Manuel Vaz Pires

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Museu da língua

O concurso, para a escolha do projecto para o Museu da Língua Portuguesa, foi um processo atribulado por violações formais do regulamento do concurso. A iniciativa, que eu pensava abandonada pela controvérsia que despoletou, está reafirmada nos seus propósitos como é manifesto pelo anúncio da entrega da execução da obra à Empresa “Evolucion Portugal ACE”. Discordando em absoluto, não com a iniciativa mas com a sua materialização, fui consultar o projecto disponível na “internet” pois tinha curiosidade em saber como se compatibilizaria uma estrutura feita de desenvolvimentos verticais individualizados com a necessidade expositiva. Seria um novo Guggenheim de NY (em desenvolvimento vertical) ou seria uma peça clássica feita do somatório de desenvolvimentos horizontais? Fiquei a saber que é um clássico feito de desenvolvimentos horizontais e que o projectista para o conseguir teve de reduzir a zero todo o espaço compreendido entre os dois planos que contêm os eixos dos cilindros que compõem cada conjunto de 7. Quer dizer: de toda a estrutura agora existente ficam só as meias canas exteriores que assim delimitam o espaço onde o projectista idealizou o museu. Não entendo que se queira aproveitar o que não tem qualquer aproveitamento para o fim a que se quer destinar quando havia outras funções que aproveitariam toda a estrutura na sua plenitude. (Não percebo porque foi abandonada a ideia da residencial estudantil nos silos. Dada a localização e a lacuna existente na oferta da habitação além do total aproveitamento da estrutura, tudo levava a pensar que seria esse o desfecho. Enganei-me.) Mais valia fazer sem ter de partir. Vai ser uma obra cara no desfazer. Mas porquê destruir uma estrutura imponente, (o que fica é irrelevante) porquê este pseudo aproveitamento? Dei voltas à cabeça e só me restaram duas razões plausíveis (por ironia, claro): uma seria por analogia estética. As meias canas dos cilindros fazem lembrar as lombadas de livros numa prateleira; a outra seria uma analogia funcional. Aquilo que durante tanto tempo foi fiel depositário de alimento para o corpo, cumprirá com facilidade a função de fiel depositário de alimento para o espírito. Além disso os 250 milhões de falantes de Português exigem para o Museu da sua língua uma dignidade pouco compatível com a recuperação dos “salvados” de um celeiro. Deveria ser uma obra de raiz, que não impusesse constrangimentos ao projectista, onde este pudesse dar largas à sua criatividade, inovação e, quiçá, a alguma rebeldia conceptual. Que fosse obra única. Se, como dizia Goethe, a “arquitectura é a música petrificada” o Museu da nossa língua deveria ser a petrificação da musicalidade dos nossos fonemas. Tanto quanto sei o museu da língua é um museu virtual. Isto é: as peças do seu acervo são digitais não têm existência física. Claro que sendo assim o seu conteúdo em breve passará para a internet e poderemos ver em casa aquilo que veríamos no museu. A consequência é imediata: a parte mais apelativa do museu estaria na casa que alberga o museu em detrimento do seu conteúdo. Mas isso exige uma obra marcante, emblemática, uma obra icónica que fizesse de Bragança a Taprobana do Português. Infelizmente, vejo isso algo distante.

Não! Este ano não vou

As festas têm, psicologicamente e sociologicamente, uma importância que habitualmente não lhes damos. Talvez por pudor, uma vez que as festas estão associadas ao lazer, ao ócio, à cigarra quando no discurso politicamente correto os elogios vão todos para a formiga. Mas é nessa quebra de rotina que retemperamos forças para mais umas jornadas de quotidiano. Usamos as festas como bálsamo para as agruras da vida quando, porventura, quem as inventou não foram aqueles que as vivem mas sim aqueles que as promovem com olhar de longo alcance. “Dai-lhe pão e circo” não foi a fórmula que Júlio César defendia para trazer as suas hostes controladas? E a introdução da música nas cadeias de produção, como mostra Chaplin nos “Tempos Modernos”, visava o bem-estar dos trabalhadores ou o aumento da produção? De qualquer forma, seja qual for a génese das festas, gosto imenso delas e sou um seu defensor incondicional. E não se pense que tenho especiais requisitos para romeiro, antes pelo contrário: não sou nem gaiteiro nem bailarino, sou parco nos contactos, sou contido nos afectos, não sou exuberante nos actos, sou individualista e pouco sociável. Com este perfil só me resta, de facto, a contemplação mas não me queixo porque nesse exercício gosto imenso do que vejo: aquela horda de gente literalmente varrida por uma onda de optimismo e confiança; aquela multidão que parece empunhar invisíveis bandeiras brancas de paz, de tréguas com todos e com eles próprios; aquele bando de gente que aceita, de bom grado, o repto de Luis Goes “é preciso acreditar que um sorriso de quem passa é um bem para se guardar”. E o que mais não se poderia dizer! Se é verdade que a beleza das coisas está nos olhos de quem as mira agradeço essa magia às festas que me faz vê-las assim.
É também assim a festa do “Avante”. “O vinho, o riso, a poesia… e uma mão ladina sobre a carne morna”. Tem além disso actividades diversíssimas onde qualquer um encontra a sua zona de refúgio. Pode ver-se um torneio de futsal, de basket ou de xadrez, ir à feira do livro ou do disco, assistir ao lançamento de um livro ou a um debate sobre cinema, enfim um inumerável rol de iniciativas onde não podia faltar a mostra do espectro gastronómico nacional exibido pelos seus mais lídimos representantes: os que têm a mesma naturalidade do petisco. Pode comer-se uns chocos em Setúbal, umas enguias em Aveiro, umas tripas no Porto ou um rancho em Bragança. É, assim, o “Avante” uma espécie de “Portugal dos Pequeninos” da geografia humana.
Não sei se vai haver Avante este ano. Se houver, estou certo que a organização tudo fará para obviar todos os males decorrentes do estado pandémico. Tudo que estiver ao seu alcance. Mas temo que haja pormenores que não estejam ao seu alcance. A assistência dos concertos Rock é incontrolável. Tal como o pessoal que vai e vem nas camionetas, come do farnel, que vai para o parque de campismo e que portanto é muito difícil de controlar.
Mas mesmo que não houvesse estes óbices só o facto de Portugal não ter tido festas, o que deixou muita gente triste e desiludida, deveria, por uma questão solidária, ter pesado na atitude do PCP de forma a levá-lo a prometer uma festa de “arromba”… para o ano que vem.
Não! Este ano não vou.

 

Nota de fim de ano

O acontecimento político mais relevante do ano transacto, para

Bragança, foi, indiscutivelmente, a escolha da Dr.ª Isabel Ferreira para Secretária de Estado da Valorização do Interior. Não que os outros Secretários de Estado, também bragançanos, não mereçam o nosso entusiasmo já que são pessoas trabalhadoras e superiormente preparadas. O que é que torna, então, Isabel Ferreira um “primus inter pares”? É o tema que vai trabalhar e que tão caro é aos bragançanos (e a todo o interior) pois é do seu futuro que se trata. E também porque representa o último reduto para dirimir os males que a interioridade impõe já que o “think tank” transmontano cheio de eminências, umas purpúreas outras mais pardas, depois de variadíssimos debates, mesas redondas, congressos, “brainstormings” conseguiu… o que se vê. É, pois, o rosto da última esperança para aqueles que pensam, ainda, ser possível reverter a desertificação e as desvantagens que a interioridade acarreta. É para ela que eles dirigem tanto o apelo dramático, ouvido a João Miguel Tavares no discurso do 10 de Junho, “dêem-nos algo em que acreditar” como a exigência humilde “precisamos de sentir que contamos para alguma coisa”.

Também eu gostava de acreditar. Mas o pessimista é o optimista com experiência, não é? Além disso há outras razões para ter algumas reservas quanto à reversão da situação actual sobretudo no que diz respeito à situação demográfica que é a mãe de todos os males. Desde logo por um certo determinismo histórico. O interior perdeu população porque a agricultura perdeu trabalhadores. Em 1974 havia 1.290.000 trabalhadores agrícolas e em 2018 temos 294.000. Comparando os anos 2008 com 2018 vemos que a população activa na agricultura em Portugal passou de 11,4% para 6% enquanto que a média europeia passou de 5,2% para 4%. Por aqui se vê que Portugal ainda vai perder mais trabalhadores agrícolas se quiser acompanhar a média europeia. E não podemos esquecer que a média europeia (4%) está inflacionada porque tem lá uns “tangas”, Roménia (23%), Grécia (12,3%), Polonia (9,6%) e outros que a fazem subir porque os países evoluídos como a Alemanha, Bélgica ou Reino Unido têm respectivamente 1,2%, 1% e 1,1%. Acho que ainda há muita gente “a mais” na agricultura se queremos ser um país de 1.ª linha.

Mas há outros indicadores que mais fazem avolumar as minhas reservas que são a rejeição ou não implementação de explorações capazes de fixar população no interior. A saber: apesar desta “corrida” à castanha por parte dos agricultores não se vê qualquer resposta da parte da transformação. Produzimos castanha para os outros ganharem as mais-valias; em relação ao ferro de Moncorvo já se discutiu até à exaustão a forma de levar o minério até à siderurgia do Seixal. Nunca ouvi ninguém levantar, sequer, a hipótese de o minério ser tratado ali mesmo; vemos os Montalegrenses indignados com a possibilidade de o Lítio ser explorado no seu território; vemos, também, os nossos vizinhos Espanhóis de Alcañices profundamente indignados com a quase certa instalação de “mega-granjas” nas suas terras. Estes indicadores, objectivos, que não se compaginam muito bem com a urgência do combate à desertificação ou à demanda de investimentos, tem explicações subjectivas que não sei dar e por isso me socorro de uma história que talvez ajude a enquadrar esta questão. É assim: Giuseppe Tornatore, realizador italiano, fez um filme sobre o percurso de vida de um individuo que apareceu bebé no porão de um paquete de cruzeiros. Adoptado por todos os marinheiros, cresceu, fez-se adulto e com isso um excelente músico e um inexcedível executante de piano. Era ele a alma musical das “soirées” que o paquete oferecia aos turistas. Quando o paquete atracava numa cidade, o pianista fazia as malas, despedia-se de toda a gente e dizia ir viver para terra. Mas quando se encontrava a meio do passadiço dava meia volta e voltava a entrar no barco. Fez isto uma série de vezes e entretanto o barco tornou-se obsoleto e foi para a sucata para ser desmontado por meio de explosivos. Começaram a tirar do interior tudo que tinha valor mas o pianista não saiu. Um amigo conseguiu descobri-lo (porque ele escondia-se) lá dentro e procurou fazer com que saísse. Mas ele manteve-se irredutível. “Que não sabia viver lá fora”, “que tinha medo de viver lá fora”, foram alguns dos argumentos invocados. (Curiosamente tinha medo de viver fora do navio e não tinha medo de morrer dentro dele. Postura em tudo semelhante à dos presos de muito longa duração quando são dados à liberdade.) De qualquer forma o navio é desmontado por explosivos e o pianista morre com o navio.

Tornatore, siciliano, disse em entrevista que o filme é uma parábola sobre a Sicília e que o pianista é um siciliano que se nega a abandonar a “sua” Sicília. O pianista é em tudo parecido com os Transmontanos que seguem no “seu barco”, sem lamentos, e se negam a abandoná-lo. Acho que somos do interior com muito gosto. São estes indicadores, alguns contraditórios, que me deixam perplexo e até baralhado. Não sei o que queremos, não sei como queremos e não sei, até, se queremos.

Apesar de todo este meu pessimismo e cepticismo, dou todo o benefício da dúvida à Dr.ª Isabel Ferreira até ao dia, necessariamente breve, em que as dúvidas se desvanecem em certezas. Boas ou más.

Não há planeta B

Não, não há. “Não há planeta B” é uma redundância. Se não conhecemos ninguém que more nesse outro planeta, como então mudar para lá? Mas as palavras de ordem, os chavões, têm de oscilar, sempre, entre a evidência e o absurdo, de forma a ferir a lógica ou torná-la tão redundante que chamem a atenção, que se façam notados. E é isso que os ambientalistas desesperadamente fazem, na tentativa de activarem a sensibilidade ecológica que cada um de nós tem. Porque o aquecimento global é um facto. Disso dão conta não só os registos térmicos, depois de estatisticamente trabalhados, mas também outro tipo de medições como a espessura e comprimento dos glaciares e também pelas alterações climáticas que são o seu epifenómeno mais importante. Longos períodos de seca alternando com chuvas diluvianas, a frequência inusitada de tufões e de outros fenómenos climáticos extremos encontram explicação no aquecimento global. E é mesmo global porque tanto se fundem os glaciares dos Pirenéus, dos Alpes ou dos Himalaias mas também os dos Andes que estão noutro Hemisfério. A hipótese do aquecimento ser consequência de uma declinação do eixo da Terra cai pela base. Haveria aquecimento num Hemisfério mas arrefecimento no outro. Esta hipótese foi levantada porque os Pirenéus foi quem, mais cedo e mais, sofreu os efeitos do aquecimento. Só para fazer uma ideia, Lopez-Moreno, investigador do Instituto Pirenaico de Ecologia, fez este apanhado: de 39 glaciares que havia em 1984 passou a 22 em 2008 e a 19 em 2016 o que supõe uma redução de superfície glaciada de 810 ha em 1984 para 306 em 2008 e para só 242 em 2016; Que já não há glaciares em cotas inferiores a 2700 m; que o “Monte Perdido” o maior glaciar dos Pirenéus tem já uma parte de gelo morto, uma placa que não se parte, não se deforma nem avança; que o glaciar La Maladeta perdeu num só ano 40 m da sua língua glaciar e contam que desapareça numa década. É, portanto, o aquecimento global um adquirido que já ninguém hoje contesta. Estimado por uns em 0,9oC e por outros em 1,02oC é este o acréscimo verificado em relação à temperatura verificada nos meados do século XIX, início da revolução industrial e portanto início também das grandes intervenções do Homem na Natureza. Ora, com base no já conhecido e a manter-se o ritmo de crescimento do aquecimento global, os cientistas criaram modelos matemáticos que os levaram a concluir que o aquecimento global em 2100 seria de 4oC e, por degelo, a consequente subida do nível médio das águas do mar de 1,3 m. A partir daí traçaram cenários Dantescos: milhões de pessoas teriam que abandonar as suas casas ribeirinhas; o Saara subiria pelo Alentejo acima e até já teriam definido que parte do novo Aeroporto do Montijo ficaria submerso. (Aqui permito-me um aparte. Face ao número de objecções levantadas quando se fala numa nova localização do futuro Aeroporto sou levado a pensar que Portugal não tem espaço que chegue para um novo Aeroporto. Teremos possivelmente de o fazer fora). Face a este cenário de catástrofe e tomando como certo que o aquecimento global é uma consequência da emissão de gases com efeito de estufa, sobretudo o CO2 e o metano, a comunidade científica envidou todos os esforços no sentido de limitar o aquecimento global a 2oC em 2100. Para conseguir este desiderato sensibilizou os dirigentes políticos mundiais a ponto de estes se comprometerem, primeiro nos Protocolos de Quioto e depois nos Acordos de Paris, a tudo fazerem para alcançarem aquele objectivo.

Mas se o aquecimento global não oferece contestação já as razões da sua progressão dividem a comunidade científica. Desde logo na própria contagem do aumento térmico. Eduardo Martinez de Pison, Catedrático de Geografia diz que: nos últimos 10.000 anos os gelos tiveram, nos Alpes, avanços e recuos pelo menos 10 vezes; que o último pulsar glaciar positivo começou no início do séc. XVII e se prolongou até meados do séc. XIX e ficou conhecido como “A Pequena Idade do Gelo”; que a partir de 1860 os glaciares iniciaram um retrocesso; que a partir de 1990 esse retrocesso se acelerou e que hoje o nível de degelo, na Europa, é semelhante ao que ocorreu há 5000 anos. A serem verdade estas considerações, e algumas estão manifestamente comprovadas, teremos que o ano zero do aquecimento global coincide com o fim da “ Pequena Idade do Gelo”. Assim não será de estranhar que a temperatura começasse a subir pois que a seguir a uma idade do gelo virá, sempre, outra não tão gelada. Além disso comparar o degelo que se verifica hoje com o verificado há 5000 anos quando não havia intervenção humana de monta, dá que pensar. Por outro lado considerar os gases com efeito de estufa, sobretudo o CO2, como responsáveis primeiros pelo aquecimento global deixa alguns cientistas muito renitentes. Se é verdade que a contribuição do CO2 para o ar atmosférico passou de 280 ppm (partes por milhão) no ano zero para 380 a 410 ppm na actualidade, não deixa de ser verdade que 410 ppm corresponde a 0,041% ou dito de outra forma: há uma parte de CO2 em 2440 partes de ar atmosférico. Parece ser uma quantidade irrelevante para as alterações que lhe atribuem.

Não sei quem tem razão. Se aqueles que atribuem o aquecimento global à emissão de gases com efeitos de estufa se os outros que entendem que o aquecimento global é resultado de um pulsar climático que tem causas astronómicas. E talvez nunca o venhamos a saber. De qualquer forma acho que estamos a conduzir mal este processo. Apostamos tudo na descarbonização ou seja a neutralidade carbónica a partir de 2050, pensando que se isso for conseguido o aquecimento global em 2100 não ultrapassará o 1,5oC. Isto é “pôr toda a carne no assador”. E se a razão do aquecimento não for a emissão dos gases com efeito de estufa? Teremos perdido tempo e dinheiro. Teremos um planeta mais limpo, mais despoluído mas não estará preparado para as novas realidades. Mas há já quem pense, tendo presentes essas novas realidades. Assim, cumpre fazer aqui um elogio aos agricultores Trasmontanos e porventura também a todos os outros. É que, sem grande formação, com muito pouca informação e sem alardes mediáticos os agricultores já interiorizaram as alterações climáticas como uma realidade com a qual temos que saber viver. Assim os vemos a plantar oliveiras e amendoeiras onde há bem pouco tempo só se viam castanheiros e a estes plantam-nos a cotas de cada vez mais elevadas. Quer dizer que agem de acordo com as condições que a Natureza lhes oferece. Não há Planeta B mas podemos e devemos ter um Plano B.

Será que tem razão Jean Cocteau quando diz que “a Ciência serve apenas para verificar as descobertas do instinto”?

Um dia inesquecível

21 de Agosto de 2019. É a noite do arraial. Mas na Praça da Sé, o coração de Bragança, não há luzes coloridas, não há música, não há balões, não há pipocas e não há ”vinho, riso, poesia e uma mão ladina em cima de carne morna” porque … porque não há gente. Não se vê vivalma. Exceptuando o bar “Praça” tudo está fechado. As pessoas ou foram ao concerto ou ficaram em casa. E sentado na praça deserta ouvindo ao longe o rumor da agitação do concerto, dei por mim a pensar que essas imagens não me eram de todo inéditas. E de repente, “touché”! Vejo correr na memória um filme que vi há mais de 40 anos na “Torralta”. Chama-se “una giornata particolare”, em português “um dia inesquecível”, filme do cineasta italiano Etore Scola. Scola mais conhecido pelas suas comédias de costumes, todos temos na memória os “Feios, Porcos e Maus”, desta vez largou a brejeirice, vestiu smoking e, socorrendo-se de dois “monstros” do cinema Italiano, Marcello Mastroianni e Sophia Loren, fez um filme sobre …intimidades. A história de suporte do filme, o guião, conta-se breve. É assim: a 6 de Maio de 1938, Hitler e o seu estado maior, Ribentrop, Hess, Himmler, Goebels, Goring e outros visitam Roma para assinar acordos militares que iriam estar na génese da união bélica que ficou conhecida como as “Potências do Eixo”. Mussolini quis homenagear os visitantes fazendo uma festa nacional e para isso convidou (convocou) todos os Romanos a participarem na festa e, claro, tudo, tudo foi para a festa. E no Palácio Federici, bloco de habitação social com 650 apartamentos, só ficam 3 pessoas: (metáfora subtil sobre os rejeitados pela sociedade) a porteira que não pode abandonar o seu posto mas que acompanha a festa pelo altifalante que colocaram à entrada do prédio; uma dona de casa que seguindo as regras fascistas e machistas da época fica em casa pois tem de preparar o dia seguinte. É mãe de 6 filhos e o marido já lhe prometeu o sétimo só para lhe por o nome Adolfo; (curiosamente Alessandra Mussolini, neta do “Duce” faz parte do elenco deste filme): e um homem da rádio recentemente demitido por homossexualidade e que prepara o suicídio tentando antecipar-se à polícia que a todo o momento o virá buscar para o enviar para o degredo na Sardenha. Então, a propósito da fuga de um pássaro da gaiola, a dona de casa conhece o homem da rádio. Ela oferece-lhe um café para agradecer a captura. E então, como se de repente tivessem sacudido a pressão que todos os dias os esmaga, ouvindo ao longe o ruído da festa para que não foram convidados, começam a falar deles próprios. Dos seus anseios, das suas angústias, dos seus temores, das perspectivas que tinham, das esperanças que ainda têm. Bom, coisas que nunca tinham falado a ninguém e que não são boas de contar.

Isto é ficção mas a realidade…bom, na realidade tenho esperança que, na noite do arraial, a Praça da Sé não seja mais a réplica do velho Palácio Federici daquela noite inesquecível onde dois ostracizados lambiam as suas feridas.

 

Violência doméstica

Se a violência é o último argumento de quem não tem razão, como alguém disse, a violência doméstica tem, ainda, a agravante de ser infligida aos que são próximos. É a todos os títulos, lamentável. E, no entanto, os números da violência doméstica crescem exponencialmente. Sociólogos e Psicólogos saberão explicar esta crescente animosidade entre géneros mas numa leitura, necessariamente superficial, direi que numa Sociedade que incentiva a competição e a agressividade em todos os seus sectores não se pode esperar que o mais pequeno deles ficasse imune a primarismos, a desmandos emotivos. Também ajudará a compreender o fenómeno o facto de, desde sempre até então, o homem ter sido, na sua célula familiar, simultaneamente o acusador, o juiz e o carrasco, prerrogativas que as actuais Leis lhe retiram. E isto acontecia com uma certa aceitação social por alheamento, uma espécie de beneplácito que o anexim sintetiza: “entre homem e mulher não metas a colher”. Por outro lado, e por força das Leis que instituem a igualdade de género, os homens vêem, de repente, as mulheres invadirem o espaço, antes seu, de afirmação intelectual, profissional, até sexual e estão, manifestamente, a reagir mal.

A violência dos pais sobre os filhos também uma violência doméstica mas de consequências menos graves, menos mediática, mais psicológica. Tem a sua génese, tal como a violência de género, na frustração de expectativas. Frequente nos jovens a quem os pais disponibilizam tudo, desde bens materiais às liberdades que a juventude anseia, coisas a que eles respondem com prestações medíocres, sobretudo as académicas. E se há pais que se resignam e ultrapassam o seu pesar com um reconfortante “fiz a minha parte, espero que seja feliz” dito em murmúrio, outros não. Estes depositam no filho expectativas altíssimas e esperam, com ele, envaidecer-se, causar invejas, fazer dele uma espécie de arma de arremesso social. Não aguentam a frustração de ver desmoronar todos estes “castelos no ar” e também não percebem a falta de reconhecimento por tudo quanto deram. “Eu que me sacrifiquei tanto, que fiz tantas privações, que lhe dei tudo ainda antes de os outros sonharem ter e ele não é capaz de passar num exame? Vais ver o que lhe acontece.” Então surgem as sanções e era vulgar, outrora, ouvir pais ameaçar os filhos com a pior delas, uma espécie de degredo social materializado desta forma: “vais servir para um gado” ou “vais já para as obras”. Hoje isso não é possível e ainda bem. Uma coisa é a retirada de regalias, outra é a humilhante despromoção social. Hoje as piores sanções ficam-se pela privação do telemóvel, do computador, da mesada e das saídas à noite. Mas muitas vezes servidas com algumas lambadas.

Que é que se passou na Academia de Alcochete? Um grupo de jovens Sportinguistas foram à Academia de Alcochete, que é a Academia do Sporting, intimidar os jogadores como resposta às más prestações destes. A coisa correu mal. Houve umas lambadas e hoje há dezenas de arguidos que vão a julgamento acusados de terrorismo. Deixando de lado o enquadramento legal do acontecimento, por manifesta incompetência da minha parte, não deixarei, no entanto, de manifestar algumas perplexidades que a condução do processo me suscitam. A saber: 1.º o Juiz de instrução do processo ser o mesmo que indiciou os arguidos do crime de terrorismo e os colocou em prisão preventiva. “Não é contrário à Lei” diz a Relação de Lisboa. É verdade, mas bem não fica. Um Juiz que indicia um arguido pela prática de um crime e o coloca em prisão preventiva naturalmente, se for Juiz de instrução desse processo, mantém a acusação caso contrário estaria a contestar as suas próprias decisões. Não me parece ser a pessoa mais indicada para apreciar a opinião do 1.º Juiz (que foi ele mesmo);

2.º a televisão mostrou uma Procuradora a fazer um interrogatório. Não era um interrogatório mas antes um libelo acusatório. Não gostei de ver tanta presunção de verdade.

Se o enquadramento legal está a gerar controvérsia já o enquadramento sociológico é bem mais consensual. Assim: um grupo de adeptos frustrados, agastados, revoltados com a prestação da equipa dirigem-se a Alcochete numa manifestação de força intimidatória pensando assim dirimir o défice desportivo da equipa. E até acredito que tivesse havido o beneplácito de alguns dirigentes que podia ter sido desta forma: “ide lá e pregai-lhe um cagaço de morte a ver se os pomos a jogar como é devido”. Eles foram, pregaram-lhe o susto mas depois a coisa descontrolou-se. Ou porque os jogadores, feridos na sua dignidade, se tivessem encristado ou porque algum energúmeno, daqueles que estão sempre à boleia de grupos para fazer selvajarias como aquele que atirava tochas para debaixo dos carros (mas também se viu outro elemento do grupo a retirá-las), agiu por conta própria. De qualquer forma penso que o objectivo era pregar um susto e não bater, senão tinham-nas levado todos. Não pretendo com isto branquear a actuação dos adeptos do Sporting, mas não aceito a acusação de terrorismo que sobre eles impende. Por várias razões: 1.ª – um grupo terrorista não se forma “ad hoc” nem reage primariamente a qualquer acontecimento. Se o Sporting tivesse ganho o último jogo nada disto teria acontecido. 2.ª – um grupo terrorista é um grupo homogéneo, com objectivos bem definidos e com um estratégia de actuação onde todos sabem bem qual é o seu papel para atingir esse mesmo objectivo. Ora o filme mostra-nos um adepto a atirar tochas para debaixo dos carros e outro adepto a retirá-las. Não estou pois a ver a analogia com um grupo terrorista pois não me consta que haja algum grupo terrorista onde um elemento põe bombas para outro as retirar. Resumindo, acho a acusação de terrorismo perfeitamente absurda e oxalá nunca a realidade nos mostre as diferenças entre este grupo e um grupo terrorista.

Tal como o pai que deu o que pôde ao filho para que este fosse o melhor também estes adeptos acham que foram dadas todas as condições à equipa para esta ter uma boa prestação. Tal como o filho que não conseguiu passar num exame também o Sporting, apesar de contarem com um treinador caríssimo e um plantel riquíssimo onde figuravam primeiras águas do futebol nacional, não logrou ganhar a equipas autenticamente incipientes. É esta frustração de expectativas que leva o pai a dar umas lambadas ao filho e que levou os adeptos a Alcochete. Por tudo isto mais o facto de todos pertencerem à família Sportinguista e ainda tendo em conta que o local da ocorrência é um sítio onde todos se sentem em casa me leva a concluir que se trata de um caso, claro, de violência doméstica.

 

 

P.S. Escrevo estas linhas numa altura em que o País está à beira de um ataque de nervos. Associações patronais e sindicais do ramo dos transportes não se entendem quanto ao caderno reivindicativo apresentado por estes últimos o que os levou a declarar greve por tempo indeterminado. O que quer dizer que estas duas associações, legais, institucionais, que são parceiros sociais, não têm qualquer escrúpulo em provocar no País o colapso da distribuição ATERRORIZANDO, autenticamente, as populações. Mas, então, o terrorismo vem do lado dos rapazes do Sporting?! Lamento mas não sou capaz de acompanhar este raciocínio.

 

Joe Berardo

Personagem controversa, es ta. Apenas com 40 anos, emigrante regressado da Africa do Sul, carregado de dinheiro e obras de arte é de repente que se vê carregado de condecorações, comendas e outras formas de o agraciar já que dispensava os “vistos gold”, forma recorrente de trazer para cá o capitalismo Chinês. Este novo “cavaleiro da fnança”, este “George Soros” português, pôs a fnança nacional ao rubro e teve como corolário lógico a tentativa de controle do maior banco comercial português, o BCP. Essa tentativa de controle, também conhecida por “assalto ao BCP”, um chavão glosado pelas oposições a este Governo PS numa tentativa de fazer uma colagem deste Governo ou de alguns membros deste Governo a tudo que diabolizam no Governo Sócrates, é uma jogada da finança pura e dura e não é menos legítima que o “assalto da Sonae à PT”, só que esta não resultou. Ora, para concretizar o “assalto ao BCP era necessário que um grupo de accionistas, nos quais se incluía Joe Berardo, se tornasse maioritário pelo que era preciso comprar acções de forma a atingir esse “score”. Para isso os bancos, CGD, BCP, BES, disponibilizaram o crédito necessário para a compra das acções tomando estas como garantia do pagamento do débito contraído. Até aqui estava tudo bem. A correr normalmente, quer dizer-se não houvesse contratempos relevantes, as acções valorizavam-se, Joe Berardo ressarcia os bancos pelos débitos contraídos e ninguém ficava a saber nada excepto os intervenientes directos. Ganhava Berardo e ganhavam os bancos. Mas a coisa não correu como o esperado. Com a crise as acções caíram para mínimos incríveis e os especuladores não conseguem pagar as dívidas aos bancos. Surgem então uma série de acusações à gestão da CGD: favorecimento indevido, negligência na análise de risco e sobretudo o facto de ter aceitado como garantia de pagamento um bem que tem um valor demasiado fluido como acontece com as acções. Mas as acusações são à CGD. Os outros bancos não interessam porque só na CGD é que um erro técnico se pode transformar em acusação política. Mas mesmo aqueles que acusam os gestores da CGD de temeridade ou de favorecimento indevido têm que aceitar que é uma acusação puramente política. Digo isto pelo seguinte: aquando a 1.ª fase de privatização da EDP, na qual eu também fui subscritor, a CGD deu-me crédito para comprar 150 contos de acções da EDP em que a garantia eram as próprias acções e mais, se as acções desvalorizassem a CGD fcava-me com elas. Eu não tinha risco absolutamente nenhum. Resumindo: a CGD fez-me o que fez a Berardo. E não desdenhem do montante porque 150 contos vezes pai, mãe, flhos, avós, sopeira e isto vezes o número dos funcionários públicos dá possivelmente um montante superior ao que foi disponibilizado a Berardo. Mas correu bem. Não houve nenhuma crise e o Dr. Cavaco fcou ufano. E se tivesse havido crise?

Esta mesma prática bancária deu certo num caso e foi um desastre noutra. O único elemento que não é comum aos dois casos e que portanto se torna determinante é a crise. Mas a obstinação política da Comissão de Inquérito preferiu as suspeitas de corrupção, de favorecimento, de dolo eventual, em suma, não resistiu ao que de mais estridente tem a voz do populismo: “alguém tem de as pagar”. Aliás a Comissão de Inquérito fez-se com um objectivo claro e determinado: conseguir provar a liga- ção de Sócrates a este “dossier” com posterior condenação para em seguida imputar responsabilidades a todos os seus colaboradores sobretudo àqueles que têm hoje funções governativas. A tentativa tornou-se demasiado óbvia. Analisar, só, a CGD alegando ser um banco de dinheiros públicos não convence, uma vez que todos, TODOS, os bancos nacionais, à excepção dos que faliram, tiveram de ser recapitalizados com dinheiros públicos. As razões porque precisaram, TODOS, de recapitalização devia a Comissão de Inquérito apurar.

Um dos males do capitalismo é não prever as suas crises ou se as prevê não as revela porque se as revela, a crise que estava para ser, é já. Todos nos lembramos daquela intervenção memorável do Dr. Cavaco quando denunciou haver muito “gato por lebre” no mercado accionista. Foi uma “boutade” No dia seguinte só já havia “gato”. O capitalismo, se antevê a crise, aguenta estoicamente as angústias do médico de família – “… um dia tenho de lhe dizer…” – mas não diz, senão é o colapso. É assim que funciona o capitalismo selvagem e agressivo.

Transformar Joe Berardo no bode expiatório de todos os males que a crise veio a revelar não tem sentido. Ele é uma peça integrante do sistema capitalista que nos governa e interpreta magistralmente as regras desse jogo a que todos estamos sujeitos. A banca gosta deste tipo de “players” que se encarregam do excesso de liquidez dos bancos (quando há), que dão velocidade à massa monetária circulante, que geram a riqueza fctícia, aquela que de facto não existe. Mas que faz sonhar, faz.

Já a prestação de Joe Berardo na Comissão Parlamentar de Inquérito é inenarrável. A forma como parodiou os representantes do povo, mostra o apreço em que tem a sociedade em que vive. Já a postura física, deselegante, boçal, labrega causaram-me perplexidade. Um coleccionador de arte era, para mim, também um artista, essa pessoa sensível que trata tudo com muito esmero e delicadeza. E saiu-me aquilo! Decididamente, a arte, em Joe Berardo, é só um activo não fnanceiro. Por outro lado, a forma que deu ao discurso, arrogante, malcriada, desafadora não disfarçava o enfado que sentia por ter de responder. A tudo isto emprestava uma pose altiva, sobranceira de quem mira todos os outros de cima do cavalo.

Àqueles a quem ensinaram que só se olha um homem de cima se for para o ajudar a levantar-se, isso incomodou.
 

Abstenção

A abstenção é um epifenómeno do acto eleitoral. Não há eleições sem abstenção. É uma forma de participação passiva no processo político. É uma forma de se auto excluir, de se alhear das escolhas políticas. Claro que a abstenção tem de estar dentro de limites aceitáveis quando não passa a ser estatisticamente preocupante. É por isso estranho que, depois de tantos anos em ausência de actos democráticos, o povo Português se remeta à abstenção quando instado a pronunciar-se sobre os destinos da sua comunidade. E, no entanto, ela sobe inexoravelmente desde as primeiras eleições livres. Mais de 40% nas autárquicas e nas legislativas, mais de 50% nas presidenciais e quase 70% nas europeias. Os Políticos dizem-se preocupados mas dá-me a ideia que ninguém leva a sério a preocupação deles. Não é por acaso que há 40 anos que o fenómeno abstencionista se vem agigantando e os Políticos ainda não “mexeram uma palha” e não me parece que o queiram fazer. Eles estão mais à vontade com grupos restritos de participantes políticos, grupos manobráveis, moldáveis aos interesses dos directórios políticos. Um Povo com participação política é gente a mais. Repare-se que o Presidente Marcelo falando da abstenção nas europeias manifestou alguma satisfação dizendo que “…até esperava que fosse maior”. Claro que os Políticos tudo fizeram para que a abstenção chegasse onde chegou. Convidam o Povo para o acto formal (eleição) mas não o convidam para mais nada. Acresce ainda que a eleição não responsabiliza directamente os políticos, pois não votamos em ninguém directamente (excepto nas presidenciais) mas sim num conjunto de pessoas. Esse “bouquet” de candidatos que faz lembrar um tractor de lenha pois se por fora apresenta uns rachos bons e bem compostos por dentro só tem guiços. Isso é mais visível quando um Partido faz Governo, levando para este aqueles que lhe parecem mais capazes, deixa no Parlamento os substitutos, uma ganga que ninguém conhece e quando conhecemos é por más razões. Experimentamos, até, algum desconforto por termos contribuído para estas presenças no Parlamento e sussurramos a nós próprios uma pergunta envergonhada: então eu votei “naquilo”? E como é que voto num e me sai outro? Não nos convocam para uma eleição mas sim para um plebiscito à vontade dos directórios políticos. Atente-se nestes dois casos ocorridos nas listas do PSD, no círculo de Bragança e para as legislativas: o PSD propôs como cabeças de lista José Ferreira Gomes em 2009 e Francisco José Viegas em 2011. Eles não conheciam ninguém em Bragança e ninguém em Bragança os conhecia. Mas foram impostos pelo directório e naturalmente ganharam pois o directório sabia, como aliás toda a gente sabe, que Bragança ao eleger 3 deputados, 2 são do PSD e 1 é do PS. Portanto a eleição era garantida. Isto faz-me lembrar uma história antiga. É assim: num ano em que o Benfica estava absolutamente ganhador e em vésperas de um jogo que ia fazer fora, foi pedido a Joaquim Meirim, controverso treinador de futebol, um prognóstico para o jogo. Ele respondeu, sem hesitações, “ganha o Benfica e até escusa de vir cá. Basta mandar as camisolas”. Também o PSD não foi a jogo. Mandou as camisolas e ganhou. Parabéns democracia!
(este exemplo só é chamado à colação por ser em Bragança não por ser visado o PSD. Aliás todos os partidos fazem isto reiteradamente. Veja-se o caso actual de a única cabeça de lista já revelada para as próximas legislativas é Fátima Bento da CDU uma arqueóloga que ninguém conhece. Como quer a CDU entusiasmar os seus simpatizantes?)
É assim que se promove o alheamento, o desinteresse e até a revolta contra o sistema eleitoral, materializada, nestas palavras indignadas: “somos os peões de um joguete entre partidos. Isto não é democracia, e ninguém me peça para votar pois não estaria a cumprir um dever cívico mas sim a ser conivente e a caucionar esta degenerescência da democracia”.
Não será fácil inverter esta tendência. Ao ver instalada a descrença, o desânimo, o “tanto se me dá”, o “não vale a pena” penso que será, até, impossível se não houver alteração das regras eleitorais. Mas também acredito que, se as eleições forem personalizadas, isto é, se votarmos em candidatos a quem conheçamos a cara, o currículo e as motivações e se esses candidatos forem apurados em eleições internas nos partidos, de preferência abertas aos simpatizantes e se as eleições legislativas forem disputadas em círculos uninominais, círculos onde cada partido só pode ter um candidato, a afluência às urnas registaria um acréscimo significativo que, penso, contaminaria todos os processos eleitorais. Vejamos o caso de Bragança: Bragança mete três deputados e, quer chova quer neve, dois são do PSD e um é do PS. Com círculos uninominais os Concelhos do Distrito formariam três grupos e cada grupo elegeria um deputado. Assim o PSD poderia meter 1,2 ou 3 deputados e o PS 1 ou 2. Deixaria de haver o determinismo que nos desmotiva. Deixaria de haver lugares cativos.
Se nada for feito a abstenção crescerá para níveis que fragilizarão a democracia, que farão desta alvo dos populismos e criará constrangimentos, até constitucionais. Porque razão a resposta maioritária do referendo só é vinculativa se a abstenção for inferior a 50% e a eleição do Presidente da República, o homem que nos dirige durante 5 anos, é vinculativa com qualquer “quórum”? Marcelo Rebelo de Sousa já foi eleito com uma abstenção superior a 50%. Nas próximas presidenciais, eu acho que se vai recandidatar, não vai haver ninguém com peso político que se apresente para o defrontar, por motivos mais que evidentes. Assim vai ganhar as eleições por muito mas com uma taxa de abstenção gigantesca. Não há motivação para votar num que “antes de o ser já o era” Vai ser deprimente. (Imaginemos uma abstenção de 80 ou 90%. Deveria o País ficar vinculado a uma regra institucional ou à vontade do Povo que a despreza? Só um novo “João das Regras” conseguirá legitimar uma eleição assim. Como aquele do plebiscito à Constituição de 1933, que somou os votos a favor com os da abstenção. Alegava que a abstenção não é voto contra e se não é contra...)
Não me falem em voto obrigatório. Seria a forma de os Políticos esconderem um dos sinais visíveis da sua má prestação. Num regime que tem por utopia “é proibido proibir” seriamos confrontados com um “obrigatório obrigar”.

Corin Tellado, Policiais, Plano Nacional de Leitura e o grau zero da Pedagogia

No fim dos anos noventa, a OCDE fez um estudo sobre literacia em vários países. Entende-se por literacia, a capacidade de compreender e processar informação escrita nas actividades do quotidiano quer seja em casa, no trabalho ou em sociedade. Ficaram praticamente todos mal na fotografia. Mas Portugal foi dos piores, com 77% da população a não atingir o nível 3 de literacia que é o mesmo que dizer que 77% não conseguem analisar um simples texto de jornal ou interpretar um folheto médico. Face a este descalabro, entendeu-se, por bem, implementar um Plano Nacional de Leitura como panaceia para este défice funcional.

Não é de estranhar pois, em Portugal, para responder a um problema meio insolúvel, cria-se um Plano Nacional. Foi assim com o Plano Nacional para a igualdade de género, cidadania e não discriminação, com o Plano Nacional para a prevenção e combate à violência doméstica e de género, com o Plano Nacional de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos, com o Plano Nacional de defesa das florestas e contra incêndios, com Plano Nacional da saúde, com o Plano Nacional para a inclusão e outros, todos eles com uma eficácia só comparável à das “comissões de inquérito”.

Afinal o que é o Plano Nacional de Leitura? É um conjunto de actividades promovidas por uma estrutura de âmbito nacional, cheia de espírito de missão, devidamente comissariada e que no fundo se limitou a calendarizar uns eventos e a fornecer uma listagem de livros aos professores, esses eternos “burros de carga”, a fim de por os alunos a ler (esses livros). Por sua vez, os professores, não querendo ser acusados de bloqueamento do processo e por brio profissional, lançam um repto aos melhores alunos. Estes sempre disponíveis, com os seus trabalhos e desempenho fazem as delícias dos mentores do Plano, que lançam hossanas e dão prémios. Claro que neste esquema competitivo os mais fracos nem se atrevem a entrar. Mas era para esses que o Plano, supostamente, era feito.

Por outro lado o fornecimento de uma lista de livros de leitura, enquanto acto lúdico, diz duas coisas importantes: uma é a tentativa da tutela do gosto, que outrora se revelou um contra senso; a outra é o reconhecimento tácito de que os autores estudados no “currículo” são “intragáveis”. Quem pode, em boa verdade, incentivar outrem à leitura recomendando os “Lusíadas”? Ninguém. Se no meu tempo já era uma “seca”, que fará hoje? Os “Lusíadas”, com as constantes referências à Mitologia e aos feitos históricos, tornam-se um discurso encriptado que para o entendermos temos de nos socorrer de um descodificador permanente. Além disso, mesmo em termos formais, Camões não é fácil. Ele não alinha as palavras na frase com a ortodoxia a que estamos habituados, antes faz um “puzzle” com elas e deixa para nós o trabalho de as colocar no lugar se o queremos entender. Bonito! Por isso é que era importante dividir as orações. Pior! Um mal nunca vem só. (Em tom de brincadeira direi que aquela pintura de Ramalho, “Camões lê os Lusíadas a D. Sebastião”, é elucidativa porque D. Sebastião nunca leria os Lusíadas. Tinham de lhos ler. Tal como nós). É curioso que quando recebíamos o livro de “Os Lusíadas” íamos logo ver o canto IX (a ilha dos amores) que era proibido. Mas os livros que eram para uso académico já o não tinham. Talvez o único canto que devia ser estudado, pois era, no livro, a única coisa demandada.

Resumindo, o Plano Nacional de Leitura é, como os outros Planos, inócuo. Os bons alunos carregam o fardo de o fazer parecer útil e os outros nem querem ouvir falar dele. Se lamentar a presente falta de avidez de leitura, quanto mais não seja por saudosismo, me parece natural, já este remar contra uma maré que não vencemos me parece uma, irreparável, perda de tempo. Repare-se que já há mais de 40 anos, Marshall Mcluhan, aquele que anunciou o aparecimento da internet e que chamou à Terra a “aldeia global”, classificou a sociedade da altura de pós-Gutemberguiana, entendendo isto como uma evolução, uma passagem a um estado superior. Há já quem suporte que o analfabetismo, hoje, é a iliteracia digital.

Corin Tellado fez as delícias das raparigas do meu tempo. Fazia-as sonhar cor-de-rosa. Nós, rapazes, fazendo jus à educação da época e ao ditado popular, “o homem quer-se como o capote: feio e forte”, tínhamos que sonhar azul. E sonhar azul neste caso era entrar no imaginário das “cowboiadas” e dos policiais. Professores e pedagogos condenavam veementemente este tipo de leitura. Chamavam-lhe literatura de cordel, uma alusão ao facto de estes livros não estarem nas prateleiras das livrarias mas sim nos quiosques presos com uma mola a um cordel. Durante muito tempo este tipo de literatura foi menorizado e até ostracizado e só o facto de algumas obras terem sido passadas ao cinema por grandes mestres e interpretadas por actores como Robert Mitchum, Humphrey Bogart ou Lauren Bacall, autênticos “monstros sagrados” de Hollywood, é que fez com que os críticos literários vissem o género policial com outra atenção e respeito. De notar que o nosso Diniz Machado (“ o que diz Molero”) escreveu Westerns e policiais com o pseudónimo Dennis Mcshade. Também Corin Tellado foi considerada uma escritora menor, que só escrevia futilidades. Mas aqueles que assim pensam, podem agora confrontar as suas teses com as de Maria Teresa González, uma Catedrática da Universidade de Gijon. Esta, na análise que faz à obra de Corin Tellado, além de elogiar o aspecto formal e de achar impar a forma como ela prende a atenção do leitor, faz reparar que a obra percorre, cronologicamente, todos os patamares da luta da mulher pela sua libertação. Segundo esta estudiosa a obra de Corin Tellado, durante o Franquismo, é um autêntico manual de “Educação Sentimental”, uma espécie de “código amoroso”. Já em democracia, ela teria sido pioneira na reflexão sobre o papel da mulher em sociedade e das sucessivas fases na luta de emancipação. E dá exemplos: “Ella entre los dos” sobre a perda da liberdade no casamento; “hago lo que quiero” sobre as relações sexuais pré matrimoniais; “Cuéntame qué passa” sobre o adultério; “Nos separan los celos”, de 1981, é o culminar de toda esta trajectória e aborda a questão da violação em matrimónio. Tema que ainda hoje é actualíssimo. Pelos vistos a mulher não era tão fútil assim. Conclusão: os críticos literários e os pedagogos fizeram asneira, e da grossa. Há bons e maus autores em todos os géneros literários. Mas não há géneros literários menores. Esta arrogância intelectual de rotular de “pimba” ou erudita é tique que se perpetua entre os convencidos. Rotularam o policial de menor, de “pimba” da mesma forma que se esqueceram de reconhecer Bob Dilan ou Chico Buarque já para não falar do chumbo que apanhou o Nobel Português. Todos estes falhanços são grosseiros, de palmatória até, mas lamento mais ainda o ter-se ignorado ou mesmo desprezado a avidez e a voracidade literárias dos leitores compulsivos dos meus tempos de adolescência em lugar de os conduzir, com paciência e humildade, a leituras de outros géneros. Aos pedagogos ninguém pedia que gostassem daquela literatura mas tão só que cavalgassem aquela onda de vontade. Perdeu-se uma oportunidade de ouro. Foi o grau zero da Pedagogia.

Aproveito o ensejo para prestar uma homenagem ao Sr. Lelo. O Sr. Lelo era Contínuo no meu tempo de Liceu. Não privei com ele, claro, que a diferença de idades era grande. Mas ele era amigo dos alunos e cúmplice também. Cúmplice quando nos chamava à parte e nos alertava assim: “Já mandei o postal. Vê lá se ainda o agarras no carteiro, senão já sabes como te mordem.” O postal era a comunicação aos pais do excesso de faltas, de alguma falta disciplinar ou de qualquer outra coisa menos abonatória. E, claro, lá passávamos uma tarde, na rua, à espera do carteiro e quando o víamos, disparávamos: ”É para mim!” Mas também era cúmplice quando trocava connosco “cowboiadas” e policiais, a tal literatura proibida. Entre o Sr Lelo e nós havia vizinhança e que importantes nos sentíamos quando de forma quase clandestina se disponibilizava: “tenho ali um muito bom. Mas vê lá não mo percas.” Era o melhor incentivo à leitura.

Insignificâncias que tornam o Mundo maior.

“O grande Gatsby” (algumas afinidades avulsas)

Scott Fritzgerald foi um dos maiores escritores americanos do sec. XX. Começa a carreira literária nos anos vinte do século passado. São os anos de ouro do desenvolvimento tecnológico, do primado da técnica, da ciência e da máquina. (Até F. Pessoa disse que o Binómio de Newton era mais bonito que a Vénus de Milo). Assistiu-se, então, a desenvolvimentos económicos, sociais e culturais até aí nunca experimentados. Assim, Fritzgerald escreve ao ritmo do Jazz de New Orleans, dos filmes de Hollywood e dos carros de Detroit. Eram “os loucos anos 20”. Ainda para cúmulo, o pós guerra trás sempre consigo muita, muita vontade de viver e de viver depressa. Mas Fritzgerald é um homem controverso. Oscila entre uma postura humanista (de esquerda) e um deslumbramento com a vida daqueles novos ricos, com a sumptuosidade das suas festas, com aquele correr de dinheiro vindo de todo lado até das ilegais destilarias de whiskey. (Também Visconti consegue conciliar uma maneira de ser de esquerda com uma maneira de estar aristocrática. Talvez os seus amigos de Paris, Jean Renoir e Coco Chanel, tivessem contribuído para isso. Se ele dizia que “a aristocracia não são os latifúndios, não são as rendas mas sim uma forma de estar”, Coco Chanel dizia coisa parecida: “luxo não é dinheiro mas sim a ausência de vulgaridade”. É neste caldo de cultura que Visconti faz o filme “La Terra Trema” todo neo-realista, todo comunista mas também faz o “Leopardo” que, com os seus palácios, os seus salões, o seu roupeiro, é um hino à aristocracia no entanto já decadente. Visconti via com nostalgia e mágoa o desaparecimento da Aristocracia ao mesmo tempo que subescrevia as teses do Partido Comunista Italiano.) Este envolvimento leva-o a escrever muito sobre moda. E fá-lo tão bem que os críticos dizem que ele fez da moda um personagem dos seus contos e romances. (Também Fellini, outro “La Fontaine modernista”, no seu filme “La Dolce Vita” fez da Fonte de Trevi o 3.º personagem, o personagem tutelar daquela cena em que Marcello Mastroianni e Anita Ekberg se banham ao luar. Foi uma cena fascinante e tão marcante que ficou indelevelmente gravada no imaginário dos cinéfilos a ponto de, quando Mastroianni morreu quase 40 anos depois, dezenas de anónimos se dirigiram à Fonte de Trevi para lhe fazer a vigília. No entanto, sociólogos mais rebuscados dizem que não, que eles não foram fazer nenhuma vigília, foram sim ver a vigília que a Fonte de Trevi faria ao seu “compagnon de route”.) De qualquer forma Fritzgerald escreve “O Grande Gatsby” um romance que, como todos, é autobiográfico. (Madame Bovary!? c`est moi-disse Flaubert .) E assim Nick, o vizinho, amigo e confidente de Gatsby, é nem mais nem menos que Fritzgerald. A história conta-se em duas penadas: Gatsby, embora de origens humildes, é um homem riquíssimo com uma mansão quase permanentemente em festa. Festas onde há tudo em doses exageradas: carros, álcool, mulheres, droga, luz, moda etc. Nick, talvez o único amigo de Gatsby, acompanha este para todo o lado em permanente crítica mas sempre encantado com todo aquele aparato (”…vinho, riso, poesia e uma mão ladina sobre a carne morna.”) Subitamente Gatsby vê-se envolvido num triângulo amoroso (daqueles triângulos que na maior parte das vezes tem mais que três vértices) e um marido inconsolável desfechou-lhe dois tiros de pistola. Nick contacta os frequentadores da casa de Gatsby para lhes comunicar a morte e convidar para a vigília. Para seu grande espanto todos manifestam a sua indisponibilidade e muitos deles começaram a questionar as origens de Gatsby, o seu tipo de vida, o seu dinheiro, a origem deste, etc. E, assim, ao enterro só foram Nick, o pai de Gatsby e um terceiro que não se sabe bem o que está lá a fazer.

Também Armando Vara tem uma trajectória de vida com alguma afinidade à de Gatsby. Ambos de origens humildes, chegaram ao topo. Armando Vara foi Secretário de Estado, Ministro e Banqueiro. Mais não havia para ser e no entanto, hoje, Vara está a braços com uma pena de prisão pesadíssima por tráfico de influências. Imagine-se!!! Tráfico de influências no País da cunha! Aliás, para nossa informação e porventura defesa, deveriam os Doutos Juízes e Magistrados fazer uma aclaração sobre a dimensão paramétrica da “cunha” e do “tráfico de influências” para sabermos onde estão as “linhas vermelhas”. Sem essa definição ficamos sempre sujeitos às leituras maximalistas ou tolerantes dos Juízes. É que o “tráfico de influências” não sendo fenómeno novo e sendo condenado eticamente pela nossa Sociedade não me parece que esta esteja preparada para o considerar um ilícito criminal, embora os Juízes estejam. Não é por acaso que Vara é o único preso por tráfico de influências. Dá que pensar, não? A criminalização deste ilícito é relativamente recente e aconteceu em Portugal um pouco por pressão Europeia depois dos escândalos “Giscarat” em França e da “Gente Guapa” de Gonzalez em Espanha. Tanto assim é que o Código Penal de 1982 não lhe fazia qualquer referência. A criminalização surgiu no Código Penal de 1995 sem no entanto contemplar a Influência Suposta ou a Influência para obtenção de decisões legais bem como não compreendia os bens não patrimoniais. Depois no Código Penal de 1998 passa a ser criminalizada também a Influência Suposta, a possibilidade de obtenção de vantagens não patrimoniais e o Tráfico de Influência para obtenção de decisão lícita. Esta Lei é controversa e há quem a ache inconstitucional porque não se sabe bem o que é Influência Suposta nem qual é o ”Bem Jurídico” que defende. Como pode uma Influência que não é real desencadear actos da Administração? De qualquer forma, a Lei em vigor aplicada de forma maximalista não deixa muitos de fora. Uma “cunha” a um professor, um pedido a membro de um júri que selecciona trabalhadores podem ser alvo da atenção de um Juiz mais “draconiano” como foi o caso, vergonhoso, da investigação, com buscas, a um Ministro por causa de um bilhete de futebol. E no entanto nessa matéria todos temos qualquer coisa a dizer. Não pretendendo armar-me em S. João Evangelista mas apetece-me, no entanto, perguntar: “quem atira a primeira pedra”?

Ao Vara, disponibilizando o apoio possível, desejo que estes dias lhe sejam muito, muito breves.