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Falando de... O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago

Os tempos eram outros. Nos anos trinta aprendia-se Literatura Portuguesa no ensino industrial. São palavras de Saramago nos Cadernos de Lanzarote – Diário III. Frequentador da biblioteca da escola Afonso Domingues, em Xabregas pelos seus 16, 17 anos tomou contacto com Ricardo Reis. Vale a pena recordar o que em 11 de Janeiro de 1995 afirmou a propósito das suas incursões pela Biblioteca. Encontrara a revista Athena dentro de um livro encadernado. Aí viu pela primeira vez as Odes de Ricardo Reis. Acreditara que existia ou existiria um poeta que se chama Ricardo Reis, que ao mesmo o fascinara e assustara, mas foi no princípio dos anos 40 que uns quantos versos de Ricardo Reis se lhe impuseram, como uma divisa, um ponto de honra, uma regra imperativa que iria ser seu dever, para cumprir e acatar.
Mas se Ricardo Reis é a segunda metade de um sintagma que funciona como título, o ano da morte é a outra escolha de Saramago. Questionamo-nos: porquê o ano da morte e não o ano do nascimento? É conhecida a afirmação proferida por Saramago que os seus livros têm uma marca política e ideológica bastante forte. Em entrevista concedida a Carlos Reis em 25 de Janeiro de 1997, publicada pela Caminho em 1998, sob o título Diálogos com Saramago, afirma o escritor: “Onde é que a literatura viveria, se pudesse viver fora da ideologia ou à margem dela? A Literatura pode viver até de uma forma conflituosa com a ideologia […] O que não pode é viver fora da ideologia”. 
Se é certo que a ideologia está ligada à Literatura, só depois do 25 de Abril é possível conceber um texto como O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde a ironia e a crítica se apresentam lado a lado para retratarem a governação de Salazar, e daí importa citar Saramago na entrevista a Baptista-Bastos publicada pela parceria Sociedade Portuguesa de Autores-Publicações Dom Quixote, em 1996, com o título José Saramago, Aproximação a Um Retrato, “Creio que nada ou quase nada daquilo que fiz, depois do 25 de Abril, podia ter sido feito antes”.
Levam-nos estes considerandos sustentados pela ideologia, pelo 25 de Abril e pela política, a uma afirmação que nos parece pertinente “1936, ano considerado como o da morte de Ricardo Reis, é o ano que reúne todos os ingredientes, configurando um painel de regras tendentes a cercear a liberdade; é o ano da consagração do salazarismo na sua plenitude, ano da afirmação de todas as transgressões, daí encontrarmos nesse tempo histórico, paratexto e pretexto, os elementos que enformam O Ano da Morte de Ricardo Reis, andaimes, alicerces e infra-estruturas que puseram de pé esta estrutura narrativa que se enfileira na obra saramaguiana.
Saramago é um homem empenhado politicamente. É um denunciador de causas políticas. Não lhe são indiferentes os problemas sociais. Quem escreve Levantado do Chão, em 1980 e Memorial do Convento, em 1982, tornando públicas questões laborais caídas no olvido, naturalmente que não vai optar de forma ingénua pelo Ano da Morte de Ricardo Reis. Era a ditadura salazarista em plena formação a dar os primeiros passos. Da escrita do texto, aproveitámos e vimos “vivo” um Ricardo Reis ficcionado como se fosse um de nós e lembrámo-nos que a PVDE/PIDE também existiu.
É o título um elemento premonitório de um texto que se abre à nossa frente e nos quer introduzir na vivência heteronímica de Fernando Pessoa. Ricardo Reis é um elemento de ficção legitimado e dado ao mundo por Fernando Pessoa em carta escrita a Adolfo Casais Monteiro, em 13 de Janeiro de 1935.
Viveu dentro de Saramago muitos anos. Sabemo-lo “nascido” em 1887, médico de profissão, residente no Brasil desde 1919, poeta, criador de Odes.
Saramago, empenhado no processo político, leitor de todos os quadrantes e observador tenaz, está atento ao que se passa em seu redor. Romancista do jornalismo herdado, conhecido em tempos de estro serôdio, dá à luz os seus romances mais conhecidos por volta dos anos oitenta, depois de ter passado pela poesia e pelas crónicas políticas publicadas antes do 25 de Abril, quando a censura campeava. Em plena ditadura, Saramago vai-se furtando aos olhares inquisitoriais, em artigos de opinião, em prosa, crónica e contos, mostrando a sua verve de homem político, o mesmo se passando na poesia, onde o seu mérito, contudo, não atingiu o esplendor do romance.
Escritor da inquietação, da insatisfação e da rebeldia, faz de Portugal o seu objecto de cultura, conferindo-lhe uma dimensão ética e épica, através de uma “arqueologia” onde são postos a nu acontecimentos que, produzindo o presente, exorcizam o passado, tornando o tempo coevo, conforme afirma, “Só o tempo passado é que é tempo reconhecível – o tempo que vem, porque vai, não se detém, não fica presente […] Desse tempo que assim se vai acumulando é que somos o presente infalível, não de um inapreensível presente”.
Sabemos que uma das justificações encontradas por Saramago para a escrita de O Ano da Morte de Ricardo Reis foi o “desafio” imposto pelo verso “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”, escrito por Ricardo Reis em 19 de Junho de 1914. 
Não sendo Saramago um homem acomodado, as suas leituras nas várias bibliotecas que frequenta em Lisboa, não fazem dele um ser instalado e passivo. Sábio seria, antes, para quem o mundo é motivação, convocação, correcção de assimetrias através da assunção de compromissas resultantes de uma tomada de consciência despertada por um espírito crítico que lhe advém da correlação entre o conquistar-se e o conquistar o mundo segundo paradigmas que vão sendo instaurados pela palavra que não é exclusivamente pensamento.
Com frequência o romance convive com o espaço e o tempo, e é nesta convivência que se move O Ano da Morte de Ricardo Reis. Sabemos que a acção central se desenrola em Lisboa, uma vez Ricardo Reis aí desembarcado. Desembarca no cais de Alcântara. Viajou no Highland Brigade, vapor inglês da Mala Real. Recebera um telegrama de Álvaro de Campos anunciando a morte de Fernando Pessoa, sentira que era um dever regressar. Não sabe se fica para sempre em Portugal ou se regressa ao Brasil. 
Ficou instalado no Hotel Bragança, no segundo andar de onde pode ver o rio, no quarto 201, que tinha ficado livre naquela manhã. Ficou entre nós e deambulou pela cidade. Lisboa é porta aberta para os que de Espanha procuram paz e sossego “por isso os Estoris albergam o que em linguagem de crónica mundana se diz ser uma selecta colónia espanhola, afinal pode bem acontecer que lá estejam, em veraneio, aqueles e outros duques e condes”. Para benefício destes, o Rádio Clube Português passou a ter uma locutora espanhola que lê as notícias dos avanços nacionalistas na língua de Cervantes. 
Saramago pensou preencher o espaço deixado em aberto por Fernando Pessoa, como se fosse preciso dar vida a Ricardo Reis que permanece na capital até Agosto de 1936. Como se estivesse a fazer a exumação de um passado mal conhecido que era obrigatório desvendar e denunciar com vista a esclarecer o presente para que se entenda o passado, numa ótica de efemeridade e de transitoriedade, porque salvando-o através da reescrita, há uma hipótese de correcção, com vista a criar homens e mulheres mais capazes, como se o mundo pudesse vir a ser melhor, através da adição de pessoas mais sólidas.
Sendo um texto, um movimento de reorganização que produz destruindo a partir de um extra-texto, ou que de outra forma tende a arrumar o caos e que, neste caso, sendo o social, é também a vida de Ricardo Reis que se vai transformando. Para a sua construção, serviu-se José Saramago de jornais da época, como por exemplo, O Século, investigado durante dois meses, na Biblioteca Nacional. Oito meses ocuparam o autor para a feitura da sua obra. 
Neste painel de espaços e personagens imaginado a partir de um outro já existente, rebuscado no verdadeiro ou imaginado, com vista a criar o verosímil ou inverosímil, onde o autor e o leitor dialogam, numa troca de significantes e significados, com vista a dinamizar uma acção em que o facto do contacto assume foros de autenticidade. Uma retrospectiva de Portugal, um postal ilustrado de Lisboa com as cores da simpatia e da vivência dos bairros menos afortunados por onde Saramago viveu, “Aqui não é sequer a Lisboa toda, muito menos o país, sabemos nós lá o que se passa no país, Aqui é só estas trinta ruas entre o Cais do Sodré e S. Pedro de Alcântara, entre o Rossio e o Calhariz, como uma cidade interior cercada de muros invisíveis que a protegem de um invisível sítio, vivendo conjuntos os sitiados e os sitiantes”.
Lisboa é o macro-espaço onde tudo se passa, para além de Fátima aonde se deslocou, numa tentativa para encontrar Marcenda:
Ricardo Reis partiu para Fátima. O comboio saía do Rossio às cinco horas e cinquenta e cinco minutos, e meia hora antes de a composição entrar na linha já o cais estava apinhado de gente.
Ricardo Reis está aqui no livro. Dinâmico, parece que vivo, dialogante, médico ainda, de trabalho precário, quarenta e oito anos, natural do Porto, solteiro,” última residência, Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, a recordar-nos tempos de Polícia política, de agentes a cheirar a cebola, provocando um sorriso irónico ao leitor que ainda se lembra da ditadura e da matança de Badajoz. Como se fosse um de nós, autónomo e senhor de si”, “é aqui que irá viver não sabe por quantos dias, talvez venha a alugar casa e instalar consultório, talvez regresse ao Brasil”. Veio para falar com Fernando Pessoa. O cemitério dos Prazeres é já ali, não muito longe do Hotel Bragança. Lá no jazigo 4371 está Fernando Pessoa. Sai de quando em vez e dialoga com Ricardo Reis. Rua do Alecrim, Chiado, Rua Garrett, Rossio, Calçada da Estrela, Largo de São Roque, Príncipe Real e Estátua de Eça de Queirós são referentes que nos remetem para a realidade, dissipando a ficção. 
Dezanove capítulos, não numerados, de 415 páginas, de vida de Ricardo Reis, médico de profissão, de guerra, de Hitler, de Salazar, de silêncio, de medo, de presos políticos, de palavras interditas, de manifestações de apoio contra o comunismo.
Sem dúvida os sindicatos nacionais repelem com energia o comunismo, sem dúvida os trabalhadores nacionais(…) os sindicatos nacionais pedem a Salazar, em suma grandes remédios para grandes males, os sindicatos nacionais reconhecem(…) a iniciativa privada e a apropriação individual dos bens, dentro dos limites da justiça social.
Há, também, os nomes que se recordam e cujas raízes ainda perduram: Luís Pinto Coelho, Fernando Homem Cristo, António Castro Fernandes, Ricardo Durão, Nobre Guedes, Jorge Botelho Moniz, de bancários de fita azul com a Cruz de Cristo no braço e as iniciais SNB.
Como se fosse um repórter, alguém que sentimos presente, o narrador vai-nos dando conta do quotidiano, sem esquecer a localização espacial, “Aqui o mar acaba e a terra principia”, pintando-a em tons de meteorologia. Há o rio e a água em abundância. Chove muito. E há Camões, Os Lusíadas, onde todos nós vamos dar.
Todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o vêem, em vida sua braços às armas feito e mente às musas dado, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto lhos ficam os pombos como os olhares indiferentes de quem  passa.
Narrador omnisciente, que tudo sabe, com prerrogativas ilimitadas, sabendo o que está a acontecer, informa o que se passou, ao mesmo tempo que transmite uma visão do futuro, “Quando amanhã cedo o Highland  Brigade sair a barra, que ao menos haja um pouco de sol e de céu descoberto”. 
Não participando na acção, o narrador está em condições privilegiadas para observar e contar. Digamos que se trata, segundo Genette, de um narrador heterodiegético, com uma capacidade de contar que não é posta em causa, dada a autoridade que lhe advém do seu saber, embora não seja alheio a cenários ideológicos que se vão manifestando através das suas impressões, fruto da sua subjetividade.
Se é verdade que Ricardo Reis é transportado para a vida, suscitado pelas Odes descobertas na revista Athena, outras são as personagens revividas no Ano da Morte de Ricardo Reis. O hotel Bragança é o local de todos os encontros. Espanhóis que em Portugal procuram a paz e a serenidade que a guerra do seu país não proporciona. Marcenda, nome gerúndio, filha do Dr. Sampaio, notário de Coimbra, que é maneta, “irmã” física de Baltazar, do Memorial do Convento. Conheceram-se de soslaio na sala de jantar do hotel Bragança, “foi ela quem daí a pouco olhou, por cima da manga do criado que a servia, no rosto pálido perpassou uma brisa, um levíssimo rubor que era apenas sinal de reencontro”. Através do olhar mantêm uma relação que as regras da época não permitem ir muito longe. Carteiam-se e são parcos em contactos físicos. Casamento que é pedido e recusado. Nunca seriam felizes. Marcenda não o esquece. Uma ida a Fátima e um encontro fracassado e de fracasso é também o seu primeiro encontro com Lídia, figura nuclear nas Odes de Ricardo Reis. Transportada para a obra de Saramago, Lídia é filha de pai incógnito, empregada de quartos de hotel e de casas a dias, subalterna de Ricardo Reis, de parto adiado, de olhos vermelhos e inchados, grávida de médico, irmã de Daniel, marinheiro do Afonso de Albuquerque, também ele vítima da ditadura salazarista.
Não tendo nenhum assunto a tratar em Lisboa, Ricardo Reis decide ir ao cemitério dos Prazeres visitar Fernando Pessoa que tinha morrido e que se encontra no jazigo quatro mil trezentos e setenta e um. Depois de desencontros, a vinda a Lisboa acaba por resultar. Ricardo Reis que se confessa monárquico, sem rei, tivera o seu primeiro encontro com o seu “criador” graças ao poder vivificador do demiúrgico narrador. O verosímil acabara com as fronteiras entre a vida e a morte. A partir daqui tudo é possível, mas só durante oito meses pode circular à vontade, tempo suficiente para o total olvido.
Passaram oito meses e onze encontros. A noite estava quente, naquele final do mês de Agosto. O prazo estipulado por Fernando Pessoa estava a terminar. Só podiam estar juntos oito meses. Era ali, em Lisboa, “onde o mar se acabou e a terra espera”.
E a leitura/escrita poderia continuar…

Tradições de Natal que se mantêm neste cantinho de Portugal

Qui, 28/12/2017 - 10:26


Olá familiazinha!
Estamos na última página do ano. Ao longo destas 52 edições tentámos fazer-vos chegar os convívios, os encontros e as tradições da nossa grande família, estando sempre ao lado daqueles que festejam a vida e dos que choram a morte. Também temos mencionado todas as actividades agrícolas que acontecem ao longo do ano. No próximo ano queríamos poder continuar a contar com as vossas colaborações para tornarmos esta página cada vez mais interessante e mais lida.
Na última semana fiquei muito admirado porque nunca tinha ouvido falar no rebusco da azeitona. A tia Isolina, de Parada (Valpaços) é que me contou que todos os anos vai ao rebusco da azeitona e houve anos em que conseguiu apanhar mais de mil quilos de azeitona no rebusco, se bem que este ano, porque as pernas já não a ajudam, não conseguiu atingir essa quantidade, apesar de ter dito que há mais azeitona perdida, em consequência da mecanização da apanha, pois os vibradores atiram mais azeitona para fora das lonas. Também nos confidenciou que são os próprios donos dos olivais que a convidam a ir a rebuscar, cientes de que muito fruto ficou por lá.
Já chegou o Inverno. O dia 21 de Dezembro foi o mais pequeno do ano mas, como diz o povo “pelo Natal, salto de pardal; em Janeiro, salto de carneiro”.
Estiveram de parabéns, na semana passada, o tio Jorge Rodrigues, de Bragança, que nos liga de Colónia, na Alemanha, o tal que vem às viagens e festas da família de propósito e que festejou os seus 62 anos de vida. Também a avó babada, Dalma Reis, de Bragança e que está com o filho em Londres, nos apresentou a sua netinha que fez 4 anos, a tia Aida, de Sobreiró de Baixo (Vinhais), a rainha da boa disposição, comemorou os seus 72 anos e a tia Carlota Vieira, de Bragança, completou 73.
Deixamos-vos as tradições de Natal na nossa região, aproveitando para vos desejar um bom ano de 2018, fazendo votos para que todos consigam atingir os objectivos que mais anseiam.

Manuel Henriques Lopes (Vila Flor, 1648 - d. 1727)

Homem de negócio, natural de Vila Flor, morador em Cascais e assistente em Lisboa e Coimbra, de presente na Figueira da Foz onde embarcava azeites – assim se apresentou Manuel Henriques Lopes – o que bem retrata a sua vida movimentada, típica dos homens da nação. Na verdade o ambiente de medo em que viviam obrigava-os a estar em trânsito constante.
Mas se este processo é exemplar a tal respeito, não menos interessante na caracterização do ambiente de permanente suspeita e constante espionagem que sobre os homens da nação era exercida pelos comissários e familiares do santo ofício.
Situemo-nos então na Figueira da Foz em cujo porto atracou um barco proveniente da Inglaterra. Coisa normalíssima, até porque a grande maioria dos barcos estrangeiros que frequentavam os portos nacionais eram ingleses. O barco vinha à responsabilidade de Gaspar Dias de Almeida,(1) um grande mercador de Lisboa e dele eram as mercadorias que trazia, nomeadamente “duzentos quintais de ferro e vinte barras de aço” importadas para um mercador do Norte e “seis milheiros de aduelas”. O barco deveria depois ser carregado de azeite e regressar a Inglaterra.
O homem contratado por Gaspar Dias de Almeida para dirigir as operações de descarga do barco, venda de algumas mercadorias importadas e compra dos azeites para exportação foi Manuel Henriques Lopes que, para o ajudar, conseguiu os serviços de um Manuel João, contratador, morador na Rua dos Sapateiros, na Figueira da Foz. Este trabalhava em comissão, recebendo cinco tostões por cada pipa de azeite embarcada. Também o Manuel Henriques trabalharia em comissão? Ele disse que não, que Gaspar Dias de Almeida “pediu a ele declarante para fazer tal diligência e que ele aceitou sem estipêndio algum pela dita comissão, deixando no arbítrio do mesmo a satisfação do seu trabalho”.
Tudo correria em ordem e a carga foi desalfandegada, tudo se registando nos respetivos livros. O ferro e o aço foram metidos em um armazém alugado, defronte da casa do contratador Manuel João. Dos 6 milheiros de aduelas Manuel Henriques mandou fazer “pipas e quartos e as mais vendeu aos estrangeiros”.
A operação estava correndo e no barco estavam já “quarenta e tantas pipas e trinta e tantos quartos de azeite” quando as justiças levaram Manuel Henriques Lopes para Coimbra e o meteram na “cadeia da portagem”.
Porquê? – Disseram que estava carregando trigo para fora do reino, sem a devida autorização. Na verdade a “cadeia da portagem” era a cadeia civil, já que em Coimbra havia outras para presos específicos, como eram: a da inquisição, a dos estudantes e a dos clérigos. 
Voltemos ao início, à ida de Manuel Henriques para a Figueira da Foz e à chegada do barco de Inglaterra. Como estabelecido, à chegada e à partida, todos os barcos eram vistoriados e ninguém podia viajar sem o visto da inquisição. No caso concreto o “olheiro da inquisição” era o familiar Manuel da Mesquita Loureiro que logo escreveu para Coimbra, dizendo:
— Ilustríssimos Senhores. Lembro-me que antes de ser preso nestes cárceres Gaspar Mendes Furtado, dei conta a Vs. Ss. de que esta pessoa se achava neste lugar carregando dois navios de azeite para Holanda, e entendendo poderia haver causa para algum procedimento. Neste lugar assiste há dias um Manuel Henriques Lopes, da mesma nação, que há algum tempo mora na cidade do Porto e de presente assiste em Lisboa, fazendo as normais carregações de azeite, também para Holanda. Pareceu-me dar a Vs. Ss. esta conta, de que serve esta. Figueira da Foz do Mondego, aos 5 de maio de 1714…
Recebida a carta, ordenaram os inquisidores de Coimbra que informasse “com todo o segredo e cautela de quem este seja filho, de onde é natural e morador, se é casado, com quem, se tem alguns irmãos ou parentes, como se chamam”…
Não vamos acompanhar a “missão de espionagem” do familiar do santo ofício. Diremos tão só que a prisão de Henriques Lopes na “cadeia da portagem” se destinaria a dar tempo ao promotor do tribunal da inquisição para recolher testemunhos ou indícios de judaísmo contra ele. Efetivamente, no dia 24 do dito mês de maio, transitou o prisioneiro para a cadeia da inquisição, a mesma onde, meio século antes, sofreram o seu pai Vasco, a sua mãe Mécia e o seu irmão António.(2)
Tinha 66 anos quando foi preso e era viúvo de Mariana de Alvim,(3) filha de Francisco Ferreira Isidro, capitão de milícias de Freixo de Numão e sua mulher Francisca Vaz, da Torre de Moncorvo.
O seu processo nada tem de especial, dado que logo na primeira sessão ele declarou que “não quer defesa e só quer confessar as culpas”. Por dois anos permaneceu na cadeia, saindo reconciliado com cárcere e hábito perpétuo no auto da fé de 4.6.1716.
O mais interessante do seu processo é uma carta que António Nunes Cardoso(4) seu sobrinho, natural de Freixo de Espada à Cinta, estanqueiro do tabaco em Portalegre, lhe escreveu quando foi preso. Gostaríamos de transcrevê-la, porém o espaço disponível não o permite. Vejam apenas um curto excerto:
— Quando de vossa mercê esperava a notícia de se haver recolhido a sua casa saboreando-se com o gosto de ver a seus irmãos e primos meus juntamente, dando satisfação ao senhorio do pataxo (barco) para que viesse no reconhecimento da exacta diligência e desvelo que tem tido na compra dos azeites com que o carregou, vejo e me fiz sabedor de que está na cadeia da portagem por lhe imputarem fazer a tal carga com trigo (…) E nesta consideração, sendo o Dr. Corregedor tão grande ministro, como considero, breve estará v. mercê fora da prisão (…) Esta remeto ao Dr. José Correia de Carvalho, amigo de meu irmão e meu, que é bom homem, e o há-de ir logo procurar (…) Deus nos livre dos inimigos e guarde a v. mercê. 4 de Junho de 1714.
Acerca deste e outros sobrinhos de Manuel Henriques, diremos que, também eles, uma década depois, foram parar às masmorras do santo ofício. Como, aliás, aconteceu com 6 filhos seus, que todos foram presos em 1725.
Terminamos com uma breve informação sobre os irmãos de Manuel Henriques Lopes:
Lopo Rodrigues, foi morador em Faro, casado com Brites Francisca e dali se foram para os Barbados.
António Lopes Henriques, faleceu solteiro em Vila Flor, tendo sido preso pela inquisição de Coimbra em 1665.
Gaspar Fernandes, casou com Isabel Rodrigues e o casal morou no Porto. Em maio de 1697, na visitação que ali fez D. Tomás de Almeida, deputado do santo ofício apareceu uma Leonor de Paiva a denunciar Gaspar Fernandes, o seu cunhado Marrcos Ferro e outros cristãos-novos que em sua casa “faziam sinagoga”. Tempos depois a denunciante foi morta com um tiro, sendo voz pública que a matou Gaspar Fernandes. Não sabemos se foi por causa do crime ou por medo da inquisição que o casal fugiu depois para a Holanda.
Maria Henriques vivia no Porto, casada com o advogado Francisco Marcos Ferro, de Torre de Moncorvo. Este foi preso pela inquisição na sequência da visitação atrás referida. Aquela, deixou o Porto e dirigiu-se para Faro e dali para Lisboa, abalando-se, em Abril de 1699, para a Itália, no barco “N.ª Sr.ª la Coronada” juntamente com 47 outros cristãos-novos Trasmontanos, quase todos ligados por laços familiares, entre eles os pais de Jacob Rodrigues Pereira, o inventor do alfabeto para surdos-mudos. Todos foram presos em Cádiz, pela inquisição espanhola.(5)
Branca Gomes foi casada e moradora em Vilar de Maçada, Alijó, onde faleceu.
Isabel Henriques casou com Diogo Vaz Faro e o casal viveu no Porto, não deixando descendência. Também ela foi presa pelo santo ofício, em 1725, sendo já viúva. Terá falecido na cidade de Faro, nesse mesmo ano, de acordo com a informação de Francisco Gabriel Ferreira, seu parente.(6)
 
 
 
Notas:
 
1 - Gaspar Dias de Almeida era natural de Gogim, Lamego. Viveu em Faro e depois em Lisboa, administrando a Quinta do Lumiar e negociando com o Brasil e a Inglaterra. Em 1723, pressentindo que a inquisição o queria prender, fugiu no seu barco para Londres onde viveu como judeu assumido e faleceu em 1741. Vários de seus filhos foram para a ilha de Barbados. - ANDRADE e GUIMARÃES, Na Rota dos Judeus Celorico da Beira, p. 70 e seguintes, ed. Câmara Municipal de Celorico da Beira, 2015.
2 - ANTT, inq. Coimbra, pº 8521, de Manuel Henriques Lopes; pº 9984, de Vasco Fernandes Lopes; pº 2439, de Mécia Fernandes; pº 3802, de António Lopes Henriques. Este faleceu solteiro em Vila Flor. 
3 - Mariana de Alvim faleceu no Porto, na rua da Ferraria de Baixo, em 19.5.1704, sendo sepultada em S. João Novo, conforme certidão inserta no processo de sua nora (n.º 10157-L), Francisca Rosa, casada com Vasco Fernandes Lopes.  
4 - IDEM, inq. Évora, pº 9125, de António Nunes Cardoso.
5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do Mundo, Sefardita e Trasmontano, ed. Lema d´Origem, Porto, 2014.
6 - IDEM, inq. Coimbra, pº 10572, de Isabel Henriques; pº 9669, de Francisco Gabriel Ferreira.

Um novo mundo espantoso

Ainda longe do estereotipo descrito por Aldous Huxley vivemos já um Novo Mundo que não pode deixar de nos causar alguma perplexidade se refletirmos sobre alguns aspetos da realidade do tempo presente. Como não nos espantarmos com a constatação de que, no exato momento que escrevo, o programa informático de criptografia da cybermoeda BitCoin foi o Banco que mais cresceu, que mais se capitalizou, operando uma moeda sem qualquer reserva conhecida, sem divisas, que ninguém sabe quem é o dono e nunca teve nem terá qualquer banco de atendimento. A Uber é hoje a maior companhia de taxis a nível mundial. Não tem um único carro e não contratou um único motorista. A maior plataforma de comunicação social, que mais leitores tem não produz nenhum conteúdo, não tem jornalistas nem editores: é o Facebook. Por seu turno a plataforma de comércio eletrónico, Alibaba, sedeada em Angzhou, na China, sendo o maior revendedor mundial não tem nenhum armazém porque não tem mercadorias suas para guardar. O maior operador tusrístico de alojmento, nos tempos de hoje, o Airbnb, não possui um único hotel, nenhuma casa, nem qualquer rececionista.
Na época natalícia que vivemos o número de postais de Boas Festas vai, provavelmente, superar a astronómica cifra dos anos anteriores e, contudo, é precisamente nesta altura que a empresa dos correios anuncia a sua crise crescente por causa da redução continuada e consistente de serviço.  De qualquer forma, como no romance “O Admirável Mundo Novo” do inglês Aldous Huxley, referido no início, existe igualmente neste tempo que vivemos e que partilhamos uma reserva histórica onde os antigos costumes e regras continuam a vincar as mais ancestrais tradições, crenças e rituais. Que, ao contrário da novela britânica, não causa qualquer conflito junto dos aderentes aos novíssimos modos de vida e facilidades tecnológicas modernas. As couves tronchas podem ser compradas numa qualquer grande superfície com pagamento eletrónico de cartão de crédito, os momentos natalícios, à volta da lareira que crepita os incadescentes toros de carrasco serão, seguramente, partilhados e replicados no facebook e qualquer nordestino da Diáspora pode matar saudades e preservar as tradições de infância comprando numa plataforma digital a máscara de celebração do solstício que mais lhe agradar. 
Não é necessário emigrar para poder regressar a casa, após o jantar natalício, num táxi da rede Uber e a deslocação ao Porto ou à capital para partilhar momentos com amigos e conhecidos pode facilmente garantir alojamento adequada através do Airbnb. 
Queiramos ou não, o progresso faz o seu caminho e não se vislumbra forma de o deter, nem sequer de o abrandar, muito menos de o reverter. Resta-nos a reserva identitária que o interior, cada vez mais despovoado e, mesmo que acompanhando os benefícios civilizacionais, vai mantendo e preservando. E assim será enquanto houver gente que o habite já que não será fácil encriptar o bacalhau, virtualizar o borralho, digitalizar o calor humano das noites gélidas e programar em computador o afeto de um abraço e de um forte aperto de mão.