O olhar sereno de Matilde

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Ter, 11/12/2018 - 10:16


O lenço em tons escuros, a cair-lhe nas costas, revela o brilho solar do cabelo sedoso, mais que branco, de um tom ouro claro, suave, nada metálico, nem frio. Maria Matilde, pensativa, fita o lume curto, palpitante, a rasar o pote pequeno, onde fervilham as batatas e o toro de couve galega, cortado em lascas finas e um “tchisco” de espádua que esteve de molho o tempo que Deus manda.

Depois de fechar brevemente os olhos, vira-se para a janela pequena, quadrados de vidro por onde passou muita vida e fica-se a contemplar a luz clara, filha do céu azul. Há nela uma nobreza, uma tranquila melancolia, de quem reconhece que o que poderia ter sido já nunca será e talvez nem valesse a pena.

O televisor rosna baixinho. É quase tempo das notícias que lhe trazem um mundo ofegante: pancadaria por causa da gasolina, dos futebóis, das guerras santas e diabólicas, greves que fecham na cara das gentes as portas da esperança, médicos que se hão-de reformar em breve, às mãos cheias.

Também a farmácia está, como dantes, a dias de espera, os ambulantes do pão, da fruta, do açúcar, do arroz, das massinhas vão prometendo que qualquer dia não voltam, porque não trabalham para aquecer.

Ergue-se do escano lesta, quase juvenil desce a escaleira e vai deitar o olho à loja da porca, gorda quanto basta, que há-de ser levada ao sacrifício daqui a uns dias, para alimentar a festa da vida que continua seja como for.

Aflora-lhe uma lágrima, já de saudade do tempo passado a cuidar dela, do enlevo de a ver crescer, de a levar ao berrão e da alegria dos leitonicos, que animaram a mesa cheia pelo Verão. Guardou duas fêmeas para o caminho que ainda há que fazer e não vale a pena passar os dias a carpir dores do futuro.

Soube de uns pândegos que por aí andam, da geração de plástico, que peroram contra a carne, como que a querer que se volte ao tempo das batatas com massa, uns grabanços e um pingo de azeite, memória que não conhecem mas lhes fazia falta ter vivido, para não se arrogarem caprichos de iluminados sem passado.

Se tivéssemos assumido todos as nossas obrigações, pode ser que tomassem consciência doutros tempos de frenesim, de arautos de novos mundos, que nos reconduziram sempre a tragédias, com muito sangue e vergonha para a humanidade.

Estamos num tempo em que os direitos são entendidos de forma paranóica, como se pudéssemos realizar revoluções “a la carte”, ao gosto de cada um. Assim não iremos senão até à precipitação no abismo de nova Babel ou das simbólicas Sodoma e Gomorra da tradição milenar, que merece revisitações lúcidas, para além do literal que a displicência nos leva a desvalorizar com resultados imprevisíveis.

A mudança é fundamental para a vida verdadeira, além das funções biofisiológicas. Sem ela não se cumprirá o desígnio fundamental do homem. Mas só será sólida se resultar da partilha solidária dos riscos e das conquistas.

Claro que Maria Matilde ainda transporta a serenidade de quem acredita que no mundo do futuro haverá lugar para a esperança, apesar de todas as tribulações por que parece estarmos a passar.

 

Teófilo Vaz