“A Floresta está abandonada”

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Ter, 17/05/2005 - 16:21


Álvaro Barreira nasceu na aldeia dos Salgueiros, freguesia de Tuizelo, concelho de Vinhais. Tirou o curso na Escola de Regentes Agrícolas de Santarém e, entre Setembro de 1969 e Agosto de 1975, foi administrador florestal de Bragança, cargo que também desempenhou entre Agosto de 1979 e Dezembro de 1990.

Foi chefe de Divisão de Caça e Pesca de Janeiro de 1991 e Março de 1996. É sócio do Conselho Internacional de Caça desde 1979 e sócio-fundador do Clube Português de Monteiros. Técnico-assessor da Federação das Associações de Caçadores Transmontanos e Durienses, Álvaro Barreira é, também, gestor da Zona de Caça Turística da Serra da Coroa.

Jornal NORDESTE (JN) – Que recordações guarda dos Salgueiros?
Álvaro Barreira (AB) – A infância foi vivida no campo e foi agradável, porque o campo é vida. Como nos Salgueiros não havia escola, fiz a primária em Tuizelo e tinha de andar três quilómetros para ir para a escola e três para regressar a casa. O percurso era sempre feito em grupo, com rapazes e raparigas em convívio. Atravessávamos uma zona muito bonita que era o vale da ribeira de Tuizelo. Acho que, hoje, as pessoas que desfrutam do facto de ter automóvel e a escola ao pé deviam conhecer estas coisas. Eu, por exemplo, tenciono levar os meus netos a fazer o percurso que eu fazia, porque eles hoje estão a centenas de metros da escola e têm que levá-los de carro, quando eu na altura estava a quilómetros e tinha que ir a pé.

JN – Depois de frequentar o Liceu de Bragança foi para Santarém. Como era ser estudante nessa época?
AB – Estive lá cinco anos, entre 1949 e 1954, e Santarém marcou-me duma maneira muito forte. É uma terra de características muito próprias, com uma identidade ribatejana muito vincada. Eram tempos muito diferentes dos de hoje. Só para dar uma ideia, só com 50 escudos podíamos passar um fim-de-semana divertido em Lisboa e ir, até, ao futebol.
As pessoas poderão estar a pensar que eu fazia vida de lorde, com o dinheiro que os meus pais me davam, mas não. Nessa altura eu vendia presuntos de Vinhais em Santarém e Lisboa e ganhava 2$50 por cada quilo de presunto que vendia. O meu pai enviava os presuntos por um negociante de gado que fazia as feiras de Vinhais e Santarém e eu era o fornecedor nas cervejarias e casa de petiscos da zona. Se vendesse dois presuntos já me dava para ir passar um fim-de-semana a Lisboa!
A vida de estudante em Santarém era intensa e era preciso arranjar suporte financeiro para ela.

JN – O que o levou um vinhaense a ir para Santarém para prosseguir os estudos?
AB – Naquela altura a zona de Bragança tinha poucos regentes agrícolas. Tinha o ex-presidente da Câmara, Adriano Pires, e o senhor Godinho, que era um homem da zona de Tomar que veio para Bragança e ficou por cá. Foram estes dois homens que me entusiasmaram. Apareceram na minha aldeia a fazer a inspecção à batata e eu achei a natureza do curso interessante. Concorri às três escolas de Regentes Agrícolas que existiam, que era Santarém, Coimbra e Évora. Já nessa altura só admitiam o número de alunos que saíssem e a primeira onde arranjei vaga foi na de Santarém, que tinha 130 alunos. Muitos deles eram filhos de famílias ricas do Ribatejo e Alentejo, que ao fim de semana iam para casa. Eu não podia fazê-lo, devido à distância, de modo que ficava lá e fui-me integrando muito bem na vida do Ribatejo.
A minha determinação era tirar o curso nos cinco anos, mas em tudo é preciso haver equilíbrio e responsabilidade. Às vezes digo aos meus netos que é possível divertirmo-nos sem esquecermos os livros.

JN – A sua vida profissional está muito ligada à caça, pesca e floresta. Estão-lhe no sangue ou foi obra do acaso?
AB – Não, não foi obra do acaso. Mas, antes de trabalhar nos Serviços Florestais estive na Junta de Colonização Interna e na Junta Nacional do Azeite. Foram empregos de passagem, porque o meu grande objectivo eram os Serviços Florestais, o organismo que tutelava a caça e que tinha maior implantação em Bragança. Era um organismo muito importante e recordo que, na década de 60, vir a Bragança um Director Geral de Florestas era tanto ou mais importante do que vir hoje o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro.
Era o organismo que tinha mais peso no mundo rural. Considero que, na altura, os Serviços Florestais eram quase a Segurança Social, porque as pessoas nas aldeias não tinham onde ganhar dinheiro sem ser na floresta. No Inverno ia toda a gente, novos e velhos, trabalhar para a floresta. Só ficavam nas aldeias aqueles que eram necessários para levar e trazer o gado. Os Serviços Florestais eram, de facto, o sustento de muita gente, porque tinham dinheiro e davam trabalho a muita gente durante todo o ano.

JN – Os serviços eram, por isso, um organismo muito bem visto?
AB - Claro que não era tudo bom, porque impunham uma grande disciplina no corte de lenha, no pastoreio, fogos e na gestão dos baldios. Em determinadas circunstâncias os Serviços Florestais eram mal vistos mas, se havia essa disciplina, havia a compensação das pessoas terem onde ganhar dinheiro durante o Inverno. Não fazíamos pagamentos mensais, mas quinzenais, e pagar uma quinzena as todas as pessoas que trabalhavam para os Serviços implicava andar três dias pelas aldeias. Recordo que no Zeive e Parâmio chegaram a andar seis equipas de trabalho com 180 pessoas, algumas vindas a pé de Terroso e Espinhosela. Para a Serra de Montesinho iam pessoas no domingo à noite, em imã da caixa de um tractor, e só regressavam a casa no sábado seguinte.
Em cinquenta anos muita coisa mudou. Há aldeias, inclusive, que têm estradas feitas pelos Serviços Florestais. As estradas de Baçal, Sacoias, Rio de Onor, Varge, Carrazedo, Montesinho e da Senhora da Serra, a partir das cruzes, foram todas feitas pelos Serviços Florestais. Tiveram, por isso, uma marca importante nas décadas de 60, 70 e 80.
Estes serviços eram, por isso, o meu grande objectivo em termos profissionais, porque correspondiam ao meu grande anseio de trabalhar no campo. Estive lá 36 anos, grande parte deles ligados à Caça e Pesca, que ainda hoje é a grande motivação da minha vida.

JN – A floresta tem uma grande importância na região. O que é preciso fazer para desenvolver este sector?
AB – Com alguma tristeza constato que a floresta foi relegada para segundo plano. Seremos, cada vez mais, um país florestal e cada vez menos um país agrícola. Há 9-10 anos a lógica normal seria equipar os Serviços Florestais no sentido de usar os terrenos para a Floresta. Mas aquilo que se fez foi esvaziar os Serviços Florestais e integrá-los nos serviços agrícolas, quando até devia ser o contrário.
O resultado está à vista. Bragança tem mais de 30 mil hectares de terrenos baldios que estão praticamente abandonados e onde foram feitos grandes investimentos.
É, portanto, necessário preservar a nossa floresta e defendê-la dos fogos. Antigamente tínhamos uma brigada florestal constituída por 22 homens, que estava disponível durante todo o ano e preparada para acudir a incêndios, inclusive com a ajuda de máquinas de rastos.
Actualmente não existe nada disso. Na zona de caça onde sou gestor, por exemplo, houve cinco incêndios há pouco tempo e os bombeiros foram lá uma vez e que quando lá chegaram o que havia para arder já tinha ardido.

JN – Como é que se pode inverter esta situação?
AB – Os fogos não se combatem, evitam-se. Para isso é preciso que as matas estejam limpas, e não estão. Mesmo no sector privado, fazem-se os projectos e, enquanto recebe dinheiro para fazer a limpeza, tudo bem. O problema é que, muitas vezes, fazem-se os projectos de florestação só para receber os subsídios e os apoios à perda de rendimento. Veja uma coisa: quem tem um terreno florestal não pode apresentar um projecto de florestação, mas se tiver um terreno agrícola já pode e até recebe um subsídio à perda de rendimento pela parte agrícola.
Portanto, nós somos um país essencialmente florestal, mas o Estado não tem estruturas e capacidade para rentabilizar o uso do solo para a floresta e caça. Isto leva-nos a outra questão. Bragança, em termos rurais, tem de saber usar os seus trunfos, que são o ambiente, a floresta e a natureza. Se tirarmos a Trás-os-Montes a paisagem, a caça e a gastronomia, o que é que temos mais?

JN – Considera, portanto, que a caça em Trás-os-Montes é uma mais valia?
AB – É uma mais valia que não está a ser devidamente aproveitada. Nós temos a melhor zona de caça do País. Não tenho dúvidas nenhumas disso, e conheço o País em termos de caça quase palmo a palmo. A Zona de Caça da Lombada tem 500 a 600 veados, tem muitos corços, muitos javalis, é uma boa zona de coelho e perdiz, vale muito dinheiro, mas está a ser menosprezada, está a ser depauperada diariamente por não haver força política e capacidade de intervenção numa zona da caça.
Só para dar um exemplo: na Lombada, legalmente, mataram-se 16-17 veados. Três deles estão entre os 10 melhores troféus de veados mortos no País, que concorre com milhares de exemplares. Isto só para dar uma ideia do valor da Lombada, onde um veado devidamente seleccionado vale 4-5 mil euros. É um património que não está a ser devidamente rentabilizado e quem perde são as populações locais e toda a região, porque quando os caçadores vêm deixam sempre qualquer coisa.

JN – O que se pode fazer para salvar a perdiz, o coelho e lebre?
AB – São espécies que estão a diminuir. Temos de ter noção da evolução do uso do solo. À medida que formos fazendo menos agricultura e mais floresta, seremos cada vez menos uma zona de caça menos e cada vez mais uma zona de caça maior.
No caso da perdiz, o problema é a alimentação. Tenho a prova disso. Na zona de caça onde sou gestor tenho 20 comedouros para javali e não há nenhum que não tenha perdiz. Há comida, há perdiz e é por isso que apelo aos gestores das zonas de caça no sentido de criarem campos de alimentação. Em relação ao coelho, o problema são as doenças, nomeadamente a hemorrágica, que continua a dizimar centenas de espécies saudáveis de um momento para o outro. No caso da lebre, é um animal que prefere terrenos planos e que não encontra as condições ideais em grande parte da região.
Em termos de caça menor estamos a descer, mas temos, apesar da forte pressão, cada vez mais javalis e corços e veados. O Estado, e eu tenho feito alguma pressão nesse sentido, deve abrir mão da caça ao corso, porque é muito procurado e temos quantidade suficiente para se começar a caçar. Há corso em todo o concelho, em especial na zona de fronteira.

JN - A aposta deve ser, então, a caça maior.
AB – Sim. Basta dizer que, se não fosse o javali, a região tinha entrado num marasmo muito grande em termos de caça. As deslocações em massa de caçadores são feitas durante as montarias. Quem vem caçar perdiz e coelho é uma gota de água.
Choca-me ver uma perdiz morta, porque é uma espécie muito bonita e mais indefesa. Agora um javali proporciona uma luta e um grande desafio para o caçador. É um animal com uma resistência à morte que os outros não têm. É mais bruto, mais agressivo e mais violento. Basta dizer que o javali e o rinoceronte são as duas espécies do mundo mais difíceis de abater. Pode levar um tiro no coração e andar 100 metros ou ficar com as tripas de fora e viver alguns dias. É um animal extremamente inteligente que não entra num “sebadouro” de qualquer maneira. Entra com o vento de frente e faz uso do seu apurado ouvido e olfacto. Eu já matei 116 javalis machos, e só contabilizo os machos, e nenhum deles foi abatido em dia de vento, porque ele sabe que o vento tira-lhe as capacidades de audição e olfacto.
O javali é grande atracção que leva pessoas a virem de todo o País e de Espanha para caçarem na região

Entrevista de Marcolino Cepeda, Rui Mouta e Mara Cepeda.