A fábula da rã e do escorpião

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Dois eventos notáveis, de pura política que não de política pura, sucederam-se a semana passada, facultando uma melhor compreensão dos defeitos do regime político vigente e da governança desenfreada a que dá cobertura. Primeiro foi a apresentação pública, na quarta-feira, dia 1 de Setembro, do livro Memórias da autoria do conhecido homem público Francisco Balsemão. Uma obra surpreendente não só porque lança luz sobre a sua longa e densa vida política, mas sobretudo porque traça perfis pouco simpáticos de várias personalidades públicas, sendo particularmente lesivo do carácter de Marcelo Rebelo de Sousa, porque o coloca no papel do escorpião que pica o batráquio da fábula, de que o próprio autor veste a pele. Imediatamente a seguir, na quinta-feira, dia 2, portanto, teve lugar no palácio de São Bento, sede do Governo, a homenagem que o actual primeiro-ministro António Costa entendeu fazer ao citado Francisco Balsemão, por ocasião da passagem dos 40 anos do VII Governo Constitucional que este chefiou. É por demais óbvio que a coincidência destes dois eventos se não foi concertada entre António Costa e Francisco Balsemão foi, por eles, manifestamente negligenciada. Homenagem que é igualmente questionável porquanto gesto idêntico só António Costa o teve em 2016, para com o seu correligionário Mário Soares, para realçar os 40 anos da tomada de posse do I Governo Constitucional. Não faltaram datas nem motivos para António Costa homenagear outros colegas. Optou por estes dois por razões manifestamente pessoais. Recorde-se que Mário Soares sucedeu a Francisco Balsemão à frente do único Governo de Bloco Central (1983-85) que se destacou precisamente por pedir ajuda ao FMI, de imediato, porquanto o Governo da AD liderado pelo homenageado deixara o país na bancarrota. De realçar que foi a primeira vez que Portugal se viu forçado a recorrer a um resgate externo, o que voltaria a acontecer mais tarde com José Sócrates, correligionário e patrono de António Costa, que estabeleceu, em 2011, um acordo humilhante com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia, congraçados na célebre Troika. A execução de tão gravoso contrato de financiamento acabaria por representar um pesado encargo do XIX Governo Constitucional, liderado por Pedro Passos Coelho que, malgrado os erros cometidos tem sido injustamente tratado. Talvez António Costa o devesse homenagear e não criticar tão acintosamente como o tem feito. Uma segunda questão se apresenta como politicamente relevante: saber se António Costa e Francisco Balsemão igualmente se concertaram, e com que finalidade, o empolamento da publicitação do ataque feroz que Francisco Balsemão disferiu em Marcelo Rebelo de Sousa no livro atrás referido. Será que António Costa receia ser a próxima rã a ser picada e já se está a precaver? Com concertação ou sem ela, certo é que o bom nome do cidadão Marcelo Rebelo de Sousa e o seu prestígio enquanto Presidente da República foram profundamente afectados. Os portugueses têm agora motivos reforçados para duvidar da competência, do patriotismo e da seriedade dos políticos, dos partidos e demais machuchos do “sistema” sobretudo porque acreditaram, ainda que fugazmente, que com o advento da democracia e a integração europeia Portugal se transformaria num país de sonho. Tal só não aconteceu, na opinião de um jovial ancião do povo onde moro, porque no momento chave da consolidação da democracia e modernização da economia o país caiu nas mãos de “betinhos”, de “filhos do papá”, a quem também chama “direitinhos”, da linha do Estoril e doutras linhas enviesadas, tais que Francisco Balsemão e Marcelo de Sousa, que sobrepuseram os seus interesses e os seus umbigos, acima do interesse nacional. Mais se agravou a situação, ainda no dizer do espirituoso ancião, agora que aos “betinhos” sucederam os “esquerdinhos”, “filhos da mamã”, uma outra espécie de escorpiões que picam a rã com o ferrão revolucionário embora tentando a travessia para Cuba ou para a Venezuela. Qual foice, qual martelo, qual punho fechado, qual sinistra globalização! - Contraponho eu. Só a democracia liberal e representativa, com as armas do voto e do protesto público livre e espontâneo, é verdadeiramente revolucionária. Tem é que ser vivida dia a dia, com verdade. Haveremos de concluir, portanto, que a fábula do escorpião e da rã que Balsemão invoca relativamente a Marcelo de Sousa, tem aplicação muito mais vasta e profunda. Só que os escorpiões são demais para uma única rã que é a Nação, que incompreensivelmente continua a deixar-se levar na cantiga dos “direitinhos filhos do papá” e dos “esquerdinhos filhos da mamã”, que trazem a traição no ventre e a vão picar até que todos se afundem definitivamente. Vale de Salgueiro, 9 de Setembro de 2021

 

Henrique Pedro