NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Diogo Fernandes Pato (Vila Real, 1567 – Coimbra, 1620)

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Por 1620, na comunidade hebreia de Vila Real, destacava-se um grupo de médicos, advogados e grandes mercadores, ligados por laços familiares: Branca Dias, casada com Manuel Capadoce era irmã do advogado Manuel Dias Catela, pai do médico João Rodrigues Espinosa e de Joana Dias, mãe do advogado Diogo Fernandes Pato e este era irmão de outra Branca Dias, avó materna do diplomata Manuel Fernandes Vila Real.
Diogo Fernandes Pato, o nosso biografado, nasceu em Vila  Real, por 1567, sendo filho de Joana Dias e Pedro Fernandes, o Pato, de alcunha. Aos 15 anos, Diogo rumou a Salamanca, em cuja universidade se matriculou em 1582. Por uma década aparece o seu nome nos livros de matrícula da universidade, estudando Gramática e Leis e saindo advogado em 1592. (1)
Do lado paterno, Diogo teve uma tia, chamada Joana Fernandes, que casou e morou em Vila Real, e foi presa pela inquisição, em 1569 e 1589. (2) E certamente foi por causa disso que os seus filhos e netos abandonaram a terra e foram viver para a Galiza.
Do lado materno falou-se já do tio Manuel Dias Catela e da tia Branca Dias, casada com Manuel Dias Capadoce. Dos filhos destes, vem ao caso referir um Francisco Lopes Capadoce, casado com Helena Rodrigues e uma Violante Dias que casou com Francisco do Vale. Isto porque, em Março de 1518, falecendo a mulher de Francisco Lopes Capadoce, a amortalharam com “uma camisa nova de pano de linho que nunca servira e no mantéu e punhos tinha pontas de renda (…) uma touca boa e formosa (…) e um gibão de canequim e uma coifa e uma fita” e a embrulharam em “um lençol de pano de linho fino de quatro tramos e que não havia servido”…
Na execução desta e de outras cerimónias de amortalhar e prantear a defunta, notou-se a participação de Violante Dias, irmã de Francisco e uma filha desta chamada Leonor do Vale. Aliás, já um ano atrás se fez notado o papel de Violante no amortalhar de um menino de 6 ou 7, como contou uma cristã-velha, dizendo:
- Em uma peça de pano de linho novo e se cortou uma camisa muito comprida, com umas mangas muito compridas que pareciam de roupão (…) e logo se coseu a dita camisa (…) e dizendo ela denunciante à dita Violante Dias para que eram as mangas tão compridas, que seria bom cortar metade delas, que ainda ficavam mangas bastantes; ao que Violante Dias disse que não, que era o dote de menino; mostrando-se muito colérica contra ela denunciante; e logo na dita tarde morreu o menino e o amortalhou a dita Violante Dias na dita camisa nova e em um lençol grande e ela estranhou porque sabia que o dito menino tinha camisas novas e muito boas. (3)
Em Março de 1620, o inquisidor Sebastião Matos Noronha visitou Vila Real e estas e outras cerimónias e comportamentos judaicos foram-lhe denunciados, seguindo-se uma vaga de prisões. Francisco Lopes Capadoce, que ficara viúvo de Helena Rodrigues, não foi preso porque, entretanto fugiu para a Galiza. Violante Dias e a filha foram presas e os seus processos revelem uma atroz crueldade. A filha saiu cega da prisão. E Violante ficou “com chagas no corpo e entrevada e com sinal de lhe ter dado o ar, e em razão de uma enfermidade oculta provável, que por honestidade se não podia ver, e é certo que há muito tempo está desta maneira no dito cárcere, impossibilitada (…) de sair em auto, salvo se a levar em uma cadeira, sem a dita se levantar, e no cárcere se não pode curar, antes ali se acabará de consumir”.
Este foi o testemunho deixado pelos médicos da inquisição, que a observaram, confirmando, aliás, a informação dada pelo alcaide dos cárceres dizendo:
- Depois que veio para estes cárceres está chagada e com muita enfermidade, que faz asco dizer…
Acabaram os inquisidores por deixá-la sair, com fiança abonada para pagar as despesas de alimentação e custas da cadeia, fiança dada pelo mercador Francisco Fernandes Vila Real, pai do citado Manuel Fernandes.
Voltemos à visitação do inquisidor Noronha a Vila Real, em março de 1620. Perante ele apareceu um carpinteiro dizendo que, 10 anos atrás, fez uma obra de carpintaria em casa de Diogo Fernandes Pato. E nesses dias morreu lá em casa, uma cunhada do advogado, irmã de sua mulher, chamada Beatriz Dias, que com eles vivia, estando o marido, Gonçalo Dias Pato, emigrado na Galiza. E então, acrescentou o carpinteiro, notou que por espaço de 15 dias, naquela casa se não cozinhou senão peixe. E ele perguntou a uma criada porque ali se comia só peixe, respondendo esta que os amos não permitiam que se comesse carne por respeito da morte da dita cunhada. O carpinteiro contou ainda que em seguida à morte da mesma Beatriz, a mulher do advogado mandou lançar fora toda a água que havia nos cântaros.
Leonor Lopes, cristã-velha, apareceu também a testemunhar perante o inquisidor, dizendo:
- Havia 10 anos que, morrendo Beatriz Dias, cristã-nova (…) viu ela denunciante que a dita defunta foi enterrada em uma cova virgem no adro de S. Pedro, junto ao monturo, do que houve geral escândalo nesta vila (…) porque sendo a dita defunta rica se não enterrou dentro da dita igreja ou no mosteiro de S. Francisco, onde era fama pública nesta vila que os frades do mosteiro lhe ofereceram sepultura. E também foi pública voz e fama, no dito tempo, nesta vila, que por ordem do dito Diogo Fernandes Pato, foi a dita sua cunhada enterrada na dita sepultura virgem. (4)
A história foi confirmada pelo coveiro que acrescentou pormenores, dizendo que primeiro o mandaram abrir a cova no claustro de S. Francisco, o que ele fez. E que estando a cova aberta, recebeu ordens para a tapar e abrir outra “no adro da freguesia de S. Pedro, no meio de um caminho, em uma cova virgem, lugar onde se não costumava enterrar pessoas. E não quiseram que se enterrasse na cova que estava aberta no dito mosteiro, por não ir a dita defunta vestida com hábito de S. Francisco (como os frades exigiam), senão no lençol novo, como ela foi”.
Obviamente que a responsabilidade de tudo foi imputada ao advogado Diogo Fernandes, preso ao início de abril e que acabou por morrer 8 meses depois, em 9.12.1620, nos cárceres da inquisição de Coimbra.
Diogo morreu, mas o processo não parou e a sentença foi dada 18 anos depois, em 31.10.1638!!! E foi do teor seguinte:
-…Não sendo a prova bastante para condenação, o absolvem (…) e declaram que aos seus ossos se pode dar sepultura eclesiástica e fazer-se por sua alma sufrágios da igreja (…) os bens que lhe foram sequestrados, tiradas as custas dos autos, sejam restituídos a seus herdeiros.
Humor negro, certamente. Pois, onde estariam os bens, 18 anos depois?! E os herdeiros? Obviamente que tinham abandonado a terra que lhe foi madrasta e tinham ido dar vida a outros chãos. Dos 6 filhos que tinha, referência para o Luís Fernandes. Contava uns 4 anos quando o pai foi preso e ele foi levado para a Galiza onde vivia a maior parte da família. Em 1641 casou com Ana de Miranda Ayala, que morreu 3 anos depois. Casou segunda vez, em 1651 com uma filha de Francisco Lopes Capadoce, recebendo o fabuloso dote de 8 mil ducados de prata. A sua morada era então na cidade de Sevilha e o seu trato era a cobrança dos impostos das salinas da Andaluzia, que arrematou na Corte de Madrid. A propósito, diremos que na Espanha de então este sector de atividade era dominado pelo nosso advogado e pelo Fernando Montesinos, originário de Vila Flor.
Mas, os sonhos de Luís eram ainda maiores e, em 1657, liquidou o negócio do sal e foi a Madrid onde arrematou a “alcabala dos 3% de Córdoba”. Em 1663, porém, depois da sua mulher, sogro
e outros membros da família, o poderoso “hombre de negócios” Luís Fernandes Pato, foi preso pela inquisição de Castela. Ao cabo de 7 anos de cativeiro saiu absolvido! Tinha 54 anos.
Uma nota final: Os processos referenciados são deveras interessantes para o estudo do desenvolvimento urbano da cidade de Vila Real e moradas da gente cristã-nova.
Notas e Bibliografia:
1-DIOS, Angel Marcos de – Índice dos Portugueses en la Universidad de Salamanca, jn: Brigantia, vol. XII, nº 3, 1992.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 3705, de Joana Fernandes.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 6074, de Violante Dias.
4-ANTT, inq. Coimbra, pº 7374, de Diogo Fernandes Pato.
5-Francisco Lopes Capa doce nasceu em Vila Real em 1600 e morreu em Toledo em 16.12.1665.
ALMEIDA, A. A. Marques de – Dicionário dos sefarditas Portugueses Mercadores e Gente de Trato, Campo da Comunicação, Lisboa, 2009.
SCHREIBER, Marcus – Marranen in Madrid,  1600 – 1670, Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1904,  pp.  88- 95.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães