António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Martim Rodrigues (n. Mogadouro, 1605)

Nasceu em Mogadouro pelo ano de 1605, filho de Belchior Garcia e Ana Rodrigues, cristãos-novos. Grande parte dos seus muitos tios, paternos e maternos, viveram e morreram em Madrid, facto muito natural, ainda mais por ser tempo de união dos reinos ibéricos, sob a coroa dos Filipes. O mesmo se diga de 3 de seus irmãos.

Martim Rodrigues era curtidor e negociante de solas, profissão bem rendosa, tratando-se de uma região particularmente adaptada à criação de gado bovino, verdadeiro solar da conhecida raça mirandesa.

Ao início da década de 1630, Martim foi casar a Quintela de Lampaças com Clara Fernandes, de uma família com largo historial na inquisição, nomeadamente o pai e o avô paterno.(1) Em Quintela estabeleceu morada em dezembro de 1637 quando a inquisição promoveu uma autêntica operação de limpeza da gente da “nação infecta” da aldeia, ordenando a prisão de 19 moradores, acusados de participar na celebração de uma “missa judaica”(2) Muitos dos mandatos de prisão não foram cumpridos porque, entretanto, os réus tinham fugido. Logo surgiram informações de que Jorge Fernandes, de Carção, intercetara o correio e viera na frente avisar que fugissem. Foi também preso e processado.(3) E destes acontecimentos nasceram as primeiras culpas contra Martim Rodrigues. Uma delas, assim descrita por Amaro Luís Igreja, cristão-velho, perante o comissário Francisco Luís, arcediago de Mirandela, em 25.10.1637: 

— Viu ele testemunha, às 10, 11 horas da noite a Luís da Serra, morador em Quintela, cristão-novo, andar batendo com um pauzinho pelas portas dos cristãos-novos e outro chamado Martim Rodrigues, mas o que batia era Luís da Serra e dizia: - Olá, vinde!...(4)

Era o chamamento para mais um “ajuntamento judaico”. Outra culpa respeitava ao facto de ter sido ele a receber em casa Jorge Henriques e ter-lhe dado ajuda no aviso aos outros para que fugissem. O comissário da inquisição, Paulo Peixoto de Sá, esperava então que Martim fosse preso e escrevia para Coimbra, em 14.3.1638:

— Martim Rodrigues é da nação e ainda está neste lugar e cuido estar ainda por ser curtidor e ter couros em pelames (…) se não fosse isso, já teria ido, visto ter sua fazenda vendida…(5)

Na verdade as acusações feitas contra o nosso homem não seriam suficientes para os inquisidores de Coimbra decretarem a sua prisão. E se ele tinha vendido a sua fazenda em Quintela, não seria para fugir, mas com o objetivo de mudar a residência para Mogadouro, na sequência da morte de sua mulher, Clara Fernandes, que lhe deixou dois filhos: Leonor e Francisco, nascidos, respetivamente, por 1631 e 1633.

Em Mogadouro casou de novo, com Maria de Robles, cristã-nova, que lhe deu mais dois filhos: Manuel e António, a qual viria a falecer por 1645, posto o que, Martim casou pela terceira vez, então com Ana Lopes, natural da Torre de Moncorvo. 

O casal vivia desafogadamente e, à boa maneira da gente da nação, todos trabalhavam, exercendo atividades múltiplas. Martim comprava e tratava couros e vendia solas, “selaria” e outra “obra-prima” pelas feiras. Mas também cobrava rendas e foros como as “sanjoaneiras” do Conde de Távora ou “os quintos” do arcebispo de Braga.

E se Ana Lopes declarou para os inquisidores que “vivia da fazenda que ganhava seu marido”, não é crível que ficasse parada, a olhar para a enteada Leonor que em sua casa morava e “vivia de fiar seda” ou para o enteado Francisco que pelos 14 anos era já “tendeiro de especiarias”.

Entretanto “vacinada” que foi a povoação de Quintela e analisadas pelo santo ofício as denúncias ali feitas contra Martim Rodrigues, o procurador do tribunal de Coimbra requereu a sua prisão, nos seguintes termos:

— Contra Martim Rodrigues, natural e morador em Mogadouro, que já residiu em Quintela de Lampaças, ofereço os testemunhos (…) dos ajuntamentos que a gente da nação fazia de noite em Quintela em que o delato andava chamando pelas portas. Os presos de Quintela todos confessaram culpas de judaísmo e o delato é morador em Mogadouro, onde não entrou o santo ofício e há muita gente da nação indiciada”.(6)

Ou seja: com a prisão de Martim, em janeiro de 1648, planeava o procurador do santo ofício uma nova operação de limpeza da heresia judaica. Aliás, os próprios inquisidores, poucos anos depois, mandariam escrever no processo de um “passador de judeus” do Vimioso, a seguinte nota:

— (…) Mogadouro, que há muito tempo arde em judaísmo e aonde o santo ofício tem presas mais de 60 pessoas e tem fugidas outras tantas ou mais, para não serem presas.(7)

Na verdade, à prisão de Martim Lopes seguiu-se a da mulher e dos filhos,(8) denunciados por ele, naturalmente. E, de seguida, mais uma dezena e meia de cristãos-novos Mogadourenses deram entrada na cadeia de Coimbra, igualmente denunciados por Martim. Tal como aqueles denunciaram outros, num crescendo exponencial de denúncias, seguidas de prisões e fugas. Era o início da maior operação realizada em Trás-os-Montes. Só de uma vez foi decretada a prisão de uma centena de cristãos-novos Mogadourenses!

Não vamos falar das pessoas que Martim Rodrigues denunciou como seus correligionários, as quais, por sua vez, o denunciaram a ele. Diremos tão só que boa parte dessas denúncias aconteceu na feira dos Chãos, freguesia de Salsas, termo de Bragança, então a maior feira de gado do Nordeste Trasmontano. Entre os seus confitentes, destacamos Diogo Nunes Cardoso, de Freixo de Espada à Cinta, pelo simples facto de ser “tratante de bacalhau”, o primeiro que encontramos em semelhante atividade profissional.

Em termos de matéria de delito, para além das muitas declarações de judaísmo e companheiros nos jejuns do kipur, da rainha Ester e da Judith, veja-se a confissão seguinte:

— Disse que haverá dois anos, no Mogadouro, em casa de Francisca Dias, já defunta, estando ambos, deu ele confitente um tostão ou 4 vinténs para a dita Francisca fazer um jejum pela alma de Maria Robles.(9)

Do processo de M. Rodrigues, destacamos o facto de, na própria prisão, ele ter feito o jejum do Kipur de 1648. E, certamente porque não tinha a certeza do dia em que calhava, jejuou três dias seguidos.

A prisão de Martim, como, aliás, o da mulher e dos filhos, terminou com a condenação em confisco de bens, cárcere e hábito perpétuo e penitências espirituais, saindo penitenciados no auto-da-fé de 10.7.1650.

Regressado a Mogadouro, logo Martim Rodrigues começou a planear a fuga para Castela. Tratava-se de uma jornada bastante perigosa, pois se estava no mais aceso da guerra da Restauração, com a fronteira cheia de soldados, de um e outro lado. Além do outro “exército” constituído por frades e beatos e familiares da inquisição, sempre empenhados em espiar os movimentos dos “judeus”. E porque se tratava de uma jornada perigosa, Martim contratou o mais seguro dos “passadores de judeus” que então operavam na região, o padre Belchior de Macedo,(10) membro de uma nobre família do Vimioso, pároco da freguesia de S. Martinho de Angueira, uma aldeia sita mesmo da fronteira de Castela.

Pela passagem dele, da mulher e dos filhos penitenciados pagou 12 patacas ao padre Belchior. Este, por sua vez, contratou, para o ajudar, dois outros “passadores” do Vimioso, pagando a cada um 3 mil réis, quantia bem avultada, correspondente a 30 jornas de trabalho. Um dos “passadores” contaria mais tarde, na inquisição de Coimbra, que o padre o contratou para ir com ele a Mogadouro a buscar uma carga de incenso e só quando chegaram à capela de Santa Cruz, perto das “tinarias dos pelames”, onde os fugitivos esperavam, escondidos, é que lhe revelou ao que iam.(11)

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 641, de Francisco Rodrigues, o temeroso; pº 8990, de António Rodrigues, o antão.

2 - ANDRADE e GUIMARÃES – Nas Rotas dos Marranos de Trás-os-Montes, pp. 15-40, Âncora Editora, Lisboa, 2014.

3 - Inq. Coimbra, pº 3271, Jorge Lopes Henriques

4 - Idem, pº 3305, de Guiomar de Leão.

5 - Idem, pº 8227, Martim Rodrigues.

6 - Idem, fl. 13.

7 - Idem, pº 3491, de Manuel Álvares.

8 - Idem, pº 8216, de Ana Lopes; pº 8224, de Leonor Nunes; pº 1163, de Francisco Nunes.

9 - Pº 8227, tif 145.

10 - ANDRADE e GUIMARÃES – Uma Rede de Passadores de Judeus desmantelada pela Inquisição de Coimbra, in: Nas Rotas dos marranos de Trás-os-Montes, pp. 137-140. Inq. Coimbra, pº 8025, de Belchior Macedo.

11 - Idem, pp. 103-105. Inq. Coimbra, pº 861, de Francisco Rodrigues.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos: Pantaleão Rodrigues Mogadouro (Lisboa, 1655 – Jamaica, d. 1704)

De entre os filhos de António Mogadouro e Isabel Henriques que chegaram à maioridade, Pantaleão era o mais novo. Nasceu em Lisboa, na freguesia de S. Nicolau, por 1675. Teria uma educação esmerada, em termos de literacia (aprendeu latim) e contabilidade, pelo que foi logo trabalhar com o primo António Marques, nos escritórios das empresas Mogadouro. E foi este o cenário de uma denúncia, feita em 5.1.1672, por Manuel Ferreira, cristão-velho, cavaleiro de Santiago, familiar do santo ofício, nos seguintes termos:
— Disse que António Rodrigues Marques nunca quis nas três sextas-feiras passadas tomar pena na mão e escrever nos tais dias, depois da noite e só se punha a praticar (falar) com ele e mais pessoas que se achavam na casa. E que nas mesmas sextas-feiras à noite, via que um primo do mesmo, chamado Pantaleão Rodrigues, solteiro, de 18 anos, alimpava a mesa onde escreve os papéis e recolhia o tinteiro, sendo que nas mais noites dos outros dias não viu que ele nem outrem fizessem a diligência, e em todas elas há papéis na mesa (…) na sua lei era proibido fazer serviço algum na sexta-feira depois de se pôr o sol…(1)
Pantaleão Rodrigues foi preso pela inquisição em 9.1.1674, juntamente com suas irmãs Branca, Violante e Beatriz, indo juntar-se ao pai e aos irmãos Diogo e Francisco, presos 2 anos antes. 
Daquelas cadeias apenas saíram vivos os 3 irmãos mais novos: Francisco, Beatriz e Pantaleão, que foram reconciliados no auto da fé de 10.5.1682, com cárcere e hábito penitencial perpétuo. De Francisco e Beatriz, a última notícia que deles temos é um requerimento dirigido aos inquisidores pedindo autorização para comungar.(2)
De Pantaleão Rodrigues, sabemos que cumpriu a sua penitência na igreja de S. Lourenço, a qual lhe foi levantada em 16.5.1683, contra o pagamento de uma fiança de 100 mil réis,(3) por Bento Teixeira, morador na Rua das Mudas.
Posto em liberdade, fugiu para Inglaterra, país onde sua irmã (Marquesa Rodrigues) e seus cunhados (António e Diogo Rodrigues Marques) gozavam de grande reputação social, com uma filha de Marquesa e Diogo casada com o Dr. Fernando Mendes, médico da rainha de Inglaterra.
Em Londres, Pantaleão seria bem recebido e rapidamente ganhou lugar importante no seio da nação sefardita, depois que se fez circuncidar e tomou o nome de Isaac. A ponto de, em 12.2.1699, aquando da assinatura do contrato da construção da sinagoga Bevis Marks, ser um dos 6 líderes da comunidade que assinaram o documento.(4)
Do seu casamento com Raquel pouco sabemos. Apenas que ela era neta de sua tia paterna, Francisca Lopes, de Sambade, que faleceu em Toulouse, na França, mãe de Roque de Leão e aparentada com João Mendes Belisário,(5) também de Sambade. Estranhamente, o seu relacionamento com a irmã e cunhados ter-se-á quebrado e nem sequer fizeram qualquer referência mútua em seus testamentos. Seria por causa do casamento de Pantaleão?  
Facto é que, também a roda da fortuna entrou a desandar e os bens que restavam a Pantaleão eram essencialmente derivados de seguros. A única fonte que temos sobre estas questões é o seu testamento feito em Londres a 22 de maio de 1704. Vejam:
— Encontrando-me eu de cama, declaro que ao sétimo dia depois da minha morte este documento deve ser aberto e para as cerimónias do meu funeral sejam gastas seis até sete libras, até ao final do mês e ano.
Deixo 10 libras para a salvação da minha alma.
Tendo Deus querido diminuir os meus bens, tudo o que tenho está mencionado em baixo.
Do valor dos negros da Índia a Mr. Andrew, Henrique Lopes dará conta dos mesmos. Uns estão acertados e outros não. Assim como o azeite que lhe comprei. O que deve ser feito logo e imediatamente que Deus disponha de mim. E isso se pagará dos meus seguros, dos que tiverem maior prémio, que neste país são facilmente trocados.
Desejo que a minha mulher vá daqui para Amesterdão e que seu tio Roque de Leão tome conta dela e de seus bens.
E que entretanto Mr. Domingos Lopes Ferreira e Joseph Israel Henriques tomem conta dela e como seus administradores e assistentes, a acompanhem a Amesterdão, que deus os recompensará.
A Mr. Belisário, que tem muitos filhos, deixo 5 libras para o casamento do seu primeiro filho.
Declaro que deixo como tutora e administradora de meus filhos a minha mulher Raquel Mogadouro, juntamente com Roque de Leão.
Deixo a Rosa 10 libras.
Tudo o que acima disse, certifico. Londres, 22 de maio de 1704. Isaac Rodrigues Mogadouro. Testemunha: Domingos Lopes Ferreira.

Como se vê, não há a mínima referência aos familiares diretos que residiam em Londres e nem na hora da morte esperava qualquer gesto de aproximação.
Ao contrário, nota-se uma ligação estreita a Roque de Leão, seu primo, morador em Amesterdão, depois de ter fugido de Toulouse onde foi condenado à morte, acusado de ser rabi dos judeus naquela cidade de França. Roque de Leão terá nascido na cadeia do santo ofício onde sua mãe foi encarcerada em 1640.
Pantaleão (Isaac) Rodrigues Mogadouro terá falecido em Londres em 16.6.1704, 14 sivan 5464, conforme consta em “The Burial Register of the Spanish and Portugueses Jews, London 1657-1735”, se bem que alguns autores digam que ele faleceu na Jamaica em data posterior.

 

Notas:
1 - Inq. Lisboa, pº 7100, de Pantaleão Rodrigues Mogadouro.
2 - Idem, pº 4427, de Beatriz Henriques, tif. 251: — Dizem Beatriz Henriques e Francisco Rodrigues (…) que eles saíram reconciliados no auto da fé de 10.5.1682 (…) e nas penitências que lhe foram impostas foi uma suspensão de receberem a sagrada comunhão, e porque de presente estão muito doentes e achacados e querem confessar-se pela obrigação desta quaresma e têm grande consolação de receberem o santíssimo corpo de nosso senhor Jesus Cristo, o que não podem fazer sem licença de VV. Ilustríssimas… Despacho: Concedemos aos suplicantes a licença que pedem. Lisboa, 29.3.1683.
3 - A fiança estipulada ao início ascendia a 800 mil réis.
4 - Outra assinatura que pode ler-se no documento é a de Manuel Nunes de Miranda, filho de do Dr. Francisco Nunes Ramos e sua mulher Ana Rodrigues. Aquele era natural de Vila Flor e esta de Torre de Moncorvo. Moravam em Moncorvo onde o Dr. Nunes Ramos era tido por “kassis” (rabi) da comunidade. Fugiu da inquisição para a Galiza, onde faleceu. O filho Manuel Nunes de Miranda, antes de se fixar em Londres, viveu em Toulouse e foi um grande empresário de turismo, explorando os transportes de barco pelo rio Garone, entre Bordéus e Toulouse e dali, por charretes e cavalgaduras para Marselha. Preso e julgado por judeu em Toulouse, foi condenado à morte. Conseguiu fugir (tal como Roque de Leão e outros, num total de 18), sendo queimados em efígie, em 16.4.1685. – BLAMONT, Jacques – Le Lion et le Moucheron Histoire des Marranes de Toulouse, p. 350 e seguintes, Editions Odile Jacob, Paris, 2000.
5 - João Mendes Belisário era casado com Serafina de Leão, filha de Matias Lopes, irmão de Roque de Leão. Por outro lado, era cunhado de Luís Lopes Penha, primo direito de António Rodrigues Mogadouro. 

 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Diogo Rodrigues Henriques (Lisboa, 1636 – Lisboa, 1683)

Quando foi preso pela inquisição, em 1672,(1) juntamente com o pai e o irmão Francisco, Diogo Henriques era já o administrador principal das empresas do grupo Mogadouro. Tinha 36 anos e mantinha-se solteiro, estando o seu casamento ajustado com uma filha de Gabriel Medina, seu primo direito, que em Livorno tinha uma das maiores casas comerciais. Trabalhando em rede familiar de negócios, eram proprietários da nau “Jerusalém” que regularmente assegurava as transações comerciais entre Lisboa, Livorno e Tunes, no Norte de África, onde tinham um forte entreposto comercial. Aliás, uma das acusações feitas aos Mogadouro era de serem passadores de cristãos-novos para Itália onde se faziam judeus. Impossível aqui descrever o inventário de seus bens, que ele fez ao longo de 13 sessões, o que bem revela a sua complexidade. Diremos tão só que na altura tinha barcos (alguns fretados por ele no estrangeiro)(2) carregando e descarregando mercadorias em portos da Índia, Brasil, Angola, Inglaterra, Holanda e Itália.

Acrescentamos que a Fazenda Real lhe devia quase 2 contos de réis respeitantes a 5 356 arrobas de biscoito (pão recozido) fornecido para os barcos da “carreira da Índia” e muitos mais contos dos géneros fornecidos para alimentação dos cavalos e dos militares estacionados em Trás-os-Montes dos anos de 1663/4 e 1666/8, para não falar de quantidade de rendas e assentos de Cascais, Setúbal, Aldeia Galega, Bragança e outras terras. Em garantia de tais pagamentos estavam-lhe consignadas as décimas de Setúbal e Almada, que montavam a 32 contos de réis.

Refira-se ainda que muita gente da nobreza de Portugal se encontrava “empenhada” na Casa Mogadouro, nomeadamente o marquês de Távora que ali devia 8 contos de réis! A própria inquisição dele se servia nas ligações com o tribunal de Goa e pagamento aos funcionários e ao próprio inquisidor/arcebispo das Índias. A título de exemplo, diremos que acabava de ser contratado o transporte de um grupo de frades dominicanos para apoio daquele tribunal e que importaria um custo de 300 mil réis. “Largas contas”, tinha também com o arcebispo de Lisboa que lhe estava devendo uns 800 mil réis e para oferecer ao mesmo tinha encomendado a feitura de um anel a um ourives estrangeiro que era o que trabalhava para a rainha.

A defesa de Diogo, como, aliás, a do pai e do irmão, começou por ser feita fora do tribunal, com a entrega de uma petição assinada pelos seus primos António e Diogo Rodrigues Marques e pelo seu irmão Pantaleão Rodrigues, na qual se identificavam e tentava desacreditar prováveis denunciantes seus “inimigos capitais”. Estes eram, naturalmente, homens e mulheres de ricas famílias de mercadores cristãos-novos que então foram presos. É que o golpe desferido pela inquisição não visou apenas os Mogadouro mas também outras empresas igualmente importantes: os Penso, Pestana, Chaves, Pessoa, Bravo, Lopes Franco, Gomes Henriques… e eles se relacionavam com Mogadouro, inclusivamente no que respeita a comportamentos religiosos, nomeadamente na Quinta do Conde de Salzedas, onde aquele tinha fábrica de preparação do tabaco.

Por seu turno, ele negava todas as acusações e confessava-se cristão exemplar, dizendo que, depois do “abominável caso de Odivelas”, quando ninguém queria aceitar o cargo de mordomo da confraria do Sacramento da mesma igreja, foi ele que se aprontou e a fez reerguer e para isso comprou muitos paramentos e fez várias obras, com dinheiro do seu bolso. Para além disso, era membro de várias confrarias de outras freguesias, como era o caso de N.ª Sr.ª da Conceição, N.ª Sr.ª das Mercês, S. Sacramento da Trindade, Sr.ª da Guia, Sr.ª da Atalaia, S. João Batista da igreja de S. Domingos, Sr.ª da Penha de França, S. Catarina do Monte Sinai e da confraria do convento de Santo Eloy.

E era “tanta a sua devoção ao SS. Sacramento” que nas festas do Corpo de Deus, mandava armar um altar na Rua dos Escudeiros e outro na Rua da Pichelaria, onde a própria procissão parava. E, na rua, na parede da casa de sua morada, mandou fazer um nicho, com a imagem do Senhor crucificado.

Imagine-se: na festa de S. Pedro Mártir, que era o patrono da inquisição, ele emprestava “muita prata” para bem decorarem a igreja de S. Domingos! E no último auto-de-fé, antes da sua prisão, emprestou ornatos de prata ao familiar do santo ofício Dr. João de Azevedo da Silveira”. Não imaginava que a mesma igreja seria o palco da sentença que o condenaria à morte.

Em prova de seu comportamento de cristão exemplar, apresentou testemunhas do maior crédito, a começar pelos arcebispos de Lisboa e Goa, pároco da sua freguesia, quantidade de padres e frades, gente da maior nobreza, muitos familiares do santo ofício e até solicitadores da inquisição.

Entretanto, as culpas de Diogo Mogadouro foram acrescentadas com a denúncia de um “crime” de maior gravidade: o de corromper o alcaide dos cárceres da inquisição, Agostinho Nunes. Vamos explicar:

Entre os muitos mercadores retalhistas que abasteciam as suas lojas nos armazéns Mogadouro, contava-se uma Juliana Pereira, que tinha relações muito estreitas com o alcaide. E os Mogadouro, servindo-se de ofertas para ela e para a família do alcaide, conseguiram abrir uma via de contacto com Juliana e Agostinho(3) a levar e trazer correspondência de Diogo Mogadouro para o primo António Marques, que pertencia a uma comissão de cristãos-novos que então estava negociando com a santa sé de Roma um perdão geral e a reforma dos estatutos da inquisição.

A piorar o seu caso aconteceu que seus irmãos, Francisco, Pantaleão e Beatriz, igualmente presos, confessaram que tinham judaizado e denunciaram também o Diogo. E este, que sempre se manteve negativo, inclusivamente no caso de Juliana e Agostinho, tomaria então consciência de que se arriscava a ser queimado e decidiu fazer-se doido, começando a gritar injúrias e blasfémias de todo o género, as mais hediondas, em termos de religiosidade cristã.

De nada adiantou. Os inquisidores juntaram depoimentos dos guardas e atestados médicos, dizendo que tudo era fingido, que ele estava “esperto e bem vivo”.

A luta diplomática em Roma(4) entre os representantes dos cristãos-novos e da inquisição, com a prisão dos Mogadouro e a elite da burguesia lisboeta ganhava intensidade e, em 1676, o papa suspendeu o funcionamento da inquisição, o que implicou também a paragem do processo de Diogo Mogadouro. Seria retomado em 1681, acabando condenado à pena máxima. Foi queimado na fogueira do auto da fé de 6.8.1683.

O processo de Diogo Rodrigues Henriques foi considerado por alguns como um ato de vingança dos inquisidores que estavam “irritados contra a casa de António Rodrigues Mogadouro que foi a principal parte no negócio do Recurso” estranhando-se que os inquisidores dissessem “abertamente que a dita casa era a sinagoga de todo o reino”.(5)

 

Notas:

1 - Inq. Lisboa, pº 11262, de Diogo Rodrigues Henriques.

2 - Entre os barcos fretados pelos Mogadouro podemos citar uma nau holandesa denominada “Tigre Dourado”, de que era mestre Agostinho Valente e o navio inglês “Rainha D. Catarina” dirigido pelo piloto João Martins. Dos portugueses, para além da nau “Jerusalém”, de que eram proprietários, podemos citar a nau “Loreto” e o patacho “N.ª Sr.ª dos Remédios”. Para além da nau “Jerusalém” a nau “Loreto” e uma “charrua” dirigida pelo mestre Domingos Pires Carvalho, que estava carregando na Baía, eram propriedade dos Mogadouro.

3 - Inq. Lisboa, pº 5416, de Agostinho Nunes; pº 7668, de Juliana Pereira.

4 - Um documento que testemunha a participação dos Mogadouro nessa “luta” encontra-se no ANTT, Armário Jesuítico, segunda caixa, n.º 87 e tem o título: — Reparos que fez um sujeito bem-intencionado por ocasião do auto-da-fé que se celebrou em Lisboa, em 10 de maio de 1682. O 19.º desses Reparos diz o seguinte: — Em que o Sumo Pontífice deixasse julgar as casas e pessoas tocantes aos procuradores deste negócio pelos inquisidores novamente restituídos; e como estes estavam irritados contra a casa de António Rodrigues Mogadouro que foi a principal parte no negócio do Recurso, por todos os caminhos parece a quiseram destruir, infamando dois filhos de profitentes, aceitando-lhe confissões indignas e sugeridas, para convencer o pai e irmão mais velho, retendo estes na prisão sem saber-se com que direito depois de 10 anos e usando para os fazer confessar, ou desesperar, de horrendas troças, dolos e sugestões e ainda chegando a insinuar deles coisas indignas, como que estão ou hão-de ser profitentes e dizendo abertamente que a dita casa era a sinagoga de todo o reino. E que se ouça isto da boca dos mesmos que hão-de julgar as vidas, as honras e as fazendas desta casa?

5 - Idem.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Jejum da Rainha Ester – Festa do Purim

Contam as escrituras que, com a tomada de Jerusalém pelo rei da Babilónia, muitos judeus foram para a Pérsia onde uma judia chamada Ester conseguiu casar com o rei e obter regalias para o seu povo, naturalmente. Isso despertou a inveja de muitos persas e o ódio do primeiro-ministro, Aman, que planeou a morte dos judeus. E tirou sortes para escolher o dia em que seriam sacrificados. Calhou em 13 do mês de Adar. Mardoqueu, líder dos judeus e tio de Ester, seria o primeiro a morrer. A rainha Ester, contudo, levou o rei a mudar de ideias. Assim aconteceu e quem foi sacrificado foi Aman e os seus partidários, que morreram às mãos dos judeus, ascendendo Mardoqueu ao poder. Seguiram-se dias de festa entre os judeus, naturalmente, a Festa da Rainha Ester.

Claro que, antes, a rainha Ester recorreu ao Deus de Israel para obter as graças do rei persa e pediu ao povo que jejuasse com a mesma intenção. Nasceu assim o Jejum do Purim, palavra hebraica que significa “sortes”. Mas vejam-se as próprias palavras, tiradas da Bíblia:

— Assim foi o dia 13 do mês de Adar e no dia 14 descansaram, transformando-o em dia de festa. Os judeus de Susa reuniram-se nos dias 13 e 14 e no dia 15 descansaram, transformando-o em dia de festa. É por isso que os judeus do campo, que vivem nas aldeias, fazem do dia 14 do mês de Adar um dia de alegria, banquetes e festa, e trocam presentes. Para os judeus das grandes cidades o dia festivo é o dia 15 do mês de Adar, quando mandam presentes aos seus vizinhos.(1)

Não coincidindo o calendário judaico com o gregoriano, resta dizer que a data do Purim varia entre fevereiro e março, calhando este ano nos dias 20 a 22 de Março.

Vejamos agora como os cripto-judeus de Trás-os-Montes celebravam a festa da rainha Ester e o jejum do Purim. Antes de mais, refira-se que a palavra Purim raramente aparece no seu vocabulário, geralmente referindo o jejum da rainha Ester. Uma das exceções aparece no processo de Gabriel Serrão, de Vinhais, acusado por Diogo Mendes, de Miranda do Douro de ser ele o mestre e ensinar aos cristãos-novos de Vinhais as festas judaicas, a começar pela “festa do Purim e o jejum da rainha Ester”.(2)

Depois do jejum do dia grande (Kipur) o da rainha Ester será o mais referido, em todas as comunidades de Trás-os-Montes. Veja-se, por exemplo, o processo de Branca Henriques do Vale, cristã-nova de Chacim:

— Disse que em fevereiro haviam de jejuar o jejum da rainha Ester, que será de três dias e três noites, vestindo na primeira camisa lavada e estando em todos eles sem comer nem beber senão na última noite e que haviam de rezar a oração do padre-nosso sem dizer Jesus ao final e ofereciam os ditos jejuns ao Deus do Céu.(3)

De modo idêntico se expressava Afonso Manuel, mercador de Vinhais que “jejuava o jejum da rainha Ester e era de espaço de três dias e quando queriam pedir alguma coisa a nosso senhor jejuava três dias com suas noites sem comer senão na derradeira noite”.(4) Ainda em Vinhais, Beatriz Álvares, foi denunciada por dizer “que vinham aí os três dias de jejum da rainha Ester, os quais se haviam de jejuar todos três”.(5)

Podíamos multiplicar as citações em processos de Bragança ou Moncorvo, Miranda ou Vila Flor… provando que todos eles tinham ideia concreta do jejum da rainha Ester que caía por altura do carnaval (fevereiro-março) e se prolongava por três dias.

Embora falando em “festa do purim” ou da rainha Ester, não encontramos nos mesmos processos qualquer descrição festiva. Certamente porque, à semelhança dos judeus exilados e sob o domínio de Amon, eles se sentiam também vivendo no exílio, sujeitos ao domínio tirano da inquisição. Não tinham, pois, qualquer motivo para festejar. Ou fá-lo-iam em segredo, sem dar nas vistas, pelo que o caso não é referido nos processos?

Caso extremamente significativo aconteceu em Miranda do Douro, ao entardecer do dia 25.9.1640, primeiro dia de uma novena que os cristãos faziam na sé catedral em honra de N.ª Sr.ª do Rosário, cuja festa celebravam no primeiro domingo de outubro. Ao fim da novena, chefiados por dois padres, um grupo numeroso foi em arruada à Rua da Costanilha, à porta de Francisco Henriques e Ana Rodrigues, com pretexto de que a sua filha Ângela se vestira de Rainha Ester, engalanada com cordões, argolas e pulseiras de ouro, em manifestação clara do orgulho judeu. Tocando bombos e matracas, os arruaceiros gritavam:

— Viva a Senhora do Rosário e Morra a Rainha Ester!(6)

No rito sefardita o primeiro dia do Purim é de jejum. No segundo dia é obrigatória a leitura da “Meguilah”, que é o Livro de Ester. Ao terceiro dia trocam-se presentes e mandam-se ofertas a casa dos mais pobres. Nesse dia come-se e bebe-se com fartura e expressa-se toda a alegria. É o dia da festa, por excelência.(7)

E em Trás-os-Montes como a festa da Rainha Ester seria festejada pelos judeus e marranos?

Não temos informações concretas e precisas. No entanto, algumas descrições apontam nesse sentido. Por exemplo, em Carção, onde o padre Francisco Fernandes, “muito da fação dos cristãos-novos” foi denunciado por usar paramentos religiosos em festas pagãs. Terá sido na festa da Rainha Ester, que vem antes da Páscoa? Veja-se a denúncia:

— (…) Ter algumas vezes ataviado os filhos em festas com ornatos da igreja como são cortinas, capas e asperges, cortinas de sacrário, véus de ombros e dos cálices; e tanto assim que querendo certo clérigo dizer missa em domingo de páscoa da Ressurreição, não achou véu para cobrir o cálice, senão um de cor preta, porque os de branco e vermelho os tinham os filhos dos cristãos-novos (…) De contrário, em festas profanas esgotou a igreja dos ornatos melhores que nela se achavam, tanto assim que um sobrecéu da Senhora do Rosário, que era o melhor que havia na igreja, andou servindo de cobertura de um carro, puxando a ele uma égua pelas ruas do lugar de Santulhão; e das cortinas dos altares se fizeram calções ou saias para vestir alguns cristãos-novos de soldados à turquesa…(8)

Outros processos sugerem que, na festa da Rainha Ester, os marranos de Trás-os-Montes usavam celebrar com máscaras e fazer “jogos de burraço” e “pandorcadas”.

Seria o caso de Quintela de Lampaças onde, no último quartel do século de 500 se criou a “confraria do burraço” cujos rendimentos eram utilizados em “comezainas, bebedeiras e jogos de burraço”, em atos e celebrações promovidas para ridicularizar a ordem social cristã da aldeia, fazendo barulho pelas ruas, com brados de denúncias de situações mais ou menos parvas e de papalvos.(9)

Sobre as “pandorcadas”, diremos que, apesar das proibições e castigos impostos por vários bispos da diocese de Miranda do Douro, elas sobreviveram até ao limiar do século XX, nomeadamente em Vilarinho dos Galegos onde se fazia a “pandorcada” em honra de “S. Membrum”. A propósito, escreveu o Dr. Casimiro Moraes Machado:

— A função era absolutamente profana e brejeira, constando de intermináveis bailados e copiosas libações. Dançava-se ao ar livre, em volta do povoado e em redor da igreja, ao som do pandeiro, em ensurdecedora algazarra. Para que tudo fosse ao contrário e tudo se amesquinhasse, as mulheres cavalgavam os homens. É tradição que uma mulher gastou sete pares de chinelos de liga numa única dessas tropelias. Das muitas quadras habitualmente cantadas no decorrer da ronda, pude colher duas que arquivo:

 

Senhor S. Jerónimo

Que estais no altar,

Livrai que a peste

Nos venha ao lugar.

 

Senhor S. Miguel,

Louvado ele seja;

Que saiu borboleta,

Da nossa igreja.(10)

 

Notas:

1 - Livro de Ester, 9:17-19.

2 - Inq. Coimbra, pº 6791, de Gabriel Serrão.

3 - Idem, pº 7105, de Branca Henriques do Vale.

4 - Idem, pº 7512, de Afonso Manuel.

5 - Idem, pº 7517, de Beatriz Álvares.

6 - ANDRADE e GUIMARÃES – Judeus em Trás-os-Montes a Rua da Costanilha, pp. 151-153, Âncora Editora, Lisboa, 2015.

7 - HA-LAPID, n.º 17, de fevereiro – março de 1929: — Costuma-se fazer um banquete onde se deve comer e beber mais que ordinariamente e estar alegremente. É obrigação mandar às famílias amigas dádivas e presentes de comidas.

8 - Inq. Coimbra, pº 8016, de Domingos Rodrigues Galo, documentos anexos. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo, p. 172, Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção­ e Câmara Municipal de Vimioso, 2008.

9 - MEA, Elvira Cunha de Azevedo – A Inquisição de Coimbra no século XVI, a Instituição, os Homens e a Sociedade, pp. 464-465, Fundação Eng.º António José de Almeida.

10 - MACHADO, Casimiro Henriques de Moraes – Mogadouro um olhar sobre o passado, p. 137, Mogadouro, 1998.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António Rodrigues Marques (Mir. Douro, 1637 – Londres, 1688) 

Depois de sair das masmorras do santo ofício de Coimbra, em 1667, o padre António Vieira foi para Roma e ali iniciou uma cruzada pessoal contra a inquisição.

Atitude semelhante tomou Pedro Lupina Freire, um homem que, antes de ser preso, fora secretário do tribunal do santo ofício de Lisboa e conhecia por dentro o funcionamento da máquina inquisitorial.

Ao conhecimento do papa chegou um documento (“Notícias Recônditas”) que o terá deixado horrorizado, contando casos concretos dos abusos dos inquisidores. Atribui-se a redação deste documento a Lupina Freire.

Obviamente que um e outro concertavam as suas ações com pessoas influentes da “nação” dos cristãos-novos que viviam em Lisboa, Amesterdão, Roma, Livorno e outras terras. E então, os cristãos-novos portugueses, elaboraram um plano com vista à obtenção de um perdão geral para os presos e a mudança dos métodos da inquisição, nomeadamente dando a conhecer aos processados as razões da sua prisão e as testemunhas dos seus crimes.(1)

Em simultâneo, e de acordo com o padre António Vieira, erigiram o padre Francisco Azevedo como seu representante na Cúria de Roma e instituíram uma comissão que em Lisboa representava os cristãos-novos portugueses, constituída por António Rodrigues Marques, Pedro Álvares Caldas e D. José de Castro.(2)

O facto é significativo da importância e prestígio do nosso biografado, que assumiu a liderança da contestação. Por outro lado, mostra um grande empenhamento da família Mogadouro no pedido do perdão geral e na ofensiva diplomática em Roma contra os métodos da inquisição. De referir também que o homem que levava e trazia o correio entre Lisboa e Roma era um homem da confiança de António Mogadouro, “preceptor” que foi dos seus filhos, chamado Gaspar Rodrigues Pereira, originário também de Mogadouro.(3)

Claro que a primeira tarefa dos negociadores em Roma foi a obtenção de salvo-condutos passados pelo papa àqueles três homens que, teoricamente, os livraria de ser presos pela inquisição. Teoricamente, porque, António Marques, depois da prisão do tio e dos primos Mogadouro, viu a inquisição prender também o “correio” Gaspar Lopes Pereira e, receando o pior, acabou por fugir para Londres, como adiante se verá.

Nascido em Miranda do Douro, por 1637, António era filho de Francisco Rodrigues, o marquês, (alcunha nascida do nome da mãe, Marquesa Rodrigues), irmão de António Mogadouro. Pequeno ainda, seria levado para Lisboa, quando seu pai para ali se mudou e abriu uma loja de mercador, na Rua dos Escudeiros.

Cedo o pai faleceu e António Marques ficou sob a proteção de seu tio António Mogadouro, que o mandou “estagiar” para a Baía, juntamente com o seu filho Francisco que, mais tarde, haveria de confessar na inquisição:

— A pessoa que lhe ensinou a crença na lei de Moisés foi António Rodrigues Marques, cristão-novo, homem de negócio, primo e cunhado dele confidente, viúvo de sua irmã Leonor Rodrigues (…) haverá 14 anos, na cidade de S. Salvador, estado do Brasil, em sua própria casa, onde ele confidente também assistia…

Regressou a Lisboa 7 anos depois e casou com sua prima Leonor Rodrigues, que logo depois faleceu, sem deixar descendência. António não mais casou, ficando a viver em casa do irmão, Diogo Marques, este casado com uma irmã da falecida.

Corriam florescentes os negócios dos Marques, com o António a assumir-se como grande contratador, quando a família Mogadouro foi arrastada para as masmorras da inquisição. E enquanto em Roma se negociava, também por Lisboa promovia António Marques outras diligências visando colher informações sobre os parentes presos e ajudá-los na sua defesa e libertação. Para isso conseguiu “comprar” os serviços do alcaide da cadeia, de modo a este deixar passar cartas e escritos entre ele e o primo Diogo Rodrigues Henriques e também dinheiro, essencial para corromper o alcaide e os guardas.

De Roma não vinha o perdão e em Lisboa os inquisidores descobriram o crime do alcaide. António Marques ficava em maus lençóis e a inquisição ganhava um novo argumento para exibir perante o papa.

António fez então embarcar para Inglaterra os membros da família que ainda não estavam presos, nomeadamente a sua mãe, o irmão, a cunhada e os filhos destes. E terá diligenciado a transferência de todos os valores possíveis, especialmente dinheiro e diamantes. Ele ficou por Lisboa, munido do salvo-conduto, pegando as pontas dos negócios que restavam das empresas dos Marques/Mogadouro. Inclusivamente há notícia de duas idas dele à sala da inquisição, na qualidade de testemunha, por causa da corrupção do alcaide e da morte de um preso, com um tiro que lhe deram, depois de sair da cadeia,(4) suspeitando-se que

os mandantes foram “judeus” por ele ser um traidor e denunciante dos Mogadouro.

Gorado o perdão geral e entrando de novo a funcionar a inquisição, António Rodrigues Marques sentiu que a sua vida corria perigo e nada havia já que o protegesse, pelo que fugiu para Inglaterra. Documentada está a sua presença em Lisboa em 22 de Fevereiro de 1681 quando assinou a carta de que atrás se falou para o padre Francisco de Azevedo. E sabemos que em 4 de Janeiro do ano seguinte, quando a inquisição foi procurá-lo (a ele e aos dois escravos referidos), já se encontrava em Londres.

E em Londres estava ainda em 2 de Janeiro de 1688 “na cama doente, mas de perfeito juízo” a fazer seu testamento.(5) E esta é uma verdadeira janela que se abre sobre as vivências deste homem. Nele deixa como herdeira e administradora de seus bens a sua mãe, Sara Henriques, encarregando-a de fazer diversas ofertas, a começar pela Congregação Hebraica de Londres. Mas entre as ofertas destacamos duas que bem revelam o ânimo deste “judeu novo”, renascido como a Fénix:

Deixava 200 libras esterlinas ao dr. Fernando Mendes para comprar uma jóia para a sua filha Catarina. Deve aqui dizer-se que o dr. Fernando Mendes era médico da rainha de Inglaterra, D. Catarina de Bragança e era casado com uma sobrinha de António Marques. Exatamente porque a rainha de Inglaterra foi madrinha da filha do dr. Fernando Mendes é que esta recebeu também o nome de Catarina. E isto mostra como os irmãos Marques, nascidos em Miranda do Douro, se movimentavam pela Corte de Inglaterra. Eles pertenciam à poderosa classe dos “judeus novos” construtores do mundo moderno capitalista.

Outro legado era para um segundo filho do mesmo, ainda pequeno. Mas nisso impunha o testador uma condição essencial:

— Pretendo que o dr. Fernando Mendes dê o meu nome ao filho e dentro de dois anos deve estar circuncidado. Se isto não acontecer, excluo o dr. Fernando Mendes e seu filho da minha herança.

E fez igualmente questão de incluir cláusulas semelhantes em legados para outros sobrinhos-netos, filhos de David de Medina e Samuel Ximenes, que apenas seriam entregues se tivessem o nome de Marques. 

 

Notas:

1 - TSO-CG/Papeis Avulsos, mç. 7, n.º 2635 – Comprometiam-se a colocar 5 mil homens na Índia, pagando todas as despesas; em cada ano renovariam as mesmas forças militares com 1200 homens e pagariam 20 mil cruzados para o sustento da gente da guerra naquelas paragens; forneceriam viáticos a todos os missionários da Índia e “as letras a todos os bispos” da região; obrigavam-se a criar e manter uma companhia de comércio da Índia, conforme a vontade do rei e em cada mês dariam 200 mil réis a quem o rei mandasse; havendo guerra, mandariam mais 300 homens armados, além dos 1200 referidos; para além disso, dariam todo o apoio aos governadores e os direitos de ida e volta ficariam sob alçada régia e ao rei prometiam mais serviço em caso de guerra em Portugal. O rei D. Pedro estaria disposto a aceitar tão magnânima oferta, até porque os holandeses e ingleses ameaçavam conquistar aquela e outras possessões ultramarinas. Porém, acabaria por recuar, face ao poder da inquisição e ao argumento simplista de um dos seus homens, o bispo de Leiria: — Se os cristãos-novos prometem 500 mil cruzados pelo perdão geral, tem Vossa Alteza leis justas e santas com que, por meio do Fisco, rendem mais que os 200 contos.

2 - ANTT, Armário Jesuítico, mç. 4, doc. 19 – Trata-se de uma carta escrita e assinada por aqueles três homens, dando conta das negociações e garantindo o pagamento de 6 mil escudos de despesas feitas pelo “embaixador” com “prendas” a dignitários da Santa Sé.

3 - ANDRADE e GUIMARÃES, Percursos de Gaspar Lopes Pereira e Francisco Lopes Pereira dois cristãos-novos de Mogadouro, in: Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 5, pp. 253 – 297, ed. Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste”, Lisboa, 2005.

4 - ANTT- Inq. Lisboa, pº 81, de Manuel da Costa Martins.

5 - The National Archives – Public Record Office – Catalogue Reference: Prob/11/394 – Image Reference 548. Agradecemos a George Richard Henriques, arquiteto canadiano descendente direto de Ana Rodrigues, tia do nosso biografado, a cedência de cópia deste documento.

 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António Rodrigues Mogadouro (Mogadouro, 1599 – Lisboa, 1679

Afonso Álvares, natural de Vilvestre, Castela, veio para Mogadouro e ali se tornou rendeiro e casou com Ana Dias. O casal teve uma filha, chamada Branca Lopes, a qual casou em Mogadouro com António de la Peña. Teve também um filho, de António Álvares, que casou com Ana Rodrigues, emigrando o casal para Madrid onde ele amealhou fortuna, tornando-se o maior fornecedor de tijolos na capital do reino, alcançando até o monopólio do fabrico e venda daquele material.(1)

Um outro filho de Afonso e Ana chamou-se Diogo Álvares Marques, que viveu em Mogadouro, casado com Marquesa Rodrigues. Estes foram os pais do nosso biografado, António Rodrigues Mogadouro.(2)

No Mogadouro viveu António até aos 22 anos, altura em que rumou a Madrid, onde permaneceu por 5/6 anos. Regressou a Mogadouro e logo casou com Maria Lopes, de Vila Real, para esta terra mudando a residência. Cedo ficou viúvo e sem filhos. Voltou a Madrid e ali permaneceu mais 2 anos. Ao início da década de 1630, viajou para Lisboa e ali casou, de novo, com Isabel Henriques, também originária da capital trasmontana, irmã do célebre diplomata Manuel Fernandes Vila Real.

Da numerosa prole de António Mogadouro e Isabel Henriques, chegaram à maioridade 3 filhos e 5 filhas. Deles falaremos adiante, que todos se viram envolvidos no processo que a inquisição moveu ao patriarca, sendo já viúvo e contando 73 anos.

Situemo-nos agora em Lisboa, na Rua das Mudas onde a Casa Mogadouro se destacava pelo movimento comercial. Seria efetivamente uma das maiores firmas de importação de produtos, nomeadamente açúcar do Brasil, especiarias e diamantes da Índia, tecidos, ferro e utensílios do Norte da Europa e da Itália. De referir que os Mogadouro tinham representação comercial na Baía, por vezes dirigida por seus filhos e trabalhavam em rede com parentes seus de Madrid, Bordéus e Livorno.

E se mercadorias estrangeiras chegavam de barco a Lisboa e entravam nos armazéns da Casa Mogadouro, era também ali que muitos mercadores de Trás-os-Montes, Porto, Coimbra e outras terras vinham abastecer-se para suas vendas a retalho. Muito em especial os de origem hebreia e trasmontana, estabelecidos por todo o território nacional.

Para além disso, numa época em que os bancos davam os primeiros passos entre nós, a Casa Mogadouro desempenhava também algumas funções de crédito e penhora, próprias de uma casa bancária.

E tratando-se de uma das grandes empresas do País, obviamente que o seu alinhamento político era importante, ainda mais numa época de grandes alterações, derivadas do “golpe de estado” de 27.1.1668 em que o rei D. Afonso VI foi deposto e no trono colocado o seu irmão D. Pedro II. Nesse “golpe de estado” o papel da inquisição terá sido essencial e as Cortes que sancionaram o novo rei eram absolutamente dominadas por familiares da inquisição.

E se, em tempos do rei D. João IV e Afonso VI e muito em especial durante a governação do “primeiro-ministro” Conde de Castelo Melhor, as empresas Mogadouro ajudaram a suportar o poder político, nomeadamente no abastecimento de géneros e pagamento às tropas estacionadas em Trás-os-Montes,

na Guerra da Restauração (1640-

-1668),(3) já com o novo rei e o aumento do poder da inquisição, o horizonte começou a enevoar-se e a Casa Mogadouro seria referenciada em alguns círculos do poder e da inquisição, como um alvo a abater.

Assim se explica a vigilância mantida por vários familiares da inquisição sobre os Mogadouro e as pessoas de suas relações, não apenas em Lisboa, mas também em Madrid, Bordéus e Livorno. Isso mesmo é atestado por várias cartas arroladas no seu processo. E também isso explica os boatos que surgiram a seguir ao caso do Senhor Roubado da igreja de Odivelas, na noite de 10-

-11.5.1671, dizendo que foram os Mogadouro os mandantes do roubo. Na Guarda, por exemplo, dias depois, apareceu um indivíduo a dizer que o autor do roubo foi um seu irmão, mandado pelos Mogadouro e pelos Penso.(4)

A primeira denúncia contra António Mogadouro foi feita na inquisição de Coimbra, em 1666, por Manuel Mascarenhas, prebendeiro da universidade, dizendo que “havia 11 anos” em Lisboa, na Rua das Mudas, em casa de António Mogadouro, com ele se tinha declarado seguidor da lei de Moisés. Um ano depois, revogou esta declaração.

Em fevereiro de 1670, João e Isabel, dois escravos de António Rodrigues Marques, sobrinho de António Mogadouro, dirigiram-se à inquisição e denunciaram seus amos dizendo que 3 anos atrás tinham guardado o jejum do dia grande e que à noite vieram ter a sua casa António Mogadouro e os filhos e ali cearam peixe e ficaram até às duas horas depois da meia-noite.

Em 23.5.1672, o familiar Pedro Ferreira apresentou-se nos Estaus e contou que no Tejo estava fundeada uma nau inglesa, contratada pelos Mogadouro para nela se embarcarem e fugirem para Livorno onde estavam construindo grandes casas para eles, estando planeado o casamento do filho mais velho do Mogadouro com uma filha de Gabriel Medina, seu sobrinho, filho de sua irmã Ana.

O familiar Pedro Ferreira entregou também duas cartas recebidas de informadores de Madrid e Bordéus denunciando os Mogadouro como “passadores de judeus” na nau “Jerusalém”, pro­priedade sua e de seu sobrinho Gabriel de Medina.

Logo de seguida, apareceu outro familiar, António Castro Guimarães, acrescentando denúncias de planos de fuga e contando que dias antes, na nau “Jerusalém”, os Mogadouro tinham despachado para Itália grande quantidade de diamantes e que, para maior segurança, a tripulação foi aumentada com 50 homens. Estas informações foram corroboradas por um terceiro familiar do santo ofício chamado Luís Rodrigues.

Entretanto, a inquisição tinha prendido alguns mercadores da capital e um deles, Manuel da Costa Martins, contratador dos portos secos, membro da também poderosa família Pestana, confessou que, 9 anos antes, ele e António Mogadouro se tinham declarado seguidores da lei de Moisés.

Dois dias depois, a inquisição prendeu António Mogadouro e os dois filhos mais velhos: Diogo Rodrigues Henriques e Francisco Rodrigues Mogadouro.(5)

Os três se mantinham negativos, negando todas as acusações. Talvez por isso e com o objetivo de conseguir provas mais concludentes contra eles, um ano e meio depois, os inquisidores mandaram prender 3 filhas e o filho mais novo de António Mogadouro. Uma delas, Violante Henriques, viúva do contratador Pedro Franco Azevedo e prometida em casamento a seu primo João Lopes de Leão, faleceu de parto, 20 dias depois de entrar na cadeia. O mesmo aconteceu com Branca Henriques que faleceu no cárcere em 20.8.1676. A sua estátua e ossos foram queimados no auto da fé de 16.8.1684. Brites Henriques e Pantaleão Rodrigues, os filhos mais novos, esses sobreviveram e denunciaram seu pai e irmãos.(6) Sobrevivente e também denunciador do pai foi o irmão Francisco Rodrigues, atrás referido.

Por 5 anos, o velho Mogadouro aguentou os tormentos da prisão, vindo a falecer em 8.7.1679, tendo-se confessado por 3 vezes no decurso da doença que o vitimou, conforme declarou Bernardo de Sousa, seu companheiro de cárcere que acrescentou:

— Entende que ele morrera com actos de cristão fazendo várias orações e actos de contrição, que ele testemunha lhe estava repetindo.

Apesar deste e de outros testemunhos semelhantes, o processo continuou seus trâmites, apenas se encerrando em 26.10.1684, com os inquisidores a concluírem que ele “em sua vida não quis confessar suas culpas e delas pedir perdão (…) que viveu e morreu em seus erros e na chamada crença da lei de Moisés” pelo que ordenaram que os seus ossos fossem desenterrados e queimados com sua estátua. A sentença foi cumprida no auto-da-fé de 26.11.1684, realizado na igreja de S. Domingos. Escusado será dizer que grande parte da fortuna dos Mogadouro foi sequestrada e comida pela inquisição. E não seria toda porque, entretanto, eles conseguiram encaminhar muitos valores e capitais para Itália, nomeadamente um baú cheio de diamantes.

 

Notas:

1 - SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid, p.135 Stuttgard, Steiner Verlag, 1994.

2 - Outros filhos de Diogo Álvares e Marquesa Rodrigues: Francisca Lopes, que morou em Sambade, casada com Manuel de Leão e foi presa pela inquisição de Coimbra – pº 1253; Isabel Rodrigues, que casou com Francisco Vaz de Leão; Diogo Álvares Marques, que casou em Vila Real, com Branca Henriques, seguindo para Madrid onde ganhou relevo entre os “hombres de negócios” de origem portuguesa e acabaria os seus dias em França; Ana Rodrigues, moradora em Miranda do Douro, relaxada pela inquisição de Coimbra – pº 4990; Francisco Rodrigues Marques, que casou em Miranda do Douro, com Maria Lopes e viveram em Lisboa, na Rua da Fancaria de Cima, pais de António e Diogo Rodrigues Marques.

3 - ANDRADE, António Júlio e GUIMARÃES, Maria Fernanda – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, pp. 111-119, ed. Nova Veja, 2009.

4 - Inq. Lisboa, pº 131320, de Clemente da Fonseca Pinto.

5 - Idem, pº 5412, de António Rodrigues Mogadouro; pº 11262, de Diogo Rodrigues Henriques; pº 1747, de Francisco Rodrigues Mogadouro.

6 - Idem, pº 8408, de Violante Henriques; pº 8447, de Branca Henriques; pº 4427, de Brites Henriques; pº 7100, de Pantaleão Rodrigues.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Francisco Lopes, Capitão Farrapa (Orense, 1654- Coimbra, 1701)

O pai, António Mendes, era natural de Vila Franca de Lampaças e a mãe, Maria Lopes, de Lamego. Certamente receosos de ser presos pela inquisição, foram morar para a Galiza. Aí, na cidade de Orense, nasceu Francisco Lopes, por 1654.

Da família paterna, uma referência para o seu tio Geraldo “que se ausentou para a Índia e se fez padre”. Da família materna, diremos que se repartiu entre Lamego e Talavera de la Reina, na região de Toledo, em Castela.

Com o pai, terá Francisco Lopes aprendido os caminhos entre Portugal e Castela e a arte da mercancia, acompanhado pelo irmão João Mendes, que depois se tornou estanqueiro do tabaco. O pai, no entanto, faleceu cedo e a mãe, foi presa pela inquisição da Galiza. Posta em liberdade, mudou-se para Rio de Onor, aldeia da raia de Bragança e dali foi para Talavera de la Reina.

Francisco tinha duas irmãs. Uma delas, Ana Mendes, foi casar e morar em Lamego com Manuel da Fonseca, meirinho das cadeias e, enviuvando, casou segunda vez com Francisco dos Rios, mercador de tabacos. Maria Gomes, a outra irmã, casou em Vinhais, com Pascoal Ramos, estabelecendo o casal a sua morada também na aldeia raiana de Rio de Onor.(1)

Por 1676, Francisco Lopes deixou a casa materna e foi casar e morar na vila de Chacim, com Antónia Ferreira, de uma família com largo historial na inquisição que prendeu o pai, a mãe e 6 de seus irmãos. Diogo Ferreira, um dos irmãos, acabou mesmo por falecer no cárcere da inquisição de Coimbra, em 5.6.1699.(2) E Francisco Lopes dirá mais tarde que foi catequizado no judaísmo por seu sogro. Em casa do sogro, com os cunhados, terá aprendido também o ofício de torcedor de seda.

Não sabemos onde e como ganhou o epíteto de Capitão Farrapa. Mas sabemos que era um homem muito conhecido e bem conceituado entre a gente da nação dos cristãos-novos da região de Trás-os-Montes, referido em variados processos.

A sua casa de habitação era sobradada e situava-se no espaço mais nobre da vila de Chacim, na Praça, defronte do Pelourinho, pegada com a casa do concelho. Valia uns 60 mil réis.

Tinha um torno de fiar seda “que custou 30 mil réis e hoje, pelos consertos que nele fez, vale 40 mi réis”.

Para além doutras “artes”, Francisco Lopes exercitaria a menos digna, de “cerceio de moeda” e, por isso, foi condenado em multa de 50 mil réis. E indo o caminheiro a Chacim, cobrar a multa e perguntando por ele a seu cunhado Daniel Ferreira, este indicou-lhe a casa de Francisco Lopes, o Bonitinho de alcunha, “dizendo-lhe que esse era o condenado”. E o Bonitinho, protestando embora, não teve outro remédio senão pagar! Obviamente que a cena deixaria desavenças e ódios entre as famílias dos dois Franciscos Lopes.

No seguimento da prisão dos cunhados e outros parentes e amigos, também o Capitão Farrapa foi levado para a inquisição de Coimbra, em novembro de 1698. Manteve-se negativo durante 3 anos, começando a confessar apenas em 8.12.1701, quando lhe disseram que estava condenado à morte. E a confissão que então fez foi muito diminuta. O processo foi visto de novo pelos inquisidores que mantiveram a condenação. E foi então, depois de lhe atarem as mãos, dois dias antes do auto da fé, em 16.12.1701, que ele confessou seus crimes e denunciou seus familiares. E porque sua confissão é muito importante para o estudo das ritualidades funerárias em Chacim, transcrevemos um extrato. Vejam:

— Disse que, haverá 5 anos, em Chacim, em casa dele confitente (…) na ocasião em que faleceu sua filha Catarina, de 10 anos, (…) disse ele confitente para a dita sua mulher Antónia Ferreira que a amortalhasse em um pouco de lenço novo que em casa havia, em presença dos outros. E estando a dita sua mulher amortalhando a dita defunta, entrou Domingos Ferreira, cunhado dele confitente e disse que andavam bem em a amortalhar em mortalha nova e que era bom jejuar 3 dias judaicamente pela alma da dita defunta e ele confitente respondeu que não podia porque tinha de ir para fora, mas que antes daria alguns tostões a quem lhos fizesse (…)

Disse mais que, haverá 7 anos (…) por ocasião de assistirem ao mortuório de sua cunhada Bárbara Ferreira, mulher do dito Lourenço Mendes, que havia falecido, disse o dito Lourenço Mendes para ele confitente e para as mais pessoas que lavassem a dita defunta e a amortalhassem em mortalha nova, por cerimónia judaica e por intenção da mesma havia de jejuar 3 dias de estrela a estrela, (…) e mandaram dar de jantar bacalhau e os mais ficaram na dita casa 8 ou 9 dias e ele confitente se foi embora; e passados alguns dias, tornando à mesma casa, lhe disse o dito Lourenço Mendes que havia de jejuar 30 dias por alma de sua mulher defunta.(3)

Francisco e Antónia tiveram 9 filhos. Três deles foram presos pela inquisição em 1701, estando ainda solteiros: Maria Ferreira, de 20 anos; Ana Ferreira, de 15 anos e Pascoal Lopes, de 18 anos. Deste voltaremos a falar.

Pedro Ferreira, outro dos filhos, era criança quando o pai foi preso. Aprendeu o ofício de torcedor de seda e tinha uns 25 anos quando foi apresentar-se na inquisição de Coimbra. De regresso a Trás-os-Montes, casou com Ana Maria, filha de Francisco Dias Cardoso, fixando o casal residência em Bragança. Deste casamento teve um filho, que casou com uma filha do Dr. Gabriel Ledesma e duas filhas que casaram com dois torcedores de sedas. Por 1726, faleceu sua mulher e ele casou em segundas núpcias com Maria de Sá, filha do tecelão Lourenço de Sá, da qual não teve filhos. Em abril de 1747 foi preso pela inquisição de Coimbra, saindo condenado em cárcere a arbítrio.(4)

Quando Pedro se foi apresentar em Coimbra disse aos inquisidores que os irmãos Manuel Ferreira, André Ferreira e Hilário Ferreira eram ausentes em Castela.

Voltemos atrás, a Pascoal Lopes Ferreira que, depois de sair da cadeia, se foi viver para Carção, antes de se abandonar o País.

Vejamos agora uma informação muito interessante, transmitida por José Rodrigues Mendes, aliás, Moses Mendes Pereira, de Bragança, que, em agosto de 1727, passava por Bayonne:

— Disse que, haverá 4 meses, em Bayonne, de França, em casa de Hilário Lopes Ferreira, aliás, Abraham Lopes Ferreira, casado não sabe com quem, filho do Capitão Farrapa, natural da vila de Chacim, morador em Bayonne de França, e com um irmão inteiro do mesmo chamado Pascoal Lopes Ferreira, aliás, Isaac Lopes Ferreira, natural de Chacim e morador em Bayonne.(5)

Abraham Lopes Ferreira não terá permanecido em Bayonne por muito tempo. Com efeito, em 1733, ele já morava em Bordéus e uma das sinagogas existentes na cidade, funcionava em sua casa, sendo ele referido como “ministro do culto”, conforme informação enviada para Paris, pelo “aide maior de la Ville de Bordeaux”:

— Dans la rue des Augustins et vis à vis de la grande porte de l´Eglise de ce couvent est une autre sinagogue dans une maison occupée par un juif nommé Ferreyre (…) Ils ont plusieurs prestres (ministres officiants), du nombre desquels sont les nommés Abraham Ferreyre, Jacob Mendes et Abraham Lopes.(6)

No ano seguinte, em 25.3.1734, foi eleito tesoureiro da “nação” e, em 26.3.1735,(7) ascendeu ao cargo de gabay. E agora veja-se a ata n.º 72, que ele assina como “parnas”:

— Nos Parnasins y gabay assistidos de los Señores Benjamim Gradis KK Rabis Joseph Falcon y Jacob Hain Attias deliveramos que Moize de Paz Dias portugais queda escluido del rol de la Sedaca por ser pertinas y contumaz a la Lei de Dios, y otras razonnes a nos savidas. Bordeos a 24 de Elud de 5495 que corresponde a onze de setiembre del anno 1735. Signé Jacob Lopes de Paz, parnas; signé Ferreira, parnas; signé, Benjamin Gradis Gabay; signé en hebreu de K. K. Falcon.(8)

A última notícia que temos do seu agregado familiar data de janeiro de 1744, altura em que na lista dos contribuintes da taxa anual da nação, aparece coletada em 7.10 libras a viúva de Abraham Ferreira.(9)

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 2551, de Pascoal Ramos. Ficando viúvo de Maria Gomes, Pascoal casou 2.ª vez, com Inês Soares, fixando morada em Chacim.

2 - Idem, pº 6977, de Diogo Ferreira, tecelão de seda.

3 - Idem, pº 9708, de Francisco Lopes, capitão Farrapa.

4 - Idem, pº 7466, de Pedro Ferreira.

5 - Idem, pº 4939, de José Rodrigues Mendes.

6 - FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN – Le Registre des Deliberations de la Nation Juive Portugaise de Bordeaux (1711-1787) p.601-602, Centro Cultural Português, Paris, 1981.

7 - Idem, p. 134.

8 - Idem, p. 137.

9 - Idem, p. 166.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Rodrigues Pereira (Chacim, 1597)

Seu pai chamou-se Bartolomeu Pereira e era natural de Chacim, filho de Duarte Pereira, cirurgião e sua mulher, Violante Rodrigues. Maria Rodrigues, a mãe, era de Mogadouro, filha de Francisco Álvares e Ana Rodrigues que, em algum tempo viveram em Sambade, terra onde nasceu e morou André Rodrigues, irmão de Maria.

Manuel Rodrigues Pereira teve dois irmãos. Um deles chamou-se Francisco Rodrigues Pereira. Casou em Vila Flor, com Leonor Lopes e ali residiu, exercendo a profissão de “mercador de buréis da serra”. O casal teve 5 filhos e todos conheceram as cadeias da inquisição.

O outro irmão de Manuel chamou-se Duarte Pereira, o Frade, de alcunha. Casou em Chacim com Violante Vaz e na terra ficaram morando. Ambos foram presos pela inquisição de Coimbra,(1) posto o que, fugiram para Castela. A fuga de Violante, depois que saiu da cadeia, ao encontro do marido que a precedeu no “salto”, constituiu um verdadeiro romance, uma história digna de um filme.(2)

Nascido em Chacim, por 1597, Manuel Rodrigues Pereira, cedo começou a comerciar aquém e além da fronteira de Castela. Tornou-se um homem muito rico, “o principal dos homens da nação” na vila de Mogadouro. Antes, porém, viveu em Madrid e ali casou com Violante de Sória,(3) que nasceu em 1593 e faleceu por 1633, deixando uma filha, chamada Maria Rodrigues, nascida em 1626 e que viria a casar com seu tio materno, António de Sória, ao início da década de 1640.(4)

Em 1635 Manuel Pereira era já casado segunda vez, com Catarina Henriques, irmã da mulher de seu irmão Duarte, estabelecendo morada em Chacim. Catarina faleceu sem deixar descendência e Manuel foi casar pela terceira vez, agora em Mogadouro, com Antónia Rodrigues. Deste casamento teve também uma filha, igualmente batizada com o nome de Maria.

A casa de morada de Manuel e Antónia era na Pracinha, uma casa muito boa, já que foi avaliada em 300 mil réis. Defronte, tinha outra casa, que valia 60 mil réis, arrendada a Domingos Lopes por 3 000 reis/ano. E ainda, “pegado à sua porta”, um palheiro, valorizado em 8 000 réis.

De resto, no termo de Mogadouro, era proprietário de uma vinha sita ao Vale do Peral e algumas terras de horta e cereal.

O seu “casal” em Chacim incluía parte de uma casa que estava arrendada a Pascoal Ramos, dois olivais, duas vinhas, terras de cereal e hortas.

Na aldeia de Valverde, possuía duas casas e uns terrenos “que tomou de uma dívida de nove mil réis” a João Martins, alfaiate.

Manuel Rodrigues Pereira era, pois, um bom proprietário agrícola, colhendo quase 500 almudes de vinho e 5 de azeite. E tinha também ovelhas e cabras.

Porém, o mais interessante, do inventário de seus bens eram “algumas acções que tinha que se não lembra e constará dos cartórios dos escrivães de Mogadouro”.

Para além de tudo isto, a maior fonte do seu rendimento provinha da cobrança de rendas, como era o caso da renda da igreja de Castelo Branco, que trazia arrematada por 119 mil réis. Tudo isto fazia dele o mais rico dos cristãos-novos de Mogadouro, “o principal dos homens da nação”.

Em 1648 a inquisição lançou uma autêntica operação de limpeza em Mogadouro. Ano e meio depois, os inquisidores de Coimbra faziam o seguinte balanço:

— Mogadouro é terra que há muito tempo arde em judaísmo e aonde o santo ofício tem presas mais de 60 pessoas e tem fugidas outras tantas ou mais, para não serem presas.(5)

Nesta operação, um dos primeiros a ser apanhado foi Manuel Rodrigues Pereira, juntamente com a sua mulher, Antónia Rodrigues, o seu irmão, Duarte Pereira, ao início do mês de março de 1649.(6)

Das denúncias que ditaram a prisão de Manuel R. Pereira, destacam-se a de um Frei Jerónimo e a de um Gaspar da Rocha, feitas perante o pároco de Sambade, comissário da inquisição, padre Azevedo da Veiga, e que são bem significativas do ambiente de espionagem que se vivia na terra. Vejam o que ele escreveu para Coimbra:

— Logo no dito dia (24.2.1649), Frei Jerónimo (…) disse que na vila de Mogadouro ouvira dizer a certas pessoas que Manuel Rodrigues, da Pracinha, cristão-novo, principal dos homens da nação, se ausentara depois que aconteceram prisões (…) Passando ele pela barca de Remondes, em 23 de fevereiro do ano presente, ouviu dizer aos barqueiros que o passaram, que no mesmo dia passara um moço com um macho descarregado que ia buscar a mulher do dito Manuel Rodrigues, ausente e ausentaram-se poucos dias antes outros homens da nação com as famílias. E logo no mesmo dia apareceu Gaspar da Rocha, filho de Gaspar da Rocha, morador em Chacim (…) disse que Manuel Rodrigues Pereira, homem da nação, morador no Mogadouro, fora à vila de Chacim e vendera um olival a Oliveros Nunes, morador na dita vila e ouviu dizer que se ia ausentar para o reino de Castela. E ele e sua mulher se ausentaram da vila de Mogadouro e ele tirara todos os seus bens de casa.

Obviamente que, depois de encarcerado em Coimbra, as denúncias choveram, nomeadamente da parte de seus familiares e amigos. Tal como ele denunciou todos os outros que estavam presos, que era a forma certa de acertarem.

Decorreu o processo com relativa normalidade e sem muita delonga, saindo penitenciado em cárcere e hábito e sequestro de bens, no auto da fé de 10.6.1650, tal como a sua mulher e o seu irmão.

Regressados a Mogadouro, Manuel Rodrigues Pereira logo tratou de contratar um grupo de passadores para o ajudarem a passar a fronteira, levando com ele a mulher, a filha, conforme contou Amaro Ferreira do Vimioso aos inquisidores de Coimbra, em 30.9.1653:

— Disse que haverá dois anos foi a Chacim, com Manuel Álvares e Francisco Álvares e Simão Fernandes, de Sendim, dizem que é cristão-novo, e em Chacim Manuel Rodrigues Pereira, cristão-novo, mercador, lhes disse se eles quisessem acompanhar a ele e sua mulher até Castela e uma filha que seria de 10 anos; e de os passarem deram-lhe 12 patacas do rosário.(7)

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António Pereira d´Aça (n. Chacim 1652)

Duarte Fernandes se chamou o seu pai, mercador e proprietário agrícola, o qual foi preso pela inquisição de Coimbra, em janeiro de 1670, quando contava 58 anos. Saiu penitenciado em cárcere e hábito e sequestro de bens no auto da fé de 14.6.1671.(1)

Denunciada como judaizante seria também a sua mulher, Ana Pereira, 8 anos mais nova. Não a levaram presa para Coimbra, por se encontrar entrevada na cama, sendo ouvida em casa em 22.10.1671, por um comissário. Isso não impediu que lhe fosse instaurado um processo e nele fossem autuadas as culpas que lhe iam sendo assacadas. Faleceu em 6.2.1680, mas só em 21.8.1687 foi apreciado o seu processo e

ditada a sentenciada.(2)

O casal teve 7 filhos, todos casados em famílias cristãs-novas, também com largo historial na inquisição. Dois deles casaram com filhos de Pascoal Ramos e um terceiro casou com Leonor Nunes, de Bragança, a qual, ficando viúva, casou segunda vez com João da Costa Vila Real.(3)

António Pereira d´Aça, o nosso biografado, nasceu em Chacim, por 1652 e casou em Rebordelo, termo de Vinhais, com Ângela Nunes, que lhe deu dois filhos: Duarte, nascido por 1680 e Clara, 5 anos mais nova.

António era homem muito viajado, não apenas em Portugal mas também por Castela, mercador de panos, especialmente sedas. No verão de 1695, partiu de Chacim rumo à cidade portuária da Corunha, no extremo noroeste da Galiza. Ali embarcou em um navio holandês e viajou para Amesterdão.

Chegou pelo mês de Outubro e foi hospedar-se em uma estalagem sita no arrabalde, junto à sinagoga, propriedade de um judeu ido de Livorno, chamado Moisés Alva. Procurou por Diogo Rodrigues Nunes, viúvo de Maria Pereira d´Aça, mas disseram-lhe que era já falecido. Precisaria, naturalmente, de apoio e lembrou-se de dois irmãos que conhecera no Porto, chamados Manuel e Jerónimo Nunes de Carvalho, recentemente chegados à Holanda, fugidos da inquisição. Perguntaram-lhe se ia também fugido da inquisição e ele respondeu que sim. Ter-lhe-ão dito que o apoio não havia de faltar mas para isso, tinha de frequentar a sinagoga e tornar-se judeu, fazendo-se circuncidar.

O mesmo lhe dizia o estalajadeiro, naturalmente e todos os judeus sefarditas que na “Jerusalém do Norte” ia encontrando. E logo começou a frequentar a sinagoga e foi circuncidado. A cerimónia decorreu na própria estalagem, no dia 3 de novembro, sendo a circuncisão feita por David Leão, testemunhada pelo estalajadeiro, pelos irmãos Carvalho “e cinco ou mais judeus”. Ficou 8 dias de cama a curar a ferida da circuncisão. Ia curá-lo o mesmo David de Leão que também lhe levou 40 patacas angariadas por ele entre os da comunidade.

Viveu na Holanda meio ano e, para além de Amesterdão, conheceu as cidades de Haia, Delft, Roterdão e Leiden. Viveu como judeu, frequentando a sinagoga, instruindo-se e rezando por um livro que lhe deram à chegada. O livro vendeu-o depois que decidiu deixar a Holanda e dirigir-se a Londres, cidade onde chegou ao fim do mês de maio de 1696.

Não temos qualquer informação acerca das pessoas que ele contactou em Londres, para além do capelão-mor da capela(4) da embaixada de Portugal naquela cidade, a quem contou as suas aventuras.

Certamente que se dirigiu ao dito capelão com o objetivo de conseguir um documento que lhe permitisse o regresso a Portugal, sem receio de ser preso pela inquisição, que por todo o lado tinha esbirros e logo a sua fama de judeu público em Amesterdão chegaria com ele. Obteve assim o documento desejado, assinado pelo capelão, pelo “embaixador” Manuel Jacques de Magalhães, visconde de Fonte Arcada e mais 5 testemunhas que assistiram à cerimónia de abjuração na capela. Mas, veja-se o texto:

— Eu, abaixo assinado, capelão de SS. O Visconde de Fonte Arcada (…) certifico e declaro que António Pereira (…) me veio dizer que ele, reduzido a necessidade, na Holanda, para procurar favor e ajuda dos judeus da dita terra, por alguns meses do ano de 1695 e alguns de 1696, comunicou com eles no judaísmo e aceitou os ritos e cerimónias da dita superstição em comunhão com os ditos judeus, durante o sobredito tempo, nas suas sinagogas. Porém, agora, caindo sobre si, resolvera, como verdadeiro penitente, renunciar e abjurar a dita seita e tornar-se ao grémio da sacra santa igreja católica. Certifico mais que, conforme o seu desejo, precedendo-se a exame e todas as demais preliminares disposições e requisitos necessários (…) fez abjuração da dita superstição judaica e profissão das vivíficas doutrinas e crenças da santa madre igreja católica (…) na capela pública do sobredito Senhor Enviado em Londres, aos 25 de junho de 1696. O qual feito, o absolvi da excomunhão e quaisquer outras censuras eclesiásticas incorridas pelas causas sobreditas, conforme o poder e privilégios de missionário nestas terras que para isso tenho…(5)

Obviamente que a absolvição e a entrega do documento impunham que António Pereira, ao chegar a Lisboa se fosse apresentar ao tribunal da inquisição. Caso contrário, ao “crime” de judaísmo se acrescentava o de fingir e estorvar o trabalho reto do santo ofício.

Chegou a Lisboa no dia 1.9.1696 e logo se apresentou na inquisição, sendo ouvido pelo inquisidor António Monteiro Paim. E para justificar a sua ida a Amesterdão, disse que fora com o objetivo de receber 200 mil réis da mão de um Diogo Rodrigues Nunes, que havia deixado em testamento a mulher deste, Maria Pereira d´Aça a sua sobrinha Francisca d´Aça, moradora em Chacim, sua parente. Porém, chegando a Amesterdão, soube que Diogo Rodrigues era já falecido, como atrás se disse e ele se viu obrigado a tornar-se judeu, por uma questão de sobrevivência e não por verdadeira convicção.

Ouvida e autuada a declaração do penitente, a primeira reação do inquisidor foi a de mandar saber se nos diversos tribunais (Lisboa, Coimbra e Évora) havia alguma denúncia contra António Pereira. Depois despachou:

— Que não saia desta cidade, nem da estalagem em que está e continuará a vir na sala desta inquisição todos os dias, de manhã, até se finda a sua causa.

Felizmente não havia qual-

quer culpa registada contra ele, pelo que o processo foi encerrado, com sentença ditada na Mesa do santo ofício em 26.9.1696, impondo abjuração e penitências espirituais.

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 1646, de Duarte Fernandes.

2 - Idem, pº 6040, de Ana Pereira.

3 - Idem, pº 3193, de Francisco Soares Ramos; pº 3605, de Leonor Nunes.

4 - Tratando-se de um reino onde a religião oficial era o anglicanismo, não havia em Inglaterra capelas cristãs abertas ao público mas tão só a nas embaixadas de países católicos para serviço do pessoal da embaixada e seus convidados.

5 - Inquisição de Lisboa, pº 17718, de António Pereira d´Aça: — Depois de dito visconde e o seu capelão o examinarem e lhe declararem o que era obrigado a crer como católico romano, o levaram para a capela que tem nas suas casas, e diante do mesmo enviado, capelão e alguns criados seus, pondo-se ele confitente de joelhos, diante do altar da mesma capela, com uma vela na mão, acesa, estando o dito capelão de sobrepeliz, em pé, e pondo ele confitente as mãos sobre o missal, abjurou de seus heréticos erros e prometeu nunca mais se apartar da fé católica romana…

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Tu Bishvat – o ano novo das árvores o Tu BiShvat / וט טבשב de Ana Doce

Tu Bishvat é nome hebraico de uma festa que os judeus celebram no dia 15 do mês de shevat que, no calendário gregoriano, varia entre meados de janeiro e meados de fevereiro. Neste ano calhou a 21 de janeiro, começando, naturalmente, ao anoitecer do dia anterior.

É a festa das árvores, simbolizando o renascer da natureza, o dia em que o Criador decide sobre a floração e os frutos que as árvores vão dar. Geralmente aparece simbolizada por uma amendoeira, certamente por ser a árvore que, no mundo mediterrânico, mais cedo rejuvenesce e se veste de flores.

Era uma festa menor, se assim podemos dizer, para os judeus, mas, nos últimos anos, certamente devido a uma maior consciencialização ambiental, vem ganhando importância crescente. Falamos em festa mas devemos acrescentar: de oração e louvor ao Criador, celebrada com jejum “de estrela a estrela” e com promessas de renascimento do próprio homem.

Percorremos mais de mil processos da inquisição para saber se os marranos de Trás-os-Montes celebravam o Tu Bishvat. Apenas encontrámos uma referência, no processo de Afonso Garcia, cristão-novo, no qual vem inserto um “feito crime” contra sua mulher, Ana Fernandes, mulher de uma sensibilidade incrível e que nem direito a processo próprio teve.(1)

Uma das acusações que lhe fizeram foi a de celebrar festas judaicas e fazer os respetivos jejuns, entre eles o jejum do Tu Bishvat. Essa acusação foi feita pelo Dr. António de Valença, o mais célebre Mestre e divulgador das ideias e práticas judaicas entre os cristãos-novos de Trás-os-Montes, também ele preso pela inquisição e que se tornou o maior dos denunciantes de seus pares.(2) Vejam-se as próprias palavras do processo:

— A dita Ana Doce nunca o deixava senão que ele lhe declarasse as festas dos judeus quando vinham e isto com muitos rogos, para as guardar, disse o dito Mestre António que a dita Ana Doce lhe perguntou no dito tempo que jejuns da rainha Ester que se faz no mês de fevereiro que se chama festa do Purim e assim também lhe perguntou pelo jejum do Tu B´shevat e que aquilo lhe perguntava a dita Ana Doce para os jejuar e que lhe dizia a dita Ana Doce que jejuava aqueles jejuns dos judeus.(3)

Confrontada com esta acusação pelo inquisidor Pedro Álvares Paredes, Ana Doce negou, disse que não fazia jejuns judaicos e acrescentou “que não havia pessoa alguma que tal coisa lhe dissesse no rosto”.

Então, o inquisidor Paredes mandou chamar o Dr. Valença, que em outra cela estava preso, para a trazer à razão e a convencer a confessar seus erros.

Seguiu-se uma cena extraordinária, carregada de lirismo, encanto e desilusão daquela mulher. Apesar da sua frieza e da insensibilidade do funcionário da inquisição, nada mais realista do que o texto do processo, escrito pelo notário do santo ofício. Vejam a saborosa descrição:

— Em Évora aos 21 dias do mês de agosto de 1545, na casa do despacho da santa inquisição, depois que eu, notário li o libelo da justiça a Ana Fernandes Doce, mulher de Afonso Garcia, perante o senhor licenciado Pedro Álvares Paredes, que presente estava, e depois de a dita Ana Fernandes ter contestado o dito libelo por negação, disse ao dito senhor inquisidor que não havia pessoa alguma que tal coisa lhe dissesse a ela, ré, no rosto.

E logo o senhor inquisidor disse que para mais brevidade, para que a dita Ana Fernandes dissesse a verdade e confessasse as suas culpas, mandou chamar e aparecer diante de si o autor Mestre António de Valença, preso neste santo ofício, testemunha da justiça, para que, em sua presença, dissesse à dita Ana Doce que confessasse as suas culpas e pedisse misericórdia. E o dito António de Valença, em presença de mim, notário, em se chegando, tanto que viu a dita Ana Fernandes Doce a abraçou e ela o abraçou a ele, Mestre António, perguntando um ao outro como estava.

Ao qual Mestre António o senhor inquisidor lhe disse que lhe dissesse no rosto à dita Ana Fernandes o que dela sabia e contra ela tinha testemunhado neste santo ofício, de coisas tocantes à nossa santa fé católica.

E o dito Mestre António disse à dita Ana Doce que ele tinha confessado seus pecados e culpas e tinha pedido misericórdia, e que a admoestava, da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo e da sua, e lhe rogava que ela confessasse tudo aquilo que tinha feito contra a nossa santa fé católica, porque ele, Mestre António, tinha dito nesta inquisição o que ela sabia; e que ela fosse lembrada que havia 3 ou 4 anos, que ela, Ana Doce lhe perguntara por certos jejuns, quando caíam, para os jejuar. E principalmente pelo jejum do Tu B´Shevat, pelo Purim e por outros que ele Mestre António lhe dissera; e portanto ela olhasse o que lhe cumpria e confessasse a verdade.

E a dita Ana Fernandes disse ao mestre António que zombava e que ela não lhe perguntara tal coisa, e que jurasse ele Mestre António aos santos evangelhos, se era verdade o que dizia e que ela perguntara pelos jejuns e festas dos judeus e ele lhos dissera, e que ele jurasse que ela ouviria.

E o dito Mestre António tomou logo um livro dos santos evangelhos que estava na mesa ante o senhor inquisidor e jurou nos ditos santos evangelhos uma vez e duas que ela dita Ana Doce lhe perguntara pelos ditos jejuns e festas dos judeus e por outras coisas. E lhe dissera que as queria saber para as guardar e jejuar os ditos jejuns dos judeus, como em seu testemunho se continha. E que ele Mestre António lhos dissera.

Ao que ela, a dita Ana Fernandes respondeu que bem podia ela perguntar a ele Mestre António por alguma mezinha para algum dos seus filhos que tivesse doente com lombrigas, e não por aquilo que ele dizia.

E o dito Mestre António tomou outra vez o dito livro dos evangelhos e lhe tornou a jurar neles que dizia a verdade; e que era verdade que ela lhe perguntara pelos ditos jejuns e festas dos judeus, para ela haver de jejuar e guardar como em seu testemunho, e que ele lhos dissera. E que assim mesmo bem podia ser também que lhe perguntasse ela por alguma mezinha para algum dos sitos seus filhos que estivesse enfermo, por ele ser médico.

E logo o senhor inquisidor mandou ao carcereiro que levasse mestre António para o seu cárcere; e depois de levado, a dita Ana Doce disse a ele senhor inquisidor que olhasse sua mercê muito bem por sua justiça, porque ela nunca tal coisa perguntara ao dito Mestre António, como ele agora dissera; mas podia ser que o dito mestre António lhe quisesse mal, por alguma coisa; e que por tanto dizia dela o que ela nunca lhe perguntara.

E o senhor inquisidor a admoestou que dissesse a verdade porque isso era o que lhe cumpria para salvação de sua alma e que esta diligência de trazer o dito Mestre António fizera ele senhor inquisidor para que o dito Mestre António a aconselhasse, para que ela, Ana Doce dissesse a verdade e pedisse misericórdia…(4)

 

Notas:

1 - ANTT, inq. Évora, pº 4637. Afonso Garcia, era cristão-novo, natural de Fermoselhe, morador em Mogadouro onde casou com Ana Fernandes, a Doce, de alcunha. Ambos foram presos pela inquisição, em julho de 1544, acusados e judaísmo. Incerto do processo referido, encontra-se um “feito crime contra Ana Fernandes, mulher de Afonso Garcia, cristã-nova, presa nos cárceres”.

2 - Idem, pº 8232, de António de Valença.

3 - Idem, “feito crime contra Ana Fernandes…” fl. 18.

4 - Idem, fls. 21-23.