaria mais tarde. E não foi o único dos irmãos a ser levado à pia batismal. A irmã Violante, 7 anos mais nova, dirá também que não sabia o seu nome de judia “porque era muito pequena quando a levaram de casa de uma ama a batizar”. (1) E certamente levaram os outros irmãos, como levariam todas as crianças judias.
Também não sabemos se o pai de Vasco e Violante era cristão ou judeu e se foi igualmente “obrigado” a receber o batismo e um nome cristão. Sabemos que se chamava Vasco Fernandes, como o filho, que era mercador e que veio a falecer na década de 1540. A mãe é que não foi batizada pois faleceu judia, no tempo em que ainda havia judeus em Portugal. E porque os nomes judeus também foram proibidos, ela ficaria anónima para sempre. Nem sequer podemos recordar o seu nome e resgatar a sua lembrança! 
Não fica muito claro qual seria a profissão de Vasco Fernandes. Ele apresentava-se como lavrador mas um seu denunciante afirmou que ele “ganhava a vida com uma besta”. Era natural e morador em Vila Flor, terra onde casou com Filipa Rodrigues. O casal teria pelo menos 3 filhos: António, Isabel e Inês, aquele ainda solteiro e estas casadas, quando o Pataranha foi preso, em Maio de 1558, contando para cima de 70 anos.
Apenas uma denúncia serviu de base à prisão de Vasco Fernandes. Foi feita por Álvaro Rodrigues, o Lamegão, dizendo que ele guardava os sábados como dias de descanso semanal e não os domingos, vestindo naqueles dias camisas lavadas.
Conduzido à inquisição de Lisboa foi metido em uma cela que estava por baixo da que era ocupada por um António de Gouveia, cristão-velho, clérigo de missa e curandeiro, natural dos Açores e que viajara por Espanha, Itália, Alemanha e Brasil e fora preso por superstição e feitiçaria. (2) Obviamente que se insinuava como “judeu” para conquistar a confiança dos companheiros “judeus”. E assim terá arrancado a Vasco Fernandes declarações muito comprometedoras que depois foi contar aos inquisidores. E estas foram culpas acrescentadas ao Pataranha. Vejamos o seu teor:
Que Jesus Cristo não era o Messias e que este ainda não tinha vindo, que viria entre 1560 e 1570. E antes, Roma seria destruída pela terceira vez. E que em Lisboa ouviram os de Vila Flor dizer que “vinham 100 mil judeus pelo mar, das 10 tribos que estavam escondidas, para destruir Portugal, porque andavam cá com esta inquisição”. (3)
Que ele acreditava nisso e “que tinha isso tão metido na cabeça que lho não tirariam com marras nem com picões” e que em Vila Flor havia 70 ou 80 casais que pensavam como ele e como ele esperavam a vinda do Messias.
Que louvava o inglês que, diante do rei, tirou a hóstia das mãos do padre que rezava a missa e a desfez em pedaços e atirou ao chão, acrescentando que “aquilo lhe parecia bom sinal que Deus dera uma bofetada a El-Rey”. (4)
Que ele, a mulher e os filhos guardavam o sábado como dia santo e que, em Vila Flor, ele ia a casa de João Rodrigues, que era casado com uma sobrinha sua, a ouvir ler a Bíblia, uma bíblia que trouxera de Salamanca.
Aliás, do processo (5) de Vasco Fernandes ressalta uma forte ligação entre estes dois homens. E tendo o João Rodrigues sido preso um ano antes, (6) é significativo que Vasco tenha mudado a residência para Castro Vicente, distante mais de 6 léguas de Vila Flor.
Significativo também Vasco Fernandes começou por se declarar inocente, suspeitando que fora preso por denúncias falsas, feitas por João Rodrigues, em ato de vingança. Explicou que devendo dinheiro a João, foi a sua casa para lhe pagar. E então o viu com um livro na mão, que era uma bíblia e que, lendo-lhe uma passagem, o quis doutrinar e convencer que o Messias ainda não tinha vindo e que devia guardar-se o sábado e não o domingo como dia de descanso semanal. E não aceitando ele tal doutrina, antes se afirmando cristão, o outro “o nomeou com injúrias chamando-lhe velho, ruim e velho falso (…) e o dito João Rodrigues pôs as mãos nas barbas ameaçando-o que lho havia de pagar”.
A explicação até poderia ter alguma lógica mas os inquisidores estavam já informados pelo malsim do António Gouveia que Vasco iria fazer uma confissão nesse sentido, acusando apenas o João Rodrigues.
Outras explicações buscaria, na tentativa inglória de convencer os inquisidores da sua inocência. Como a de um João Pires, de Roios, que lhe contara sobre uma grande seca que houvera anos atrás em Vila Flor. E fizeram os cristãos muitas rezas e procissões pelas igrejas e capelas da vila pedindo a Deus que mandasse a chuva, mas nada conseguiram. E então disseram aos judeus que rogassem por água ao seu Deus. E os judeus foram para os campos a pedir água e, à noite, quando regressaram à vila, choveu em abundância. E concluindo o outro a sua narrativa, Vasco Fernandes lhe dissera: - Boa lei é a nossa, João Pires!
Obviamente que desta ingénua confissão de judaísmo, pedia agora desculpa. Tal como pedia desculpa de ter proferido uma praga ofensiva de Deus quando lhe mataram um filho e ele desabafou: - Não haverá Deus nos céus que me vingue deste cabrão que me matou meu filho?!
Das acusações já atrás se disse e não foi muito difícil ao defensor contestar a denúncia do Lamegão, a única que precedeu a sua prisão. Quanto às denúncias do espia do padre Gouveia, o procurador argumentou que não mereciam qualquer crédito. E nisso teve alguma ajuda do alcaide dos cárceres, Brício de Camelo. Com efeito, o Gouveia disse que quando o Vasco Fernandes lhe falara todas as coisas atrás referidas, estava junto dele o alcaide. Este, chamado a depor, prestou o seguinte testemunho, algo comprometedor para o réu:
- Disse que haveria 25 dias, estando uma noite falando o dito António Gouveia com o referido Vasco Fernandes (…) que estava numa casa em baixo do corredor novo, e falavam um com o outro na vinda do Messias e que o réu Vasco Fernandes falou algumas palavras em que dava a entender que o Messias não era vindo e não lhe lembra a forma delas, somente falaram em que Roma se havia de perder e outras palavras que não está lembrado. E ele declarante disse a António Gouveia que perguntasse a Vasco Fernandes os fundamentos em que se baseava para dizer que o messias não era vindo e que lhe respondeu que o tinha tão metido na cabeça que não lhe tirariam a ideia nem com marras nem com picões e que se calasse e não falasse naquelas coisas.
Ao cabo de mais de um ano de prisão, o defensor pedia a absolvição do réu, dizendo “que a sua prisão, trabalho e velhice lhe devia bastar” para castigo das leves culpas que poderia ter. Foi o processo analisado em mesa e pareceu à maioria dos votos que o réu fosse levado a tormento. Na casa do tormento foi levantado duas vezes e ele repetindo apenas que nada tinha a confessar. Acabou condenado a cárcere e hábito a arbítrio. No texto da sentença diz-se que a condenação não é maior por se “haver respeito à qualidade e defeito da dita prova”. A sentença foi lida no auto da fé realizado na Ribeira de Lisboa em 24 de Setembro de 1559 onde abjurou “de vehementi”.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Évora, pº 9678, de Violante Fernandes, presa em Janeiro de 1546, viúva de Diogo Pires. Entre outras coisas, Violante foi acusada de comemorar a Páscoa cozinhando pão ázimo para comer com alfaces montesinhas e de rezar o Shemá Israel e a oração de Baruch.
2-ANTT, inq. Lisboa pº 5158, de António Gouveia.
3-MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro – História da Inquisição Portuguesa, p. 63: - A partir do início da década de 60, a atenção do Tribunal dirigiu-se para o círculo de cristãos-novos que se reuniam em pequenos grupos, na Ribeira de Lisboa, para conversar do tempo do advento da “lei de Moisés” (…) Papel de relevo tinham os anciãos de origem castelhana, que transmitiam a memória da religião dos antepassados, sabiam falar e ler hebraico e possuíam profecias em antigos pergaminhos…
4-IDEM, pº 591, de Guilherme Cardinall. A cena teve lugar em 11.12.1552, na capela do Paço Real, estando presentes o rei D. João III e a rainha D. Catarina. Cardinall foi preso, acusado de luteranismo e queimado na fogueira.
5- IDEM, pº 7078, de Vasco Fernandes.
6-IDEM, pº 12463, de João Rodrigues.
 

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Filipa Nunes, estalajadeira em Vila Flor (n. c. 1509)

Filipa Nunes era casada com Álvaro Rodrigues e o casal viveu em Lamego, terra onde a família cresceu com o nascimento de 2 filhos e 3 filhas. Com a criação do tribunal da inquisição naquela cidade e a onda de prisões que se seguiu, a família abandonou a terra, à semelhança de muitas outras. (1) 
Não sabemos se a fuga foi antes ou depois de o filho e a filha mais velhos casarem em Vila Flor. Sabemos é que Filipa e Álvaro, abalaram para a Galiza (Pontevedra) levando os 3 filhos mais novos.
Também não temos a certeza sobre as razões da migração, se bem que pensemos ter sido o medo de serem presos pela inquisição. Álvaro Rodrigues, contudo, negava que essa fosse a razão da fuga, explicando que em Lamego “ veio a cair em muita pobreza tendo mulher e filhos e passava muito mal com pobreza, e por essa causa determinou ele réu ir viver à Galiza”. Há também quem diga que ele fugiu de Lamego por causa de roubar nos pesos da carne que vendia.
Estavam na Galiza explorando “uma casa de vender vinho”, quando souberam do perdão geral decretado pelo papa. E também por essa altura terão recebido a notícia de que o seu genro Manuel Martins fora assassinado. E com esta notícia foi o convite de Antónia Nunes, irmã de Filipa, residente em Santa Comba da Vilariça, casada com Francisco Fernandes, para regressarem, que ela os ajudaria em suas necessidades.
E terá sido assim que Filipa e Álvaro se tornaram estalajadeiros em Vila Flor, ao findar a década de 1540, gerindo a estalagem que fora do malogrado Manuel Martins. E como tinham vindo de Lamego, passaram a ser nomeados pela alcunha de Lamegões.
O braço tentacular da inquisição chegou também a Vila Flor, em Junho de 1556 com a visitação do vigário-geral da comarca de Moncorvo, o licenciado Aleixo Dias Falcão, a mando do arcebispo de Braga, Dom Frei Baltasar Limpo.
Proclamados os éditos da visitação, apresentou-se a depor o padre Amaro Gil. Começou por dizer que, constando-lhe que os Lamegões tinham vindo fugidos da inquisição de Lamego, ele testemunha andou sempre com o olho neles e que os via aos sábados vestidos com camisas lavadas e sem trabalhar, levantando-se mais tarde que nos outros dias. Acrescentou que na quaresma passada foi algumas vezes à estalagem e que por duas vezes os encontrou cozinhando carne. E disse mais que Ana Gonçalves, achara em uma sexta-feira no lume “uma espetada de carne a assar”. (2)
Obviamente que a moça foi chamada a testemunhar. E confirmou que “vira estar no fogo uma espetada de frissura a assar”.
E estes foram os crimes de judaísmo que levaram Filipa e Álvaro a ser presos pelo vigário Aleixo Falcão. O destino foi o tribunal da inquisição de Lisboa onde Filipa Nunes foi entregue em 10 de Abril de 1557. (3)
Álvaro Lamegão teve por companheiro de cela um cristão-velho, João Fernandes, preso por bigamia mas que se apresentava como “judeu” e se chamava António Nunes, desempenhando o papel de espia. E este foi contar aos inquisidores que o Lamegão dissera “que não havia de dizer nada ainda que lhe arrancassem a língua” e que também “disse que o bispo de Braga era homem mau porque quando era bispo do Porto queimou um cristão-novo que morrera mártir”. Para além disso, o mesmo espia escreveu 4 bilhetes a pedido de Álvaro e este os meteu no cesto da comida para serem entregues a seu cunhado Luís Cardoso, (4) que morava em Lisboa, o que certamente não terá acontecido, antes seriam apreendidos na cadeia. E estas foram culpas acrescentadas no processo.
Obviamente que, vendo-se assim encurralado, não foi preciso “arrancar-lhe a língua pelo toutiço” para entrar de confessar suas culpas. Foi, porém uma confissão muito diminuta e por isso o puseram a tormento. Então sim, confessou tudo e denunciou mulher e filhas, se bem que receando que a mulher estivesse morta.
Mas Filipa Nunes estava viva e mantinha-se negativa. Explicava que, sendo estalajadeira, não podia deixar de trabalhar ao sábado e que, se alguma vez, viram assar carne em dia proibido pela igreja, isso ficaria a dever-se a algum hóspede que a comprou fora da estalagem e ali a meteu no fogo a assar. (5) De contrário, dizia-se muito boa cristã e apresentava testemunhas de crédito, segundo pensava, gente da mais alta nobreza cristã-velha como era o caso de D. Catarina de Almendra que, por vezes, até lhe emprestava o manto para ir à igreja. E também um padre em quem depositaria plena confiança. E foi exatamente este padre, Amaro Gil, e outras testemunhas por ela apresentadas que acrescentaram razões para o promotor da justiça pedir a condenação, nos seguintes termos:
- Por as suas testemunhas a culparem de má e de ir mal à missa e conversar com cristãos-novos e se esconder quando se faziam prisões na terra por este santo ofício (…) E também muito faz o marido da ré por ser judeu e confitente neste santo ofício (…) e assim a mãe da ré e todas as suas irmãs que todas foram presas neste santo ofício todas foram achadas de judias e guardarem o sábado e a mãe tão fina que guardava no cárcere judaizando estando presa…
Contra todas as evidências, a Lamegoa mantinha-se firme, negando todas as acusações e não denunciando ninguém. Até que “por ela não querer confessar, mandaram vir perante si Álvaro Rodrigues seu marido para que lhe dissesse no rosto o que dela sabia. E ele lhe disse que desencarregasse a sua consciência e dissesse como guardara alguns sábados e como jejuara com ele 3 ou 4 jejuns dos judeus e que a ensinara uma Filipa Fernandes, cristã-nova, mulher de António Fernandes, alfaiate”.
Então sim, Filipa Nunes admitiu ter judaizado. Mas nada mais adiantou para além do que o marido pusera a descoberto. E tudo fez para encobrir as filhas. E só as denunciou depois de ter sido posta a tormento.
Conforme se disse foi larga a colheita da inquisição na família de Filipa Nunes, dispersa por muitas terras de Portugal e da diáspora. E sobre ela muito mais podíamos dizer, não fora o espaço limitado do jornal. Vamos tão só espreitar o processo de seu cunhado Francisco Fernandes, almocreve, casado com sua irmã Antónia Nunes, a Reverenda, (6) de alcunha, moradores em Santa Comba da Vilariça e dele retirar o excerto seguinte:
- Disse que haverá 6 anos veio ter a sua casa um Marcos Cardoso, cristão-novo, que havia muitos anos que era ido por esse mundo, sem saberem parte dele e primeiro esteve preso em Évora. (7) E vinha vestido de como romeiro, com vestido pardo e cordão e um bordão e perguntando-lhe ele confessante por sua vida e onde estivera tantos anos, o dito marcos Cardoso lhe disse que era judeu e que estivera na Turquia, em uma cidade que se chama Salónica, onde casara com uma judia; dizendo-lhe mais que s judeus viviam lá na sua lei e os cristãos na sua, cada um como queria. E que pagavam o tributo ao Turco. E porque os tributos da dita cidade eram grandes e ele não se atrever a pagá-los, se partira para outra cidade e ia por mar. E pelo caminho os cativaram os de Cavaleiros de Malta e os puseram a resgate a 100 cruzados cada um. E por ele não ter dinheiro, deixara a mulher e os filhos em reféns e vinha (…) a pedir para ajuntar dinheiro para os resgatar. E no tempo que estivera em sua casa, não comia coisa alguma que não fosse guisada pela sua mão e guardava os sábados e disse a ele confessante que os guardasse e tivesse crença na lei de Moisés e nela esperasse de se salvar e fizesse jejuns sem comer senão à noite, como faziam os judeus. E ele confessante, pelo que lhe disse o dito Marcos Cardoso, do dito tempo a esta parte se apartara da lei de Cristo (…) E que Marcos Cardoso é falecido e mandara repartir o dinheiro que tinha por suas irmãs. 

NOTAS E BIBLIOGRAFIA
1- TAVARES, Maria José Ferro – Los Judíos en Portugal, edición Maphre, pp. 212 e 213.
2-Ana Gonçalves, cristã-velha, moça solteira, era natural de Matosinhos e tinha um filho natural de Gaspar Martins, irmão de Manuel Martins.
3-ANTT, inq. Lisboa pº 1581, de Álvaro Rodrigues; pº 7219, de Filipa Nunes.
4-IDEM, pº 3245, de Luís Cardoso.
5-Pº 7219, tif 27: - A ré era estalajadeira em Vila Flor e tinha estalagem de contínuo em que se agasalhava toda a pessoa que por ali passava, assim portugueses como castelhanos e todas as outras nações (…) os quais castelhanos muitas vezes, aos sábados e outros muitos dias assavam espetadas de morcelas e de linguiças e de chouriças que traziam consigo e fressura que eles compravam fora da casa da ré…
6-ANTT, inq. Lisboa, pº 8013, de Francisco Fernandes; inq. Coimbra, pº 402, de Antónia Nunes, a Reverenda.
7-IDEM, inq. Évora, pº 9161, de Marcos Cardoso. TAVARES, maria José Ferro – Los Judíos en Portugal, edición Maphre, p. 340, fala sobre a correspondência que existia “entre los que partian y los que se quedaban como el hombre de Salonica judío natural de Vila Flor “correo” y portador delas notícias de los que abandonaban el reino e algunos de ellos “passados” por él”.
 

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Lopo Rodrigues,vereador da câmara (n. Vila Flor c. 1518)

Lopo Rodrigues nasceu em Vila Flor pelo ano de 1518. Seus pais, Jerónimo Rodrigues e Filipa Lopes pertenceriam à geração dos “batizados em pé”.
Seria um homem abonado de recursos financeiros, pertencendo à classe dos rendeiros. Explorava uma vinha e trazia arrematada a cobrança das rendas de Santa Comba da Vilariça e de Vilarelhos, com tulha instalada em cada uma destas localidades.
E porque era homem rico e conceituado, foi por algumas vezes “eleito” vereador da câmara de Vila Flor. E serviu também o cargo de almotacé, competindo-lhe tratar do policiamento da vila, da limpeza das ruas, da taxação de pesos e medidas e da regulação do preço dos alimentos. A este propósito e tendo em conta os documentos até hoje apresentados, pensamos que a lei de segregação dos cristãos-novos proibindo-os de exercer estes cargos municipais terá exatamente começado em Vila Flor, a título experimental, como hoje se diz. Posteriormente seria estendida a todo o país. (1) O mesmo se diga com a lei da “limpeza de sangue” exigida para servir em qualquer cargo, para entrar em qualquer ordem religiosa, ou na universidade e até mesmo para entrar num barco e viajar para o estrangeiro. (2) Pensamos também que neste processo de escolha de Vila Flor para a aplicação de tais medidas terá sido uma consequência da nomeação do inquisidor Diogo de Sousa para o tribunal de Coimbra em 1571 e da tomada de posse do cargo de abade de Vila Flor do inquisidor de Évora Jerónimo de Sousa.
O facto de Vila Flor ser então escolhida como campo experimental de novas leis antijudaicas, significará que a força da gente da nação era ali muito grande e estava sob vigilância apertada da inquisição. E sendo a terra da circunscrição do arcebispado de Braga, então governado pelo bispo/inquisidor Baltasar Limpo, viu-se assolada por uma vaga de prisões.
No meio do turbilhão foi apanhado um Álvaro Rodrigues, Lamegão de alcunha, estalajadeiro em Vila Flor. (3) E estando preso em Lisboa, contou que, 6 anos atrás, vindo de Santa Comba para Vila Flor, em companhia de Lopo Rodrigues, este lhe disse que andava inquieto e tinha medo de ser preso pois que, em Santa Comba, em presença de João Novo e outro lavrador cujo nome não recordava, ele dissera que Nossa Senhora não era virgem. E tinha medo que João Novo e o outro o denunciassem.
Foi quanto bastou para prenderem também Lopo Rodrigues, na inquisição de Lisboa, em 24 de Maio de 1558. (4)
Aliás, ele tinha já uma curta experiência destas coisas pois que, antes de 1547 fora metido na cadeia de Vila Flor, por ordem do vigário geral de Vila Real que, em nome e por ordem do arcebispo de Braga visitara a terra. O processo decorreu em Braga e não fica claro se ele foi libertado por ser declarado inocente ou em virtude do perdão geral então decretado pelo papa.
Antes de prosseguirmos com o processo, vejamos a situação familiar de Lopo. O pai seria já falecido e a mãe encontrava-se, há 2 anos, a morar na Galiza, com o filho Afonso Rodrigues que ali estava casado e a morar em Vila Ávila (ou Orense?). Tinha mais 3 irmãos, a morar em Vila Flor e uma irmã, casada na mesma Vila Flor e que virá também a conhecer as cadeias da inquisição, anos depois. (5)
Do resto da família, tios e primos, repartiam-se entre Vila Flor, Mirandela, Vila Real, Murça e Galiza, alguns deles seriam também hospedados nas masmorras do santo ofício. Ele era casado com Inês Dias e o casal tinha 7 filhos.
Metido na cadeia, Lopo Rodrigues organizou a sua defesa provando que era bom cristão, membro das confrarias de Nª Senhora do Toural e do Santíssimo Sacramento e dava esmolas regulares aos mamposteiros (6) do convento dos Trinitários da vizinha freguesia da Lousa e do convento da Graça em Lisboa. E era tão bom cristão que o abade e os confrades do Santíssimo Sacramento de Vila Flor o encarregaram de ir a Espanha comprar um pálio para a igreja. E nessa compra ele entrou ainda com uma avultada quantia: 50 mil réis. Provou também que era um cidadão exemplar que acompanhava sempre “com os homens honrados e de bons feitos”. Aliás, ninguém o acusara de qualquer falta no seu comportamento religioso e sabia bem a doutrina.
Embora os réus não fossem informados sobre as testemunhas de acusação, Lopo Rodrigues facilmente chegaria ao Lamegão, dado o seu historial “judeu” e o facto de ter sido preso anteriormente. E mais facilmente ainda, conseguiu provar que o Lamegão o denunciara por ódio e vingança. E mostrou que, ao contrário dele, o denunciante “era tido por mau cristão por toda a Vila Flor (…) homem de mau viver e falsificador de pesos e medidas de seu ofício de carniceiro, que usou na cidade de Lamego”, de onde fugiu para o reino da Galiza. Além de que era um homem “que se tomava do vinho” muitas vezes.
E contou que, de uma ocasião, na qualidade de vereador, o penhorou por dívida de dois mil réis. Acrescentou que, no ano anterior, em dia da festa de Corpo de Deus, sendo almotacé, lhe aplicou uma multa por não ter a rua varrida à porta da sua estalagem.
Referiu que trazendo ele arrendada a sanjoaneira (7) da comenda de Santa Comba, a trespassou por 100 mil réis/ano a Francisco Fernandes, cunhado do Lamegão “e em obras mais que irmãos”, resultando avultados prejuízos, não conseguindo cobrar tal montante, do que ficaram seus inimigos, dizendo que Lopo o tinha enganado e que havia de pagar.
Falou também de um acontecimento que, anos antes, abalou Vila Flor e que foi o assassínio de Manuel Martins, genro do Lamegão. O matador foi Simão Rodrigues, primo de Lopo. E depois de o matar, encerrou-se na igreja matriz de Vila Flor, lugar onde não podia ser preso. E quem o ajudou nesse “esconderijo” foi o mesmo Lopo, que também o ajudou a fugir para o couto de homiziados de Bragança onde se encontrava a viver, em paz e sossego, com a sua família.
Claro que os inquisidores mandaram o vigário geral de Torre de Moncorvo, Pero Fernandes de Lima, (8) fazer diligências em Vila Flor, sendo ouvidas as testemunhas indicadas por Lopo Rodrigues, as quais confirmaram todos os factos. O próprio João Novo, lavrador de Santa Comba, declarou que não ouvira nunca o réu falar da virgindade de Nossa Senhora e nada comentara com o Lamegão.
Claro que, vistas as provas, a sentença dos inquisidores não podia ser outra senão a absolvição do réu, e ditada nos seguintes termos:
- A pena é o tempo em que esteve preso e vá solto e pague as custas de seu livramento, porém o admoestam muito que procure sempre de viver como verdadeiro cristão, no coração e nas obras.

NOTAS:
1-Alvará de D. Sebastião de 1561 proibindo os cristãos-novos de Vila Flor de servirem em cargos públicos – MORAIS, Cristiano de, Cronologia Histórica de Vila Flor 1286-1986, p. 10.
2-Alvará de 1574, visando os cristãos-novos de Vila Flor – ANDRADE e GUIMARÃES, Caminhos Nordestinos de Judeus e Marranos, in: jornal Terra Quente de 15.12.1999. MEA, Elvira Cunha de Azevedo, A Inquisição de Coimbra, p. 177: - Em 1572 um Breve nega aos cristãos-novos acesso ao hábito de Cristo, logo seguido da provisão de 1574 em que se determina a impossibilidade de conversos se empregarem na câmara de Vila Flor. TAVARES, Maria José Ferro, Los Judíos en Portugal, p. 355: - Cronologia. 1574 Exclusión de los cristianos nuevos de la eleccion para los cargos de la cámara de Vila Flor.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 1581, de Álvaro Rodrigues, lamegão.
4-IDEM, pº 2175, de Lopo Rodrigues.
5-IDEM, inq. Coimbra, pº 8377. De Isabel jerónima, casada com Diogo Dias;
6-Os mamposteiros eram pessoas que nas diferentes terras estavam nomeadas para recolher esmolas para resgatar os cristãos que se encontravam prisioneiros dos mouros ou dos turcos.
7-Sanjoaneira porque se iniciava e terminava em dia de S. João.ANTT, inq. Coimbra, pº 8013, de Francisco Fernandes.
8-O vigário Pero Fernandes de Lima sucedeu no cargo ao licenciado Aleixo Dias Falcão que em 15.3.1560 foi instalar o tribunal da inquisição de Goa. Um e outro eram homens de confiança do bispo/inquisidor Baltasar Limpo.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS Cristóvão Lopes (n. Chaves c. 1568 – depois de 1624)

Cristóvão Lopes nasceu em Chaves por 1568, no seio de uma família da burguesia, sendo filho do licenciado Francisco Manuel e neto do médico João Lopes “pessoas que tiveram o primeiro lugar na vila de Chaves entre os homens da sua qualidade”. Ele enveredou pelo comércio e, sendo ainda solteiro, mudou a residência para Caminha, acaso por ser melhor praça para os seus negócios de importação e exportação, como adiante veremos.
Em Caminha casou com Maria Nunes, filha de Simão Lopes “o maior e o mais honrado mercador que teve Entre Douro e Minho”. Naturalmente que, com tal casamento, Cristóvão se tornou “o mais rico mercador da terra” e breve estabeleceu a “sede” da empresa em “Viana de Caminha”, então um dos portos mais movimentados do país. Deste casamento nasceram dois filhos. Logo de seguida faleceu Maria Nunes.
Viúvo aos 40 anos, e sendo Cristóvão um “homem grande e bem figurado”, logo recebeu ofertas de bom casamento. Acabou por escolher uma viúva de um médico de Sua Majestade, que estava recolhida no convento de Monchique,  chamada Ângela Henriques, filha de um médico do Porto, irmã de outro médico, de um banqueiro, de um cónego e sobrinha  de 2 padres Jesuítas um dos quais, Henrique Henriques, foi  fundador do colégio de Goa. Ângela fora casada com o Dr. Francisco Machado e dele tinha 2 filhas (Inês e Lucrécia) e um filho, que estudava medicina na universidade de Coimbra.
Da família de Cristóvão Lopes, diremos que nela abundavam médicos e mercadores e que se repartia entre Chaves e Castela, muito em particular a cidade de Orense onde moravam 3 tios e uma irmã chamada Violante Fernandes, viúva de Manuel Correia, mãe de 2 filhas (Helena Lopes e Maria Lopes) e um filho chamado António Correia.
Em Chaves morava a irmã Isabel Lopes, casada com o licenciado Francisco Sanches. O casal não tinha filhos e, em 1616, falecendo Isabel, estabeleceu como herdeiro a seu irmão Cristóvão.
António Manuel  alias António Correia Chaves  se chamava um irmão, que em 1588, foi preso pela inquisição de Coimbra. (1) Concluído o processo, abalou de Chaves e foi fixar-se em Amesterdão onde se tornou um grande mercador. Solteiro, instava com o irmão que enviasse um dos seus filhos para a Holanda a aprender a língua e integrar-se no seu mundo empresarial. Cristóvão recusou e dizia recear “que lhe ensinassem lá a Avé Maria às avessas”. Em 1614, Manuel Correia Chaves faleceu deixando por herdeiro de sua grande fortuna o irmão Cristóvão. No testamento deixou também uma cláusula ordenando que depois de morto o circuncidassem e o enterrassem no cemitério dos judeus.
Voltemos a Viana de Caminha, a casa de Cristóvão e Ângela. Com eles moravam os 2 filhos de Cristóvão e da sua primeira mulher, assim como as duas filhas do primeiro casamento de Ângela. E moravam também António Correia e e Francisco Correia, filhos de sua irmã Violante Fernandes, que vieram de Orense para ser iniciados no negócio pelo tio que os embarcaria para o Brasil, como era de norma entre a “gente do trato”.
Aconteceu que António Correia se enamorou de Inês Machada e os dois jovens fugiram de casa dos tios. Foi um escândalo que meteu a família nas bocas do mundo. Cristóvão não perdoaria a traição e nem sequer deu entrada em sua casa à irmã e mãe do rapaz, que veio de Orense a pedir-lhe que tratasse de casar os moços.
Entretanto, também a Lucrécia estava em termos de casar. O tutor da rapariga era um tio materno e à família pertencia tratar do casamento. No entanto, confiaram a tarefa ao padrasto. Vejam como ele tratou o assunto:
- Para fazer boa obra à dita Lucrécia a casou com o licenciado Francisco Sanches, médico em Chaves, e ele réu lhe pagou o dote (…) que foi mil cruzados, a qual promessa dos mil cruzados ele réu fez, fiado na oferta que se lhe fez da parte dos contraditados, e feito o casamento e pago o dote sobredito, os contraditados fizeram escritura em que doavam a ele réu para pagamento do dito dote as legítimas da dita Lucrécia e de seu irmão Francisco Machado. E recebendo ele a dita escritura verificou que fora feita com dolo, fraude e engano (…) pois fizeram e ordenaram a dita escritura sem consentimento do juiz dos órfãos (…) mais para enganar que para obrigar.
Vejamos agora um pouco do mundo empresarial do “mais rico mercador da terra”. Antes de mais diga-se que tinha 4 moradas de casas e todas davam para um grande quintal, em Caminha. E tinha uma quinta agrícola em ponte de Lima, com uma vinha que dava 3 ou 4 pipas de vinho. Recebia também vários foros de propriedades agrícolas.
Em casa, em moedas de ouro, tinha uns 600 mil réis e em objetos de prata quase outro tanto, afora 8 diamantes e alguns anéis de ouro e pedras preciosas.
Grande mercador, não desprezava o comércio a retalho e mercadejava coisas tão diversas como pedras para equipar os moinhos, painéis de imagens de santos, espelhos dourados, pedras de afiar navalhas dos barbeiros, fontes de latão, peças de cambraia…
Mas o grosso do seu comércio situava-se ao nível da importação de açúcar e pau-brasil que enviava para os países nórdicos, certamente trabalhando em rede com o seu irmão, enquanto foi vivo.
Ao contrário, recebia tecidos e ferro das partes do Norte, mercadorias que vendia diretamente ou despachava para o Brasil e, em menor escala, para Angola, onde mandava comprar escravos. A relação de gente que lhe devia dinheiro é notável, nomeadamente em relação aos ferreiros da região do Alto Minho que ali aparecem nomeados.
O ano de 1618 foi terrível para os cristãos-novos, muito especialmente para a burguesia Portuense. E ali se viu enredada a família de Ângela Henriques, a começar pela mãe, e pelos irmãos, incluindo o cónego e as freiras, que todos foram presos pela inquisição de Coimbra. De seguida, foi também ela e o marido. (2)
Eram extremamente frágeis as acusações apresentadas contra Cristóvão e desde logo muito bem refutadas por ele, provando que foram motivadas por invejas e ódios. De contrário provou à saciedade que era um cristão exemplar e um verdadeiro “pai dos pobres”. E em casa e no caminho para o tribunal da inquisição, ele insistiu com a mulher para que nada escondesse, que contasse toda a verdade, “que não reparasse em pai nem mãe nem filha”, falando inclusivamente com o familiar que o levava preso, a dar tal recado à mulher. Uma testemunha disse mesmo que, ao saber da prisão dos cunhados, incitou a mulher a dirigir-se ao santo ofício a confessar suas culpas, se acaso as tinha e que aos cunhados chamava “cães, cachorros e perros”.
Aliás, o seu processo é bem elucidativo da fragilidade da acusação e ao longo das centenas de páginas quase nem se fala de culpas. Ao contrário, ressalta uma defesa bem fundamentada que se transforma num verdadeiro libelo contra os métodos e as pessoas da inquisição. Vejamos.
Desde logo queixa-se porque lhe venderam os bens ao desbarato, com prejuízo de mais de 800 mil réis só em ferro vendido em Viana, pois do que tinha enviado para vender no Brasil ainda não tinha informação mas receia ainda mais prejuízos pois “cuidam que é fazenda sem dono”.
Avisa que tem uma vinha nova e em dois anos podem dar cabo dela. Basta que a entregarem “ a alugadores que não querem mais que tirar-lhe vinho dois anos (…) e isto se faz com podá-la mal”.
Cristóvão acusa também o comissário da inquisição encarregado de fazer as acareações em Caminha. Receia que, por ódio e inveja distorça os depoimentos ou intimide as pessoas. Vejam as suas próprias palavras:
- Tem pejo no abade Francisco Lopes a tirar-lhe as suas testemunhas.
Mas a mais frontal acusação é dirigida ao próprio inquisidor Simão Barreto de Meneses que “foi sempre muito invejoso dos homens da vila que tinham negócio” e muito em especial dele “que não é natural de Caminha e por nela ter mais negócios que os filhos da terra”, nestes incluindo familiares do inquisidor. E apresenta factos concretos e testemunhados.
Um deles aconteceu com a chegada de um barco ao porto de Viana, carregado de açúcar e pau-brasil dirigido a Cristóvão, em que a família do inquisidor foi denunciar que a mercadoria era de contrabando, comprada à margem do contrato de el-Rei. Com base em tal denúncia, esteve o barco e a mercadoria embargada durante muito tempo, de que resultou grave prejuízo para o inocente mercador.
Outra maldade do inquisidor consistiu em meter num corredor a mulher e os parentes presos, de modo a que pudessem conversar uns com os outros e todos acertarem em culpá-lo. E pior ainda, conforme disse ao inquisidor P. S. Sampaio:
- Estando presa a sua mulher, falando com ela muitas vezes, lhe disse que desse em seu consorte o que ouvindo, a mulher dele se foi chorando para o cárcere queixando-se que a incitava a dar no seu marido.
Resta dizer que, ao cabo de 6 anos de cadeia, Cristóvão foi condenado em penitências espirituais e degredado por 4 anos para Idanha-a-Velha.

NOTAS:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 4187, de António Manuel, que em Amesterdão adotou o nome de António Correia Chaves.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 1418, de Cristóvão Lopes.
 

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Manuel da Costa (n. Bragança – f. Granada)

Manuel da Costa nasceu em Bragança, no primeiro quartel do século XVII, no seio de uma importante família de mercadores cristãos-novos. Cedo começou a viajar por Castela. Por 1635 casou em Torre de Moncorvo com sua parente Isabel da Costa e ali fixou residência. Continuou fazendo viagens de negócios para além da fronteira, e conhecia “todos os lugares grandes de Castela”. A situação alterou-se com a revolução de 1640 e o encerramento das fronteiras, motivado pela guerra entre os dois países.
A guerra, as dificuldades financeiras do governo, a política do rei D. João IV em desfavor da inquisição, fizeram os cristãos-novos assumir o compromisso de uma avultada contribuição monetária destinada sobretudo à compra de barcos para a “carreira do Brasil”. E para repartir esta contribuição foram nomeados, em cada comarca, os chamados “fintadores da bolsa”. Pois na comarca de Torre de Moncorvo, um dos fintadores nomeados foi exatamente o nosso biografado. Isso mostra como ele ocupava um lugar de destaque no seio da comunidade marrana da região. (1)
E no desempenho desta missão criou ele muitos inimigos, alguns deles bem poderosos e influentes. Um deles foi Domingos Lopes Bastos, homem muito rico, que se dizia cristão-velho e se preparava para assumir um cargo na governação. Porém, o nosso “fintador” teve notícia que ele tinha parte de cristão-novo, tal como sua mulher, Helena da Cruz. E então lançou-lhe a “finta” de 70 mil réis. Protestou Domingos, mas acabou por confessar que efetivamente tinha uma costela de judeu e pagaria os 70 mil réis mas às ocultas, debaixo de outro nome pois assim ficaria desacreditado e não entraria para o cargo na governação. Manuel da Costa não foi pelos ajustes…
Problema semelhante arranjou ele com Manuel Lopes, o tio bom, de alcunha, mercador de Viseu que, em Moncorvo morou algum tempo e preparava-se para abalar para Viseu levando uma cavalgadura e fazendas. Dizia-se também cristão-velho, mas o “fintador” tinha informação diferente e não o deixou partir sem pagar o “dinheiro da bolsa”.
Alvarenga e Montes eram nomes de duas das famílias mais nobres de Vila Flor, sem gota de sangue judeu – diziam eles. Vejam como o Costa se lhes refere:
- Disse que Manuel Alvarenga e Gregório Montes, de Vila Flor, são inimigos porque, sendo ele réu um dos fintadores da bolsa e sendo eles fintados para a bolsa, tiveram para si que ele réu os manifestava dizendo terem parte de cristãos-novos e sendo que eram cristãos-velhos, e que ele réu fizera muitas diligências para os descobrir e infamar. 
Prova também da influência e poder económico de Manuel da Costa é o facto de ele ter sido contratador do sabão, substituindo Francisco da Cunha, marido de sua cunhada Beatriz da Costa, (2) quando esta foi presa pela inquisição, em setembro de 1647 e aquele se abalou de Moncorvo.
Acrescentemos que Beatriz acabou condenada à fogueira e que a história da família Costa nas cadeias do santo ofício era já então mais longa que a linha do comboio. E por isso mesmo a mãe, os irmãos e muitos tios e primos de Manuel da Costa tinham fugido para Espanha e quase todos eles viviam em Granada onde tinham o monopólio da distribuição do sal. E quando chegava o “dia grande” do Kipur, a família reunia-se na celebração desta festa, a mais sagrada do calendário judaico. Vejam como ele próprio contou para os inquisidores:
- Disse que há 22 anos a esta parte, até ao levantamento do Reino, do qual tempo para cá deixou de ir a Castela, se achou muitas vezes com a sua mãe e a sua irmã Maria da Costa, agora casada em Granada com Luís da Costa, e com Leonor da Costa, também sua irmã agora casada em Granada com um mancebo de Trancoso, e com seu irmão Diogo Nunes, casado em Antequera com Catarina da Costa e são tratantes e estão ora juntos, ora separados, e faziam juntos o Kipur e outras cerimónias.
Como que respondendo ao apoio dos cristãos-novos ao governo do rei D. João IV, a inquisição lançou uma verdadeira “guerra” contra o rei. E promoveu autênticas campanhas de extermínio da “gente da nação” em algumas terras, nomeadamente em Trás-os-Montes. Foi o caso de Torre de Moncorvo onde, em 1641, o comissário Pedro Saraiva de Vasconcelos, despachava a seguinte informação para o Conselho Geral:
- Lembro a vossas mercês (…) que a Torre de Moncorvo é terra nova em que importa ao serviço de Deus entrar a inquisição, que fez muito fruto entrando em Quintela e Sambade. (3)
No meio do furacão foi também apanhado Manuel da Costa, preso pela inquisição de Coimbra em 14 de Junho de 1651. Foi mesmo acusado de ser o “ escrivão chamador”, ou seja: era ele que convocava os outros para as reuniões em “sinagoga”. Como geralmente acontecia, acabou por confessar-se culpado de judaísmo e que foi sua mãe, logo em pequeno, que o catequizou. Do rol das suas confissões, vamos apenas retirar um excerto narrando uma cerimónia judaica feita em conjunto com o cirurgião Domingos Lopes Bastos, no sítio da quinta do Cuco. É uma narrativa cheia de lirismo e ritualidade judaica. Vejam:
- Haverá dois anos, indo para a Açoreira, em companhia do referido Domingos Lopes Bastos, no caminho que vai pela Senhora da Riba Cavada, entre umas vinhas, por donde corre a água, se apeou e lavou as mãos e os olhos e a boca, e correu a mão pelo rosto abaixo três ou quatro vezes, e rezava baixo, de sorte que não ouvia, com o rosto para o céu, e lhe parece que era mais para o nascente, antes de nascer o sol. E porquanto ele confitente usava também da dita cerimónia por observância da lei de Moisés, por lha ter ensinado sua mãe.
Não sabemos que oração era aquela, mas podia ser a mesma que depois ele próprio ditou para o processo e costumava rezar quando lavava as mãos:
- Bendito tu Adonay nosso Dios y de nuestros padres que nos fizeste e nos creaste e nos santiguaste sobre o lavar de nuestras manos. Amen.
Manuel da Costa saiu condenado em cárcere e hábito penitencial, no auto público da fé celebrado em 14 de Abril de 1652. Podia regressar à terra mas… teria de apresentar-se na missa de domingo vestindo o saco amarelo por cima do fato. E isso era infamante para um homem da sua posição social. Porventura mais difícil de suportar do que a própria cadeia.
Regressou a Torre de Moncorvo mas ninguém o viu com o sambenito vestido. Aliás, teria confidenciado que “mesmo que o queimassem, não havia de trazer o hábito”.
A notícia chegou ao comissário Pedro Saraiva que o mandou chamar e “lhe mandava que cumprisse a dita penitência muito inteiramente, trazendo o hábito por cima das suas vestiduras, de modo que possa ser visto por todas as pessoas”. Manuel da Costa prometeu cumprir a penitência mas…
O pior é que a sua mulher e outros parentes que com ele saíram no mesmo auto condenados em hábito andavam igualmente sem o sambenito. E essa era uma situação intolerável, um ato grave de desobediência e desprezo pelo santo tribunal. Por isso foram todos chamados pelo comissário que os admoestou e avisou das perigosas consequências de tal procedimento. Veja-se o resultado, conforme escreveu o mesmo comissário para a inquisição de Coimbra:
- Tanto que foram admoestados, não apareceram mais nesta vila, sendo público que fugiram para Castela (…) Uma irmã de Manuel da Costa disse, o dia antes que fugissem, que eles se iam para não cumprir a penitência (…) Fugiram desta vila e como não tinham fato, por ter sido confiscado, não foram sentidos, nem tive notícia da sua fugida, para os mandar prender pela justiça secular. (4)
Manuel da Costa e a mulher fugiram para Granada onde tinham vasta parentela trabalhando na distribuição do sal, sendo o seu primo Francisco de Albuquerque, administrador daquele monopólio. Mas foi com Francisco Lopes Pereira, natural de Mogadouro e que com ele partilhou as celas da inquisição de Coimbra, que Manuel da Costa fez uma sociedade comercial, arrematando a venda do tabaco na mesma região.
Foram poucos os anos de vida de Manuel da Costa em Granada pois que, em 1660 já era falecido e o estanco do tabaco andava só por conta de Francisco Lopes Pereira. (5) A sua mulher e o seu filho Don Luís da Costa, então com uns 18 anos, traziam arrendada a venda do sal na região de Vellez.
NOTAS:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 9486, de Manuel da Costa.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 790, de Francisco da Cunha; inq. Coimbra, pº 1952, de Beatriz da Costa.
3-IDEM, pº 5022, de Francisca Vaz.
4-Henrique Dias da Costa e sua mulher Beatriz Marcos foram outros dos que fugiram. Pedro Rodrigues Brandão foi apanhado pelo comissário Saraiva de Vasconcelos que “ o achou fugindo escondido sobre uns telhados (…) e achando-o saindo do dito telhado, disse que para não trazer o hábito se havia de ir para Castela e que todos haviam de fugir e despovoar o Reino”.
5-ANTT, inquisição de Lisboa, processo 2744, de Gaspar Lopes Pereira.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Duarte Nunes Nogueira ouvidor em Angola(1543 – depois de 1596)

Na generalidade dos compêndios de história de Portugal quando se fala da conquista e colonização de novas terras, destaca-se o esforço militar de alargamento do império e a ação dos missionários na expansão da fé cristã. É uma história de batalhas e milagres, de heróis e de mártires. Despercebido passa o papel dos mercadores e ignorada é a ação dos judeus e cristãos-novos.
O caso de Duarte Nunes Nogueira é exemplar a tal respeito. Mostra um cristão-novo de Bragança movimentando-se entre o poder político, as expedições militares, o clero regular e os jesuítas ao início da conquista, colonização e evangelização de Angola.
Corria o ano de 1575 quando Paulo Dias de Novais desembarcou na Ilha das Cabras (atual cidade de Luanda) com uma expedição militar e o título de “governador, capitão-mor, conquistador e povoador do reino de Sabaste na conquista da Etiópia ou Guiné Inferior”. Seguiam com ele 4 padres jesuítas para evangelizar os povos. À chegada, encontraram uns 40 mercadores e 7 embarcações para carregar escravos. (1)
Seguiu a conquista de terras junto ao mar e ao longo do rio Quanza, com a conversação ao cristianismo de alguns sobas e com eles os respetivos súbditos, que ali vivia-se em fechado sistema feudal. 5 anos depois as coisas não corriam muito bem para os Portugueses, com o “amigo” rei Ngola a revoltar-se e a somar vitórias militares. As tropas de Novais eram dizimadas pelas febres e pelas setas dos nativos, tendo também falecido 2  jesuítas.
De Lisboa seguiram reforços  e um padre jesuíta que faria alterar o curso dos acontecimentos. Chamava-se Baltasar Barreira e, por mais de 10 anos revelou-se o homem forte do novo reino de Angola, com extraordinária visão política, capacidade de organização e comando militar e muita habilidade no que respeita à economia.
Em compensação, o governador Paulo de Novais fez doação aos jesuítas de imensas terras e de uma dezena de sobas com os respetivos povos. E os sobas, que sempre prestaram vassalagem a outros senhores, passaram a prestá-la aos jesuítas. E a vassalagem traduzia-se principalmente no pagamento de impostos que eram feitos não em moeda mas em escravos. (2) E os jesuítas, sob a batuta do padre Barreira tudo faziam para ter os sobas do seu lado e contentes. Para isso quando os batizavam faziam cerimónias empolgantes, vestindo-os de gal, dando-lhe nomes portugueses e elevando-os à categoria de fidalgos, numa imitação das cerimónias de cavalaria que a nobreza fazia em Portugal. Nas “reduções” (fazendas) dos jesuítas trabalhavam multidões de escravos e acumulavam-se riquezas.
O poder do padre Barreira e dos jesuítas, era imenso e isso desagradava particularmente aos mercadores de escravos. Até ao provincial da Ordem, em Lisboa, estranhava o poder do padre Barreira e não podia tolerar o envolvimento (ou mesmo o domínio) dos seus “missionários” no negócio das “peças” humanas.
Em 1592 surgiu oportunidade para mudar o rumo dos acontecimentos. O rei Flipe nomeou para governador um homem cheio de prestígio, do ponto de vista militar e da governação colonial – o capitão-mor de Tanger, D. Francisco de Almeida. Este escolheu para seu “ouvidor geral” Duarte Nunes Nogueira. Infelizmente não encontramos qualquer documento que nos permita perceber as razões que levaram o governador a escolhê-lo para seu braço direito e homem de confiança. Seriam relações familiares mais ou menos próximas? Na verdade encontramos gente de Bragança, próxima da família de Duarte casar em Lisboa no seio de uma família Almeida, cristã-velha. Mas quem era este Duarte Nunes?
Sabemos que nasceu em Bragança, por 1543, sendo filho de Ambrósio Nunes e Helena Dias. O pai era natural da vila de Cortiços (3) e a mãe era de Vila Franca de Lampaças. Tinha um irmão (Pero Nunes Nogueira) casado em Lisboa, que era “criado d´el-rei”.
Andou pela América Latina, mais concretamente no Perú e em Tucumán, Argentina. Tinha 49 anos quando entrou no desempenho do cargo de “ouvidor geral do reino” de Angola, em Junho de 1592. Pouco tempo se manteve no cargo e muitas tribulações sofreu. Tal como o governador. Com efeito, este era portador de um decreto real que anulava todas as doações feitas em 1571 a Paulo de Novais, aos jesuítas e a outros particulares. Isto provocou uma tremenda revolta, chefiada também pelo padre Barreira. E terminou com a prisão do governador e sua expulsão de Angola em Março de 1593.
Em simultâneo, Duarte Nogueira foi denunciado na inquisição como judeu. Acusavam-no de ter dito que a sua vara de ouvidor devia ser respeitada tanto como a cruz; que chamava santa Úrsula à sua coura (espécie de avental de couro) e ao seu roupão Santa Marta; que a igreja canonizava santos falsos parecidos com a freira da “Anunciada” (4) de Lisboa…
O processo (5) instaurado a Duarte começou a ser instruído em Luanda pelo vigário geral, padre Manuel Rodrigues Teixeira, a pedido do próprio acusado. Depois de ouvir as testemunhas de acusação e de defesa, em 8.7.1593, enviou os autos para o inquisidor Heitor Mendes Furtado, que então assistia na cidade brasileira da Baía, em visitação do santo ofício e cujo poder se estendia a todas as terras portuguesas do Atlântico meridional, com o despacho seguinte:
- Por não haver prova bastante neles para prender o réu Duarte Nunes Nogueira, conteúdo neles, remeto os ditos autos, no estado em que estão (…) e o réu se embarque a aparecer em juízo, solto.
Mandava também uma carta para Furtado Mendonça escrevendo, entre outras coisas:
- Só lembro a V. M., por descargo da minha consciência, que todos quantos juraram contra este homem são seus capitais inimigos (…) Ele foi ouvidor geral do governador e com a justiça escandalizou alguns e por outras razões que o ameaçaram (…) Dos padres da Companhia nada digo porque dos autos verá V. M. ser isto assim e suas tenções danadas.
Seguiu para o Brasil o processo e o réu. Um mês depois, em 21.8. 1593, o inquisidor ditava a sentença:
- Que o réu seja repreendido nesta mesa e se lhe imponham penitências espirituais, que se confesse 5 vezes por ano (…) e pague 6 mil réis para despesas do santo ofício.
Foi uma sentença muito leve, reveladora de que o processo era essencialmente político e não religioso. E a sua resolução caberia ao rei, passando pelo castigo da rebelião encabeçada pelo padre Barreira com o despacho de um novo governador – João Furtado Mendonça – que seguiu para Angola acompanhado de uma forte expedição militar e de 12 raparigas órfãs, educadas em Lisboa no recolhimento da Misericórdia e terão sido as primeiras mulheres brancas que chegaram a Luanda para casar e contribuir para a expansão da fé e do império.
Não temos aqui espaço para apresentar o processo de Duarte. Diremos tão só que para além dos jesuítas e do padre Barreira, os seus inimigos e delatores foram alguns “nobres cavaleiros africanos” e um grupo de mercadores cristãos-novos beneficiados em tempo do governador Novais, agrupados em volta de Luís Gonçalves Bravo, que passou à história com o epíteto de “sol” e de João de Vitória, ouvidor geral anterior. Veja-se apenas um trecho da defesa de Duarte:
- João de Vitória é inimigo meu por razão da prisão do governador e alçamento e ser ele a principal pessoa neste delito e sabia que eu o havia de prender e castigar com as minhas mãos. E quando o fui prender, à meia-noite, a ele e seu cunhado Manuel Jorge, por ter sido avisado pelo pajem do governador escaparam e na noite seguinte foi o alçamento e prisão do governador. E demais (…) me tem roubado minha justiça em uma nau que fretei (…) que me importou mais de 100 escravos (…) E Diogo Dias Veloso é meu inimigo porque julguei contra ele (…) em paga de negros que me devia, em jogo que me não pagou.
Para descrever a personalidade de Duarte nada melhor do que utilizar expressões tiradas do processo:
- O dito Duarte Nunes não é mouro nem cristão nem judeu nem segue lei nenhuma (…) é zombador e se pela de dizer ditos e gracetas.
Terminamos dizendo que em 1596 o encontramos casado, a morar em lisboa na rua da Cutelaria.
NOTAS E BIBLIOGRAFIA
1-LEITÃO, José Augusto Duarte – A Missão do Pe Baltasar Barreira no Reino de Angola (1580-1592), in: Lusitania Sacra, 2ª série, 5, pp. 43-91, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1993.
2-Ascendia a 300 escravos o tributo que os sobas entregavam anualmente aos jesuítas, que tinham ainda doações de outras entidades.
3-Esplendián Nunes, irmão de Ambrósio Nunes, foi o patriarca da família Cortiços, uma poderosa família de banqueiros e grandes mercadores da Europa.
4-Foi caso que uma freira do convento da Anunciada em Lisboa apareceu com chagas nas mãos e em volta da cabeça, tal como as chagas de Cristo. A fama do milagre espalhou-se rapidamente e ganhou muito crédito graças ao grande pregador Frei Luís de Granada que escreveu um trabalho contando o milagre (“Historia de la admirable vida de Soror Maria da Visitación, religiosa dominica”). Veio depois a descobrir-se que as chagas eram feitas por ela, sendo processada pela inquisição. – ANTT, inq. Lisboa, pº 1491. Sobre o assunto, Camilo Castelo Branco escreveu o livro: Virtudes Antigas A freira que fazia chagas…
5-ANTT, inq. Lisboa, pº 10875, de Duarte Nunes Nogueira.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS Miguel de Sousa, mercador e rendeiro (1532 – 1597)

Era certamente o mais conceituado de entre os cristãos-novos de Bragança, de certo modo liderando a comunidade. Um dos seus denunciantes retratou-o com as seguintes palavras:

- Miguel de Sousa o qual é muito poderoso na dita cidade, discreto e avisado, com  quem os cristãos-novos se aconselham. (1)

Ele próprio, defendendo-se perante os inquisidores de Lisboa, diria:

- Todas as pessoas a quem ele réu tem posto contraditas são pessoas de muito baixa sorte e caridade e oficiais mecânicos, com os quais ele nunca tratou nem conversou, nem eles com o réu, nem com eles têm razão de parentesco algum; antes é dos principais homens que há da nação, na cidade de Bragança e 20 léguas ao redor dela. (2)

Na verdade ele não era um qualquer mercador e cobrador de rendas. De contrário era um homem de nobre estatuto, condecorado por Sua Majestade com a Ordem Santiago e uma pensão de 20 000 réis. Entrava na da governança da cidade e aparece referido como um dos 5 notáveis que participaram na cerimónia da tomada de posse do castelo de Bragança pelo representante do rei Filipe, em 1580. (3)

E por ser homem de nobre estatuto e conceituado entre os da nação, tomaria a iniciativa de tentar negociar um perdão do rei para os brigantinos prisioneiros da inquisição, dizendo que faria o melhor que pudesse.
Tão conceituado era entre os seus correligionários que alguns até se convenceram de que a inquisição o não prenderia porque tinha uma bula passada pelo santo padre de Roma que o protegia.

Paradoxalmente seriam todas estas “virtualidades” que levariam à sua ruína e que começou em 1587 com a prisão de Diogo Fernandes, de Quintela. Com efeito, um irmão e um sobrinho deste, temendo ser presos, terão ido aconselhar-se com Miguel de Sousa e este lhe terá dito que fugissem para fora do reino. Conselho idêntico terá dado a outros. Tal como aconselharia a que matassem uma moça cristã-nova que fora criada de um Francisco Cardoso e que a atirassem a um poço por temerem que denunciasse cerimónias de judaísmo que presenciara em casa de seus amos.

Decerto não podemos confiar na veracidade dos factos contados por este e outros denunciantes, dado o ambiente que então se vivia na cidade e ficou conhecido como o caso dos falsários de Bragança. Os próprios inquisidores de Coimbra, em 9 de Julho de 1593 mandaram escrever o seguinte:

- Foram vistas as culpas que há contra Miguel de Sousa (…) e vendo-se os defeitos dos testemunhos de Gonçalo Fernandes de que só é a culpa de o aconselhar que se fosse e fica só fautoria, as mais 3 testemunhas têm por falsas (…) e se revogaram…

Aparentemente esta deliberação mostra que os inquisidores consideraram que Miguel de Sousa seria uma vítima dos falsários. Contudo, o processo não ficou parado, antes se fizeram várias diligências para averiguar da verdade ou falsidade das denúncias feitas, as quais foram cometidas ao reitor do colégio da companhia de Jesus, em Bragança. (4)

Dias depois, em 13.7.1593, as coisas mudaram por completo. Leonor Cardosa, (5) curandeira de ossos, moradora na rua Direita de Bragança, vizinha de Miguel de Sousa, que estava presa no mesmo tribunal da inquisição de Coimbra, contou aos inquisidores que, 4 anos atrás, fora chamada pela mulher de Miguel para compor um braço partido a um filho seu. E entrando na casa, viu que estavam ali reunidas umas 11 mulheres, junto ao menino e em outra parte da sala (“muito espaçosa”) estavam uns 18 homens, que a todos nomeou. E toda aquela gente estava seguindo a leitura que fazia um filho de Miguel de Sousa, chamado Francisco, (6) o qual livro era da lei de Moisés, conforme lhe disse a dona da casa, Isabel da Costa.

Entretanto, acaso por quaisquer suspeitas, Miguel Cardoso já antes se tinha abalado de Bragança e dirigido a Coimbra a apresentar-se na inquisição, antecipadamente apontando os seus inimigos. Ficou desapontado por os inquisidores lhe perguntarem se vinha confessar suas culpas e pedir misericórdia. Respondeu que não tinha culpas e que dali seguiria para Lisboa apresentar-se ao Conselho Geral a indicar os seus inimigos que falsamente o poderiam incriminar. Em Lisboa arranjou casa e logo mandou ir a mulher e ali “estavam mui prósperos e descansados” quando veio prendê-lo o meirinho da inquisição, em 18.9.1593.

A expressão “prósperos e descansados” consta de uma das duas exposições enviadas à inquisição pelo advogado Francisco de Sousa, em defesa do seu pai, tentando provar que na base da sua prisão estavam falsos testemunhos promovidos pelos seus inimigos, principalmente Rodrigo Lopes e seu genro Pedro de Figueiredo que em Lisboa andava “em hábito de viúvo com um capuz” arregimentando testemunhas como os irmãos Rodrigues, sapateiros de profissão, “barregueiros” de alcunha “vestidos de pardo”…

Estas exposições de nula utilidade foram para a causa do prisioneiro que, em simultâneo, era carregado de culpas por outras testemunhas, nomeadamente sua mulher que também foi presa, duas semanas depois e sua sobrinha Justa Dias. (7)
Extraordinário o comportamento de Miguel de Sousa. Durante mais de 3 anos, aguentou-se firme, nada confessando e a ninguém denunciando. Acabou queimado na fogueira do auto de fé celebrado em Lisboa em 23 de Fevereiro de 1597.
O mais grave de seus crimes terá sido a sua contumácia, que ficou bem vincada logo ao início, na 2ª sessão que com ele tiveram em 24.5.1594. Começado a ser interrogado pelos inquisidores, logo esclareceu que não tinha nada para lhes dizer e que apenas falaria perante o Conselho Geral, onde se tinha apresentado, não para confessar culpas, que as não tinha, mas para livrar a sua face das calúnias de seus inimigos. Retorquiram-lhe os inquisidores que o seu processo havia de prosseguir naquela mesa e não na do Conselho Geral. A sessão terminou escrevendo-se em ata:

- E por dizer que não queria responder perante o senhor inquisidor mas perante o conselho geral e sendo admoestado muitas vezes não quis responder outra coisa e para constar a sua contumácia…

Esta atitude manteve-a até ao fim. Em uma das audiências diria que se tivesse culpas teria fugido como fugiram muitos. Nem sequer mudou de atitude quando lhe foram atar as mãos e dizer que estava condenado a ser relaxado. E nem ao menos quando se encontrava já no palco do auto da fé ouvindo ler a sentença da morte.

Deveras interessante é o seu processo para o estudo da sociedade brigantina da época. É um processo cheio de contraditas que mostram à evidência um mar encapelado de tensões. Apontando mais de 3 dezenas de inimigos, apresenta mais de 70 testemunhas de defesa. As situações são as mais diversas e as pessoas de todos os setores de atividade (8) e todos os estratos sociais. A título de exemplo veja-se o que aconteceu com Jerónimo Rodrigues.

Em 24.12.1589 disse que jejuou no Kipur de 1578 juntamente com Miguel de Sousa estando ambos na cidade de Guimarães, em viagem de negócios. Em 8.5.1592 disse que tudo foi mentira e que ele inventou aquilo para se vingar de Miguel de Sousa que lhe tinha mandado os seus criados fazer um buraco na parede de um pombal e metido gatos lá dentro que lhe comeram os pombinhos, dando-lhe um prejuízo de 40 000 réis. Haveremos de acreditar?

Miguel de Sousa era natural de Trancoso. Ficou órfão de mãe aos 5 anos e de pai aos 10. Casou em Bragança e ali residiu. Começou a sua vida de mercador viajando muito por Castela onde ia comprar machos e mulas. Depois ascendeu à categoria de rendeiro e só o enunciado das comendas que trazia arrendadas impressiona. Infelizmente naquela época a inquisição não fazia registar no processo o inventário dos bens dos prisioneiros para termos uma noção completa do poder económico deste homem. Terminamos estas notas com a explicação que ele dava para se não comer carne de porco:

- Disse que não se devia comer carne de porco, nem ele comia a carne porque o porco andava sempre com os olhos no chão e todas as coisas que não olhavam para Deus se não haviam de comer.

NOTAS
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 9697, de Gonçalo Fernandes.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 5104, de Miguel de Sousa.
3-ALVES, Francisco Manuel – Memórias… Tomo VIII, p. 21.
4-Destas diligências o mais interessante é o comportamento dos jesuítas de Bragança como apaziguadores de conflitos. Com efeito, enquanto procediam ao inquérito pedido, conseguiram estabelecer a paz e “ficar amigos e correntes” entre as famílias de Miguel Sousa (os Borges) e dos Sarmentos.
5-ANTT, inq. Coimbra, pº 5514, de Leonor Cardosa.
6-Francisco de Sousa era então estudante em Salamanca, universidade que frequentou entre 1582 e 1592, formando-se em Cânones e Leis – DIOS, Angel Marcos de – Índice de Portugueses en la universidade de Salamanca (1580-1640), in: Brigantia, vol. XVII, nº ½, p. 178, 1993.
7-ANTT, inq. Coimbra, pº 6038, de Isabel da Costa; pº 9276, de Justa Dias.
8-Interessante: um dos participantes na “sinagoga” em casa de Miguel de Sousa chamava-se Manuel Rodrigues e tinha a profissão de toureiro.