António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição - 11

Em 1700, depois de conseguir o contrato do tabaco na província de Salamanca, por qualquer razão que Luís não conseguiu explicar, o tio João Dias Pereira abandonou Castela e regressou a Portugal, com toda a sua família. Possivelmente foi o medo de ser preso pela inquisição de Castela, o que seria extremamente grave para Guiomar Lopes que, aos 15 anos, passara pelas celas da inquisição de Valhadolid. Na altura era ainda solteira, tal como a sua amiga e companheira de prisão, Ana Maria Vilhena, filha de António Ramires, a qual, quando cumpria a pena nos cárceres da penitência, casou com o também prisioneiro e penitente, Gabriel de Sola. (1) Aliás, a relações entre a família de João Dias Pereira e a dos Ramires ficou patente no casamento de Luís Lopes. Para além disso, chegou a ajustar-se o casamento de Manuel, filho de João e Guiomar, com Maria Rodrigues, filha de Josefa Ramires. E seria por ver prender novamente Ana Maria Vilhena e Gabriel Sola pela mesma inquisição, que Guiomar Lopes e João Dias Pereira se resolveram abandonar Castela e regressar a Portugal. Aliá, tempos depois, “os inquisidores de Lisboa mandaram executar os decretos de prisão que vieram da inquisição de Valhadolid, contra João Dias Pereira, sua mulher, Guiomar Lopes e seus filhos Manuel Dias Pereira e Pedro Dias Pereira”- como se lê no processo de Guiomar. Luís Lopes ficou então por sua conta e risco com o estanco de Benavente, acompanhado pela mulher. E também ele, em 31 de Dezembro de 1701, seria preso pela inquisição de Valhadolid. Depois, não sabemos o que lhe aconteceu. Do processo instaurado pela inquisição de Lisboa a Diogo Lopes Marques, consta parte do processo de Luís Lopes Penha, recebida de Valhadolid. Daquele processo retiramos a seguinte oração, que Diogo e Luís rezavam pela manhã, ao levantar: - Bemdita la lux del dia e el Senhor que nos la imbía para nos dar pax e alegria e saber e entender para depues de morirmos bolbermos a aparecer neste mundo de claridade. Amen. (2) E uma outra, que rezava a qualquer hora do dia: Ó alto Diós grande Senhor creador del universo; Senhor a Ti me confesso por muy grande pecador; en errar perdon Te pido, no me des lo que yo meresco, dademe ajuda Y favor que promittiste a Daniel: la venida del Messias cumprase en nuestros dias; mandadenos el mensageiro que nos saque del captiveiro e yo e toda a gente viva en gloria del Senhor. Amen. (3) Voltemos então a Bragança aos anos de 1696, ao encontro de Manuel Lopes, que morava com o irmão João Ventura, tecelão de sedas, ofício em que Manuel foi também metido a aprender, durante “coisa de ano e meio”. O mestre, muito provavelmente seria Manuel da Costa, sogro de seu irmão Luís Lopes. Sobre aquele mestre, que depois se mudou para Lisboa, acrescentou Manuel Lopes: - O dito Manuel da Costa ensinava a tecer em Lisboa como tem declarado e foi em Lisboa seu mestre tecedor. (4) Estamos então perante um agregado familiar inteiramente dedicado à produção de fio e panos de sedas. Vejamos, a propósito dessa produção, e comércio dos produtos, em articulação com Lopo da Mesquita, o testemunho de Manuel Lopes: - Por muitas e repetidas vezes foi ele confessante a sua casa por seda para que a tecessem em diferentes telas os ditos João Ventura e Luís Lopes, seus irmãos, e Manuel da Costa, sogro de Luís Lopes. E, tecidas as telas, devolvia-as e entregava ao dito Lopo da Mesquita, homem rico. E entre as coisas que tratava era uma em seda de pelo para fazê-la tecer em diferentes ocasiões. (5) Cumpre dizer que o negócio das sedas de Lopo de Mesquita passava também pelo Porto, onde estava o seu irmão Salvador Pimentel que as vendia para diversas partes, no país e no estrangeiro. (6) Recordam-se de Pedro, um jovem de Bragança que andou em Lebução aprendendo o ofício de torcedor de seda com o mestre Jerónimo Álvares? Certamente que aquela não foi a única escola/oficina que frequentou, como diria Manuel Lopes: - Ouviu dizer que o dito Pedro que tinha aprendido o ofício de torcedor na cidade de Bragança, em casa de Lopo de Mesquita. (7) Também o Pedro tecia obra para Lopo da Mesquita e a ligação dos irmãos Lopes Pereira com ele era estreita e a razão não era apenas profissional mas também familiar. É que, a mulher de Pedro chamava-se Isabel e era “algo parente” de Manuel Lopes e seus irmãos. Com Pedro e Isabel vivia uma irmã desta e sobre a morte daquela, Manuel Lopes contou: - Depois de estar um ano em Bragança, morreu a dita Isabel e soube pela sua irmã e pelo dito João Ventura Lopes que estando perto da morte, pediu ao dito Pedro, seu marido, que envolvesse seu corpo em um lençol novo depois de morta e que assim havia feito, e ele confitente a viu defunta e lhe tinha posto o hábito de S. Francisco e debaixo o dito lençol novo, cerimónia que estilam (costumam) os judeus. (8) A propósito, Manuel aproveitou a oportunidade para falar dos ritos mortuários entre os judeus, contando aos inquisidores: - Quando esteve em Livorno, viu que os que morriam judeus os lavavam com água quente de rosas e outras ervas e lhe quebravam um ovo na cabeça e a limpavam e lavavam com a dita água e lhe cortavam as unhas e, envoltos em um lençol sem estrear e os metiam em uma caixa.(9) Ficando viúvo de Isabel, Pedro casou com a cunhada e foram-se para Itália, onde Manuel Lopes os encontrou, tendo já um filho de 4 anos “e o dito Pedro seu pai o ia levar à escola da sinagoga onde o viu muitas vezes”. Outros parentes mais afastados que Manuel Lopes conheceu em Bragança foram os irmãos Alexandre, Domingos e Manuel da Costa Miranda, primos segundos de Lopo Nunes Ferro, que o criou em Lebução. Mais tarde, quando Lopo Nunes e Isabel Cardosa, sua mulher, saíram da inquisição de Lerena e ali cumpriam a sua penitência, eram aqueles parentes de Bragança que lhe enviavam socorro para se sustentar. Estes 3 irmãos eram filhos de Isabel Nunes e Domingos da Costa. Manuel Lopes voltará a encontrá-los em Lisboa, onde serão presos pelo santo ofício, em 1703. (10) Como encontrará outros mais “judeus” que conhecera em Bragança.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição - 10

Quando Manuel Lopes foi enviado para Lebução e entregue aos cuidados de sua tia Isabel Cardosa, os irmãos Salvador Lopes e João Ventura Lopes foram levados para Bragança e Luís Lopes Penha, o mais velho, seguiu para Benavente, em Castela, para casa de seu tio paterno João Dias Pereira. De Salvador pouco mais sabemos. Apenas que aprendeu em Bragança o ofício de torcedor de sedas e que emigrou para Espanha onde se tornou “soldado de a cavalo do exército de Castela”. (1) João Ventura Lopes teria 11/12 anos quando, por 1685, chegou a Bragança para ser educado pelos pais adotivos: Manuel Rodrigues, o clérigo, de alcunha e sua mulher Inácia Maria Pereira, que o meteram a aprender o ofício de tecelão de sedas. Era um ofício de muito futuro e João Ventura breve se tornaria independente, vivendo em casa própria. E foi em sua casa, por 1685, que recebeu o irmão Manuel Lopes, vindo de Lebução. Inácia Maria Pereira era natural de Mogadouro, filha de Baltasar Lopes e Branca Pereira. Por 1680, Inácia residia ainda em Mogadouro, segundo contou Maria Rodrigues, uma cristã-velha, a escudeira, de alcunha, natural de Macedo do Mato, criada de servir em casa de Gaspar Lopes e Maria Pereira: - Disse que, morando ela em Mogadouro no ano de 80, pouco mais ou menos, em casa de Gaspar Lopes, o surdo por alcunha, natural de Moncorvo e morador em Mogadouro, ausente para as partes de Holanda, morrendo Maria Pereira, mulher que foi de Luís Lopes, morador hoje em Bragança, Ana Pereira, mulher que foi de Gaspar Lopes, e Inácia Maria, natural de Mogadouro, moradora hoje em Bragança, mulher de Manuel Rodrigues, por alcunha o clérigo, irmãs da dita defunta, a amortalharam com camisa nova em folha e lençol novo que mandaram comprar à tenda… (2) Esta seria uma das denúncias que levaram a inquisição de Coimbra a mandar prender Inácia Maria, em 6.7.1697. Manuel Rodrigues, o clérigo, de alcunha, era natural de Bragança, filho de António da Costa, (3) da conhecida família dos Costa Vila Real. Acerca de João da Costa Vila Real, (4) seu irmãos, Manuel Lopes disse “que vivia na Rua Direita junto à praça, e junto ao colégio dos apóstolos”, acrescentando que ”ele confessante nunca entrou em sua casa”. Mas se em Bragança nunca entrou em sua casa, o mesmo não aconteceu alguns anos depois em Lisboa, quando foi a casa do mesmo João da Costa Vila Real, com um escrito do irmão João Ventura, pedindo ajuda em momento de aflição, por doença deste. Aliás, a mãe de João da Costa Vila Real, Leonor da Costa, era também natural de Torre de Moncorvo. E se, do lado paterno, o Clérigo se ligava à família Brigantina dos Vila Real, pela parte materna, ele pertencia à família dos Franco e o seu filho Baltasar Lopes Franco (5) casou com Violante Nunes Pereira, filha de António Rodrigues, o Cachicão, e de Isabel Rodrigues que, ficando viúva, entrou para o convento de Santa Clara, em 1699. Uma irmã de Violante Pereira chamada Luísa Mendes, foi a mãe do dr. António Gabriel Pissarro, (6) e ascendente do famoso pintor Camille Pissarro, nascido na ilha de S. Tomás (hoje Ilhas Virgens Americanas) e falecido em Paris. Na chegada de Manuel Lopes a esta cidade, por 1695, não estaria apenas o irmão João Ventura a recebê-lo, mas também o irmão Luís Lopes que, meio ano antes, casara também em Bragança, com Ana Gomes, filha de Manuel da Costa e Ângela Gomes, moradores em Castela. A língua que falavam era a castelhana e por castelhanos eram tratados em Bragança. Um irmão de Ana Gomes, Daniel da Costa, tecelão de sedas, casou com Clara Ramires, filha de António Ramires, sapateiro, natural de Benavente. Como se vê, em a família Ramires mantinha estreitas relações com Luís Lopes e seu tio João Dias Pereira. Aliás, em Castela terá sido contratado o casamento de Luís e Ana. E também foi Luís Lopes que nos deixou testemunho sobre Josefa Ramires como crente e catequizante judaica. Veja- -se a singeleza da cena descrita por Luís: - Depois de estar um mês em Benavente, veio a casa do dito seu tio Diogo Lopes Marques, solteiro e residente ao dito tempo em Astorga, estanqueiro do tabaco, e irmão de Guiomar Lopes, que veio ver a irmã, que não via há muitos anos. E na tarde do dia seguinte que chegou à dita casa o dito Diogo Lopes e estando detrás da tenda dela ele declarante e Guiomar Lopes, os três sós, a dita Guiomar Lopes perguntou se ele Diogo Lopes era cego, ou estava cego. A isto ele respondeu que não estava cego porque seu tio Manuel Rodrigues, de Astorga, mercador, e sua mulher, Josefa Ramires, o haviam ensinado nas coisas da lei de Moisés. (7) Terá sido emocionante o encontro dos 3 irmãos que, 10 anos antes, ficaram órfãos e foram separados. Já vimos que o Manuel foi criado em Lebução e o Ventura em Bragança. Vamos agora olhar um pouco para o curso de vida de Luís Lopes, por terras de Castela, sob a proteção e cuidados de seu tio paterno, João Dias Pereira, (8) casado com Guiomar Lopes, natural de Rebordelo, os quais traziam subarrendado o estanco do tabaco naquela terra. (9) Chegado a Benavente, Luís foi mandado pelo tio a aprender a arte de tecelão de seda, certamente o curso de formação profissional mais seguido pelos jovens da nação hebreia de Bragança, Chacim, Lebução e outras, naquela época, o qual durava 4 anos, mais um que a generalidade. Não haveria, porém, de exercer tal profissão pois o negócio do tabaco se expandia, muito lucrativo que então era, e Luís Lopes foi integrado na rede familiar de negócios do tio. Começou com ele em Benavente, a distribuir tabaco aos retalhistas, mas logo o tio o mandou a tomar conta do estanco de Villalobos (Zamora) cujo contrato conseguiu. Passou depois a Ocaña, viajando por Madrid onde permaneceu uma semanada, em casa de Diogo del Rio “que tinha uma oficina onde trabalhavam a seda”. Ocupou depois idêntico posto em Balderas, León e Villalpando, Zamora. Nesta rede familiar se incluía ainda o estanco do tabaco em outras localidades e, no abastecimento dos postos e controlo na distribuição, a partir da “casa do peso” trabalhava em rede com o tio João, com o primo Manuel Dias Pereira, com Diogo Lopes Marques, cunhado do tio, irmão de sua mulher, e com outros parentes, filhos de Álvaro Mendes, que na família casaram, como atrás se viu. E trabalhavam ainda dois filhos solteiros de Álvaro Mendes, idos de Lebução: António Correia e Pedro Álvares, “acomodados no estanco de Astorga” por João Dias Pereira.

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Será que as celas da inquisição funcionavam com escola de correção e educação cristã? Ou, ao contrário, se transformavam em fábrica de judeus? Na verdade será difícil tirar uma conclusão definitiva. E o caso de Lebução é bastante exemplar. Com efeito, a generalidade dos penitenciados, não esmoreceu na crença da lei de Moisés. Regressados a Lebução, todos eles voltaram a judaizar, mais ou menos abertamente. Os relatos de Manuel Lopes a esse respeito são eloquentes. Duas décadas depois da passagem pelas celas da inquisição, em casa de seus tios, nas noites de sexta-feira, juntavam-se todos em “sinagoga”, para a oração. Vejamos o seu testemunho: - E as Juntas que tem declarado, que se faziam em Lebução em casa da dita sua tia Isabel Cardosa, a que assistiam os que ali nomeou, se reduzia principalmente do que se lembra, a entrarem todos juntos, especialmente à 6.ª feira à noite, em um aposento mais retirado da casa, e ali rezavam- -se diferentes orações, que são as mesmas que tem declarado nas suas audições de 28 e 29 de Março, e se rezavam na sinagoga, e as mais vezes as diziam de memória, e outras vezes as liam por um livro castelhano que não se lembra o titulo, nem o autor nem de quem era, e do tamanho de 3 dedos de alto, como nas horas manuais, que pelos demais o repetiam em voz baixa. E da mesma maneira, quando de memória diziam as ditas orações, tudo para não serem ouvidos e sentidos e alguns das dita juntas copiavam as orações do dito livro para as aprender de memória, e os que já as sabiam, chegavam onde havia água corrente e desfaziam o dito papel, cópia das ditas orações, que se desfaziam e não ficava coisa alguma dele. E ele confitente, ainda que não se recorde de quais dos sobreditos copiavam as ditas orações, está certo que as copiavam no dito aposento retirado, mas não viu algum deles desfazer o papel ou cópia na água mas lembra-se de ter ouvido de alguns deles. (1) Onde chegava o medo e a imaginação! Temendo que lhe apanhassem os papéis com as orações judaicas, logo que as memorizavam, desfaziam-se deles nas águas dos ribeiros! Entre as pessoas referidas por Manuel, como participantes nas “juntas” em casa de Isabel Cardosa e Lopo Nunes, contavam-se, por exemplo, o Dr. Manuel Mendes; Manuel Campos, parente do mesmo, pelo lado paterno, e sua mulher, Maria de Mesquita; Brás Cardoso Nunes, sobrinho paterno do Dr. Manuel Mendes, e Clara Nunes, sua mulher; Domingos Nunes e sua mulher Branca Gomes (2) … e outros mais que, 20 anos atrás, conheceram as celas da inquisição. E não se juntavam apenas em sinagoga, em dias de sexta-feira. A guarda do sábado, como dia santo, era preceito que, na terra, seguia a gente da nação, e para o guardar e celebrar, “se juntavam ora em casa de uns ora em casa de outros” – acrescentou Manuel Lopes. Há uma ideia bastante generalizada que os “marranos” foram esquecendo as orações e adulterando os ritos e cerimónias da sua lei, à medida que os anos e os séculos passaram. Até que ponto essa ideia terá correspondência com a realidade? Pois, o testemunho de Manuel Lopes mostra exatamente o contrário. Ele diz que as orações e os ritos que se faziam em Lebução, em casa de sua tia Isabel eram “as mesmas” que se faziam em Lisboa em casa de seu tio João Dias Pereira e na sinagoga de Livorno, em Itália. Vejamos, a título de exemplo, algumas das orações que rezavam em volta de uma refeição em família. Antes de mais, deviam lavar- -se as mãos e este ato era acompanhado da seguinte oração: - Bendito Adonay rei do mundo que nos santificou em seus santos; benditas encomendanças nos ensinou sobre a limpeza das mãos. (3) Partir o pão será um dos primeiros gestos da refeição. Um gesto que, segundo contou, era acompanhado da récita seguinte: - Bendito Adonay nuestro Diós, rei do mundo e pão da terra. E ao oferecer de beber a qualquer que esteja sentado à mesa, ao tomar o vinho na mão: - Bendito Adonay nuestro Diós sacan fruto de vide. E sendo água diziam: - Bendito Adonay nuestro Diós rei do mundo que tudo foi por sua palavra. Já atrás se disse que, em Lebução, guardavam os sábados, juntando-se “ora em casa de uns, ora em casa de outros”. E tanto em Livorno como em Lebução, nas sextas de tarde, as mulheres “vão para suas casas, limpando-as e compondo-as e fazendo o que se há- -de comer no sábado, porque nele não se acende o fogo, nem se faz coisa de trabalho, nem se toca em dinheiro”. Porém, as circunstâncias originam por vezes, atitudes rituais muito próprias. Veja-se, a propósito, o testemunho de Manuel Lopes sobre algumas atitudes rituais observadas em casa de seus tios: - A dita Isabel Cardosa e mais família faziam e diziam as mesmas cerimónias, orações e jejuns e guardas de sábado que tem declarado se faziam em casa do dito João Dias Pereira, seu tio. E ele confitente viu a dita sua tia Isabel Cardosa por duas ou três vezes no tempo que esteve em sua casa, não se recorda o tempo determinado, descalçar-se os pés, e pô-los, estando em pé, embora encostada a uma cadeira, sobre grãos-de-bico. E assim mesmo, por quatro ou cinco vezes, a viu quedar-se vestida, indo-se todos dormir, junto do fogo, e dizia a dita sua tia que tudo isto fazia por penitência, sem explicar outra coisa mais. E as orações e cerimónias declaradas no capítulo imediato antecedente assim todas as pessoas que tem dito as viu fazer em observância da lei de Moisés, porque se comportam todos da mesma maneira e uns por outros, assim nas juntas que os viu fazer também em Bragança os viu fazer em casas particulares. (4) Falou-se atrás dos ajuntamentos que se faziam em casa de seus tios e de algumas pessoas que neles participavam, assim como das celebrações do “sabath” ora em casa de uns ora de outros. Importará, pois falar um pouco dessa gente que em Lebução se relacionou com Manuel Lopes, para entender a ambiência da terra. Desde logo, o Dr. Manuel Mendes, que era filho do médico Pedro Álvares e sobrinho materno de outro (Pedro Dias da Mesquita). Médicos também, foram dois de seus filhos: Diogo Mendes, formado pela universidade de Coimbra e Manuel Mendes, (5) como o pai, formado pela universidade de Santiago da Galiza. Médico também, formado em Salamanca, foi o seu neto Manuel António Nunes, que casou com Jerónima da Costa, prima de Manuel Lopes, filha de Isabel Cardosa e Lopo Nunes. Nesta galeria de médicos falta colocar o retrato do médico Francisco Nunes Ramos, cunhado de Manuel Mendes, irmão de sua primeira mulher, Brites Nunes e Luís Bernardo Campos Pereira, que estudou em Salamanca e Coimbra, neto paterno do Dr. Manuel Mendes, filho de Baltasar Mendes Cardoso e Teresa Maria de Campos. Como se vê, com 8 médicos numa única família, (haveria mais?) bem podemos afirmar que Lebução era uma terra de médicos. Mas era também uma terra de fabricantes e mercadores de tecidos de seda. Já se falou de Lopo Nunes e do sirgo que comprava para trabalhar a seda, tal como se falou de Pedro que aprendeu em Lebução o ofício de torcedor de seda com o mestre Jerónimo Álvares. Torcedor de seda, igualmente, era Manuel Vaz Campos, um dos homens que Manuel Lopes conheceu em Lebução com frequência na “sinagoga” de seus tios, em Lebução. Álvaro Mendes se chamou o filho mais velho do Dr. Manuel Mendes, o qual casou com sua prima Maria da Fonseca. Um filho e 3 filhas deste casal estão particularmente ligados à família de Manuel Lopes e certamente ajudaram a colorir os seus dias em Lebução. Com efeito, por 1690, chegou a Lebução, vinda de Castela, a sua prima Isabel Dias Pereira, filha de seu tio João Dias Pereira, para casar com Manuel Dias da Mesquita, filho de Álvaro Mendes. Veio acompanhada e “guardada” pelo tio materno Diogo Dias Marques que, por sua vez, casou, na mesma altura, com Clara Nunes, também filha do mesmo. E um terceiro casamento ficou contratado: o de Manuel Dias Pereira, irmão de Isabel Pereira, com Isabel Maria Mendes, (6) outra filha de Álvaro Mendes. E seria depois daqueles casamentos que Manuel Lopes deixou Lebução, levado por Diogo Lopes Marques para Bragança. Pouco tempo depois, Manuel Lopes soube que Clara Nunes falecera, ficando Diogo Marques viúvo. Mas logo haveria de casar com Leonor Henriques, irmã da falecida.

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Por 1656, Luís Lopes Penha, o avô de Manuel, ter-se-á deslocado de Madrid a Lebução, acompanhado de sua terceira mulher, para participar no casamento de Isabel Cardosa, (1) sua filha e de sua segunda mulher Branca Cardosa. Aliás, também a noiva era natural de Madrid, de onde terá vindo para ser educada em Lebução. Possivelmente, também seria por essa altura que Beatriz Cardosa, irmã de Isabel, veio de Madrid para Chaves, onde ficou a viver e de casamento marcado com Francisco Lopes, aliás, Jacob Rodrigues, atrás citado. O noivo de Isabel chamava-se Lopo Nunes (Ferro) e era natural de Madrid. Sua mãe, Jerónima da Costa, nascida em Bragança, era irmã de Pedro Marcos Ferro, que encontramos a viver em Torre de Moncorvo. E toda a família de Lopo Nunes estava morando em Castela, exceto o irmão mais novo, Ventura Nunes (Ferro) de seu nome, que aos 16 anos já morava em Lebução, terra onde casou mais tarde com Violante Nunes, irmã do Dr. Manuel Mendes. Por agora ficamos em Lebução, uma pequena aldeia que era anexa da Castanheira. (2) Ali haveria uma grande percentagem de núcleos familiares de origem hebreia, umbilicalmente ligada a Rebordelo, Chaves e Vinhais e em constante movimento e trato comercial com terras de Castela. Talvez por isso mesmo, surgiu em Lebução, por aquela altura, uma rede de passadores de judeus, cujos serviços eram contratados até por gente de Lisboa, Coimbra e Porto que, pela rota de Lebução, fugia para Castela. (3) A propósito, veja-se uma certidão passada por Manuel do Canto, notário do santo ofício de Coimbra: - Certifico e dou fé que, para passar a presente, vi o caderno das denúncias e mais papéis pertencentes aos cristãos-novos de Bragança e vila de Vinhais e seus arredores e nele, desde a primeira folha até às 43 estão algumas cartas de Luís Figueiredo Bandeira (4) familiar do santo ofício, tenente general da província de Trás-os-Montes e governador de Bragança, hábito de Cristo que corre com as prisões e diligências do santo ofício, e delas consta avisara a mesa desta inquisição que muitas pessoas da gente da nação das ditas terras e do lugar de Lebução tinham fugido para Castela, depois que naquelas partes se começaram as prisões do santo ofício e outras muitas andavam abaladas e vendendo apressadamente suas fazendas e se entendia ser para também fugirem com medo e receio de serem presas pelo santo ofício… (5) Esta certidão foi apresentada como prova para se proceder às primeiras prisões levadas a efeito em Lebução pelo santo ofício nas pessoas de Antónia Cardosa e sua prima segunda Isabel Nunes, (6) em 5.3.1659. A respeito daquela, diremos que era irmã de Isabel Dias, a terceira mulher de Luís Lopes Penha, conforme sua confissão feita em 11.9.1660: -Disse que haverá 3 anos, em Lebução, em sua casa se achou com sua irmã Isabel Dias, viúva de Luís Lopes Penha e ela é moradora em Lebução. (7) Para além do receio de fuga, aquelas ordens de prisão resultaram de denúncias feitas por parentes de Vinhais que estavam presos. Como esta de Filipa Nunes: - Disse que haverá 3 anos, em Vinhais, sobre os muros onde foram ver umas comédias, se achou com sua prima por via paterna, Antónia Cardosa, natural de Vinhais, moradora em Lebução e ali casada com Pedro Nunes… (8) Antónia Cardosa nasceu em Vinhais, por 1633. Viveu em Madrid e regressou a Vinhais por 1654, casando, de seguida, com Pedro Nunes Campos, da mesma vila. O casal estabeleceu morada em Lebução e ali moravam quando Antónia foi levada para os cárceres da inquisição onde veio a falecer, em 27.6.1661. (9) No seguimento destes processos, o santo ofício lançou uma larga operação, ao início de Junho de 1662, prendendo em Lebução uma dezena de cristãos-novos, acusados de judaísmo. E vendo fazer aquelas prisões, praticamente todos os outros se puseram a caminho de Coimbra, apresentando-se livremente a confessar que tinham judaizado. A generalidade dos que se apresentaram saíram levemente condenados no auto- -da-fé de 9.7.1662. Os que ficaram presos, saíram todos no auto de 26.10.1664 e as penas foram muito semelhantes: sequestro de bens, cárcere e hábito penitencial. A partir de então, não se registaram mais prisões em Lebução, por parte do santo ofício. Isto, porém, não significa que as práticas de judaísmo tenham terminado. Antes pelo contrário, a acreditar na conversa que Jerónimo Álvares teve com o padre Gonçalo Lopes, junto à raia de Castela, andando este à caça de perdizes e aquele fugido, depois que prenderam sua irmã: - Disse que ela não sabia judaizar mas que os inquisidores os ensinam a judaizar e no fim ficam a judaizar. (10) E se não houve mais prisões em Lebução é porque muitos dos homens e mulheres da nação hebreia abandonaram a terra e se foram viver em outras bandas.

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Voltemos atrás, ao filho primogénito de Luís Lopes Penha, nascido em Mogadouro, cerca de 1629 e ali batizado com o nome de António Lopes Pereira. Sabemos que repartiu a mocidade negociando, entre Mogadouro e Castela. Em data que não conseguimos averiguar, foi casar em Torre de Moncorvo, com Maria Rodrigues, filha de João Rodrigues e Manuela Dias. O casal morou algum tempo em Moncorvo, mudando-se depois para o Mogadouro onde, por 1680, faleceu Maria Rodrigues, deixando 4 filhos: Luís Lopes Penha, de 10 anos, João Lopes Ventura, de 7, Salvador, de 4 Lopes e Manuel Lopes, o protagonista deste trabalho, recém-nascido. Aliás, presumimos que a mãe faleceu na sequência deste parto. Da vivência de António Lopes com seus filhos, temos o relato feito pelo filho mais velho, o Luís, na inquisição de Valhadolid em 10.2.1702: - Disse que, sendo de 10 anos e vivendo com seus pais António Lopes Pereira e Maria Rodrigues, já defuntos, no Mogadouro, e tendo morrido a dita sua mãe, havia coisa de um mês, disse a ele confitente seu pai e a seu irmão João Lopes Ventura, que no dito tempo seria de 7 anos, estando os três sozinhos, num aposento de sua casa aonde seu pai dormia, disse o dito seu pai, que havia ele confitente e seu irmão de sacar a alma de sua mãe das penas do purgatório e levá-la para o céu. E que a isto respondeu ele declarante e seu irmão que faziam o que pudessem, ainda que fosse necessário perder a vida. Ao que seu pai respondeu que para consegui-lo não necessitavam senão de estar sem comer nem beber pelo tempo de 24 horas, rezando algumas vezes padre-nosso, sem dizer ao fim Jesus. E convencendo- -os aos dois a fazê-lo, como seu pai dizia, naquele mesmo dia, seu pai e eles, do poente ao sol, comeram uma potage de garbanços e um pouco de peixe, dizendo seu pai que era para fazer a primeira ceia do jejum que haviam de fazer com ele pela alma de sua mãe e que até à noite seguinte, à mesma hora, não haviam de comer nem beber. E assim o fizeram ambos, rezando pela manhã e pela tarde um rosário de padre-nossos sem dizer Jesus ao final e sem estar presente seu pai. (1) Assim explicou Luís como foi introduzido por seu pai na prática da lei de Moisés, contando em seguida outras práticas e cerimónias judaicas e ditando várias orações que seu pai e sua avó materna lhe haviam ensinado. (2) Sim, para o Mogadouro se mudou também a sogra de António Lopes, chamada Manuela Dias, talvez depois da morte da filha, para cuidar dos netos. E à responsabilidade desta avó ficaram as 4 crianças, quando o pai morreu, por 1686. Por pouco tempo, já que a avó tratou logo de os encaminhar para junto de outros familiares que melhor pudessem educá- -los e introduzi-los na vida ativa. Assim: Luís Lopes Penha foi enviado para Benavente, Castela, para casa do tio paterno João Dias Pereira que, na região de Salamanca, trazia arrendada a venda do tabaco, com muitos familiares empregados em diversos estancos. Breve o Luís ficaria encarregado de um deles. (3) João Lopes Ventura foi enviado para Bragança, para casa da sua parente Inácia Maria Pereira, casada com Manuel Rodrigues, o Clérigo, de alcunha, onde aprendeu a arte de tecelão de sedas e de quem haveremos de falar mais adiante. Da infância de Salvador Lopes Penha, não temos qualquer informação. Sabemos tão só que, em 1702, quando contava uns 24 anos, se encontrava servindo o exército de Castela como soldado de cavalaria, conforme informação de sua “tia” Guiomar Lopes. Manuel Lopes, o mais novo, foi levado para Lebução, para casa de sua tia paterna Isabel Cardosa, como se verá. Porém, antes de prosseguirmos, acompanhando a infância de Manuel Lopes em Lebução, fiquemos em Torre de Moncorvo, procurando as suas raízes. E a primeira constatação é que na sua terra natal não conseguimos identificar qualquer parente seu. Tal como a sua avó materna, que era natural de Moncorvo e se passou para Mogadouro, deve dizer-se que todos os parentes que o Manuel encontrou ao longo da vida, originários de Torre de Moncorvo, andavam em outras terras portuguesas ou no estrangeiro. A Torre era uma terra completamente limpa da heresia judaica. É que, entre 1640 e 1670, a inquisição levara a efeito uma verdadeira operação de limpeza da etnia hebreia. Recuemos então àqueles anos de 1640, quando o promotor do tribunal do santo ofício de Coimbra solicitava as primeiras prisões, argumentando deste modo perante os inquisidores: - Ilustríssimos Senhores (…) A Torre é terra nova em que importa ao serviço de Deus entrar a Inquisição, que fez muito fruto entrando também por testemunhos de cerimónias em Quintela e Sambade. (4) Foi o início de uma alterosa vaga que, nos anos seguintes, arrastou para as celas da inquisição mais de 7 dezenas de cristãos-novos Moncorvenses, com todas as consequências, ao nível da economia, da sociedade e da cultura, ainda mais, tratando-se do sector mais dinâmico da sua população. E a operação de limpeza foi conduzida com tal eficiência que, uma dúzia de anos depois da primeira investida, em 1652, o comissário local da inquisição, que liderou o processo, Pedro Saraiva de Vasconcelos, (5) escrevia para os inquisidores de Coimbra: - Os cristãos-novos desta vila se fugiram todos para Castela e só ficaram três casas, que também farão o mesmo; porém, dizem que alguns estão escondidos em Vila Flor, que é a sua cidade de refúgio, com intenção de passarem a Castela. (6) Certamente que alguns ficariam em Vila Flor, o tempo suficiente para se desfazerem de alguns bens que não podiam levar e cobrar alguns dinheiros que tinham em mãos alheias. Mais ainda ficaram por Mogadouro, mas todos acabaram por se internar por Castela ou rumar ao Porto e Lisboa onde eram menos conhecidos e poderiam apanhar uma barco para uma terra onde pudessem livremente afirmar a sua religião. Facto é que, depois desta vaga não houve mais prisões em Torre de Moncorvo, nem manifestações públicas de judaísmo.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Lopes um judeu do tempo da inquisição 3

Manuel Lopes continua a descrever na inquisição de Barcelona o seu percurso de vida: Torre de Moncorvo, Lebução, Bragança, Chacim, Lisboa,Livorno.

 

Chegados a Livorno, trataram de arranjar forma de viver, empregando-se João Ventura na sua arte a tecer lenços de seda. Manuel, que não tinha completado a formação de torcedor de sedas e por isso não podia exercer a profissão, foi a servir em casa de um mercador chamado Samuel. (1) Ao fim de dois meses, Manuel e o irmão foram circuncidados, tornando-se judeus públicos. Adiante haveremos de ver a descrição da cerimónia, feita na casa de morada de seu primo e companheiro de infância em Lebução, Domingos Nunes Ferro, que os acolheu. 

Em casa de Samuel, serviu como criado, por 4 meses e pouco. Saiu, por desentendimentos que teve com um filho do seu amo. Logo seu irmão, conversando com Abraham do Vale, lhe arranjou novo emprego, na cidade de Pisa, em casa do pai deste, que se chamava Jacob do Vale. Pai e filho eram casados, “homens ricos e de negócio” que tinham vindo de Jerusalém.

Em Pisa, encontrou Manuel alguns conhecidos de Lebução. Um deles chamava-se Jerónimo Álvares, e era mestre torcedor de sedas, que em Pisa exercia também o ofício de cirurgião. Tinha com ele a mulher, Antónia Lopes, 1 filho e 3 filhas. Uma delas casou naquela altura, com um homem cujo nome o Manuel não soube dizer, mas que era o marido de Ângela, a mulher que em Alicante embarcou com um cunhado e vinham exatamente a tentar impedir este casamento. Não impediram, porque o marido a rejeitou, baseado no facto de ela o ter traído. (2)

O outro chamava-se Pedro e era natural de Bragança. Fora para Lebução a trabalhar como oficial torcedor de seda em casa de mestre Jerónimo. De Lebução regressara a Bragança para casar com uma Isabel. Ao cabo de um ano, Isabel morreu e Pedro ficou com uma irmã da falecida, Leonor, de seu nome, e com ela se foi para Itália, onde Manuel Lopes voltou a encontrá-los. E todos frequentavam a sinagoga de Pisa “onde se faziam as mesmas cerimónias que em Livorno”.

Não se fez velho em Pisa o Manuel Lopes. Ao fim de 2 meses e pouco, regressou a Livorno. E então aconteceu mais uma história exemplar. Pedro, o torcedor de seda de Bragança e Lebução, também deixou Pisa e voltou para Livorno, juntamente com a mulher e um filho que tinham, hospedando-se também em casa de Francisco Nunes Ferro. Vinha disposto a regressar a Portugal, dizendo que não conseguia sustentar a família. Porém, os dirigentes da comunidade, receando que o regresso dele e da mulher os levasse às prisões da inquisição e arrastasse outras mais prisões, lá lhe arranjaram emprego e apoios financeiros para se manter em Livorno. 

O mesmo não aconteceu a Manuel que, pouco tempo depois, ao fim de 9 meses de estadia por Itália, embarcou em um navio francês com destino à pátria sefardita, metendo-se a servir o capitão do navio, para pagar a viagem.

Chegou a Lisboa em agosto de 1701 e foi viver para casa de seu tio paterno, João Dias Pereira, vindo de Castela pouco tempo antes com a família e que logo o mandou a terminar o curso de torcedor de seda em casa de um tecelão chamado Manuel da Costa.

Desta vez ficou-se por Lisboa durante um ano e pouco, mas teve ocasião de ver muita gente conhecida, de saber de muitos parentes e amigos presos pela inquisição em Trás-os-Montes e outras terras e presenciar muitas fugas, com medo do santo ofício. Inclusivamente, teve oportunidade de assistir à celebração de um auto-da-fé, na igreja de S. Domingos, em 22.3.1702, recordando-se que na procissão, entre o palácio da inquisição e a igreja reconheceu Ana Cardosa e suas filhas, Ângela e Violante Maurícia, que iam vestidas com o sambenito, entre os penitentes. (3)

Ana Cardosa era natural de Almendra, terra de Riba Côa, onde viveu até aos 16 anos, altura em que foi ajustado o seu casamento com Manuel Lopes Galego, (4) de Chacim, terra onde o casal assentou morada. Anos depois, receando ser presos pela inquisição, foram-se para Lisboa, onde o Galego “vendia especiarias pelas ruas”, enquanto não surgiu oportunidade de fuga para o estrangeiro. Manuel Lopes encontrou-o, a primeira vez na rua de S. José e depois foi muitas vezes a sua casa. A propósito, desta família, contaria aos inquisidores:

- Depois de se ter celebrado o dito auto-da-fé, foi muitas vezes vê-las ele confitente a sua casa, que a tinham na rua de S. Antão da Mouraria e também na rua dos Canos, para onde depois se mudaram (…) E continuando a ir vê-los à dita rua dos Canos, na ocasião lhe dissera a dita Ana e seus filhos, perguntando por Manuel Lopes Galego, porque havia alguns dias que o não via, nem havia encontrado em casa, que os ministros da inquisição, tinham ido perguntar pelo dito Manuel Lopes Galego, marido e pai de seus filhos, e presumindo que o queriam prender, se tinha escondido em casa de Luís Lopes Pereira, seu cunhado. E que, continuando os ditos ministros a ir perguntar por ele, tinham respondido que estava na tenda a vender açafrão; e com estes temores, dispusera-se a ausentar-se de Lisboa, como o fez, embarcando-se em um navio pesqueiro, que se chamava Estafeta, da Holanda, e estando já embarcado o dito Manuel Lopes Galego e o dito Luís Cardoso Pereira, irmão de Ana Cardosa, o foi acompanhando e a seus filhos e filhas uma noite até um sítio que se chama Belém, distante de Lisboa uma légua, recebendo-o por já estar avisado, o capitão do navio, da lancha, e se foram com efeito para a Holanda. (5)

Companheiro assíduo nas andanças de Manuel por Lisboa era um Gabriel Rodrigues Pinto, natural da vila de Moreira e morador no Porto, filho de Manuel Pinto, de Torre de Moncorvo, o qual estivera preso na inquisição de Coimbra e saiu penitenciado em 11.12.1701. (6) A propósito, diria Manuel Lopes:

- Gabriel Rodrigues Pinto esteve preso em Coimbra por judaizante, e sabe, por ser público em Lisboa, por ele próprio ter dito e também Francisco Marcos Ferro, de quem já disse. E saíram os dois ao mesmo tempo da inquisição de Coimbra (…) Gabriel cumpriu a penitência e parte dela na paróquia de S. Lourenço, em Lisboa, com sambenito; e acabada a missa, tirava-o e o levava debaixo da capa, de volta a sua casa, que tinha no Bairro de Alcântara; e vendia tabaco (…) de 32 anos, alto, bem elegante de corpo, nem gordo nem magro, cara larga, branca, olhos azuis, barba e sobrancelhas e cabelo ruivo irizado e curto e um pouco calvo até ao pescoço. (7)

Aliás, foi através de Gabriel Pinto que Manuel Lopes conheceu o intérprete, de quem atrás se falou, assim como Francisco Marcos Ferro, Simão de Vivar, David Brandão e outros, originários de Torre de Moncorvo e Mogadouro, todos ligados entre si, como haveremos de ver.

 

Notas:
1-Numa primeira audiência, disse que se chamava Abraham.
2-Pº 630-L, tif 232: - E chegados a Livorno, tendo sabido que o marido estava em Pisa, o mandaram chamar; e com efeito seu marido veio a Livorno e esteve com a mulher e irmão e não os quis admitir em sua companhia, por causa de que havia sido adúltera; e vendo isto, a dita mulher voltou para Espanha, e o dito seu marido casou com a outra.
3- Inq. Lisboa, pº 6606, de Ana Cardosa; pº 6602, de Ângela Cardosa, 17 anos; pº 6996, de Violante Maurícia.
4- Pº 6606-L, tif 65: - Há 32 anos, em casa de sua mãe, Leonor Pereira, que tratava de ajustar o seu casamento com um homem que não se lembra o nome, casado com uma sua tia chamada Violante Nunes e com efeito se ajustou o casamento com Manuel Lopes, que assistia em Chacim, partira ela declarante para a dita vila…
5- Pº 630-L, tif 217-218. 
6- Inq. Coimbra, pº 8335, de Gabriel Rodrigues Pinto.
7- Pº 630-L, tif 49.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Lopes um judeu do tempo da inquisição 2

No último texto ficámos na inquisição de Barcelona com o Manuel Lopes a dizer que as declarações feitas anteriormente eram falsas e que agora, sim, diria toda a verdade. Vejamos.

 

Confessou então que não nasceu no mar de Itália, mas em Portugal, na vila de Torre de Moncorvo, onde o batizaram. E que tinha 2 anos quando o seu pai morreu, em Mogadouro (1) e ele foi levado para Lebução, para casa de sua tia paterna, Isabel Cardosa, casada com Lopo Nunes.(2) Falou também dos irmãos, cuja existência antes negara.

Em Lebução, até aos 8 anos, frequentou a escola e aprendeu a ler e escrever, bem como a doutrina cristã. Depois, os tios foram-no introduzindo no judaísmo (3) e ele passou a frequentar as “juntas e congressos” que se faziam em casa dos mesmos tios e em que participavam outros cristãos-novos das suas relações.

Cumpridos os 12 anos de idade e catequizado na lei de Moisés, a tia mandou-o para Bragança, onde vivia um seu irmão, 7 anos mais velho, chamado João Ventura, em cuja casa ficou morando. João era tecelão de sedas, ofício que Manuel Lopes começou também a aprender. 

Em Bragança, com o irmão, viveu cerca de ano e meio. Nesse tempo, por 1696, reencontrou um segundo irmão, o mais velho de todos, chamado Luís Lopes Penha, que morava em Castela, em Benavente, metido no negócio do tabaco. Deslocou-se a Bragança, para casar com Ângela Gomes, filha de Manuel da Costa e, como “chefe” que era da família, para concertar o casamento do irmão João Ventura, com Beatriz Pereira, sua parente, da vila de Chacim.

E foi para Chacim que Manuel e João foram morar, casando-se este com a noiva citada, filha do falecido Bartolomeu Pereira. Ali ficaram morando por ano e meio, fabricando e vendendo sedas, com Manuel a cumprir as ordens do irmão.

Por 1697, deixaram Chacim e foram os três para Lisboa, levando também uma irmã de Beatriz, chamada Maria Manuela. Instalaram-se em uma casa da rua da Figueira, paróquia de S. Nicolau, “empregando-se em fazer chocolate e vender”.

Estando em Lisboa, Manuel Lopes teve oportunidade de assistir à celebração de um auto-da-fé, em 9.11.1698. Nele foram penitenciadas 39 pessoas, várias delas de Trás-os-Montes. Foi o caso de Francisco Rodrigues Coelho, o Riqueza, de alcunha, natural de Vimioso e morador em Bragança. (4) Tinha sido preso em 30.5.1698 e o processo decorreu em Coimbra, tendo sido condenado em cárcere a arbítrio e penitências espirituais. Certamente porque nos cárceres de Lisboa havia falta de prisioneiros para sair no auto, trouxeram-se, de véspera, os presos que estavam despachados em Coimbra, para que o auto-da-fé tivesse mais brilho e dignidade. 

Manuel Lopes havia conhecido o Riqueza em Bragança, morando ao cimo da Rua Direita, o qual era também conhecido pela alcunha de Cara de Renegado, “porque tinha muito má cara”. A respeito deste auto, contou Manuel que se realizou “no pátio sagrado, antes de entrar na igreja dos Domingos (sic), se levantou ali um tablado e adorno para a dita função”. (5)

Sobre o Cara de Renegado, diremos que, depois de sair penitenciado, se ficou a viver por Lisboa, e será um dos fugitivos do navio de Nª Sª la Coronada, juntamente com a mulher e 3 filhos.

Em Lisboa, entre os membros da nação vindos de Bragança, destacava-se João da Costa Vila Real, grande mercador. Manuel conhecera-o em Bragança, mas nunca privou com ele, nem entrou em sua casa. Em determinada altura, adoecendo o seu irmão João Ventura e passando alguma necessidade para sustentar a família, escreveu uma missiva para D. Leonor Nunes, mulher de João Vila Real, contando-lhe as suas necessidades e pedindo-lhe ajuda. E disse ao Manuel que fosse a sua casa levar-lhe a carta, como ele próprio contou:

- E com efeito, havendo ele levado à dita mulher o dito papel, logo que o leu, lhe deu a ele confessante alguns reais, para que os levasse a seu irmão; e lhe parece que voltou a ver a dita mulher para o mesmo efeito de socorrer o dito seu irmão, 3 ou 4 vezes mais, e o socorreu em cada uma delas com alguma quantidade, que não recorda qual foi; e muitas vezes a dita mulher, nas vésperas do sábado, enviava socorro ao dito seu irmão, por intermédio do seu filho mais velho, sem ter-lhe pedido então nada… (6)

Na primavera de 1699, Manuel Lopes reencontrou em Lisboa os tios que o criaram e muitos outros parentes, amigos e conhecidos de Lebução, Bragança e Chacim que, fugidos da inquisição, rumaram a Lisboa e, em 13 de abril, se embarcaram no navio Nª Sª La Coronada, com destino a Livorno. Disso falaremos adiante.

Eles próprios, o Manuel e o irmão, ainda em Chacim, terão sentido também apertar-se o cerco da inquisição e planearam a fuga para Lisboa e Livorno, o que aconteceu no ano seguinte. Veja-se a descrição dessa viagem, feita por Manuel Lopes na inquisição de Barcelona:

- Na cidade de Lisboa estiveram até ao ano de 1700 e embarcaram em um navio chamado Picaron e o capitão era genovês e não se recorda do nome nem do apelido. E do porto de Lisboa, passaram em 48 horas ao porto de Cádis e estiveram detidos na baía por causa do mau tempo e não desembarcaram e algumas vezes João Ventura seu irmão ia a Cádis buscar mantimentos. E do dito porto passaram à cidade de Almeria, Cartagena e Alicante, porque o capitão tinha nos ditos portos negócios e mercadorias. E também, no mesmo tempo, arribaram a Maiorca e em nenhum dos ditos portos desembarcou pessoa alguma da família do seu irmão. E desde Maiorca, rumaram a Génova. E do mesmo navio, sem saltar em terra, tomaram uma falua e se foram para Livorno, em companhia de outra família que, entre marido e mulher e filhos, seriam 6 pessoas, de cujos nomes não se lembra, que embarcaram ao mesmo tempo e ocasião no dito navio Picaron, no dito porto de Lisboa, quando embarcou a família do dito seu irmão João Ventura. (7)

A família referida, que com eles embarcou era a de João Cardoso Pereira, (8) de Chacim, a sua mulher, Isabel Cardosa Pereira e 4 filhos. E levavam com eles um rapaz de 8 anos, sobrinho de João Cardoso Pereira, chamado Gabriel Cardoso. Aportaram em Cádis e ali permaneceram algum tempo, acabando por falecer João Cardoso Pereira, “tendo-se confessado e recebido o viático pela mão do capelão do navio”. O cadáver foi a sepultar numa igreja daquela cidade espanhola. (9) E dele e dos que o acompanhavam ficou a descrição física, feita por Manuel Lopes, verdadeiros bilhetes de identidade. Vejam:

- João Pereira Lopes era alto de corpo cara redonda e cheia de carnes, olhos negros, com algumas brancas assim como a barba e cabelo, que era curto e liso, e teria 50 anos e ouviu dizer a sua mulher e filhas que havia sido mercador.

Isabel Pereira, sua mulher, era alta e magra, cara comprida e branca, olhos negros, assim como as sobrancelhas e o cabelo, este curto e liso, com algumas brancas, de 40 anos.

Maria Pereira, filha dos anteriores, era alta de corpo, cara larga e branca olhos negros e também sobrancelhas e cabelo, este comprido e liso, que seria de 18 anos (…) e lhe diziam que havia casado em Livorno, com um filho da terra, corretor de lonja…

Gabriel Cardoso, sobrinho de João Cardoso Lopes, de 6 anos de idade e altura correspondente à idade, cara comprida, morena, olhos azuis, cabelo preto.(10)

O barco seguiu viagem, acostando em Almeria, Cartagena e Alicante. Neste porto estiveram uns 15 dias. Ao zarpar, entraram dois novos passageiros: uma mulher e um seu cunhado. (11) Iam para a Itália, a tentar impedir que o marido daquela casasse com outra mulher. Manuel não fixou os nomes, mas isso não nos impede que os identifiquemos.

A viagem do navio Picaron terminou em Génova. Dali para Livorno, Manuel Lopes e os parentes alugaram uma faluca e com eles seguiram também os ditos cunhados que Manuel voltará a encontrar em Pisa, como adiante veremos. 

 

Notas:

1- A sua mãe tinha falecido 2 anos antes, possivelmente na sequência do parto de Manuel. 

2- Inq. Coimbra, pº 1145, de Lopo Nunes.

3- Pº 630, tif 95: - Começou a instruí-lo nos ritos e cerimónias dos judeus, advertindo-o e aconselhando-o que aquelas cerimónias e ritos havia de observar e guardar e não a doutrina cristã.

4- Inq. Lisboa, pº 18001, de Francisco Rodrigues Coelho.

5- Pº 630, tif 211.

6- Idem, tif 185-186. ANTT, inq. Lisboa, pº 2366, de João da Costa Villa Real: ANDRADE e GUIMARÃES – Nós, Trasmontanos… João (Abraham) da Costa Villa Real (Bragança, 1653 – Londres, depois de 1729), in: jornal Nordeste nº 1046, de 29.11.2016. Foi casado a primeira vez com Isabel de Sá, da família La Faia – Pissarro e segunda vez com Leonor Nunes ou Leonor da Costa, viúva de Luís Pereira d´Eça. A fuga de João da Costa Vila Real para Inglaterra, levando 17 membros da sua família, foi verdadeiramente espetacular.

7- Pº 630, tif 102-103.

8- João Cardoso Pereira era filho de Diogo Cardoso Nunes (pº 5724-C) e Maria Lopes, de Chacim.  

9- Pº 630, tif 110.

10- Idem, tif 163-165.

11- A mulher chamava-se Ângela e era filha de João Lopes, o Galego, de Chacim. A propósito diria Manuel Lopes: - E a dita mulher e seu cunhado, ao princípio que se embarcaram, tiveram o rancho entre a peça da artilharia e a praça de armas, onde como disse, ia ele confitente, seu irmão, Isabel Pereira (Cardosa) e sua família, e algumas vezes a dita mulher e cunhado entravam na conversação na dita praça de armas com os sobreditos, e passados alguns dias que estiveram entre a dita praça de armas e peça de artilharia, se separaram da dita praça de armas e dali foram com os demais até Génova.- Pº 630, tif 231

 

Nós, Trasmontanos, Sefarditas e Marranos - Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição - 1

Nota prévia: - Iniciamos hoje uma série de textos que se estenderá por algumas dezenas de números, baseados em um processo da inquisição. É que, mais do que o processo de um homem, nele se reflete a vida da comunidade hebreia de Trás-os-Montes, aqui e na diáspora, ao início do século XVIII. Para um mais completo entendimento de cada texto, importará, pois, ter em conta o texto anterior.

 

Com a morte do rei Carlos II de Espanha, em 1700, abriu-se uma tremenda luta política e militar, na qual se envolveram todas as nações europeias e que ficou conhecida como a Guerra da Sucessão de Espanha. E o palco maior dessa guerra foi a região da Catalunha. Barcelona fervilhava então de soldados e muitos Trasmontanos por lá andavam alistados.

Da comarca de Torre de Moncorvo partiu mesmo um corpo militar, cremos que um batalhão, comandado por Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães, o qual acabou por casar em Barcelona com uma senhora da aristocracia chamada D. Teresa de Molins. Sobre o assunto foi mesmo escrito, por Francisco Botelho de Morais e Vasconcelos, um livro editado com o título seguinte: - Progressos Militares de Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães. (1)

Não sabemos se foi neste corpo militar que Salvador Lopes se alistou como soldado. Sabemos tão só que ele nasceu em Torre de Moncorvo e, ficando órfão, foi levado para Bragança com outro irmão, onde se criaram e aprendiam as artes do fabrico da seda quando a guerra rebentou. O irmão ficou em Bragança e Salvador, feito soldado, meteu-se a caminho da Catalunha.

Outro voluntário que se encontrava em Barcelona era um “soldado milanês” que antes vivera em Lisboa “em casa do Marquês das Minas, ensinando a seus filhos algumas línguas, porque sabia francês, genovês, napolitano, espanhol e português e para o qual o dito marquês havia conseguido d´el-Rei alvará para vender pelas ruas publicamente especiarias e outras coisas” (2)

Um terceiro personagem que então andava por Barcelona chamava-se Manuel Lopes. Era também natural de Torre de Moncorvo, irmão do citado Salvador Lopes e criara-se em Lebução, em casa de uma tia paterna. Também ele aprendera a arte da tecelagem da seda.

Manuel chegara de barco a Barcelona em 16 ou 17 de Fevereiro de 1703 e, no mês seguinte, junto ao pórtico do convento de S. Francisco encontrou-se com o citado “soldado milanês” de quem muito ouvira falar em Lisboa a um amigo comum, chamado José, que era intérprete e que ensinava hebraico a alguns cavalheiros e “tinha em casa muitos livros hebraicos”. (3) Aliás, o mesmo intérprete governava-se também a vender especiarias pelas ruas, munido do alvará régio que o soldado milanês lhe deixara, quando partira para a Catalunha. E vendia muito! – contou Manuel Lopes, na tal conversa à porta do convento de S. Francisco. Mas veja-se a apresentação do intérprete feita por Manuel Lopes perante os inquisidores:

- E haverá 4 anos, conheceu em Lisboa José, intérprete, na ocasião de ele confessante ir ver Gabriel Rodrigues, que também era da nação dos judeus, tratou e comunicou com o dito José, que assistia na mesma casa, e referiu que desde Livorno, onde professava as cerimónias da lei dos judeus, havia passado a Lisboa, onde se batizara e se mantinha na observância da dita lei. E o sobredito José, por ser intérprete de línguas, tinha uma renda dada por el-rei e pela inquisição, e vivia na rua de Santo Antão e casou, haverá 2 anos, com uma sobrinha do dito Gabriel Rodrigues, de que não sabe o nome, nem por que parte fosse parente. (4)

 

No seguimento daquela conversa com o soldado milanês, Manuel Lopes foi preso no calabouço do quartel de Artarazanas, não conseguindo nós vislumbrar as verdadeiras razões do mandato de prisão. Um alferes que acompanhou o caso perguntou-lhe se foi alguma coisa relacionada com o santo ofício, respondendo ele que talvez fosse por desconfiarem que ele e o soldado milanês planeavam fugir para Lisboa. Desculpa esfarrapada, certamente.

Facto é que, pouco tempo depois, no dia 28 de Março, Manuel Lopes se dirigiu ao tribunal da inquisição de Barcelona, pedindo para ser recebido pelos senhores inquisidores. Foi-lhe concedida a audiência e autuadas as suas declarações.

Disse chamar-se Manuel Lopes, de 20 anos de idade, soldado de infantaria, da companhia do capitão D. Manoel de Calderón e que antes fora tecelão de sedas.

Contou que nasceu no mar, quando os seus pais seguiam de barco, de Génova para Livorno e que, em pequeno, foi circuncidado e educado na lei de Moisés, sempre frequentando a sinagoga e a escola judaica, a partir dos 4 anos, explicando, longa e pormenorizadamente os ritos, orações e cerimónias que os judeus usavam fazer em Livorno.

Disse que aos 8 anos foi metido num barco e enviado por seu pai para Lisboa, para casa de um tio, João Dias Pereira, de quem se falará mais adiante, que o mandou para casa de um mestre a aprender a arte de tecer a seda. Com ele viveu e trabalhou por 12 anos. Durante todo esse tempo, viveu entre o judaísmo e o cristianismo, uma vida dúplice de marrano, frequentando as igrejas cristãs e fazendo rezas e cerimónias judaicas em casa, com seu tio e restantes familiares.

Nomeou muitos cristãos batizados que praticavam o judaísmo e que conheceu, tanto em Livorno, como em Portugal.

Acrescentou que, ao findar do mês de Novembro de 1702, o tio e mais familiares foram presos pela inquisição de Lisboa e ele caiu em si, reconhecendo que andava errado na religião, e resolveu alterar o rumo de sua vida, abandonando o judaísmo e tornando-se verdadeiro cristão.

Para isso decidiu ir a Roma, lançar-se aos pés do santo padre e pedir o batismo. Dificuldades e percalços do caminho, obrigaram-no a ficar em Barcelona e alistar-se como soldado, para sobreviver. Na impossibilidade de chegar a Roma, ali estava ele, determinado a fazer-se cristão, pedindo, humildemente a água do batismo.

Enganava-se o Manuel, se esperava uma resposta rápida dos senhores inquisidores. Sim, acostumados que estes estavam a receber confissões semelhantes, sempre duvidando da sua veracidade, obviamente que seguiram muitas perguntas, exames vários e muitas mais confidências, ao longo de intermináveis sessões. A vida nas cadeias do santo ofício corria lenta e o futuro sem pressa.

Se era judeu e na sinagoga de Livorno andou aprendendo as coisas da lei de Moisés, haveria de explicá-las, repetir as orações que rezavam e falar das cerimónias que faziam. E também nomear os homens e mulheres que pelo mundo conheceu e que, sendo batizadas, se tornaram judeus. Tudo isso contou e ficou registado no processo.

Uma das sessões foi dedicada à genealogia e nela disse que, 3 anos atrás, o tio recebera carta de Livorno informando que seus pais (António Lopes Pereira e Maria Gomes) tinham falecido. Irmãos, disse que não tinha. Nem irmãos, nem irmãs.

Por 8 dias, Manuel desdobrou-se em confissões, implorando que lhe dessem o batismo cristão. Seguiram-se 15 dias de silêncio e espera. Claro que, em paralelo, os inquisidores tiravam informações. E estariam já com um juízo firmado sobre a veracidade das declarações do soldado judeu quando, no dia 20 de abril, decidiram dar-lhe um curador, pois que era menor de 25 anos. Significava isso que as coisas começavam a complicar-se para o soldado judeu que ficou aguardando, às ordens do santo tribunal, sob a responsabilidade do curador “que diligentemente defenderá o menor nesta causa e não o deixará indefeso, e em tudo fará de bom e leal e diligente curador”. (5)

O tempo amadura a fruta e verga os homens, mesmo os mais valentes. Assim aconteceu com Manuel Lopes. Deixado entregue a si mesmo, na solidão do cárcere, por mais de 6 meses, acabou por pedir audiência aos mesmos inquisidores, que, em 8.11.1703, o receberam, perguntando: porque pediu audiência?

Respondeu que queria dizer a verdade pois que, nas audiências de Março e Abril tinha confessado mentiras e ocultado a verdade, explicando:

- A razão que teve para não confessar, em especial, era que havia nascido no mar e não estava batizado e ser circuncidado foi para que o santo tribunal o não prendesse se dissesse que era cristão batizado e pensou que com o haver dito que não era, não seria preso, mas agora que está preso, vai confessar a verdade de tudo o que calou e ocultou. (6)

 

NOTAS:

1-ABREU, Carlos de – Francisco Botelho de Morais e Vasconcelos Autor de Progressos Militares de Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães Análise e Tradução. Trabalho apresentado no congresso internacional de Coimbra sobre o escritor Francisco Botelho de Morais e Vasconcelos, em 2019

2-ANTT, inq. Lisboa, processo 630, de Manuel Lopes, tif 285.

3- Idem, tif 281. O intérprete José casou por aquela altura, em Lisboa, com Ana Cardoso, de uma família de Chacim, filha de Isabel Henriques, de quem falaremos oportunamente e que foi relaxada. – Inq. de Coimbra, pº 10578.

4-Idem, tif 48-49.

5-Idem, tif 81: - E se por sua culpa e negligência resultar algum mal ao dito menor, pagará por sua pessoa e bens. Para além de pagar Com “sua pessoa e bens”, o curador foi obrigado a indicar um fiador, que disso mesmo prestou juramento.

6-Idem, tif 94.

Nós, Trasmontanos, Sefarditas e Marranos - Onde de fala da Peste e dos judeus e médicos Trasmontanos.

O fecho de fronteiras e as medidas de confinamento não são coisa exclusiva dos nossos dias, provocada pelo COVID/19. São coisa antiga e, na Torre do Tombo, guarda-se, por exemplo, um documento datado de 27.5.1680, com o título seguinte:

- Mandado para que sejam examinadas as pessoas e fazendas que entrarem em Trás-os-Montes vindas de Espanha, onde grassa a peste. (1)

O confinamento, por seu turno, não era feito da mesma forma que hoje, antes pelo contrário. Em tempos de peste, abandonava-se a casa do aglomerado urbano e procurava-se refúgio no campo, mesmo que fosse uma cabana.

Este comportamento aparece refletido em processos da inquisição, como o de Catarina Lopes, filha de Afonso Baeça e Branca Cardosa, moradora no Porto. Nos anos de 1580 começou a peste a grassar naquela cidade e ela e a família foram-se para a Quinta dos 4 Caminhos, nos arredores de Lisboa. (2)

Exemplos vários de fugas das cidades do Algarve para os campos, são apresentados pela Drª Carla Vieira, que conclui:

- Em tempo de peste, a cidade torna-se um local a evitar, onde a concentração demográfica facilita o contágio, a desorganização social é mais evidente e os seus efeitos mais assustadores. O campo surge como um espaço convidativo enquanto se aguarda o fim da epidemia. (3)

 

Ontem mais que hoje, em tempos de calamidades como a peste, surge a necessidade de atribuir a culpa do mal. E se hoje há quem aponte o dedo à China, outros culpam os excessos da sociedade de consumo em que vivemos, com a exploração desenfreada de recursos naturais e a utilização incontrolada de químicos na produção de bens. O coronavírus será a vingança da terra contra a poluição provocada pelo homem.

Mas há muita gente que interpreta a calamidade como um castigo de Deus e apela à necessidade de expiação dos pecados.

Este sentimento era muito mais forte em outras eras e chegou a extremos incríveis, como aconteceu com a peste negra (1347-1350), porventura o acontecimento mais marcante de todo o milénio passado, que, em algumas cidades matou até 70% de seus habitantes e provocou na Europa cerca de 20 milhões de mortos, correspondendo a 1/5 da população. (4)

Tal como o COVID/19, a peste negra veio de fora, trazida por mercadores e marinheiros e foi sobremodo intensa nas cidades. Interpretada como castigo de Deus, só havia uma forma de a combater: orações e procissões, para expiação dos pecados. E ganhou notoriedade uma seita religiosa denominada os Flagelantes. Juntavam-se em grupos, armados de correias, vimes e até correntes de ferro e percorriam as ruas flagelando-se e implorando a compaixão divina em altos brados.

Naquele tempo as comunidades judaicas viviam em ruas e bairros separados e notava-se que entre eles a mortandade era muito menor. Hoje sabemos que tal facto se ficava a dever ao hábito de lavar sempre as mãos antes das refeições e os pés quando se chegava de uma jornada, conforme preceito imposto pela Bíblia. Naquele tempo dizia-se que os judeus morriam menos porque eles é que foram os causadores da peste, envenenando as fontes, os poços e os rios. E, por toda a parte, foi uma tremenda caça aos judeus, acusados que sempre foram de matar Cristo, responsáveis pelo grande pecado que ficou afetando para sempre a humanidade.

Os Flagelantes viraram caçadores implacáveis de judeus, comandando multidões em ataques às judiarias, muitas das quais foram completamente arrasadas e saqueadas, desaparecendo mesmo, sobretudo em terras do sacro-império romano-germânico. A ponto de o papa Clemente VI se ver na necessidade de promulgar um decreto dizendo que os judeus não eram culpados e com grandes ameaças aos perseguidores.

Estudando o acontecimento, historiadores há que manifestam a sua admiração por ter ficado com o nome de peste negra e não com o de peste judaica, por tão feroz e cruel perseguição levada a efeito contra os judeus.

A peste negra não foi a única, antes eram cíclicas e frequentes tais calamidades. Em Portugal ficaram algumas datas marcadas por tais fenómenos e consequentes perseguições aos judeus, e cristãos-novos, depois. Aconteceu nomeadamente depois que foram expulsos de Espanha e acolhidos em Portugal e, depois, em 1504 quando, no seguimento do surto de peste houve incidentes graves com os cristãos-novos da Rua Nova, em Lisboa, que vieram a culminar na chamada matança de Lisboa de 1506 em que terão sido imolados cerca de 2 000 hebreus. (5) A propósito desta matança, diria Francisco Mendes, o Beicinhos, de Miranda do Douro, em 1544, na inquisição de Évora:

- Entende provar que estando ali juntos vieram a falar da matança de Lisboa dos cristãos-novos, que foi há muitos anos, dizendo que os de Lisboa eram a cabeça e não quiseram guardar a lei de Moisés e estar firmes nela e querer ser judeus, quando D. Manuel os mandou ser cristãos e por terem pecado, veio a matança de Lisboa. (6)

Em 1569, o nosso país conheceu uma grande peste, que alguns classificam como “a grande peste de Lisboa” e de que nós encontramos notícia também em Coimbra, no processo instaurado a Francisca Fernandes, de Vila Flor, que foi sentenciada em mesa, pois que por causa da peste não pode realizar-se o auto-da-fé.

Ainda em Coimbra, o ano de 1599 foi também marcado por igual calamidade, que ficou registada em vários processos da inquisição, com a peste a impedir a realização de autos-da-fé. Entre os prisioneiros de Bragança contaram-se os casos de Beatriz Rodrigues, Isabel Luís, Isabel Mendes e Isabel Gomes.

Por outro lado, e desde sempre houve a preocupação das pessoas em preservar a saúde, com os médicos a procurar remédios. Sobre o assunto, o mais antigo documento será o “Regimento Proveitoso contra a Pestelença”, um incunábulo do século XV, impresso em Lisboa, por Valentino de Morávia e do qual José Barbosa Machado Transcreveu algumas partes, nomeadamente o seguinte excerto:

- Em tempo de pestilência melhor é estar em casa que andar fora, nem é são andar pela vila ou cidade. E também a casa seja aguada, e em especial em o alto verão, com vinagre rosado e folhas de vinhas e alimpar o rostro e depois cheirar as mãos; e também é bom, assim em o inverno como no verão cheirar cousas azedas. Em Monpelier não me pude escusar de companhia de gente, porque andava de casa em casa curando enfermos por causa da minha pobreza, e então levava comigo uma esponja ou pão ensopado em vinagre, e sempre o punha nos narizes e na boca, porque as cousas azedas e os cheiros tais opilam e çarram os poros e os meatos e os caminhos dos humores e não consentem entrar as cousas peçonhentas; e assim escapei de tal pestilência, que os meus companheiros não podiam crer que eu pudesse viver e escapar. Eu certamente todos estes remédios provei.

Ignoramos quem fosse este médico. Mas temos notícia do Dr. Francisco Lopes, que fugiu de Bragança, por causa da inquisição, estudou em Montpeliier e Bordéus e foi o médico responsável pelo combate naquela cidade a uma epidemia que então varreu a França, tendo inclusivamente tratado o Cardeal Richelieu. Por isso mesmo foi agraciado pelo governo de França e contemplado com muitas regalias.

Referência também para o Dr. Jacob de Castro Sarmento, outro médico Brigantino fugido da inquisição que se tornou famoso em Inglaterra, na investigação de uma vacina contra a varíola.

Finalmente, citamos o Dr. Francisco da Fonseca Henriques, médico da nação hebreia nascido em Mirandela que foi pioneiro da medicina preventiva, da alimentação saudável e das águas minero-medicinais.

Notas

1-ANTT, Marqueses de Olhão, núcleo Varia, cx 48ª, nº 57.

2-Inq. Lisboa, pº 4235, de Catarina Lopes.

3-VIEIRA, Carla – Uma amarra ao mar e outra à terra Cristãos-novos no Algarve (1558-1650), Tese de Doutoramento, Universidade de Lisboa.

4- SERRÃO, Joel (Dir.) – Dicionário de História de Portugal, vol. III, Peste Negra, ed. Iniciativas Editoriais, Livraria Figueirinhas, Porto, 1971.

5-Ver: MATEUS, Susana Bastos; PINTO, Paulo Mendes – Lisboa, 19 de Abril de 1506 O Massacre dos Judeus, ed. Aletheia, 2006.

6-Inq. Évora, pº 9627.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Bernardo Rodrigues (Carção, c. 1663 – Coimbra, 1695)

A história da família na inquisição começou com o avô paterno, Francisco Rodrigues, o Castelhano, de alcunha. Nascido em Vimioso, morou muitos anos em Castela, de onde veio, por 1650, e se estabeleceu em Chacim. Terá falecido em 1665, com 90 anos, nas celas da inquisição de Coimbra, preso que foi no ano anterior.(1)

No dito ano de 1664, na mesma inquisição, se foi apresentar Francisco Rodrigues, o Sargento,(2) filho daquele e pai de Bernardo Rodrigues. Mandado embora, foi preso 20 anos mais tarde, saindo penitenciado no auto-da-fé de 9.6.1686.

Tios e tias de Bernardo, 6

ou 7 passaram igualmente pelas cadeias da inquisição, o mesmo acontecendo com seus irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas. Em Carção, ficou apenas a mãe. Dois irmãos e uma cunhada foram queimados nas fogueiras do auto-da-fé de 25.11.1696: António Rodrigues, Atanásio Rodrigues e Helena Rodrigues.(3)

Fiquemos em Carção, no mês de Junho de 1693, quando a inquisição de Coimbra lançou uma verdadeira operação de limpeza da heresia judaica da aldeia, fazendo prender, de uma só vez, umas 22 pessoas. Imagine-se a quantidade de familiares da inquisição, autoridades civis e militares, padres e beatos mobilizados para executar tantas prisões! Atente-se nos leilões de bens dos presos, de modo a fazer dinheiro para pagar as despesas da viagem e também os ferros e cordas com que os prenderam, as jornas aos homens que os levaram presos para Coimbra e o aluguer das bestas para o transporte!

Entre os prisoneiros contou-se Bernardo Rodrigues(4) e vários membros da sua família. Obviamente que as casas, terras, couros… os bens que tinham foram sequestrados e leiloados na praça pública. A Bernardo Rodrigues, foram ainda sequestrados 39 mil réis em dinheiro. Vale a pena contar, pois é caso exemplar de como os leilões funcionavam.

Dois anos antes, a inquisição prendera seu irmão Francisco Rodrigues e seu cunhado João Fernandes Roldão.(5) E indo à praça os seus bens (uma casa, uma horta, um macho e bens móveis, quantidade de couros) Bernardo e os irmãos os arremataram. Como não tinham dinheiro suficiente, pediram a Francisco Dias, de Argoselo, ficando a dever-lhe 86 mil réis. Para além disso, o mesmo Francisco Dias largou a Bernardo uns couros que ele arrematara, para com eles se governar, comprometendo-se Bernardo “a lhe pagar, assim como fosse fazendo o dinheiro e ao tempo de sua prisão tinha juntos 39 mil réis para lhe entregar, os quais deu, à ordem do juiz de fora, ao comissário para seus alimentos”.(6)

Chegado a Coimbra, Bernardo foi metido na cela com 3 companheiros de Carção, algo que o regimento desaconselhava e que é significativo de como a cadeia estava a abarrotar. Mais tarde, meteram na cela um padre de Torre de Moncorvo, certamente a desempenhar o papel de espia: José Camelo de Meireles, abade de Fornos.

A primeira sessão foi destinada a perguntas sobre a sua genealogia e inventário dos bens. Aqui, Bernardo só apresentou dívidas. Para além dos 86 mil réis a Francisco Dias, de Argoselo, disse que estava devendo ao tendeiro André Rodrigues 6 mil réis ”que lhe emprestou na ocasião da morte do seu pai”, mais 9600 réis a João Francisco, familiar do santo ofício de Braga “de fazendas que lhe deu fiadas para tratar” e mais a um mercador do Porto que lhe fornecia fazendas para vender na loja, que seria da família.

Dos motivos da prisão de Bernardo, diremos que várias pessoas disseram que com ele se tinham declarado e feito jejuns judaicos, especialmente celebrando o Kipur. Veja-se apenas uma dessas denúncias, feita por sua cunhada, Catarina Lopes:

— Disse que haverá 7 anos que os fará em setembro que vem, em uma das varandas de Francisco Rodrigues, sargento, no dia grande, das 11 para o meio-dia, se achou com Luísa Lopes, sua cunhada e com Francisco, Bernardo, António e

Atanásio, irmãos, presos, e com Apolónia Dias, presa, filha de António Rodrigues e Maria Dias, defunta, todos juntos à sombra da dita varanda, e entraram nela Isabel Dias, mulher de Baltasar Lopes, presa, e Inês Lopes, já defunta, mulher de João Fernandes Roldão e a dita Isabel Dias ofereceu tremoços a todos e estes não quiseram aceitar.(7)

Outra série de denúncias respeitou a esmolas que Bernardo deu a várias pessoas para fazerem jejuns judaicos por alma de seu pai, falecido por 1690. Vejamos, a propósito, a denúncia feita por Belchior Pires:

— Depois da morte do pai de Bernardo Rodrigues, este lhe disse que não rezava o padre-nosso nem ave-maria por alma de seu pai, por não serem orações convenientes para isso, e ainda que lhe tivesse mandado fazer os sufrágios na igreja, foi para que o mundo não tivesse que dizer, mas que se não fiava neles e que mandara fazer muitos jejuns judaicos e dava por cada, um tostão, pão e peixe às pessoas que os faziam, e rezava muitas orações judaicas.

Não vamos analisar o processo. Diremos tão só que, ao fim de ano e meio de prisão, Bernardo entrou numa situação de loucura e desespero, tão horrível que chegava a comer os próprios excrementos, vindo a falecer em 20.3.1695. A doença foi acompanhada pelos médicos da inquisição que na “certidão de óbito” escreveram o seguinte:

— A sua morte fora natural e causada por achaques de melancolia e impaciência de que se

deixou vencer e vieram a parar em um tremor universal, em uma convulsão mortal, do qual achaque faleceu.

Acompanhado pelos médicos na sua loucura e desespero, também o foi por um frade dominicano “que lhe assistiu na morte, que o absolveu sob condição, por não dar lugar concludente e aperto da doença, no decurso da qual mostrou o dito preso que estava teimoso e chegou a fazer extremos porque comia nas esteiras o excremento próprio e disseram os seus companheiros que se quisera enforcar”.

Bernardo morreu mas o processo continuou, julgando-se a sua “memória, fama e fazenda”. Para isso mandaram os inquisidores investigar se Bernardo era falto de juízo ou tinha “juízo e entendimento capaz de pecar”. Dos vários depoimentos, escolhemos o de João Tomé, que disse:

— Que conheceu Bernardo

Rodrigues desde o seu nascimen-

to e que fora sempre de bom entendimento e capaz de pecar; que somente há 12 anos, por espaço de 15 dias, se conheceu que o réu tinha alguma falta de juízo, por andar algumas vezes de noite a cavalo pelas ruas, sem necessidade de o fazer.

Terminou o processo no au-

to-da-fé de 14.6.1699 com a execução da sentença pronunciada 4 meses antes:

— Os inquisidores… mandam que em detestação de tão grave crime, seus ossos sejam desenterrados, feitos pelo fogo

em pó e cinza, por ordem da justiça secular a quem o relaxam e sua estátua e seu nome…

 

NB. – Cumpridos mais de 3 anos de contínua colaboração neste jornal, pensam os autores ser razoável tirar umas férias, suspendendo a sua colaboração por algum tempo. Aos leitores assíduos, pedimos compreensão. Obrigado.

 

 

Notas:

1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 6034.

2 - Idem, pº 4830.

3 - Idem, pº 7396, de António Rodrigues; pº 4395, de Atanásio Rodrigues; pº 7094, de Helena Rodrigues.

4 - Idem, pº 7077.

5 - Idem, pº 364, de Francisco Rodrigues, o moço; pº 4840, de Francisco Fernandes Rodão, viúvo de Inês Lopes.

6 - Pº 7077: — Bernardo Rodrigues (…) disse que ele, sua mãe e seus irmãos são obrigados a pagar 86 mil réis a Francisco Dias, curtidor de Argoselo, procedidos de couros e mais bens que arrematou ao fisco e foram de seu irmão Francisco Rodrigues, o moço, os quais bens largou a ele confitente para ganhar sua vida e lhe pagar assim como fosse fazendo o dinheiro, e ao tempo de sua prisão tinha juntos 39 mil réis para lhe entregar, os quais deu à ordem do juiz de fora ao comissário, para seus alimentos. E que ele e seus irmãos estavam de posse de umas casas que foram de João Fernandes, preso e de uma horta defronte das ditas casas, as quais partem com as de Atanásio Rodrigues, irmão dele declarante e um macho e móveis que foram do dito Francisco Fernandes, preso e confiscado, sobre os quais deu ele 50 mil réis que está devendo a Francisco Dias, que lhe emprestou.

7 - Idem.