Mentiras, chico-espertismo e gatos gulosos

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A mãe comprou um belo naco de vitela para assar no forno. Muito tenrinha, garantiram no talho. Estava destinado a acompanhar com batatas e arroz, compondo a mesa do almoço de domingo. O gato, ao ver tamanho petisco - tenrinho, tenrinho - imaginou que se desse uma dentada do lado mais junto à parede ninguém veria. A ração é boa... mas...não chega. Nunca nada chega quando a tentação é posta ali, numa banca expos- ta. Plot-twist - foi apanhado. À partida, somos mais inteligentes do que os outros. Há uma vozinha que diz “não achas que ela pode descon- fiar? “. Mas, do lado oposto, um vozeirão palpita que, tal- vez com sorte, o outro tinha acordado meio estúpido hoje. E por isso, com essa tal sorte, pode ser que passe e que nos vamos safando. É um princípio comum - ou denota falta do mesmo. Criar novelos, enredos. Ir tirando o proveito que acharmos con- veniente. As mentiras, dizem, criam hábitos. Fica o costume de oprimir a verdade. Ou de lhe dar outros contornos, mais agradáveis. Omitir, é essa a palavra. E omitir é algo que até tem o seu quê de aceitação social. Afinal, ninguém precisa de saber tudo. Até causa desgaste, tanto conhecimento desnecessário. E nas mentiras podemos ser como quisermos. Vamo- -nos enganando a nós e aos outros. Quem sabe o que hoje é mentira amanhã seja ver- dade? A esperança é a última a morrer, toda a gente sabe. Não é a mentira. E a culpa, essa, morre solteira. Será que alguém se sente culpado por enganar os ou- tros? Bem, se sim, demons- tra arrependimento. Já conta alguma coisita para o saldo final. Sabem, naquele em que vão decidir se vamos arder no Inferno ou ir a grandes festas no Céu. O que ninguém gosta é de se sentir enganado. Traído. Mesmo que não sejamos os seres mais íntegros a pisar a Terra, achamos sempre que não nos vai calhar. Nunca entendi a necessidade de enganar os outros. Podemos, simplesmente, ignorar esses outros que não são dignos das nossas verdades. E a vida segue. Mas talvez sejam esses mesmos que temos vontade de enganar. Por não serem assim tão especiais. Ou tão inteligentes. Achamos nós. Só que, com o tempo, fica esba- tida a importância e o que é alguém importante. Há por aí tanta gente que num instante se encontra alguém melhor. Ou, pelo menos, que não seja pior. Todos somos vítimas, de alguma forma, da vida. A vida molda-nos, com todas as tragédias e acontecimentos que experienciamos. Uma coisa é certa - ninguém sai dela sem mácula. Nesse dia, o gato foi corrido à lei do grito da cozinha. O chinelo falhou por pouco o alvo. De barriga cheia, talvez ache que valeu a pena. Quando tiver fome e ouvir um “agora, espera, seu gato guloso”, ou lhe faltar quem lhe coce as orelhas em sinal de desagrado, talvez lhe parece diferente. Ainda houve vitela que che- gue para o almoço, porque já foi comprada a mais, para so- brar. Como a paciência, faze- mos sempre por ir sobrando. Moral da estória? Da próxi- ma vez, o gato vai estar debai- xo de olho. Porque a confiança é de vidro, ainda mais quando há dentes e garras à mistura. A artimanha vai ter que ser maior. Até que, virá o dia, em que a carne vai estar tão protegida que não há forma de ludibriar. Afinal, por cada acto de chico-espertismo há sem- pre uma mente a ser aguçada. E, um dia, aprende-se a deixar de ser tenrinho, por mais que o gato pareça inofensivo e até fofo enquanto se espreguiça nos dias de sol.

Tânia Rei