Caminhando sozinho

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Um célebre poeta espanhol muito citado e raramente lido em terras de Portugal, escreveu: o caminho faz-se caminhando. Eu sei que ele caminhou quase sempre acompanhado nunca curvando ideologicamente com tremuras oscilantes no fim da vida, no entanto, a sua poesia tersa, vibrante e consolada atrai-me tanto quanto gosto de poesia universalista que perdura através dos milénios. Ora, neste último ano a pandemia e a demorada convalescença avinagram-me os dias, levando-me pensar as noites tal como Camilo as explicou em Quarenta Noites de Insónia. Este exercício noctívago está nos antípodas das noites bragançanas nas quais na companhia do saudoso Fernando Faria (Tozé), do Fernando Machado, da Margarida Cepeda e o José Bouça estripávamos madrugadas ao sabor dos substanciosos pregos de vitela vendidos pelo Sr. Pereira, algumas vezes perdizes sem ração, para lá dos enchidos antecipadamente saboreados gulosamente no restaurante do generoso Alberto, o D. Roberto em Gimonde. Se agora caminho sem pressas três quilómetros diariamente em redor de mim próprio (a casa residencial), nos idos antecedentes chegava a palmilhar vinte quilómetros não para imitar o lendário Emil Zátopek, sim no desejo de manter o coração em forma e, este, como se diz no Ribatejo borregou. A pandemia confinou-me e amofina-me o quotidiano pois emparedou-me (castigo medieval) a restringir-me os feros ânimos de liberdade de movimentos de quem calcorreou países e continentes respirando liberdade. E, agora? Agora, uma máscara esconde-me a face, o medo ganhou carta de alforria afastando-me das pessoas, apenas me atrevo a conceder licença à gata para se aproximar. Na dança e contradança dos passos, solitário, desfilam a meus olhos personagens detestáveis e salafrárias em evidência na nossa sociedade actual, o indivíduo taful ganhou foros de celebridade, o homem competente sem dobrar a cerviz é colocado na prateleira porque os comissários políticos adoram manteigueiros bem-mandados, daí ocuparem lugares bem dotados financeiramente aqui e no estrangeiro cujo exemplo mais recente ocorreu na taifa da ministra da saúde. O caminho faz-se caminhando, é verdade, só que a maioria só tem possibilidades de dar passos (não passadas) num caminho de pedras, acontecendo à esmagadora maioria dos caminhantes o acontecido ao convencido António José Seguro. Tramou-se! Os olhos contemplam os quadros de mortos que vão engrossar a Procissão de defuntos (título de um livro do fecundo prosador Tomaz de Figueiredo) vazados nos crematórios devido ao vírus, as negras angústias redundam em língua de sola humedecida pela comissura impotente muito por causa da quase nula ausência de planeamento qual hidroavião castrado da canção olha a mala, olha a mala dos manietados opositores salazaristas. Na actualidade a oposição berra alguma coisa, porém prefere o ripanço das boas venturas de aguardar melhor estação do ano, deixando ao Sr. Ventura o exclusivo da berraria a originar-lhe baba e ranho de ressabiamento porque não chega querer. Para já, não vá o Diabo tece-las pois é tendeiro e traiçoeiro. E os mortos? Os mortos na maioria dos casos quão enganosos são os soluços vertidos no momento da despedida, poucos serão aqueles que não conhecem episódios de veloz ocaso dos referidos defuntos, partilhas, ânsias de renovação, do hoje tu, amanhã eu, do triunfo da vacuidade niveladora por baixo, salientam os punhos de boxeur em queixos desprotegidos sinónimo de alegre e estrídulo esquecimento. Lembrem- -se da ópera viúva-alegre. Viúvo também. O que se poderá imaginar que seja mais torpe que não ver por não querermos?

Armando Fernandes