Ainda não é o apocalipse

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Ter, 24/01/2017 - 10:10


As boas almas já tinham relegado o demo para o lugar sórdido em que o mal se debateria com a sua própria nulidade, convencidas que, com o tempo lá iríamos, até ao novo Eden, onde a brutalidade não passaria de memória, suavizada pelas conquistas da inteligência e da sensibilidade.
Chegaríamos a poder contemplar o anunciado mundo novo, em que o lobo e o cordeiro conviveriam sem que o sangue tingisse a terra.
Já não era sem tempo, depois de milénios de barbárie. Mal seria que não tivessem efeito as pregações dos prosélitos contra o pecado ou dos anunciadores das novas idades de ouro, a assomar às janelas da moral e da política...
Mas os dias estão povoados de satânicas gargalhadas que nos invadem os sonhos. Um figurão sentou-se no trono dourado e, por entre esgares, vai soprando labaredas sobre o porvir, liderando uma dança macabra, que espalha as cinzas do desânimo sobre as nossas cabeças.
Sente-se que pode acontecer um verdadeiro retrocesso civilizacional, apesar da panóplia tecnológica que nos dá a ilusão de modernidades nunca vistas e de festas nunca vividas.
Na verdade, pensando bem, outros saltos tecnológicos, há poucas décadas, louvados como propiciadores de admiráveis mundos novos, trouxeram à tona o refinamento da maldade, com consequências inauditas: lembremos 1939, quando pudemos ver a bocarra da fornalha, que teimamos querer esquecer.
Apesar do tremendismo quotidiano ainda não será desta que o fim dos tempos nos varrerá do universo, até porque os diversos finalismos não são mais que formas de auto-contemplação, mesmo de soberba, que também é um pecado há muito identificado.
Naturalmente, também a vida deste nosso país está a ser marcada por fenómenos de violência e corrupção, que desafiam a credibilidade das instituições, dadas a luxos de apatia incompreensíveis.
É assim que se criam condições para que a sensação de insegurança das pessoas se conjugue com percepções de que a impunidade se instala. Ao mesmo tempo, nos media, alimenta-se a sanha de facínoras, com programas absurdos, de agressividade gratuita, a propósito dos futebóis e dos títeres que ali se alcandoraram a lugares de liderança. É degradante a abundância de programas rosqueiros, que criam o ambiente propício para que sejam desferidos tiros sobre autocarros de clubes, como aconteceu, no fim de semana, no Minho.
Só uma esforçada serenidade pode permitir-nos ter, ainda, o sentido do futuro, no contexto desta realidade deprimente. Serenidade que exige confiança na lei, nas polícias e na justiça, porque os agitadores, fanfarrões, não deixarão o palco enquanto não tiverem a necessária lição de os deixarmos a falar para o boneco.
Não nos deixemos enredar nos temores do fim. É preciso continuar a fazer o caminho, orientados pela clara noção de que vamos continuar a ter que conviver com o lado esconso da condição humana, que precisa de ser tratado com a necessária firmeza, de modo a que haja condições para deixarmos um mundo um pouco melhor. Porque isto não vai acabar para já, mesmo que nos pareça estarmos a viver um interminável filme de terror.

Por Teófilo Vaz