António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: O Dr. Gabriel Rodrigues Ledesma

Voltemos à cidade do Porto, a casa de António Ledesma que, ficando viúvo de Beatriz Nunes, casou em segundas núpcias com Maria Ferreira de Carvalho, de uma família dividida por Coimbra e Porto, mesclada de cristãos-novos e velhos. Antónia Carvalha, irmã de Maria Ferreira, viveu em Coimbra, casada com António Mascarenhas e tinham 2 filhas freiras e um filho, chamado Manuel Mascarenhas, prebendeiro da universidade. Todos foram presos pela inquisição, acabando Manuel Mascarenhas por ser relaxado à justiça secular no auto- -da-fé de 14.6.1671. Catarina Ferreira de Carvalho era outra irmã de Maria Ferreira. Estava casada com Diogo Cardoso Pereira, natural de Torre de Moncorvo, escrivão dos agravos da Relação do Porto. De entre os seus filhos (4 rapazes e 3 raparigas), uma referência para o filho Gaspar Pereira de Carvalho que, em 1662 contava 24 anos e se mantinha solteiro, morador em Lisboa, na Rua das Mudas, depois de uma viagem e estágio comercial de 4 meses no Brasil, com dois de seus irmãos. No Porto começara a vida profissional como escrivão dos órfãos e em Lisboa estivera ao serviço do sargento-mor do Regimento de Cavalaria de D. João V, Henrique Henriques de Miranda, familiar do santo ofício, entrando depois para a Casa dos Viscondes de Ponte de Lima. Certamente receando ser preso pela inquisição, tomou a iniciativa de se apresentar, ao final de Julho de 1662. A última notícia que dele temos é de Junho de 1689, altura em que a inquisição decidiu ajustar novas contas com ele mas não o conseguiu porque ele se encontrava ausente, morando em França.  Um dos filhos de António Ledesma e Maria Ferreira chamou-se Gaspar Rodrigues Ledesma, o Galego, de alcunha. Nasceu no Porto, por 1650 e foi morador em Bragança, dedicando-se à tecelagem de sedas. Casou com Clara Gonçalves e, enviuvando, casou segunda vez com Maria de Castro. Ambas lhe deram filhos e ele e as mulheres e os filhos, todos conheceram as cadeias da inquisição. Terá falecido por 1745, conforme declaração feita em 12.2.1749, pelo Dr. Francisco Furtado Mendonça perante os inquisidores de Coimbra: - Haverá 27 anos, em casa de Gaspar Rodrigues Ledesma, tecelão de sedas, casado com Maria de Castro, falecido, e se declararam até à data em que faleceu, haverá 3 ou 4 anos.  Gabriel Rodrigues Ledesma foi um dos filhos de Gaspar Ledesma e Clara Gonçalves. Nascido em 28.11.1684, ter-se-á criado em casa do tio materno, Manuel Rodrigues, o Clérigo de alcunha, morador em Carragosa, junto a Bragança. Formado em medicina pela universidade de Coimbra, Gabriel foi médico do partido da câmara e do hospital militar. Homem de elevado estatuto social e muito pretendido, em termos de contrato nupcial,  casou por 1707, com Angélica da Silva, filha de Miguel da Silva, tratante e rendeiro. Filho de mãe solteira, Miguel da Silva nasceu fora do casamento, em Macedo de Cavaleiros, mas não foi abandonado pelo pai, morador em Bragança, que lhe deu o nome, o educou e o casou naquela cidade, com Brites de Sória. Trata-se de uma família abonada de bens e prestigiada entre a gente da nação brigantina. O pai de Miguel pertencia à elitista classe dos contratadores, um irmão e um cunhado eram prateiros em Castela e um terceiro irmão, João da Silva Morais, era escrivão do judicial e notas de Bragança enquanto a irmã, Micaela de Morais, estava casada com o contratador Fernando da Fonseca Chaves, natural de Bragança, morador em Lisboa. Todos eles foram processados pela inquisição, pelo ano de 1713. Ao contrário da restante família e também do seu marido, Angélica da Silva não foi levada nessa vaga de prisões, ficando em Bragança com suas 3 crianças, ainda pequenas: Gaspar, Perpétua e Rosa. Em 1716, porém, resolveu apresentar-se voluntariamente em Coimbra. Ouvida a sua confissão, foi mandada regressar a Bragança, ficando em aberto o seu processo, que só foi concluído depois que a ré faleceu em Bragança, em 17.3.1719, e foi enterrada na igreja de S. João Batista.  Ficando viúvo, o Dr. Gabriel Rodrigues Ledesma casou novamente, com Luísa Josefa Henriques, filha de Pedro Cardoso, de Vinhais e Esperança Rodrigues, de Bragança. Luísa tinha 11 irmãos, entre eles, Francisco Rodrigues Ferreira, que foi preso pela inquisição de Coimbra em 1714 e segunda vez em 1747. E é do seu processo que retiramos a seguinte acusação feita por Domingos Pires, cristão-velho, 36 anos, solteiro, tecelão de sedas, em 23.9.1740, perante o comissário Roque de Sousa Pimentel: - Disse que sabe por ver que alguns cristãos-novos desta cidade se ajuntam à noite, uns em casa dos outros, porque na rua aonde ele testemunha mora, viu que vão para casa do médico Gabriel Rodrigues Ledesma, morador na mesma rua, António Rodrigues Ferreira e seu irmão Francisco Rodrigues Ferreira, cunhados do mesmo médico, e o seu genro António Novais da Costa e o bacharel António Mendes Borges, moradores na mesma rua, e Pedro de Castro Lafaya, cerieiro, e seu filho Gaspar, moradores na Rua Direita, e Francisco Mendes Furtado e sua mulher, e Beatriz de Castro, viúva de Henrique Rodrigues Gabriel, alferes de ordenanças, e sua filha Luísa casada com Gabriel Rodrigues Ferreira Cardoso, e Beatriz Lopes, viúva do Cunha e seu filho Manuel, e João Rodrigues Ledesma, o Galego, de alcunha, irmão do mesmo médico, e sua mulher Francisca Rosa. E os dias em que fazem o dito ajuntamento é nas sextas-feiras e sábados, pelas 8 para as 9 horas da noite, e que as cerimónias que fazem não sabe, porém que assistiu em casa do dito médico por tempo de um ano e viu que cerram as portas e não admitem cristão-velho algum e ainda os próprios criados mandavam para fora de casa ou para a loja.  Esta denúncia deixa-nos adivinhar um pouco da ambiência religiosa da “nação judaica” de Bragança onde a casa do Dr. Gabriel Ledesma funcionava como verdadeira sinagoga e onde não faltava gente que viajava para o estrangeiro a fim de se circuncidar, como vimos ao falar de António Manuel de Lima que, para o efeito, se deslocou propositadamente a Londres. Ser circuncidado e cumprir o Kipur são condições essenciais para ser judeu e assim o entendiam os judeus brigantinos do tempo da inquisição. E é impressionante a forma como em Bragança se guardava o Kipur. Dizem os testemunhos que, na Rua Direita, havia uns 150 tornos e nenhum deles trabalhava em dia de Kipur. Mas veja- -se, em concreto o depoimento do padre Bento Rodrigues, referindo-se ao Kipur de 1746: - Caiu o tal dia 24 de Setembro em um sábado, em que pelo reportório, se contavam 10 dias da lua e observou que os cristãos-novos desta cidade guardam por Santo o tal dia; e a razão da sua afirmativa é porque tratando quase todos os cristãos-novos desta cidade em teares de seda, naquele tal dia não trabalharam neles, porque correndo ele testemunha a cidade pelas 7 da manhã, 8 e 10 e pelas 2 e 4 horas da tarde, não viu trabalhar nos teares cristão-novo algum, antes sim os viu estar conversando uns com os outros.  Impressionante também como a gente da nação de Bragança praticava ritos e cerimónias judaicas, nomeadamente no que respeita ao enterramento dos defuntos. Vejamos apenas um apontamento sobre o enterro de um cunhado de Gabriel Ledesma, conforme testemunhou João Pires, familiar da inquisição: - Aos seus defuntos, ainda que levem hábito de S. Francisco, entende ele testemunha, por desprezo ou para enganar os católicos, pois todos, por baixo, levam mortalhas de pano de linho, novas e ainda por cima do mesmo hábito, como ouviu dizer fora enterrado Manuel Rodrigues Ferreira, falecido há poucos dias, que levava uma granacha de seda, com bocais de veludo por cima do hábito de S. Francisco, a modo de Desembargador; e que todos levam barrete branco de pano de linho; e enterram-se os mais deles em covas profundas, em terra virgem, e para isso elegem sepulturas na igreja de S. Vicente, por não ser paroquial e se sepultarem lá poucos cristãos-velhos, sendo certo que nesta igreja lhe custa a sepultura uma moeda de ouro (4.800 réis) para cima e na paróquia só 500 réis.  Mas se para ser judeu eles consideravam essencial ser circuncidado e guardar o Kipur, isso não esgotava a prática religiosa da gente da nação de Bragança. Antes pelo contrário, a leitura dos processos da inquisição revelam uma infinidade de ritos e cerimónias que marcavam a prática da lei mosaica, como era o caso da celebração do Sabat, dos jejuns do Purim, do thanis, do primogénito, do capitão, ou das cerimónias que cumpriam quando aconteciam grandes calamidades, ligadas a fenómenos atmosféricos como os incêndios e as chuvas. Um pouco ao acaso abrimos o processo de uma mulher solteira, de 31 anos, natural de Bragança e moradora em Lisboa, e deparamos com a confissão seguinte: - Disse (…) que guardavam os sábados de trabalho como dias santos vestindo camisa lavada na sexta-feira à noite; não comiam carne de porco, coelho, lebre, peixe de pele, sangue, nem sebo 9 dias antes que fizessem o jejum do dia grande, da rainha Ester, da sentença, do incêndio, e das grandes águas turvas…

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: António Manuel de Lima, advogado.

Jerónima Ledesma e Fernando Fonseca tiveram uma filha que nasceu em Bragança, por 1683 e foi batizada com o nome de Maria da Fonseca. Esta casou com Manuel Rodrigues Lima, também nascido em Bragança, pela mesma altura. Na sequência de mais uma investida da inquisição, Manuel Rodrigues Lima foi-se apresentar-se em Coimbra onde foi ouvido, admoestado e mandado regressar a casa. O mesmo caminho e idêntico procedimento foram seguidos por Maria da Fonseca. Sobre Manuel Rodrigues Lima, diremos que era filho de José Rodrigues Lima e Maria Henriques, família radicada em Mirandela, com fortes ligações a Vinhais. Manuel Rodrigues e Maria da Fonseca tiveram vários filhos, mas só dois chegaram à idade adulta. O mais velho, nascido por 1711, chamou-se José Rodrigues Lima, como o avô paterno. Seria um homem com bastante relevância na sociedade Brigantina, pois ocupava o posto de Capitão de Ordenanças, geralmente disputado por gente da maior nobreza cristã-velha. No entanto, ele teria perfeita noção dos perigos que corria, em matéria de fé, pois que em 6.8.1749, decidiu apresentar-se na inquisição de Coimbra. Mandado de regresso a casa, foi chamado em Abril de 1754 para ouvir sua sentença e abjurar de seus erros. Foi casado com Isabel Perpétua Rosa, de uma família bem martirizada pelo santo ofício. Com efeito, Jerónimo José Ramos, irmão de Isabel, seria um dos últimos, senão o último judeu brigantino a ser queimado nas fogueiras da inquisição de Lisboa, em 1754.  António Manuel de Lima, o outro filho, nasceu em Bragança, por 1718. Completados os estudos preliminares, em Bragança, rumou a Coimbra a estudar Leis. Concluído o curso, o jovem advogado, “por se achar com algum dinheiro e viver na lei de Moisés, e lhe dizerem que, em Londres, havia liberdade de cada um viver na lei que queria”, para ali embarcou e por lá ficou durante 6 meses frequentando a sinagoga para aprofundamento da lei mosaica e fazendo-se circuncidar.  Este seria o objetivo principal da viagem, como ele próprio referiu, deixando entender que a sua formação e entrada na vida ativa e adulta impunha a circuncisão, ritualidade essencial para ser judeu. Aliás, em Bragança esta ideia seria corrente e são conhecidos bastantes casos de homens que foram circuncidar-se lá fora e voltaram à terra, geralmente fazendo algum proselitismo. Foi o caso de José Rodrigues Mendes, morador na Rua Direita que, em Bragança, foi educado por “judeu de nação” e depois se dirigiu a Londres para ser circuncidado, tomando o nome de Moisés Mendes Pereira. Regressado a Bragança, dava informações sobre o que lá vira e como ali se vivia. Contou, por exemplo que ali encontrou Francisco Lopes Franco, filho bastardo de Baltasar Lopes Franco, capitão de ordenanças de Chacim, e de uma cristã-velha e que, por isso mesmo, por ser meio-judeu, teve de ser purificado com muitos banhos e cerimónias, para ser admitido na sinagoga e circuncidado. Falou também de outros Brigantinos que encontrara em Londres, nomeadamente os filhos de André Lopes da Silva; a família Costa Vila Real, cujo líder era João da Costa Vila Real, que foi circuncidado aos 73 anos de idade; Luís de Sá, porteiro da sinagoga da Bevis Marks, casado com de Ester Sá e seu irmão Alexandre, aliás, Abraham de Morais, casado com Mariana (Sara) da Costa Vila Real; António Mendes Álvares, filho de Gabriel Álvares Lotas, casado com Maria Josefa. Mas não era só a Londres que iam circuncidar-se. Também a Livorno, aproveitando muitas vezes a viagem a Roma onde iam buscar um documento da Cúria Papal que lhes permitia casar-se dentro da família, com tias ou primas. Veja-se, a propósito a seguinte declaração feita pelo médico brigantino Francisco Furtado Mendonça: - Disse que havia 24 anos, em Bragança, em casa de Francisco de Almeida, meirinho do assento, ausente em Génova, e que o mesmo se circuncidara em Livorno e que tinha livros impressos na Holanda, enviados por judeus daquela sinagoga e deles formava cadernos de calendários para observância das festas, os quais distribuía pelos cristãos-novos de Bragança e lhos deu a ele, médico, para se servir deles  Também por Livorno, a caminho de Roma, passou e lá se demorou José Rodrigues Gabriel, que, mais tarde. Contou aos inquisidores: - Há 34 anos, em Livorno, em casa de Gabriel de Medina, natural deste reino, homem de negócio, entre práticas ele lhe disse que para seguir a lei de Moisés tinha que se circuncidar, e com efeito ele se circuncidou na casa do mesmo, dali a poucos dias, para cujo efeito veio um cirurgião que o cortou na presença do mesmo Gabriel de Medina e outros 4 judeus, que ele não conhecia. António de Morais, esse foi circuncidar-se a Bayonne, em França, onde tomou o nome de Jacob de Morais. Regressou a Bragança onde era torcedor de seda, e foi preso, em 1718, quando contava 30 anos. Veja- -se a sua confissão: - Haverá 7 anos que se mudou para Bayonne e que o circuncidou em casa dele réu um judeu francês chamado Samuel Talavera e lhe puseram o nome de Jacob e pelo tal nome foi tratado e conhecido pelos judeus e ali fazia a guarda das cerimónias da lei com Lopo de Mesquita, torcedor de seda e hoje se chama Abraham de Mesquita, tendeiro, natural de Bragança e com Salvador Mesquita, filho deste, tratante de chocolate, casado com uma filha de Mécia de Morais e hoje em Bayonne se chama Isaac de Morais. Voltemos a Londres, ao encontro de António Manuel Lima que ali terá contactado com alguns familiares fugidos da inquisição, muito em particular Abraão Mendes Campos, aliás, Diogo de Campos Pereira, natural de Lebução. Diogo era também formado em direito por Coimbra e, por 1720, morava em Lebução, casado com Clara Maria de Mesquita Campos, que, em Londres se fez judia e tomou o nome de Sarah Mendes Campos. Diogo, aliás, Abraham, tinha 5 filhas, uma das quais se chamou Teresa Maria de Campos, que casou com Baltasar Mendes Cardoso. O casal teve vários filhos e duas filhas. Uma delas, batizada com o nome de Rosa Maria de Campos, casou com Francisco Rodrigues Álvares, que faleceu no terramoto de 1755. A outra, Josefa Teresa, foi casada com José Álvares de Lima, irmão do anterior e ambos primos de António Manuel de Lima e de Baltasar Mendes Cardoso, pai das mesmas.  Pois, é bem possível que tenha sido em casa deste seu parente, Abraão Mendes Campos que, em 1740, o jovem advogado António Manuel de Lima, se tenha hospedado, prolongando-se a estadia por meio ano. Em Londres passou a Páscoa, confessando ele que a “celebrou por dois dias, comendo neles pão asmo e um cordeiro”, como a lei de Moisés determina. Quatro anos depois, em Agosto de 1744, vivia já em Lisboa o advogado Lima, quando, em Londres, faleceu Abraão Mendes, tendo feito testamento no dia 20 do mês anterior. E nesse testamento, incluiu a cláusula seguinte: - Item, deixo e lego a Branca, filha de José Rodrigues Lima, de Mirandela, cinquenta mil réis.  Não pudemos exatamente situar este José Rodrigues Lima na árvore genealógica dos Lima, de Mirandela. Sabemos é que estava casado com Violante Pereira, irmã do testador, Abraão Campos Pereira. E sabemos também que aquele José Rodrigues Lima e Violante Pereira, sua mulher, para além da Branca da Silva contemplada no testamento do tio, tiveram um filho chamado Alexandre Pereira que casou com Luísa Maria Bernarda, filha de André Lopes dos Santos, da família Raba.  Em Lisboa, regressado de Londres, António Manuel Lima empenhar-se-ia na divulgação dos seus ideais religiosos e catequização na lei de Moisés, como se depreende da seguinte confissão de André Lopes dos Santos (Raba): - Disse que indo a casa de António Manuel de Lima, que mora por detrás da igreja de Santa Justa (…) e estando ambos sós, puxou o dito António Manuel Lima de um livro que lhe disse que era a Sagrada Escritura e que cuidasse bem em que Deus sempre era Deus verdadeiro e que ele fora circuncidado em Londres, havia 10 anos, por isso não lhe faltava Deus, antes o favorecia muito… 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: Jerónima Ledesma e Fernando Fonseca

Vimos que António Ledesma e Beatriz Nunes tiveram uma filha que batizaram com o nome de Maria Nunes, a qual casou com Manuel Franco, rendeiro, e ambos estagiaram nas cadeias do santo ofício, entre 1660 e 1662. (1) Viveram em Bragança e nesta cidade criaram um filho, batizado com o nome de António Franco Machado e 3 filhas, que vamos apresentar: Isabel Nunes, que casou com José Rodrigues, o Riqueza, de alcunha e morreu nos cárceres da inquisição de Coimbra, em 12.4.1696, um mês depois de ser presa. Beatriz Nunes, que casou com Roque Rodrigues, que foi obrigado do açougue em Bragança e faleceu, antes de 1685. Jerónima Ledesma, que casou com Fernando da Fonseca, natural de Sevilha e morador em Bragança, casal que vamos acompanhar. Por agora fiquemos em Bragança, no mês de Junho de 1683, com Maria Álvares, moça solteira, criada de servir, prestando o depoimento seguinte, perante o comissário da inquisição, Belchior de Sá Cabral, abade de S. João: - Disse que há um ano que está em casa de Roque Rodrigues e Beatriz Nunes, com os quais mora também Fernando da Fonseca e sua mulher Jerónima Ledesma; e que as sobreditas pessoas, umas e outras, todas as sextas-feiras e sábados varrem as casas pela manhã e à tarde, (…) e nos outros dias da semana as mandam varrer a ela testemunha, pela manhã e à tarde. E vestem camisas lavadas e as dão aos maridos, porém eles as não vestem sempre; e que outrossim dão também camisas lavadas aos filhos, como é Isabelinha e António, filhos do dito Roque. E às sextas-feiras, tendo carne em casa, a assam ou cozem, mas ela não lha vê comer, porque a mandam para a rua. E que isto fazem sem estar doentes. E que, falecendo Manuel Franco, pai das sobreditas, em casa dos sobreditos não comeram carne dentro de um mês; e nessa ocasião estava ali também António Franco Machado 4 dias e também não comeu carne. E na casa de seus amos, todas as noites acendem duas candeias de azeite e as poem aonde uns dormem e outra aonde dormem os outros e as deixam estar acesas até por si se apagarem. (2) Foi o início da tragédia para esta família, que todos foram presos nos anos seguintes pela inquisição de Coimbra, (3) onde Isabel morreu, como atrás se disse. Levada para a inquisição de Coimbra, em 11.4.1685, Jerónima Ledesma manteve-se negativa. Ano e meio depois, em 16.10.1686 foi enviada para o tribunal de Évora, onde continuou negando todas as acusações que lhe faziam. Em 26.2.1688, foi despachada para Lisboa, certamente para ajudar a engrandecer o auto-da-fé que se estava preparando para o dia 14 de Março de 1688 e que se queria imponente. Decidiram os inquisidores que Jerónima Ledesma, por se recusar a confessar suas culpas e delas pedir perdão, seria entregue à justiça secular, para ser queimada. (4) Na véspera daquele dia, estando já de mãos atadas, ela decidiu confessar, justificando o seu silêncio de anos “pelo amor que tinha ao seu marido e a seus filhos”. E fez a seguinte confissão: - Disse que há 9 anos, em Bragança, em sua casa, com seu marido, Fernando da Fonseca, cristão-novo, mercador, natural e morador na dita cidade, por ocasião de ela confitente andar pejada da primeira criança e jejuar naquele dia, sem comer nem beber senão à noite, ao Deus de Israel para que lhe desse bom sucesso no parto, e lhe pôr a mesa para seu jantar, e ela confitente o não querer fazer, lhe disse o dito seu marido que porque não comia nem jantava no dito dia; e ela respondeu que não comia pela razão da observância da lei de Moisés e a crença lhe durou até e anos e 4 meses antes da sua prisão. (5) Poucos dias depois desta e doutras confissões de Jerónima, foram presos pela inquisição de Coimbra o seu marido, Fernando da Fonseca, e o seu irmão, António Franco Machado, que deram entrada nas celas daquele tribunal em 6.4.1688. Fernando Fonseca tinha então 35 anos. Em Bragança, “ao Deus dará” ficavam seus filhos, um menino e 2 meninas, sendo a mais velha de 6 anos. Sim, que a casa onde moravam e todos os bens que tinham lhe foram sequestrados. De resto, do inventário que então se fez consta apenas um macho, que valia 40 mil réis e uns móveis de pouco valor. Tinha era dívidas, no montante de cento e tantos mil réis, referentes a caixas de açúcar que lhe tinham fiado Bento Ribeiro Torrado e um Jacques, dois mercadores do Porto. Por mais de um ano permaneceu Fernando Fonseca nas celas da inquisição de Coimbra onde foi posto a tormento, que durou um quarto de hora, “dando-lhe um trato perfeito e outro corrido”. Compareceu no auto de 21.8.1689 sentenciado ao pagamento de 20 mil réis de custas do processo, cárcere a arbítrio dos inquisidores e penas espirituais, uma pena relativamente leve, significando que soube defender-se das acusações que lhe fizeram a sua mulher e a criada, como atrás se viu. Posto em liberdade, Fernando Fonseca logo deixou o país, internando-se por Castela. Nesse mesmo ano estava já em Medina de Rio Seco, apresentando- -se como “tratante de açúcar”. No ano seguinte entrou ao serviço de Gabriel de Sola, seu primo, “rendeiro geral dos estancos de tabaco do bispado de Salamanca, Ciudad Rodrigo, Ávila e Zamora, onde vendia e tinha os Millones”. Escusado será dizer que nos estancos do tabaco de toda a região estavam providos familiares e amigos, numa intrincada rede de negócios e cumplicidades religiosas. António Franco Machado, por exemplo, que, em 1690 estava na cadeia de Coimbra com Fernando da Fonseca, certamente acompanhou o cunhado e logo foi provido no estanco de Benavente. Porém, não foi em sua casa que o cunhado Fernando Fonseca pousou, “em Março ou Abril de 1691” quando Gabriel Sola e sua mulher o encarregaram de “ir a Benavente buscar umas trutas de que necessitavam para regalar umas pessoas”. Foi em casa de João Dias Pereira e Guiomar Lopes, sua mulher, ele do Mogadouro e ela de Rebordelo, outro elo importante da cadeia ou rede familiar no monopólio da venda do tabaco naquela região de Castela. Aliás, a generalidade das informações que temos sobre a vida de Fernando da Fonseca depois que saiu da inquisição de Coimbra, colhemo-las no processo de Guiomar Lopes. (6) E entre os favores prestados pelo Fonseca a Dias Pereira conta-se a compra de uma escopeta em Guimarães, que lhe levou para Castela. Fernando Fonseca seria homem de confiança de Gabriel Sola, acompanhando-o mesmo em deslocações distantes, como foi uma vez a Bragança “no ano de 1691, segundo lhe parece, com Sola, sua mulher, cunhada e sobrinha e seus 5 filhos e passando por Benavente, foi vê-lo à pousada o dito Pereira e a sua mulher enviou uns doces a Sola e a sua mulher, dizendo a mulher do Pereira que não podia vir vê-los por estar de visita a um convento de monjas”. Trabalhavam em rede mas o fio que verdadeiramente unia a “gente da nação” era a crença na lei de Moisés. E havia sempre alguém à espreita para os “meter na inquisição”, que, em Portugal e Castela, usava a mesma linguagem e os mesmos métodos. Fernando Fonseca, Gabriel Sola e vários outros familiares foram novamente presos. Aqueles dois foram condenados à morte, como se vê da certidão seguinte: - D. Juan de la Puebla, notário do santo ofício da inquisição de Valhadolid, certifico que estando celebrando o auto particular da fé no convento de S. Paulo desta cidade em 10 de Março de 1701, (…) saíram no dito auto em pessoa, com insígnias de relaxados: Gabriel de Sola, natural da Guarda, reino de Portugal, rendeiro geral dos estancos de tabaco no bispado de Salamanca, Ciudad Rodrigo, Ávila e Zamora, onde vendia os millones, de 56 anos. Ana Maria Conde, aliás, de Vilhena, sua mulher, natural de Zamora, vizinha de Salamanca, de 46 anos. Fernando da Fonseca, natural de Sevilha, vizinho de Salamanca, tratante de açúcar e lenços, de 46 anos. (…) Todos os quais no dia referido foram relaxados em pessoa à justiça e braço secular, como consta de suas sentenças e causas, que estão na câmara do segredo da inquisição de Valhadolid a que me remeto.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: o Patriarca António Ledesma

Quando casou com Catarina da Silva, António Ledesma era já viúvo de Antónia Rodrigues, que lhe dera uma filha, chamada Jerónima Ledesma. Esta terá nascido em Bragança por 1572 e, em Setembro de 1600, na sequência de uma enorme vaga de prisões levada a efeito pela inquisição em Bragança, ela apresentou-se voluntariamente em Coimbra a confessar que andara errada na fé e pedir perdão.  Estava ainda solteira, mas não demorou a casar, com Gaspar Rodrigues, o Pardal, de alcunha, sapateiro. O casal viveu em Bragança, onde lhe nasceram e se criaram dois filhos e uma filha. Um dos filhos chamou-se António Ledesma, como o avô. Nascido por 1604, António Ledesma fez-se mercador e casou em Bragança, com Beatriz Nunes, que lhe deu uma filha, chamada Maria Nunes que casou em Bragança, com Manuel Franco, rendeiro do real d´água. Todos foram presos pela inquisição e deles haveremos de falar, em próximo capítulo. Não sabemos se foi antes ou depois da morte de sua mulher, que António Ledesma rumou ao Porto e ali casou segunda vez com Maria Ferreira de Carvalho, natural de Coimbra e da qual voltaremos a falar. O casal estabeleceu morada em “umas casas sobradadas, ao Postigo das Virtudes, da banda de dentro, que partem com as casas de um homem que ficou em Castela no tempo da Aclamação e da banda de baixo com as casas de António Mendes Carvalho, homem de negócios do Porto, as quais casas comprou na praça pública, por 95 mil réis”.  Mercador judeu que se preza não se limita a um ramo de negócio, antes compra e vende o que aparece. António Ledesma não fugia à regra e apresentava-se como uma espécie de “gestor de negócios” a quem muitas pessoas entregavam “dinheiro ao ganho”, que ele investia em negócios tão diversos como na compra de partidas de bacalhau, caixas de açúcar, rolos de tabaco... e também cordões e cadeias de ouro ou saleiros e jarros de prata. No entanto, a sua atividade principal era a de tendeiro, com uma loja de fazendas situada debaixo do hospital de S. Crispim, à Ponte de S. Domingos, que na altura da sua prisão, estava abastecida com uns “180 côvados de baetas, 15 ou 16 peças de bombazina, 16 ou 17 peças de fustão, 10 arráteis de retrós preto, 3 ou 4 de retrós de cores, uma peça de sutache preto, que terá 35 ou 36 côvados e outras miudezas”. Naturalmente que a loja de António Ledesma era local de encontro de mercadores cristãos-novos estabelecidos no Porto. Mais procurada, no entanto, seria a sua casa de morada pois nela tinha instalado uma “casa de jogo”, de acordo com o testemunho de Vasco Fernandes Campos: - Haverá 3 ou 4 anos, pouco mais ou menos, se achou em casa de António Ledesma, cristão-novo, viúvo não sabe de quem, que dava casa de jogo, com o mesmo, ambos sós, e vendo ele confitente na dita casa uma posta de congro, reparou nisso, dizendo ao dito António Ledesma como comia aquele peixe que era de pele? E ele lhe respondeu que o tinha para mandar de presente, e com estas cenas se declararam como criam na lei de Moisés...  Como se vê, não seria apenas para jogar que ali se reuniam, por vezes em grupo. Veja-se, a propósito, a confissão feita por António Ledesma perante os inquisidores de Coimbra, em 29.8.1658: - Disse que haverá 5 anos, em sua casa, na cidade do Porto, com Vasco Fernandes Campos, cristão-novo, mercador (…) casado em Castela, donde trouxe a mulher haverá ano e meio para Sendim e dali haverá um ano para o Porto, onde são moradores, na rua de Belmonte, e com António Lopes Bacelar, cristão-novo, já defunto, mercador, casado com Grácia Lopes, e com António Carvalho, morador na mesma cidade, natural da Guarda, casado com uma filha de Francisco da Paz e, estando todos 4, se declararam e disseram que viviam na lei de Moisés e por sua guarda faziam o jejum do dia grande… Como se vê, António Ledesma era já viúvo, pela segunda vez. O trato da casa estaria então a cargo de sua irmã, Maria de Ledesma, 4 anos mais nova que ele e que nunca casou. Investida no papel de donade casa e educadora dos sobrinhos, Maria de Ledesma seria uma “doutrinadora” da lei de Moisés. A este respeito, Gaspar Pereira de Carvalho, filho de Catarina Ferreira Ledesma, neto de António Ledesma e Maria Ferreira de Carvalho, secretário do visconde de Ponte de Lima, diria o seguinte: - Haverá 13 anos, foi ele confitente a casa de Maria Ledesma (…) da qual tinha algumas razões de parentesco por afinidade com parentes dele confitente, e por esta razão, tinha ele confitente familiaridade com a dita Maria de Ledesma (…) que o persuadiu a que tomasse a crença na lei de Moisés.  De seguida, Gaspar falou das orações e ensinamentos de Maria Ledesma. Uma dessas orações devia ser repetida 70 vezes, passando em simultâneo as contas, tal como os cristãos repetiam a Ave-Maria, rezando o terço, e era a seguinte: Tantas graças e louvores Vos sejam dadas, Senhor, Como estrelas há no céu, areias no mar, Telhas nos telhados, águas que correm, aves que voam, Pedras compostas, pedras por compor, Louvado e engrandecido seja o nome do Senhor.  E depois de terminar as contas, devia esta reza ser oferecida, olhando-se para o nascente e falando para o céu, dizendo a oração seguinte: Divino Adonay! Recebe a minha oração, Minha rogativa, minha petição, recebe Senhor! Pouco por muito, sucio por limpo, torto por direito, Leva-me Senhor à terra onde não tenha de temer meus inimigos!  Gaspar contou que Maria Ledesma lhe fazia escrever as orações num papel para as estudar e aprender. Esse papel deu-o, 4 anos depois, à sua doutrinadora, quando já dele não precisava e deixou o Porto mudando-se para Lisboa. Registemos uma última oração, que, segundo o ensino de Maria Ledesma, devia ser rezada quando se fosse deitar: Bendito Adonay, nuestro Diós, rey del mundo! El hace cahir suhertes de sueños sobre mis ojos y alumbrame de atroceder encuentros malos y no me conturben sueños malos e tentaciones malas! Bendito Adonay, que alumbra al mundo todo con su honor!  Para além da irmã e dos filhos, em casa de António Ledesma vivia e com ele trabalhava Gaspar Rodrigues Nunes, seu primo direito, originário de Bragança e “contratado” para casar com a sua filha Catarina Ferreira Ledesma, atrás citada. Por agora, resta dizer que António Ledesma foi preso ao início de Abril de 1658, quando um verdadeiro furação arrasou a gente da nação Portuense. Na verdade, só no ano de 1658, foram arrastadas para as cadeias da inquisição mais de 70 cristãos-novos, mercadores na quase totalidade, uma boa parte deles originários da terra Trasmontana: Vila Flor, Torre de Moncorvo, Bragança, Mirandela e Vimioso. A título de exemplo das cumplicidades existentes, veja-se a seguinte declaração feita em 29.8.1658, por António Ledesma: – Disse que haverá 14 anos, na cidade do Porto, em casa de André Lopes Isidro, xn, mercador, defunto, natural de TMoncorvo, se achou com ele e com Manuel Rodrigues Isidro, que será de 36 anos e que agora vive em Lisboa e com Jerónimo Rodrigues, xn, solteiro, mercador, natural de Bayonne e com Policarpo de Oliveira, filho de Luís António de Morais, natural de Madrid e morador no Porto e estando os 5, por ocasião da Páscoa do pão ázimo, convidou o dito André Lopes Isidro a ele e aos outros com umas alfaces e bolos de pão ázimo, por guarda da lei de Moisés comeram as ditas alfaces e os bolos de pão ázimo.  No que respeita a António Ledesma, diremos que saiu no auto- -da-fé realizado em Coimbra em 23.5.1660, condenado em confisco de bens e 4 anos a remar nas galés d´el-rei. Esta parte da pena não a pôde cumprir porque saiu das masmorras da inquisição “quebrado de uma virilha e aleijado de uma mão”. Foi-lhe então comutada a pena para 4 anos de degredo em uma das terras de fronteira da província da Beira. Mais drástica foi a pena aplicada a sua irmã Maria Ledesma, cuja sentença foi lida no mesmo auto: relaxada à justiça secular. 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos: OS LEDESMA – Família e Mobilidade: Judaizar nos Cárceres da Inquisição

Nasceu em Ponte de Lima por 1481. Ignoramos o nome judeu que os pais lhe deram e que ficaria escrito nos livros da sinagoga. Terá sido batizada pela Páscoa de 1497, no cumprimento da ordem do rei D. Manuel, recebendo o nome cristão de Isabel Dias. Em 11.6.1556, sendo já viúva e moradora em Braga, foi presa pela inquisição de Lisboa, acusada de ser “judia rabina e muito sabida nas coisas da lei de Moisés”.(1)
Muitos cristãos-novos de Braga ficaram assustados com a sua prisão, pois que Isabel era mesmo “rabina” que “ensinava coisas dos judeus a todos os cristãos-novos entre Douro e Minho” e que, sendo parteira, “tinha circuncidado muitas infindas crianças”.
Defendeu-se bastante bem das acusações que lhe faziam dizendo que era mulher de 75 anos, que, efetivamente andou errada na fé, mas que abjurava dos erros passados e prometia ser boa cristã. Saiu no auto-da-fé celebrado em 27.2.1557.
Como de costume, ficou no cárcere da penitência, frequentando o colégio da doutrina da fé, para ser bem instruída na doutrina cristã. Foi um alívio para a “nação” de Braga onde, a notícia do auto foi levada por Gaspar Oliveira, “que estivera presente no auto passado e levara a nova a Braga, como Isabel Dias sua sogra não culpara ninguém”. E Gaspar Lopes, falando com Gaspar de Ceia, ourives de Braga, faria um comentário bem elogioso, dizendo:
— Isabel Dias merecia muito porque, podendo falar de muitas pessoas, não falara senão naquelas que a acusaram, que eles estavam em Braga mais cagados que lavados, pelo temor que tinham da dita Isabel e João Gomes dizerem deles.(2)
Em vez de fazer penitência pelos pecados que os senhores inquisidores lhe tinham perdoado, Isabel andava pelo cárcere a doutrinar companheiros e companheiras, ensinando-lhes orações, dizendo-lhe as datas em que caíam os jejuns judaicos e avivando-lhes a fé na lei de Moisés. E nesta missão doutrinadora, Isabel tinha muitos aderentes, a fazer fé na seguinte declaração de Pero Fernandes, solicitador, que andava pelos cárceres a espreitar:
— O dito Pero Fernandes, de Braga, louvando uma Isabel Dias, que era mulher discreta e avisada e que nunca dela puderam (os inquisidores) tirar nada, por mais apertos que lhe fizessem, porque pudera ele dizer muito, porque mais era ensinar e fazer, e então começou a nomear Fulano e Fulano e (…) outros muitos até 17 pessoas, dizendo isto como que sabia ela Isabel Dias destas pessoas segundo as práticas que tinham e que lhe ouviu dizer mais que Isabel Dias tivera cá muita aderência.(3) 
Naturalmente que o proselitismo de Isabel Dias deu nas vistas e os inquisidores decretaram o seu regresso à prisão. E Isabel decidiu proclamar abertamente a sua crença na lei de Moisés. Assim, no dia 12 de Março de 1558, Isabel Dias apresentou-se perante os “senhores inquisidores, deputados e bispo do Algarve”. Perguntada como se chamava, respondeu que seu nome era “Donoyro porque as judias depois que tinham filhas casadas, tinham sobrenome”. Convidada a colocar a mão sobre a Bíblia, cuja capa ostentava uma cruz, respondeu “que tirassem dali aquela cruz, se queriam que ela jurasse”. Tiraram a Bíblia e ela jurou sim, mas “por Deus todo-poderoso que fez o céu e a terra e nunca quis pôr a mão sobre o livro dos Evangelhos”. Perguntaram-lhe se sabia o Credo e ela respondeu:
— Creio em Deus Todo-Poderoso, que fez o céu e a terra – E que não podia dizer mais.(4) 
Antes contou que, em vez do Credo, rezava com as companheiras o “Shemah Israel” e outras orações que ela “rezava em hebraico e as tornava em português para que elas entendessem”. Perguntou-lhe o inquisidor Jerónimo de Azambuja, a razão por que decidira revogar as confissões que tinha feito e afirmar-se judia. Respondeu:
— Porque Nosso Senhor, Rei celestial, a movera a vir desdizer as falsidades que tinha falado contra a Sua Majestade! Disse que cria no Deus de Abraão, de Isaac, Jacob, Moisés, Aarão, David, Salomão e dos santos profetas (…) Que esperava ainda que Nosso Senhor vai mandar o Messias a livrar os filhos de Israel donde estão cativos.(5)
Referiu depois muitas situações de práticas judaicas, no seu ofício de parteira que chegou a ir de Braga a Matosinhos a catequizar uma Catarina Vaz, que também estava no cárcere. Apenas um episódio muito significativo do amor à cultura e aos livros, por parte de Isabel e dos judeus, em geral. Disse que Grácia Pires, de Viana do Castelo, também companheira no cárcere, lhe falou de um livro que lhe deram “que tratava de toda a lei do Senhor” e que seu irmão Francisco Álvares, com medo que lhe apanhassem o livro e o prendessem, o lançou ao rio e que, a partir daí “só lhe vieram infortúnios”.
Escusado será dizer que Isabel Dias foi queimada no auto-da-fé celebrado em Lisboa em 15.5.1558, contando 77 anos de idade. Morreu porque quis afirmar-se “judia rabina e muito sabida nas coisas da lei de Moisés”. O seu nome bem merece ser inscrito entre os mártires do judaísmo.
Voltemos aos cárceres da inquisição de Coimbra, onde então se encontravam muitos “judeus” Trasmontanos, nossos conhecidos. Em particular 3 mulheres que, de algum modo, se relacionaram com a Bracarense Isabel Dias. Veja-se esta apresentação de uma delas, feita pela própria Donoyro:
— No tempo em que esteve nestes cárceres, antes de ir para o colégio, esteve presa com Isabel Lopes, de Torre de Moncorvo, mulher de João da Trindade; e praticando ambas, Isabel Lopes disse que dava graças a Nosso Senhor porque a pusera em companhia dela, Isabel Dias, para a alumiar, porque ela, Isabel Lopes não sabia coisa alguma destas, porquanto tivera dois maridos que não sabiam nada destas coisas, nem seu pai nem sua mãe lhe ensinaram; mas pedira a Isabel Lopes que não dissesse que a ensinara.(6)
Beatriz Lopes foi outra das suas companheiras de cárcere e aparece referida por Isabel Dias nos seguintes termos:
— E assim disse Beatriz Lopes, de Vila Flor, que era verdade o que ela declarante dizia do Messias, e que esperava por ele, ela Beatriz Lopes e que a lei do Senhor era boa e a cantava.(7)
Ignoramos também o nome que os pais lhe deram quando nasceu em Vila Flor, cerca de 1492. Seria “batizada em pé” na Páscoa de 1497, recebendo então o nome de Beatriz Lopes. Os pais, esses faleceram judeus, segundo o testemunho de Beatriz. Opinião diferente tinha a sua conterrânea e companheira de prisão, Ana Gonçalves, dizendo que seu pai “casara suas filhas fora, sendo rabi dos judeus”, em Vila Flor.(8)
Na verdade, Beatriz Lopes foi casar em Bragança, com um criado (escudeiro) do alcaide Lopo de Sousa,(9) chamado Rui Lopes.
Maria Álvares foi outra companheira de Isabel Dias nos cárceres da inquisição, e que a denunciou perante os inquisidores, na forma seguinte:
— Disse que, no colégio jejuou com Maria Álvares o Tisabeth, que tem dito no começo, não comendo senão à noite e disse que se aparecera o Senhor naquele dia, e outras coisas, de quando em quando, como era dizer que andava em penitência em aflição.(10)
Do libelo apresentado pelo promotor de justiça, retiramos a acusação relacionada com Isabel Dias:
— Além das culpas atrás, sobre que estava já riziado, acresceu à ré agora a culpa de Isabel Dias, de Braga, que diz que cantava diante dela (Maria Álvares) coisas de judia, e ele ré folgava e chorava, que é grande sinal de quem tem ainda lembrança daquelas coisas. E diz mais a testemunha que lhe dizia a ré que o Messias havia de vir e que a havia de livrar…(11)

 

Notas:
1 - Inq. Lisboa, pº 1330, de Isabel Dias.
2 - Pº 1330-L, tif 111.
3 - Idem, tif 107. Se, porventura, pode dizer-se que as celas da inquisição eram fábrica de judeus, o caso de Isabel Dias é verdadeiramente exemplar.
4 - Idem, tif 130.
5 - Idem, ttif. 134-135.
6 - Idem, tif 153. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES, Isabel Lopes a estalajadeira de Torre de Moncorvo que esperava a vinda do Messias, in: Terra Quente, de 15.2 2007; IDEM, Nós Trasmontanos, Sefarditas e Marranos, Isabel Lopes (c.1503-depois de 1585), in: Nordeste n.º 1075, de 20.6.2017.
7 - Idem, tif 141.
8 - Inq. Lisboa, pº 13299, de Beatriz Lopes, tif 96.
9 - Lopo de Sousa (1501-1564), alcaide-mor de Bragança, era filho de Pedro de Sousa, da descendência do rei D. Afonso III e de Maria Pinheira, filha de Pedro Esteves Cogomilho, ouvidor da Casa de Bragança, tido como descendente de judeus. Em 1503, Lopo de Sousa era proprietário do edifício que fora sinagoga dos judeus de Bragança, a qual vendeu naquele ano à câmara de Bragança, para servir de cadeia. Ver: ALVES, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança.
10 - Pº 1330-L, tif 146. Tisabeth será o Tishá B’Av, o 9.º dia do mês de Av, o dia de luto mais pesado e rígido entre os judeus, o culminar de um período de 3 semanas de introspeção e penitência, expiando os pecados e lamentando os 5 acontecimentos mais terríveis da história do povo judeu como foram a destruição do Templo de Jerusalém pelos Babilónios e depois pelos Romanos. É tempo de abstinência e expiação, não devendo comer-se carne ou beber vinho, vestir roupas lavadas e tomar banho. Devem também evitar-se as atividades agradáveis e promotoras de explosões de alegria. É também ocasião de ler o Livro de Job e das Lamentações, não outros, nem mesmo da Torah.
11 - Inq. Lisboa, pº 2893, de Maria Álvares, tif 155.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição

Manuel Lopes esteve em Itália apenas uns 10 meses, entre Outubro de 1700 e Agosto de 1701. Obviamente que um dos primeiros objetivos que prosseguiu foi o de se fazer circuncidar. Ele não contou especificamente como as coisas aconteceram, mas fez uma descrição genérica da cerimónia, baseado na sua experiência de circunciso e em outras cerimónias de circuncisão a que assistiu. Veja-se: — Para se circuncidar, juntam- -se 10 homens e um deles serve de padrinho. E este se senta numa cadeira e tem o menino sentado nos joelhos. E logo o homem que faz de ministro, com uma faca, abre a parte do prepúcio e logo com as mãos afasta a pele e com uma tesoura corta um pouco daquela pele e lava a ferida e dois homens lhe aplicam uns unguentos dos vasos que têm nas mãos.(1) Acrescentou que a circuncisão dos meninos se faz normalmente em casa dos pais e não há ministros designados, antes são os pais que os chamam, entre aqueles que estão capacitados para isso. E disse mais: — A parte do prepúcio cortada se guarda num vaso de vidro, que está na sinagoga, e havendo muitos, se entregam aos judeus que vão de Jerusalém a Livorno, para os levarem a Jerusalém e para os lá enterrarem e disseram a ele confitente que os enterravam na ocasião em que enterravam algum judeu.(2) Falou depois da Yeshiva, a escola onde as crianças, a partir dos 4 anos e até aos 8, aprendiam a ler e escrever. E aprendiam também os preceitos da Lei Mosaica, lendo por “um livro pequeno do tamanho de umas horas” em língua castelhana. À escola vão as crianças de manhã, de tarde e à noite. Três vezes por dia vão também os adultos à sinagoga onde “todos os homens se punham pelos ombros um pano à maneira de toalha, a que chamam Tallit e dizem significar capa de Deus, que é de tafetá branco”, o qual tem nas pontas 4 cordões de fios de seda e pelo de cabra, unidos por 3 ou 4 nós e a que chamam “Tzitzit”. E enquanto isso, na sinagoga, rezam em hebraico uma oração que Manuel traduziu assim: — Bendito Adonay nosso Deus, rei do mundo, que nos santificou em suas santas benditas encomendanças e que nos ensinou a pôr os Tzitzit.(3) Manuel Lopes descreveu depois o uso e a forma de cada judeu colocar os Tefillin, em volta do braço, antes da oração na sinagoga e a respetiva oração que ele recitou em hebraico e em castelhano: — Bendito Adonay nosso Deus, rei do mundo, que (…) nos ensinou a pôr os Tefillin.(4) Manuel não soube explicar o significado da usança dos Tallit, dos Tzitzit e dos Tefillin como elementos de preparação para a oração na sinagoga. Continuou, porém, explicando que, depois de estar assim equipados, cobriam a cabeça com o chapéu e se sentavam nos bancos, dizendo 3 orações, sendo que a primeira, chamada Tefillah, era cantada. As outras duas são o Shemá e o Amidá. Também não soube explicar o significado de cada uma destas orações, nem porque as duas primeiras as rezavam sentados e a última “estando em pé e tendo os pés juntos”. As mulheres assistiam, separadas dos homens, sentadas nos bancos que havia nos corredores, à volta do espaço central da sinagoga, mas liam por livros iguais aos dos homens e a que chamavam Minchah, nome que ele não sabia explicar. As ditas cerimónias prolongavam-se por cerca de hora e meia e havia uma sessão de manhã e outra de tarde. Havia um judeu encarregado da sinagoga e que percorria as ruas da cidade chamando os crentes para as orações – o chamador. À noite também havia “juntas” na sinagoga, se bem que com menos gente a frequentá-las. E nesta “junta”, para além do Shemá e do Amidá, havia uma oração que era cantada e se chamava Arbit. Estas cerimónias e ajuntamentos faziam todos os dias da semana, exceto à sexta-feira, dia em que, “logo que saíam da junta, voltavam para as suas casas e os homens despiam os vestidos que ordinariamente traziam e vestiam camisas limpas; e as mulheres, de vestidos compostos, voltavam para a sinagoga, até ao pôr-do-sol”. A essa hora iluminavam a sinagoga, com “grande número de lâmpadas e aranhas e alquimia ao redor da sinagoga”, seguindo-se especial celebração a que apenas acorriam os homens, como o Manuel Lopes explicou para os inquisidores: — As mulheres não vão a estas juntas, porque vão para suas casas, limpando-as e compondo-as e fazendo o que se há-de comer no sábado, porque nele não se acende o fogo nem se faz coisa de trabalho, nem se toca em dinheiro.(5) As lâmpadas na sinagoga ficavam acesas até se gastar o azeite e se apagarem por si. Tal como em casa onde, ao entardecer de sexta- -feira, se acendia a “Menorah, que tem 7 luzes” – acrescentou Manuel, que continuou dizendo a seguinte oração: — Bendito Adonay, meíssima criatura e maravilha para fazer o sábado que guardam em observância da lei dos judeus.(6) No ajuntamento do sábado na sinagoga não punham os filactérios, mas apenas o Tallit. E, além das 3 orações referidas, Manuel disse que cantavam “certos Salmos de David”, acrescentando mais informações: — E logo se põe o Tebah, que é a modo de tribuna, no que chama para o ofício de Hazan um porteiro que apregoa a ordem de Hazan para correr a cortina da Arca aonde está a Lei e para abrir as portas e tirar dali a Lei e levá-la até à Tebah (…) e voltam a colocar na Arca a Lei, e correm as cortinas e o dinheiro que isto importa se distribui e reparte entre os pobres, em diferentes dias da semana, que não seja sábado, porque no sábado não se pode mexer em dinheiro. E o judeu que leva a Lei desde a Arca à Tebah, a entrega ao Hazan e este, sem dizer palavra, a mostra ao povo donde para que todos a vejam. E na junta de sábado à tarde, o dito Hazan sobe à tribuna e diz Daras (?), que é o sermão em que explica segundo a Lei de Moisés…(7) Chamado a falar sobre as celebrações festivas judaicas, ao longo do ano, Manuel Lopes começou pelo Pessah, semelhante à Páscoa dos cristãos. Prolonga-se a celebração por espaço de 8 dias “em que não comem pão levedado, nem o amassam as mulheres, nem tão pouco trazê-lo para a celebração na sinagoga”, que enfeitam com tafetás e terciopelos, acendendo muitas luzes pelos corredores e também “no solo, no meio da sinagoga”. E durante aqueles 8 dias que dura o Pessah, cantavam e rezavam orações distintas e também alguns salmos. Sobre a Páscoa das Cabanas, o Sucot, disse que cada um a celebrava em sua casa, em parte não coberta, fazendo uma cabana de canas, coberta com murta. Na cabana ceavam e acendiam a Menorah de 7 luzes. Acrescentou que não sabia por quanto tempo a celebravam. O mesmo sobre a Festa das Rosas, Roshaná: que não recordava do tempo nem das cerimónias que especificamente faziam. Disse também que não sabia a data em que caía o Kipur, festividade maior, celebrada em memória da destruição de Jerusalém. Porém, acrescentou as seguintes informações: — Comem em sua casa às 3 da tarde, assentados no chão e com sapatos e sombreros, vão à sinagoga, adornada em conformidade. E nas ditas páscoas, estão assentados no chão, toda a noite, até ao outro dia de tarde, cantando e rezando orações pertencentes à dita destruição de Jerusalém. E pela dita tarde, o Hazan sobe ao Tebah e dizem o Doras em idioma castelhano; e acabado, se levantam do solo e se sentam nos bancos e começam com a oração da noite, que se chama Arbit e o Shemah e Amidah e acabada, voltam para suas casas. E em todo o tempo que dura a festividade, não comem até ter saído a estrela; e alguns, saindo da sinagoga, vão para sua casa, mas não dormem na cama, mas no chão, em memória dos judeus de Jerusalém que naquelas noites dormiram no campo, na terra. E estas cerimónias e o jejum observam todos os judeus.(8) Falámos já de muitas pessoas, familiares e amigos, conhecidos de Portugal que Manuel Lopes encontrou em Livorno fazendo vida de judeus e usando nomes hebraicos. Resta apresentar o líder da nação sefardita de Livorno, o Trasmontano Gabriel de Medina, de que Manuel Lopes disse: — Conheceu em Livorno a Gabriel de Medina, não sabe de onde era natural, nem se era batizado, mercador de ofício, que tinha 4 ou 5 navios por sua conta para o comércio, mas sabe que era judeu e o viu assistir na sinagoga. E ouviu dizer que era casado e tinha um filho de 13 anos, e no dia em que os completou, ofereceu à sinagoga o fabricar de novo a escola da dita sinagoga; e não se recorda ter ouvido o nome de sua mulher e filho.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição

No texto anterior acompanhamos Manuel Lopes na mudança de Chacim para Lisboa, pelo ano de de 1697. Na Primavera de 1699, aconteceu um verdadeiro êxodo da gente da nação de Chacim e Lebução, Bragança e Mogadouro, diretamente ligada à família de Manuel Lopes. Certamente aterrorizados com as sucessivas vagas de prisões que assolavam Trás-os-Montes, planearam a fuga para Livorno, a partir de Lisboa.(1) O plano terá sido elaborado em conjunto com familiares ou amigos que estavam já vivendo naquela cidade italiana. Concretamente, sabemos que Gaspar Lopes e Manuel Fernandes Pereira, que em Itália viviam, eram conhecidos, amigos, vizinhos e aparentados com o pai de Manuel Lopes. Veja-se a seguinte confissão feita na inquisição de Valhadolid por Luís Lopes Penha, irmão do Manuel: — Haverá 20 anos, estando no Mogadouro com seu pai, António Lopes Pereira (…) lhe dissera que havia dado notícia a Gaspar Lopes, seu vizinho, mercador que era por esse tempo no Mogadouro, como havia instruído na lei a ele declarante e assim cria e seguia como o dito Gaspar. E que também havia dado a mesma notícia a Ana Pereira, mulher do dito Gaspar, sobrinha de seu pai, e a Branca Pereira, filha dos mesmos Gaspar e Ana e a Manuel Fernandes Pereira, médico e marido de Branca Pereira.(2) Eram também aparentados com a família de António Rodrigues Mogadouro, que morreu na inquisição de Lisboa e seu sobrinho Gabriel de Medina, um grande empresário em Livorno, que tinha 4 ou 5 barcos ao seu serviço, segundo informação de Manuel Lopes, pelo que será legítimo colocar a hipótese de o plano de fuga daqueles 48 judeus ter sido arquitetado com ele. Não vamos aqui falar do plano, nem das circunstâncias que envolveram o embarque e a malograda fuga que terminou bem perto. Vamos apenas falar do reencontro de Manuel Lopes com alguns desses familiares que, alguns anos atrás, deixara em Trás-os-Montes, com essa “nação em fuga, de Trás-os-Montes”. Um dos grupos era constituído pelos seus tios Lopo Nunes Ferro e Isabel Cardosa, de Lebução, em cuja casa ele se criara até aos 12 anos. Com eles chegaram 2 de seus filhos, solteiros: Luís Lopes Penha(3) e Manuel Mendes. Neste grupo de gente ida de Lebução contava-se ainda uma filha de Lopo e Isabel, chamada Jerónima da Costa, o marido desta, Dr. Manuel António Nunes, médico (graduado em Salamanca, neto do Dr. Manuel Mendes, de Chaves) e a sua mãe, Violante Nunes (filha do mesmo Dr. Manuel Mendes e de sua primeira mulher, Beatriz Nunes, de Vinhais), v.ª de Ventura da Costa (irmão do citado Lopo Nunes). Integravam ainda o grupo de Lebução a tia Beatriz Cardosa, acompanhada do filho Luís Lopes Penha,(4) da nora, Feliciana Rodrigues (natural de Peyreorade) e 4 netos, o mais velho dos quais andaria pelos 8 anos. Estas 14 pessoas chegaram a Lisboa ao final do mês de Março, conforme contou Manuel Lopes aos inquisidores de Barcelona: — As ditas famílias no tempo que ali estiveram detidas que não sabe o tempo certo, mas lhe parece que foram alguns 20 dias viveram numa casa junto ao Correio, que tinha sido arrendada e prevenida por Domingos da Costa para outra família, que não sabe quem era que havia de vir de Bragança.(5) Da cidade do Porto chegou um outro filho de Lopo e Isabel, chamado Ventura António Nunes Ferro,(6) acompanhado da mulher, Branca Jerónima da Costa, da cunhada, Mécia Marcos, e da sogra Maria Henriques, filhas e mulher do Dr. Francisco Marcos Ferro, de Torre de Moncorvo, que então se encontrava preso na inquisição de Coimbra, acrescentando Manuel Lopes a seguinte informação: — Tendo saído Francisco Marcos da inquisição, foi à cidade do Porto, onde tinha fazenda, e sabendo que a dita sua mulher e filhas estavam fora da inquisição e com esta notícia o dito Francisco Marcos foi a Lisboa e dali mandou-as chamar e foram para Faro, onde de presente vive, com tenda de diferentes mercadorias (…) e ele tinha-os visto em Lisboa (…) em casa dos sobreditos que era na Rua da Palma.(7) Ao Lagar do Sebo, em Lisboa, iam muitas vezes o Manuel Lopes e o irmão e mais ainda a Beatriz Pereira, sua cunhada, a casa de um parente chamado Francisco Rodrigues Pereira Lopes, o Porron,(8) de alcunha, natural de Mogadouro, e sua mulher, Ana Lopes, de Chacim. Aliás, visitavam-se mútua e frequentemente, como disse Manuel Lopes: — O motivo que teve ele confessante de o conhecer e tratar ao dito Francisco Lopes e a sua mulher e filhos, foi por ter vindo para a sua casa desde a cidade do Porto, o dito Francisco Lopes, seu primo, de quem tem declarado em audiências antecedentes, e ter ido a vê-lo em companhia do dito João Ventura, seu irmão e repetiram juntos algumas vezes as visitas e outras ia ele sozinho. E mediante este trato e familiaridade viu em repetidas ocasiões que se juntavam e visitavam numa casa e em outra, a dita Ana Lopes e Beatriz Pereira, mulher de seu irmão João Ventura.(9) A vida do Porron em Lisboa não seria fácil a crer no testemunho de Manuel Lopes, que “não viu que Francisco Lopes tivesse ofício algum e vivia de esmolas que lhe davam e de lavrar chocolate e vendê-lo”. Também ele e a mulher, a filha e 2 filhos que tinha, embarcaram para Livorno, “na ocasião que a dita Isabel Cardosa embarcou no mesmo navio; e para se sustentar na viagem juntou dos ditos judeus, que lhe davam esmola, quantidade de dinheiro para que se proviesse nesse ano na embarcação”. Ana Lopes era natural de Chacim e tinha uma irmã chamada Beatriz Lopes, casada com Manuel de Sá, em Rebordelo, junto a Lebução. E estes foram outros dos membros da “nação” que rumaram a Lisboa, com intento de fugir para Livorno. Manuel Sá era um dos 3 passageiros que levavam mercadoria consignada a Gabriel Medina – 22 rolos de tabaco e 4 caixas de açúcar branco. Não vamos aqui falar dos outros fugitivos (eram 48 no total) nem da tripulação do barco. Diremos tão só que o navio estava registado no porto de Génova e zarpou de Lisboa em 13.4.1699. Três dias depois, aportaram a Cádis e todos os fugitivos foram presos pela inquisição de Castela. Mas estas são contas de outro rosário.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição

No episódio anterior assistimos à mudança de Manuel Lopes, irmão e cunhada de Chacim para Lisboa. Em Lisboa, fixaram residência na freguesia de S. Nicolau. Como João Ventura aprendera em Bragança o ofício de tecelão de seda e em Chacim se metera a negociar aqueles tecidos, não lhe seria difícil conseguir trabalho e meios para se governar na capital. Os restantes membros da família empregaram-se “em fazer chocolate e vender”. E estas são as informações que temos acerca do seu modo de vida por cerca de 3 anos, até conseguirem sair de Portugal, no ano de 1700, e mudar-se para Livorno. Embora Manuel o não o diga textualmente, deixa, no entanto, entender que, na chegada a Lisboa, contaram sobretudo com o apoio de Francisco Lopes Pereira, seu primo paterno, filho de sua tia Beatriz Lopes, ou Cardosa. A propósito desta sua tia, veja-se a declaração feita por Manuel Lopes perante os inquisidores: — Agora está lembrado de novo que, em uma ocasião (…) o dito Francisco Lopes, seu primo, estando em sua casa, falando de umas prisões que se haviam feito no reino, (…) disse o dito Francisco Lopes que sua mãe estava na Holanda e os judeus lhe chamavam a Velha dos Tormentos, porque estava baldada dos braços, por causa do tormento que lhe haviam dado, estando presa na santa inquisição. E uma filha que estava com ela na Holanda, havia estado sentenciada à morte pela inquisição, e por ser tão formosa, a Rainha a tinha livrado e não se recorda dos nomes da dita mãe e irmã, nem se haviam sido presas em Cádis, se em Portugal, mas que ele estava com ânimo de ir-se para a Holanda, para viver em liberdade e estar com as ditas mãe e irmã; e quando não pudesse ganhar a vida, lá os judeus o sustentavam, como costumam fazer com outros velhos impedidos de o fazer, como faziam com a sua mãe. Mas ele, confessante não tem notícia que se tenha passado para a Holanda.(1) Francisco andaria então na casa dos 40 anos “e empregava- -se em Lisboa vendendo pelas ruas especiarias e papel”, conforme o testemunho de Manuel que, também o apresenta como dono de um estanco de tabaco em Santiago da Galiza, de onde passou para a cidade do Porto, antes de fixar morada em Lisboa, onde casou, com Branca de Chaves, natural de Santa Valha, termo de Vinhais. Manuel falou também de 3 filhos de Francisco e Branca (Leonel, Manuel e Francisca) que casaram com 3 irmãos (Clara, Leonor e Salvador), filhos de outro Francisco Lopes, o Saias, que “tinha um posto de tabaco na rua de Santo Antão da Mouraria, cirurgião, embora não saiba do ofício”.(2) A casa de Francisco situava-se na Mouraria, em uma rua “que está junto à rua de Santo Antão” e devia ser uma casa bem espaçosa, a avaliar pela gente que ali era recebida. Assim, em um quarto alugado, morava Manuel da Costa que “ensinava a tecer em Lisboa, como tem declarado e foi em Lisboa seu mestre tecedor”, e morava “em um quarto alto, de que pagava o aluguer”. Foi também na casa do primo Francisco que Manuel Lopes conheceu João Bom Dia, ou melhor, Dom João Bom Dia, negociante em Serpa, no Alentejo que ali ficava alojado quando vinha a Lisboa “a fazer sortimento para a sua tenda (…) e lhe parece que era castelhano porque falava muito bem o castelhano”.(3) E também na mesma casa, durante um mês esteve alojado Simão de Vivar, seu parente. O seu verdadeiro nome era Simão Brandão, nascido em Mogadouro, por 1637, filho de Francisco Rodrigues da Paz e Clara Rodrigues. Tinha uns 15 anos quando fugiu para Castela, depois que a inquisição prendeu seu pai, sua mãe, sua irmã, Maria Brandoa, em Mogadouro e seus tios João e Francisco Rodrigues Brandão, em Torre de Moncorvo, para além de outros mais parentes. Em Castela mudou o nome e inventou uma nova identidade, dizendo ser filho de um fidalgo de Sevilha, cristão-velho, chamado Don Alfonso de Vivar. Isso, porém, não o livrou de ser preso pela inquisição de Toledo, que o desterrou de Madrid. Regressou a Portugal e fixou-se em Lisboa, com uma empresa de fabrico de chocolate e de compra e venda de tecidos de seda, que exportava para Espanha. Por vezes é referido como contratador, o que significa homem de grandes recursos financeiros. Em 1703, foi preso pela inquisição de Lisboa.(4) Já atrás se falou de David Brandão,(5) nascido em Moreira, filho de Gaspar Rodrigues e de Inês Rodrigues, neto materno de Francisco Brandão e Maria Rodrigues, de Torre de Moncorvo. Manuel Lopes conheceu David em Lisboa quando cumpria a penitência, vestindo o sambenito para ir à missa aos domingos. Atentemos, novamente, na declaração, feita a propósito, por Manuel Lopes: — Ele confessante o viu cumprir a penitência na igreja de S. Lourenço, de Lisboa, tendo no tempo que se dizia missa, vestido o sambenito e acabada, punha-o debaixo da capa, e o levava a casa de Manuel Lopes Galego, onde estava hospedado, por ser parente de Ana Cardosa, sua mulher, e de Luís Cardoso Pereira, seu cunhado, e algumas vezes que ele confessante o viu com o sambenito ouvir missa na dita igreja ao dito David Brandão também assistia com as mesmas insígnias e com o mesmo fim o dito Gabriel Rodrigues Pinto,(6) natural de Moreira, filho de Manuel Pinto e Leonor Rodrigues. E este último o levava, debaixo da capa, de volta para sua casa, que tinha no Bairro de Alcântara onde vendia tabaco.(7) Pois, também este Gabriel Pinto estava ligado à família de Francisco Brandão e a Torre de Moncorvo, já que era neto paterno de Violante Rodrigues, irmã de Francisco Brandão. Como atrás se disse, a nação hebreia de Torre de Moncorvo foi completamente desmantelada no terceiro quartel do século XVII. E terminamos estas notas sobre a vivência de Manuel Lopes com o irmão em Lisboa, voltando a casa de seu primo Francisco, com a descrição de uma cena feita por aquele, acontecida em casa de seu primo, com o intérprete, citado ao início, como protagonista: — Entrando ele confessante uma ocasião em uma sala ou aposento da casa onde vivia o dito Francisco Lopes, seu primo, estava com este o dito José, que, logo que entrou, não sabe se por casualidade ou de propósito, o dito José fechou um livro e o pousou sobre uma mesa; e tendo chegado ele confitente à dita mesa, o abriu e reconheceu que era letra hebraica; e depois que o dito José, intérprete, se foi, levando o livro, perguntou ao dito seu primo o que era que estava fazendo o dito intérprete; ao que lhe respondeu que explicava em língua espanhola algumas cerimónias da lei de Moisés que constavam no dito livro em língua hebraica.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição

No último texto ficámos em Chacim onde assistimos ao casamento de João Ventura, irmão de Manuel Lopes. Ao lado da casa de João Ventura e Beatriz, morava o casal constituído por Simão Pereira e Francisca Dias,(1) ambos com 70 ou mais anos, ele natural de Chacim e ela de Vila Flor, onde tiveram morada até depois de 1670. E ter-se-ão mudado para Chacim depois que foram presos e saíram penitenciados pela inquisição de Coimbra. Deles, poucas mais referências nos dá Manuel Lopes, para além de dizer que eram seguidores da lei de Moisés. Podemos, no entanto, dizer que Simão e Francisca não deixaram descendência. E se Simão e Francisca fixaram morada em Chacim, já o António Pereira irmão daquele e Isabel Rodrigues,(2) irmã de Francisca, ficaram por Vila Flor. Ambos foram presos, em 1662, pela inquisição de Coimbra, saindo António condenado em penas espirituais e Isabel degredada por 5 anos para Angola. Depois disso, António Pereira internou- -se por Castela, assentando morada no Porto de Santa Maria, na costa do Mediterrânio. Por lá andou durante 9 anos, com passagem pelas celas da inquisição de Sevilha onde penou por 41meses. No entanto, parece que “o mandaram para sua casa, solto e livre, mandando entregar-lhe os seus bens sem ir a auto”. António Pereira regressou a Portugal, sendo novamente preso, em 1681, pela inquisição de Lisboa, acusado de falso testemunho. É que, entre as confissões que fizera na inquisição de Coimbra, denunciara como judeu, um ferrador de Roios, Vila Flor, que foi preso. Este conseguiu provar que não era judeu e nunca tinha judaizado…Deste processo António Pereira não saiu tão bem, pois foi desterrado por 3 anos para Castro Marim. Nesta altura, o casal já se tinha reencontrado e morava na Rua das Mudas, em Lisboa, onde, por 1678, Isabel Rodrigues catequizava os seus filhos (Francisco Rodrigues Pereira, Gabriel Pereira Mendes(3) e Francisca Mendes Pereira) na lei de Moisés. Ao tempo que Manuel Lopes viveu em Chacim, certamente ouviu falar dos irmãos e dos sobrinhos de Simão Pereira e Francisca Dias. Veja-se o que ele contou aos inquisidores: — Também está recordado de novo que ouviu dizer a seu tio João Dias Pereira e a Diogo Lopes Marques, seu cunhado, que Diogo Nunes Pereira, que era rendeiro do vinho, portos secos e alfândegas, morador em Lisboa, e tinha um irmão chamado Gabriel Pereira Mendes, casado em Santarém, com tenda de panos de seda…(4) Na verdade, Diogo Nunes Pereira não era irmão de Gabriel mas seu cunhado, por ser casado com a irmã deste, Francisca Mendes Pereira. Diogo era filho de outro António Pereira, de Torre de Moncorvo, que foi queimado pela inquisição e sua mulher, Maria Nunes Pereira.(5) Deixemos Santarém e a tenda e casa de Gabriel Pereira Mendes, sita na Rua Direita, avaliada em 7 ou 8 mil cruzados (cerca de 3 contos de réis!) e voltemos a Chacim onde era notória alguma diferenciação social dentro da ”nação hebreia”, a avaliar pelos depoimentos constantes de muitos processos. Inclusivamente ao nível da localização das moradias, com os mais abastados mercadores e fabricantes de seda vivendo na zona alta da vila, em redor da praça. Em baixo, nas margens da Ribeira, habitavam sobretudo os curtidores. Obviamente que estes, na medida em que crescia o seu poder económico, procuravam ofícios e profissões mais nobres para os filhos, de modo a ascender na escala social. Uma importante família de curtidores de Chacim era a dos Tinoco, originários de Torre de Moncorvo. Com efeito, 3 filhas de Luís Lopes Tinoco e Catarina Martins foram casar e morar em Chacim, com os maridos dedicando-se ao trato das peles: Brites Lopes Martins, casou com António Lopes, curtidor e, ficando viúva, casou 2.ª vez com Gabriel Rodrigues; Isabel Rodrigues, a Marquesa,(6) casada com Jorge Lopes, curtidor, e Maria Henriques. Sendo a dita Maria Henriques casada com seu primo André Lopes, curtidor, sobrinho materno de Jorge Lopes. Com toda esta gente se cruzou Manuel Lopes e disso deu conta aos inquisidores de Sevilha. Por seu turno, um irmão de André Lopes, chamado Manuel Lopes Pereira, o Galego, de alcunha, casou com Ana Cardosa, como atrás se viu. Em Chacim, a casa e horta do Galego seria um espaço muito procurado para ajuntamentos em oração, a crer nos depoimentos recolhidos dos processos de sua mulher e filhas. Vejamos um deles, prestado por Ana Cardosa: — Haverá 6/7 anos, em Chacim, chegou a sua casa Antónia Pereira, viúva e Catarina e Brites, solteiras, filhas de André Lopes, cunhado dela confitente e de Maria Henriques, e Filipa e Guiomar, cristãs-novas, filhas de António Lopes e Leonor Henriques, filha de Francisco Cardoso e Isabel Henriques, cristãos-novos, e Isabel Henriques ou do Vale, filha de Manuel Rodrigues e Branca Henriques e também estavam presentes Violante Maurícia e Ângela Maria, suas filhas; e estando todas, disse o dito António Pereira que vinha chegando o jejum do dia grande, que era necessário que todos o fizessem (…) e todos se juntaram em casa dela confitente (…) e passados 3 ou 4 dias, foram as sobreditas pessoas para casa dela (…) e fizeram o dito jejum do dia grande…(7) Talvez por ser assim notório o judaísmo de Manuel Galego e sua mulher, é que, logo que em Chacim começou uma nova onda de prisões por parte da inquisição, eles deixaram a terra e se foram para as partes de Coimbra, mais concretamente, para Vila Verde, junto a Buarcos. E dali se mudaram para Lisboa. Um dos primos de Manuel Lopes, filho de sua tia Isabel Cardosa, de Lebução, chamava-se Ventura António Nunes Ferro, o qual, sendo ainda solteiro, se foi para a região da Andaluzia, Castela, com os irmãos mais velhos. Pois, aconteceu que, quando Manuel e João viviam em Chacim, ali veio ter o primo, fazendo escala na viagem para a cidade do Porto onde tinha combinado casar-se com Branca Gomes, filha do advogado Francisco Marcos Ferro que atrás encontrámos em Torre de Moncorvo. Veja-se como Manuel Lopes contou o caso: — Quando o dito Ventura António Ferro foi ao Porto para casar, ficou de noite em Chacim em casa de João Ventura, seu irmão dele confitente, por ser lugar de carreira e transito para o Porto. E se recorda que deu um dobrão a ele confitente.(8) Em Livorno, os primos voltarão a encontrar-se, com Ventura Ferro usando o nome de Abraham Nunes. E encontrar-se-ão ainda antes em Lisboa, para onde os dois irmãos seguiram, depois de uma permanência de ano e meio em Chacim, acompanhados de Beatriz Pereira, mulher da mulher de João Ventura e de Maria Manuela, sua irmã. Dissemos atrás que os filhos de Isabel Cardosa e Lopo Nunes tinham todos os olhos azuis e o cabelo ruivo. Vejamos agora o retrato de João Ventura, feito pelo seu irmão: — Sinais de João Ventura Lopes, seu irmão dele confitente: baixo e redondo de corpo, cara larga, branca, olhos azuis, barba ruiva, pouco farta, sobrancelhas da mesma cor, cabelo curto e crespo, 25 anos, natur

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição - 12

Em Bragança terá permanecido Manuel Lopes cerca de ano e meio. Depois, abalou com seu irmão, João Ventura, rumo a Chacim, onde este tinha contratado o casamento com Beatriz Pereira, filha de Bartolomeu Pereira e Joana de Gamboa. Luís Lopes ficou em Bragança mais algum tempo, vivendo com os sogros, antes de voltar a Castela. Chacim era a sede de um pequeno concelho medieval e a sua população não passaria dos 150 agregados familiares, com uma grande percentagem de gente da nação hebreia, uma “nação” muito florescente, do ponto de vista económico e financeiro, empenhada, fundamentalmente, em duas atividades industriais extremamente rentáveis: os curtumes e o fabrico de sedas. Mercê do desenvolvimento que essas indústrias então conheciam, Chacim era, possivelmente, o povoado trasmontano em maior desenvolvimento, que tinha um campo da feira “com lojas e tendas de mercadores e se contrata em sedas e couramas, que tudo a faz rica” – conforme escrevia Carvalho da Costa. (1) Isto explica que Chacim registasse então um forte movimento imigratório, com muita gente ida de Bragança, Vinhais, Lebução, Mogadouro, Torre de Moncorvo, Vila Flor… Só nas listas de pessoas presas pela inquisição em Chacim, acusadas de judaísmo, encontramos mais de 4 dezenas de adventícios. Era uma verdadeira “nação em movimento”, a de Chacim. Daquela lista de adventícios não constam os nomes de Manuel Lopes e João Ventura, ali chegados pelo ano de 1696. E também não constam de uma lista de 33 cristãos-novos que o comissário da inquisição, abade de Chacim, Manuel Gouveia de Vasconcelos, tempos depois enviou para Coimbra denunciando que “no dia de S. Bruno, a 6 de Outubro do ano passado de 1696, andaram com camisas lavadas e alguns a traziam em folha, e sem trabalharem, como se fora dia santo, nem de suas casas saía fumo até à noite, presumindo-se que jejuariam o seu dia grande”. (2) Muito provavelmente Manuel Lopes e João Ventura estavam em Chacim naquele dia de S. Bruno, 6 de Outubro de 1696 e ali terão festejado o Kipur. João Ventura estava então casado de fresco com Beatriz Pereira, filha de Bartolomeu Pereira e Joana de Gamboa, esta originária de Santulhão, termo de Vimioso, onde o casal morou algum tempo. Bartolomeu e Joana eram já falecidos e ambos tinham conhecido as cadeias da inquisição, ele em 1649 e ela em 1667. (3) Outra filha de Bartolomeu e Joana chamou-se Branca Pereira e estava casada com Domingos Nunes, um primo de Manuel, filho de sua tia Isabel Cardosa, que o Manuel conhecera em Lebução e que, na altura do casamento de João e Beatriz, tinha já fugido de Chacim para Livorno onde, 4 anos depois, voltará a encontra- -lo. Aliás, foi em casa de Domingos e Beatriz que Manuel e João ficaram alojados, quando chegaram a Itália. Nessa altura Domingos e Branca tinham já aderido abertamente ao judaísmo e chamavam-se Isaac Nunes e Rosa Gomes, respetivamente. Maria Manuela, era também filha de Bartolomeu e Joana. Tinha 23 anos e encontrava-se solteira, a viver em Chacim, com seu irmão, Jerónimo Pereira Pacheco. Este era o chefe da família, depois que faleceu o patriarca Bartolomeu Pereira. Jerónimo andava nos 32 anos, estava casado com Isabel Henriques do Vale, que foi presa pela inquisição, no seguimento da vaga de prisões de que atrás se falou, acabando queimada em Coimbra. (4) Jerónimo viria a falecer ainda antes. A propósito da família daria Manuel Lopes o testemunho seguinte, perante os inquisidores de Barcelona, em 1703: - Jerónimo Pereira (Pacheco), defunto, casado que foi com Isabel Henriques do Vale, presa em Coimbra e, segundo ouviu dizer, o dito Jerónimo e Beatriz sua irmã, e também Maria Manuela também irmã da dita Beatriz e Jerónimo Pereira a quem ele confitente viu observar a dita lei dos judeus, e na ocasião que todos iam a casa de seu irmão João Ventura e outras vezes na de cada um dos ditos irmãos a que vinha e concorria o dito João Ventura, como observante da mesma lei. (5) Tal como o pai, Jerónimo Pereira era mercador e vendia tabaco, conforme resulta do testemunho de Francisco Sá Carrança, tendeiro de Bragança, prestado na inquisição de Coimbra e, 8.8.1702: - Disse que haverá 5 ou 6 anos, em casa de Jerónimo Pereira, defunto, casado com Isabel Henriques, se achou com os mesmos e com os filhos Leonor e Manuel e com Branca, irmã de Isabel e com Isabel Henriques, filha de Branca, e com João Lopes Castilho, genro de Branca, casado com Leonor, (6) ausentes, e ouviu dizer que estão presos em Castela, por ocasião de ir a casa de Jerónimo Pereira comprar um pouco de tabaco, os achou com os melhores vestidos, fazendo juntos o jejum do dia grande… (7) A modos de tentar perceber um pouco do ambiência religiosa desta família, vejamos o depoimento de Maria Ferreira, filha de Pedro Ferreira, curtidor, prestado em 20.9.1704: - Disse que haverá 2 anos, em Chacim, em casa de Branca Henriques, se achou com ela e com Isabel Henriques do Vale, mulher de Jerónimo Pereira e com Manuel do Vale, filho da mesma (…) e faziam o jejum do capitão, que vem 8 dias antes do dia grande, e o de S. João, preparando-se para este 3 semanas antes, sem se pentearem nem vestiram roupa lavada senão na véspera dos ditos jejuns e pelo decurso do ano havia de jejuar às quintas- -feiras de lua nova; e em Fevereiro haviam de jejuar o jejum da Rainha Ester, que será de 3 dias e 2 noites, vestindo na primeira camisa lavada, estando em todas elas sem comer nem beber senão na última noite; e que haviam de rezar a oração do padre-nosso sem dizer Jesus no final e ofereciam os ditos jejuns ao Deus do Céu e somente haviam de crer e rezar ao Deus do Céu.