class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-frontpage">

            

Moncorvo Digital

No Dia Mundial do Livro, 23 de março, o Município de Torre de Moncorvo apresentou uma plataforma dupla, com a digitalização da sua Biblioteca Municipal e do seu Arquivo Municipal. São produtos de grande qualidade desenvolvidos por uma empresa nacional incubada na Universidade do Minho. A transição digital é um dos grandes desafios das várias instituições, por todo o mundo e, obviamente, as autarquias não podem alhear-se deste desígnio, inevitável, inelutável. Ao surpreender-nos, de supetão, a demolidora COVID19 atirou-nos para a dependência crescente das tecnologias digitais para assim minorar os imensos transtornos. Dificilmente haveria melhor altura para implementar esta ferramenta. Pode argumentar-se que teria sido mais útil há um ano quando, por um lado, ainda andávamos estonteados, à procura de soluções e alternativas para as rotinas diárias e de outra periodicidade e, por outro, era incerta a duração do período negro que agora já se apresenta menos escuro e se vislumbra o dealbar do regresso à normalidade ou ao que dela mais se aproxima. Sem dúvida que sim. Mas, sendo verdade, igualmente é uma realidade que este desenvolvimento, pela sua importância e pelo impacto que pode e deve provocar, tem uma importância que ultrapassa, temporalmente, esta e outras possíveis epidemias que possam surgir. É uma ferramenta de futuro que adequa o município à modernidade e que, sendo útil para nós, será, não tenho qualquer dúvida, necessária para as gerações vindouras a que já é hábito chamar de “nativos digitais”. Mais do que a urgência deveria ser a qualidade a nortear o seu projeto, desenho, implementação e manutenção. E assim foi. A escolha da Keep, uma “spin-off” da Escola de Engenharia da Universidade bracarense foi adequada e acertada. Os engenheiros minhotos colocaram à disposição dos interessados uma plataforma de grande qualidade e, sobretudo, de fácil utilização, intuitiva e poderosa, no que diz respeito ao seu uso e benefício para o utilizador que é, neste caso, o que mais interessa. Sendo de iniciativa municipal, dada a riqueza e importância do acervo, é de utilidade muito mais alargada, ultrapassando as fronteiras concelhias, regionais e, mesmo, nacionais. Por isso é importante realçar a característica bilingue do aplicativo. O facto de, por razões profissionais, trabalhar com um computador com definição do inglês como linguagem por defeito, permitiu-me verificar que a opção do idioma, pela plataforma, é automática o que valoriza e facilita a sua utilização por utentes de paragens mais longínquas. O Catálogo da Biblioteca tem a informação necessária e suficiente. Já no que respeita ao Arquivo, a apresentação da digitalização de muitos dos seus documentos (pretendendo que, no futuro, o sejam, na sua totalidade) é uma mais-valia assinalável. Estão de parabéns, a Autarquia, os colaboradores e dirigentes da Biblioteca Municipal e, principalmente, os utentes destas estruturas, com destaque, óbvio, para os moncorvenses.

A História de Portugal revista pelos novos moralistas.

Já não tem o vigor da juventude e sofre de múltiplos achaques o velhinho de quase 900 anos que deu novos mundos ao mundo, agora definitivamente internado no lar da UE. Choca sabê-lo maltratado, injuriado e votado ao abandono pelos muitos filhos pródigos, bastardos e adoptivos que gerou e a quem continua a dar de mamar. Não há mal ou crime que os novos moralistas não assaquem ao velho Portugal e aos seus filhos mais diletos, a começar por um tal Afonso Henriques, um conquistador selvagem, no seu entendimento, com ascendentes na Borgonha, terras da Gália bárbara. E que nem português seria, sequer, porque Portugal nem existia à data do seu nascimento. Afonso Henriques que, na lógica dos novos moralistas, também não era democrata, (sabia lá ele o que democracia era!) e que, por dá cá aquela palha, até batia na mãe. Afonso Henriques que começou por enxotar os primos galegos e lioneses das terras herdadas e escorraçou à espadeirada os infelizes imigrantes muçulmanos que haviam aproado pacificamente a praias de Espanha, espoliando-os dos templos, castelos e palácios de que continuam credores. Não tivesse Afonso Henriques existido e Lisboa seria hoje, por certo, na ideia dos novos moralistas, mesmo sem ter petróleo, o oitavo emirato, deslumbrante de luxo e riqueza, enquanto no interior desertificado, na peneplanície alentejana ou na árida Terra Quente transmontana, deambulariam pacíficos beduínos e pachorrentos dromedários. Não é que não haja, hoje, camelos em Portugal. Os verdadeiros, porém, sempre emprestariam à paisagem um mais apelativo ar de mil e umas noites. Todavia, o pior feito desse tal Afonso Henriques, para os novos moralistas, foi fundar o reacionário reino de Portugal que, ao arrepio de todas as regras do direito internacional, alargou por força das armas a terras de além Tejo e do Algarve. Reino de Portugal que, na ideia dos novos moralistas, acabou por se converter numa poderosa associação de malfeitores que durante mais de 600 anos lançou a miséria, a peste e a guerra por esse mundo fora. Bando de malfeitores que não se contentaram em importunar os bons vizinhos do norte de África por mais de 300 anos. Ousaram ir ainda mais além e maltratar, colonizar e escravizar índios, indianos e africanos que nas suas terras viviam pacificamente, felizes e contentes. Feitos criminosos cantados em verso num livrinho reacionário, racista e xenófobo que já devia ter sido banido dos curricula escolares e lançado à fogueira. O seu autor, Luís de Camões, não seria, de resto, flor que se cheirasse. Mais recentemente, o ditador Salazar, fundou um império colonial e deu crédito a perigosos visionários racistas e esclavagistas do calibre de António Vieira, Fernando Pessoa e Almeida Garrett, conhecidos apologistas do tenebroso Quinto Império E tantas, e tão mal, tal ditadorzeco fez que Estaline e Mao Tsé-Tung, gloriosos campeões da Humanidade, nem aos calcanhares lhe chegam, sequer. Ditadorzeco que, na opinião dos novos moralistas, cometeu o crime maior de reagir militarmente à chacina de brancos e negros afins, em Angola, açulada pelos imperialistas americanos e soviéticos, originando uma guerra injusta e inútil que se perlongou por treze longos anos. Donde, malgrado tanta dor e sofrimento, resultou que Angola, Moçambique e a Guiné sejam hoje nações independentes, prósperas, pacíficas e felizes depois que os brancos foram forçados a debandar, com toda a justiça, sob a égide dos heroicos marxistas-leninistas e anarquistas do MFA. Razão tinha o Velho do Restelo! Justo é, no entendimento dos novos moralistas, que o monumento dos Descobrimentos ou o mosteiro dos Jerónimos sejam desmantelados. Ou que os brasileiros reclamem o convento de Mafra e o Aqueduto das Águas Livres já que foram construídos com o ouro e os diamantes do Brasil. E porque não anular as fronteiras impostas pela Conferência de Berlim? E porque não reclamarem os portugueses o que de melhor deixaram no Ultramar e cobrar direitos de autor pelo uso da Língua Portuguesa? E porque não conferir independência a macondes e cabindas, de entre outros? Concluirão, por certo, os novos moralistas, que a culpa é do famigerado Afonso Henriques, o fundador dessa associação de malfeitores racistas, colonialistas e esclavagistas, chamada Portugal. E concluo eu: os novos moralistas são sinistros, amorais, quando não são imorais. Só desmoralizam e envenenam o relacionamento entre Portugal e as ex-colónias.

Cooperação transfronteiriça e minas a céu aberto

Em reuniões e encontros promovidos pela RIONOR, ouvimos afirmações a realçar a escassez de programas de cooperação transfronteiriça entre Trás-os-Montes e Castela e Leão, comparativamente com outras regiões a Norte e a sul. Tais Afirmações foram feitas pela responsável da Cultura da Embaixada de Espanha em Lisboa, repetidas em junho pelo Ministro-Adjunto do Governo de Portugal e corroboradas pelo Consejero de Educación do Governo de Castela e Leão, nos Conselhos Raianos. A escassez de programas de cooperação transfronteiriça nesta região é assim um facto e parece-nos importante conhecer as causas que o originam. Serão os únicos responsáveis os políticos como eternos culpados de tudo? Ficar- -se-á a dever às grandes empresas sempre exímias a sorver os montantes disponíveis? Terão origem nas históricas querelas e desconfianças mútuas entre castelhanos e portugueses? Ou serão responsáveis os cidadãos que declinaram toda a sua força e a entregaram na mão dos políticos? Seja como for, a verdade nunca aparece em tons claros e escuros, subsistindo em parte em todas essas situações. Acreditamos na força da democracia, na cooperação fraterna entre os povos, ou seja, na afirmação da humanidade que existe em cada um de nós e que coabita com as forças íntimas de insociabilidade ou destruição. Talvez por estas razões, porque não é um sistema perfeito, a democracia para se aprofundar necessita da vigilância atenta e permanente de todos nós e da entrega de parte das nossas forças ao bem público. Para podermos falar de cooperação fraterna temos de considerar o outro na sua dignidade humana e assentar a relação no respeito mútuo que só uma perspetiva democrática, em que prevaleça o diálogo e não a força, poderá legitimar. A cooperação transfronteiriça não é boa por conseguir sacar largos montantes dos fundos europeus, normalmente desviados para as regiões centrais ou para os cofres das grandes empresas, mas é boa, necessária e a pedra de toque que fará a diferença se conseguir mobilizar esses fundos para a consolidação da identidade raiana, para a promoção de pequenos projetos que façam crescer a pequena economia entre as populações locais e para a criação de infraestruturas que assegurem a mobilidade dos cidadãos, tais como ligações rodo -ferroviárias e redes digitais de comunicações de dados. Antes de comentarmos a deliberação do Ayuntamiento de Pedralba de la Pradería e da Junta de Castela e Leão de autorizar a Almonty a instalar uma mina a céu aberto de estanho e volfrâmio em Calabor a 5 km da fronteira, gostaríamos de lembrar que na RIONOR todos os temas são passíveis de ser discutidos e aprofundados e não somos contra ou a favor por motivos que não sejam essencialmente racionais. Todos os empreendimentos têm os seus impactes e é preciso avaliar os ganhos e as perdas para poder avançar com as melhores soluções. No entanto, os malefícios que dessa exploração a céu aberto advirão serão catastróficos, afastarão muitos outros projetos que poderiam fixar populações e, sobretudo, todos esses malefícios recairão nos habitantes das aldeias vizinhas de Portugal que circundam o Ayuntamiento de Pedralba , porque os rios correm das serras para os vales. Devido a estas circunstâncias, muitos de nós do lado de Portugal empenharam-se na criação de um movimento cívico que seria designado de “UIVO por uma Reserva da Biosfera da Meseta Ibérica Livre de Minas”. Felizmente este movimento conseguiu congregar toda a sociedade transmontana em torno da oposição a este empreendimento. Conseguiu o apoio dos autarcas, dos deputados de todos os partidos, dos empresários de alojamento local e da própria Igreja Católica através de uma tomada de posição firme da Comissão de Paz e Justiça. Perante este quadro, perguntamos, sem comprometer os valores sagrados da convivência fraterna e o respeito mútuo entre as populações raianas, poderão a Junta de Castela e Leão e o Ayuntamiento de Pedralba avançar com este projeto? Não representaria esse gesto um desprezo total pelos seus vizinhos que pretendem em conjunto desenvolver esta região? Não significaria esse facto uma manifestação de força que abdica totalmente do recurso ao diálogo que é a arma da democracia? Não seria equivalente a uma declaração de guerra e causa de um conflito diplomático? Nesta região talvez estejamos confrontados com um défice democrático, muito embora a raiz do comunitarismo que prevaleceu durante séculos assentasse numa convivência essencialmente democrática. Quando em agosto a Direção da RIONOR, que é constituída paritariamente por membros de um e do outro lado da fronteira, tomou uma posição firme contra esse projeto, o Ayuntamiento de Pedralba que era nosso sócio coletivo, informou-nos que se demitiam de sócio porque não iriam apoiar uma associação que não concordava com as suas iniciativas. A RIONOR contrapôs que a Câmara de Bragança nos tinha apoiado desde o início e que já tínhamos divergido em dossiers como o da reposição da via férrea e que nunca nos retirou o apoio. O mesmo se passou com todos os municípios com quem trabalhámos e que eram geridos por forças partidárias como Izquierda Unida (Zamora), PP (Alcañices), Psoe (Puebla e Galende de Sanabria) e em Portugal do PSD e do PS. Esclarecemos ainda o Ayuntamiento em questão que no caso da mina se situar em território português e as aldeias prejudicadas serem espanholas, a posição da RIONOR seria exatamente a mesma. Como episódio que ilustra bem as desconfianças entre responsáveis municipais de um e do outro lado da fronteira, que os largos anos de democracia e sem fronteiras físicas ainda não debelaram, e para provar que existem alternativas à mina, a pedido do Presidente da União de Freguesias de Aveleda e Rio de Onor, tentámos convencer os Alcaldes de Pedralba de la Pradería, de Manzanal de Arriba e de Figueruela de Arriba para participarem num interessante projeto transfronteiriço de recuperação de velhos trilhos, alguns do contrabando, que existem nestas regiões e que seria um excelente atrativo para os amantes da natureza, da história e da aventura. Infelizmente nenhum alcalde respondeu e o autarca português teve de avançar sozinho com este projeto. Por fim, quanto aos grandes obstáculos entre portugueses e espanhóis, presentes em ditos como: “De Espanha nem bons ventos nem bons casamentos”, estamos convencidos que se ficam a dever essencialmente ao problema das línguas e à complexidade fónica do português. Quando essas barreiras são superadas, desaparecem de imediato esses preconceitos que costumam ser hipervalorizados. Por outro lado, gostaria de lembrar que apesar de existirem em Zamora, Salamanca e sobretudo em León muitos lusófilos, convém não esquecer que também existem em Trás- -os-Montes muitos hispanófilos, ou seja, pessoas que amam a cultura de expressão castelhana e que jamais concordam com essa estirpe de intelectuais com Eça de Queirós à cabeça, apostados em convencer-nos que Paris fica mais perto de lisboa do que Madrid. Com a cooperação transfronteiriça, disso não duvidamos, a convivência entre as populações raianas será cada vez maior, mais fraterna e geradora de bem-estar, condições que poderão inverter a terrível tendência do despovoamento galopante que grassa nestes territórios.

Francisco Alves

O poder e os abusos

O poder corrompe mesmo? É uma questão que emerge recorrentemente e que alimenta diariamente as nossas conversas. Mas o que é esta alegre potencialidade de ser capaz de impor a sua vontade aos outros ou aos acontecimentos, diz-nos muito sobre a nossa humanidade? E quando falo de “poder”, não aludo ao exercício dessa forma brutal do forte sobre o fraco. Refiro-me mais a esta forma de obrigar pelo cargo que se recebeu, duma autoridade superior ou dum escrutínio, duma delegação de poder que permite decidir. Esta forma moderna, democrática e assumida do exercício do poder dá asas ou sobe sistematicamente à cabeça? Se nos limitarmos aos factos, forçosamente constataremos que sem o exercício do poder, as nossas realizações coletivas seriam bastante pobres. Quando é erigida a ponte 25 de abril, o Burj Khalifa, ou uma nave espacial quando se faz o túnel no Marão, trata-se efetivamente duma série de decisões impostas, delegando, numa cascada hierárquica, uma vontade em múltiplas formas de poder. Neste sentido, o poder é libertador, emancipador dos constrangimentos naturais, físicos e humanos. Quando, inversamente, o mesmo não passa da expressão de opções arbitrárias, é limitador, comprime, restringe, apesar da aspiração geral para a liberdade, que suporta mal esta imposição discricionária da ambição individual. E neste momento coloca-se a questão de saber se o poder é corruptível, se muda, transforma o que o exerce num tirano com pés curtos. Conhecemos todos estes indivíduos que, a pretexto de deter uma onça de poder, usam e abusam sem complexo, muitas vezes para seu proveito, ou para o proveito do grupo a que pertencem. Nenhuma fatia da sociedade é poupada, a empresa, o mundo político, as associações e fundações, as igrejas, todas e todos se encontram implicados neste fenómeno, o poder sobe à cabeça e o que o assume converte-se em déspota, sem temer atingir ou ferir. E não lhes falo das figuras nacionais ou internacionais, dos Staline, dos Hitler, da descendência dos Kim na Coreia do Norte, e de todos estes tiranos sanguinários que esfrangalham o curso dos séculos. Não, sejamos modestos, e olhemos à nossa volta. O nosso chefe de serviço, o nosso eleito local, o presidente da nossa associação, que, a pretexto de que são eles que decidem, impõem uma vontade individual no desdém do bem comum ou da concertação. Perdem a passada, deslizam, prendendo-se à satisfação do seu ego sobredimensionado em detrimento do interesse geral. Então, como pavões, ouvem- -se falar, rebolam-se, e geram à sua volta pequenos motivos de gracejo e troça, mas em murmúrio, o poder que têm sobre nós convida à maior circunspeção. O nosso mundo vibra com tantas palavras detestáveis: “abusos”, «assédio moral», “ riscos psicossociais”, que são a parte imersa dum iceberg cuja imensidão provoca arrepios por todo o corpo. É preciso portanto coletivamente interrogar esta noção, é preciso pôr em causa o poder quando o mesmo é funesto, e instaurar os limites que o contêm no enquadramento justo e íntegro do interesse geral. Não se trata somente duma avaliação, dum desejo piedoso, ou de injunções vazias de sentido, é um projeto de sociedade, duma sociedade democrática e adulta, ou então o verdadeiro poder permanece com aqueles que o confiam de forma temporária e institucionalizada. O direito- direito do trabalho, Constituição, doutrinas- está bem presente para ser aplicado a todos os que, duma forma ou outra, ultrapassam esta delegação para sacar do exercício do poder um interesse pessoal, nem que seja simplesmente egótico. Desta forma sim, o poder corrompe e a este título é preciso encerrá-lo num tecido de regras que permitam ultrapassar os possíveis abusos. Resta a cada um de nós interrogar-se sobre a sua atitude face ao poder, porque todos, somos alvejados por este fenómeno. Em família, no trabalho, nas nossas relações sociais, representamos, cena após cena, uma comédia do poder em que somos os atores implicados. Que nós sejamos vítimas ou déspotas – e podemos ser sucessivamente os dois- devemos questionar- -nos sobre a melhor das formas de usar o nosso poder, poder sobre os outros, poder sobre os acontecimentos, para tirarmos daí partido para crescer e não para nos rebaixarmos num exercício abusivo do mesmo. Há a nossa parte de humanidade, do nosso ser e da nossa vida espiritual.

Venda de bens a filhos e netos

Será que um avô pode vender bens ao seu neto? Se o meu pai vender um imóvel ao meu irmão, estarei a ser prejudicado? Posso não consentir com a venda? Em boa verdade, muitas vezes os contratos de compra e venda realizados entre pais e filhos ou entre avós e netos nada mais são que vendas simuladas com o intuito de fugir à legalidade, encobrindo verdadeiras doações e afetando a legítima, que corresponde à parcela dos bens que está legalmente destinada aos herdeiros legitimários (cônjuge, descendentes e ascendentes). Quer isto dizer que toda a venda pressupõe o pagamento de um preço, correspondente ao valor do bem. Se o “comprador” não paga, há um negócio simulado, o que significa que o “vendedor” doou o bem, pois nada recebeu. Isto acontece, não raras vezes, para favorecer um descendente em detrimento dos demais, na medida em que uma simples doação seria tida em conta para efeitos de partilha e chamada à colação. Antecipando esta realidade social, o ordenamento jurídico português deu uma especial atenção a estes negócios e estabeleceu que os pais e os avós não podem vender a filhos ou netos se os outros descendentes não consentirem com a venda. Realçamos, no entanto, que o consentimento em causa não visa proibir a venda, nem tem por finalidade assegurar que os demais filhos ou netos adquiram a coisa vendida, mas apenas que, através da venda e, sobretudo, do preço pago pela mesma, nem os filhos nem os netos, na qualidade de potenciais herdeiros legitimários, sejam prejudicados. Exige-se, assim, autorização dos descendentes para que a venda seja considerada válida e, na falta da mesma, o negócio estará sujeito a anulação. O consentimento é, portanto, uma condição de validade destes negócios e entendemos que, para evitar problemas futuros, é necessária a prova de que existiu verdadeiramente e que foi prestado para este negócio e neste âmbito. Quando o consentimento não puder ser prestado, por exemplo, em consequência de incapacidade, ausência ou outro impedimento, pode suscitar-se ao tribunal que se substitua na prestação do mesmo. Mas o que acontece no caso de a compra e venda ser celebrada em incumprimento do referido consentimento? Neste caso, os filhos ou netos que não deram o consentimento podem pedir a anulação da venda dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato ou do termo da incapacidade, se forem incapazes. Sempre que sentir que está perante uma venda simulada e que a mesma o vai prejudicar, lembre-se que a lei o protege e que tem todo o direito de não consentir com a venda ou pedir a respetiva anulação do contrato. Informe-se com profissionais habilitados, podendo sempre contar com o apoio de um Solicitador.

Cristela Freixo

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 5 Os contratos de Fernando da Fonseca Chaves

Fazer contratos com a Casa Real e com as grandes Casas na Nobreza e do Clero era privilégio acessível a muito poucos mercadores e homens de negócios, pois exigiam largos cabedais para depositar no ato da arrematação. Geralmente estes associavam-se, mas, à frente, estava sempre um contratador. O círculo dos contratadores era estreito e, por isso, muito prestigiante. Além do dinheiro e dos resultados económicos e financeiros, tais contratos proporcionavam aos homens da nação lidar com gente de outras esferas sociais, o que acrescentava o seu prestígio. A um tal círculo pertencia Fernando Fonseca Chaves que, em anos anteriores trouxera arrendados os portos secos, ou seja: pertencia-lhe cobrar os dinheiros dos impostos das mercadorias que entravam e saíam do país pela fronteira com Castela. Para além do dinheiro exigido em depósito, Fernando hipotecou também a tal arrendamento os bens de raiz que tinha em Bragança e que eram: Umas casas sitas na Praça de cidade e um casal, ou quinta, no lugar de Calvelhe, termo da mesma cidade, que valia 700 mil réis. Terminado o contrato, terão surgido litígios e processos judiciais, de modo que, quando o prenderam, a posse de tais bens andava em disputa e as casas, de abandonadas, já estavam em ruínas. Não conseguimos identificar os nomes dos importadores/exportadores que litigavam judicialmente com Fernando Chaves, por causa da cobrança de impostos nos portos secos, assunto de que ele deu conta perante os senhores inquisidores, nos termos seguintes: - Disse que sobre o contrato dos portos secos tinha várias causas, que corriam com diversas pessoas, em que eram interessados todos os sócios dele e lhe haviam feito a ele declarante procuração geral para o prosseguimento das ditas causas, de que dará razão o escrivão dos feitos da Fazenda, Manuel da Costa Velho.(1) Como se vê, na arrematação dos portos secos, Fernando Chaves não estava sozinho e provavelmente não teria capacidade financeira para tal, antes se apresentava como cabeça de uma sociedade de mercadores que com ele partilhavam trabalho, lucros e eventuais prejuízos. E esta não foi a única sociedade comercial que Fernando Chaves integrou. Teve uma outra com António Vever, responsável pela cobrança das rendas pertencentes à comenda de Santiago de Santarém, “na qual houve uma grande perda” que o seu sócio pagou e ele ainda o não ressarcira. Melhor correram as coisas na sociedade que teve com João da Mota Marques, de Braga, “na qual houve lucro e lhe parece que lhe tocaram a ele mais de 200 mil réis”. Para além do contrato dos portos secos, ele trazia arrematado à Casa Real o contrato do assento de Setúbal, ou seja: ele comprometia- -se a fornecer o pão necessário para alimento das tropas ali sediadas, bem como a palha para os cavalos e adiantamento dos soldos aos militares. A administrar o “assento”, por ordem do nosso contratador, estava o seu sócio José Gonçalves Morão, que não terá sido muito correto, a crer nas declarações de Fernando Fonseca, que “o alcançou em contas” e obteve sentença favorável no juízo da correição do cível da cidade, no montante de 683 000 réis, que lhe estava devendo. Fernando Chaves trazia também arrematada a cobrança do imposto sobre o peixe pescado em Setúbal e que pertencia à Casa de Bragança. E para administrar este contrato, nomeou também o dito Gonçalves Morão. E depois que se desentenderam, e Chaves lhe retirou a administração, Morão terá continuado a cobrar o imposto, seguindo-se óbvio litígio e embargo judicial, acabando Gonçalves Morão por ser condenado em 204 104 réis, que estava devendo ao contratador e cuja cobrança ficaria a cargo da inquisição, como, aliás, todas as dívidas ativas do confiscado. Não conseguimos identificar as rendas que em Setúbal e Palmela pertenciam ao cabido da Sé de Lisboa e que Fernando Fonseca Chaves trazia também arrematadas, com o tenente de uma companhia de granadeiros, Francisco Correia na gestão da cobrança, estando em sua mão 890 000 réis que pertenciam ao contratador. Deveras singular é o caso de uma dívida que Fernando Chaves reclamava da Alfândega de Lisboa, perante o Juízo da Coroa. Vamos explicar. Nos termos da lei, quem denunciasse fugas as fisco, pagamentos e recibos ilegais, tinha direito a um terço da quantia em causa. Aconteceu então que Fernando Fonseca teve conhecimento de ser carregado um barco com lãs, avaliado em 20 contos de réis, que deixou o país sem que a carga fosse registada e os impostos pagos. Muniu-se de provas e identificação dos transgressores e fez a denúncia. Agora competia à inquisição a cobrança de tal dívida que corresponderia a mais de 6 contos de réis! (2) Mas deixemos as dívidas ativas, que até nem são nada de extraordinário, antes pelo contrário, nos parecem algo diminuídas. Sim, que os presos da inquisição tudo faziam para esconder os seus bens e também as dívidas ativas. De contrário, procuravam ampliar as dívidas passivas, sempre que possível, envolvendo neste jogo, familiares e amigos de confiança que, ao final, lhe devolveriam os bens. No caso em apreço e, feitas as contas, verifica-se que as dívidas a receber pelo contratador Fernando da Fonseca Chaves eram sensivelmente iguais ao que ele devia: cerca de 9 contos de réis. Claro que os inventários ditados pelos réus eram confrontados com os que fazia na localidade do réu a autoridade civil (juiz de fora, geralmente), a requisição do representante local (comissário, em regra) do santo ofício e por ordem recebida do tribunal, juntamente com o mandado de prisão, continuando, às vezes por muitos anos, a venda dos bens sequestrados e a recolha dos dinheiros. Grande parte das dívidas de Fernando respeitava aos próprios contratos. Assim, à Casa de Bragança faltava pagar 409 mil réis da dízima do pescado de Setúbal e ao comendador de Vimioso, D. Lourenço de Almada, devia 600 mil réis que venciam na Páscoa de 1713, já que ele arrendara a cobrança das rendas por 1 200 000 réis /ano, a pagar cada ano em 2 prestações: na Páscoa e no S. João. A propósito deste contrato, Fonseca Chaves achou por bem esclarecer o sr. inquisidor dizendo: - Desta cobrança trata Miguel da Silva, cunhado dele declarante, morador em Bragança, por procuração que tem de António do Couto, criado do dito D. Lourenço de Almada, e lha pediu ele declarante para terem mais respeito ao dito seu cunhado; e até ao presente lhe não têm remetido mais que 500 mil réis, por conta da dita renda e também 13 mantos de seda por preço de 12 ou 13 mil réis cada um. (3) Muito dinheiro devia também ele a Amaro Teixeira de Sampaio, familiar do santo ofício, natural do Porto e morador em Lisboa, casado com Rosa de Vever, filha de um mercador de Hamburgo, que veio casar em Viana do Castelo e fixar residência em Lisboa. (4) A ligação comercial entre este familiar da inquisição e o judaizante Chaves era forte, pois que foram sócios no assento da província de Trás-os-Montes, que exigia grande capacidade financeira e para o que , inclusivamente, tiveram os assentistas de recorrer ao cónego da sé de Coimbra, Martim Monteiro Paim que lhe concedeu um empréstimo a juros, no montante de 3 contos e 600 mil réis. Vimos atrás que ele contratara a cobrança das rendas que o Cabido da Sé de Lisboa tinha em Setúbal e Palmela. Veja-se a situação do contrato quando ele foi preso: - Ao cabido da sé desta cidade deve ele declarante, das rendas de Setúbal e Palmela 800 e tantos mil réis, porquanto sendo devedor de maior quantia, ele deu dinheiro por várias vezes ao prioste António Gonçalves Prego e ao cónego José Ferreira Souto, a quem ultimamente entregou um recibo do tesoureiro mor dos 3 Estados do reino, Francisco Feio de Castelo Branco, em que se obrigava a pagar por ele declarante 690 e tantos mil réis; e para satisfação dos 800 e tantos mil réis, ou o que na verdade se achar, estão os frutos em poder de Félix da Rosa, da vila de Palmela, procurador dele declarante, em cuja mão os mandou embargar o cabido. (5) Outras mais dívidas constam do inventário de bens ditado por Fernando da Fonseca Chaves, como sejam 400 mil réis “procedidos de tabacos que comprou” a Vicente Rodrigues de Torres ou 60 moios de sal de Setúbal que entregou a Domingos Pires Bandeira, no valor de 60 mil réis, ficando ainda a dever cento e tantos mil réis. Estas e outras dívidas mostram que o contratador Fernando Fonseca Chaves, não desprezava qualquer oportunidade de negócio que surgia.