António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Luís Álvares Nunes (n. Vinhais, 1650)

Luís Álvares Nunes nasceu em Vinhais pelo ano de 1650, sendo filho de Baltasar Mendes, mercador, e Branca Nunes. Trata-se de uma família numerosa e que deu largo “pasto” ao “fero monstro” da inquisição.
Com efeito, andava Luís pelos 8 anos quando levaram presos para Coimbra os seus pais e 3 de seus irmãos: Francisco Cardoso, Leonor Marcos e Filipa Nunes.
Posteriormente, a espaço, foram presos outros 6 irmãos e apenas a irmã Ana Maria Nunes escapou da prisão porque foi para Roma com o seu marido, Duarte Pereira. E a saga da família nas prisões do santo ofício haveria de continuar pelas gerações futuras, como aconteceu com uma filha, Catarina da Costa e mais de meia dúzia de netos, nomeadamente os 5 filhos de sua filha Maria Lopes casada com João Lopes Pimentel e muitos sobrinhos e primos.
Tal como continuaram as fugas de membros da família para fora do reino, como aconteceu com Francisco Ramos da Silva e sua mulher Luísa Maria Perpétua, primos entre si, sobrinhos de Maria Lopes, primos em 2º ou 3.º grau de Luís Álvares Nunes, que foram dar vida a chãos de Inglaterra  (1)
Contava uns 30 anos quando, em 1680, Luís Álvares casou com Maria Lopes, de Vinhais, filha de Jerónimo Álvares e Francisca Rodrigues a qual lhe deu 13 filhos, 6 dos quais faleceram solteiros. A casa de morada seria na zona muralhada da vila, encostada à cadeia e, entre os seus bens, contava-se uma vinha, no sítio do Redondo.
Por 1702, faleceu Maria Lopes e Luís tratou de casar novamente, agora na freguesia de Rebordelo, com Clara Nunes, filha de Luís Álvares de Sá e Maria Marques, 25 anos mais nova do que ele. Deste segundo casamento, temos notícia do nascimento de duas filhas, uma das quais se chamou Catarina da Costa, nascida por 1707 e que viria a casar com Luís Henriques Tota, mercador, o patriarca de uma poderosa família de banqueiros. Também ela seria presa pela inquisição, em 1754, juntamente com sua filha Clara Maria. (2)
Vinhais… Rebordelo… A economia nacional e europeia entrava então no chamado “ciclo do tabaco”, assistindo-se a uma autêntica corrida no que respeita à distribuição do produto. Falta ainda fazer o estudo sobre a participação dos “homens da nação” de Trás-os-Montes nessa “corrida”, não apenas em Portugal mas também em Espanha e noutros países da Europa. Daria tal trabalho uma boa tese de doutoramento. Os dados que temos, se bem que muito parcelares, permitem-nos, porém, afirmar que eles tiveram um papel de grande relevo e, entre todos, sobressai o nome de Diogo (Moisés) Lopes Pereira (1699-1759), condecorado com o título de Barão de Aguilar, pelo arquiduque da Áustria, país onde teve o monopólio da venda do tabaco ao longo de 16 anos. (3)
Pois, também o nosso biografado se meteu na “corrida” abandonando Vinhais e Rebordelo e rumando à cidade do Porto onde arrendou ao contratador geral dos tabacos, Manuel de Aguilar, (4) um estanco na praça da Ribeira.
No entanto, o nosso estanqueiro do tabaco, não largaria os negócios tradicionais de estopas, sedas, baetas… e a atividade prestamista, a avaliar pelo inventário de seus bens. Com efeito, para além das fazendas existentes na loja, tinha na alfândega, chegados de barco e à espera de despacho, “6 fardos de baetas, 3 de cochinilha e 3 de cores” que valiam um conto e 500 mil réis e para o Brasil tinha enviado “uma carregação de panos de linho e um manto de barbadilho”. Tal como tinha em seu poder um cordão de ouro de uma pasteleira do Porto, a quem emprestara 20 mil réis.
Significativo das suas relações com Manuel de Aguilar, a quem estava devendo 300 mil réis, era o facto de ter “em sua casa 20 varas de estopa que são de Branca Teresa, (mulher de Manuel Aguilar), que tinha em sua casa para lhe remeter para Lisboa, que tinham vindo da tecedeira.
Em meados de junho de 1710, Luís Álvares foi preso pela inquisição, com base em denúncias feitas por pessoas de Lebução, Vinhais e Bragança que se encontravam presas e escrevendo de Rebordelo, o abade António Barbosa de Almeida, dizia:
- Ainda não estou muito capaz para lhe dar novas minhas e da terra que está em miserável estado. – Certamente que o “miserável estado” significava práticas de judaísmo.
Enquanto preparavam a condução para o tribunal de Coimbra, o prisioneiro foi metido em casa do familiar da inquisição Moura Carvalho, morador em “Vila Nova do Porto”. E tendo consigo 3 moedas de ouro, Luís entregou-as ao “carcereiro” para que as desse a sua mulher. Este porém, entregou-as ao depositário dos bens que foram sequestrados, não sem que antes descontasse uns tostões por despesas efetuadas.
Metido na cadeia do santo ofício, Luís Álvares logo começou a confessar seus pecados, dizendo que fora instruído na lei de Moisés 30 anos atrás pelos seus sogros, Jerónimo Álvares e Francisca Rodrigues, que lhe terão dito “que se queria casar com sua filha, havia de crer e viver na lei de Moisés”.
E vários dos seus pecados estavam exatamente relacionados com a morte do sogro, acontecida por 1698, em que ele e 7 filhos do defunto, seus cunhados, se juntaram para fazer jejuns judaicos por alma do falecido. E também o seu sobrinho José Rodrigues, o Traça, de alcunha, “pediu a ele confitente alguns vestidos do dito Jerónimo Álvares, para fazer jejuns judaicos por sua alma”. (5)
Pecado semelhante cometeu-o quando uma Branca Cardosa, a sanjoanina de alcunha, “lhe foi pedir um pouco de baeta para uma saia, e dizer que lhe pagaria em jejuns judaicos”.
Aliás, uma das denúncias que estiveram na base da sua prisão foi feita pelo citado José Rodrigues, o Traça, nos seguintes termos:
- Haverá 8 anos, em Vinhais, em casa de seu tio materno Luís Álvares Nunes, viúvo de Maria Lopes, agora casado com Clara Nunes, se achou com (…) na ocasião Luís Álvares pediu para fazerem um jejum judaico por alma de sua mulher maria Lopes e para isso lhes deu 6 vinténs a cada um. (6)
Não vamos continuar com as confissões de Luís Álvares, muito repetitivas, aliás, de declarações de judaísmo com seus familiares, conhecidos e amigos. E porque logo confessou e pediu perdão, seria condenado em penas espirituais, ao cabo de um ano. Resta dizer que, no seguimento da sua prisão, também a sua mulher, Clara Nunes e a sua filha Maria Nunes, foram igualmente processadas pela inquisição de Coimbra, saindo os três no mesmo auto da fé celebrado em 8.6.1711. (7)

Notas:
1- ANDRADE e GUIMARÃES  - Jerónimo José Ramos  ( 1726-1754)  in:  “ Jornal Nordeste  - de 22 Novembro de 2016  -p. 27
2-ANTT, inq. Lisboa, pº 2622, de Catarina da Costa; pº 2449, de Clara Maria. Nascida em Rebordelo, Catarina e o marido moraram no lugar de Peleias de onde se transferiram para a freguesia do Sacramento, em Lisboa e depois para Alhandra, onde tinham uma loja de fazendas, quando a prenderam. Mais tarde, a família constituída por Luís Tota e Catarina da Costa foram para França, fixando-se em Bordéus. Adotaram publicamente o judaísmo, tomando Catarina o nome judeu de Sara e Luís o de Abraham.
3.ANDRADE e GUIMARÃES, Um administrador do Tabaco na Áustria, in: jornal Terra Quente de 15.10.2001.
4-IDEM, Francisco Lopes Pereira (1617-1683) rendeiro dos milhões, in: jornal Nordeste nº 190, de 3.1.2017.
5-Ainda hoje, em muitas localidades de Trás-os-Montes, as famílias se sentem na obrigação de vestir uma pessoa com a roupa dos defuntos, para que ele não ande nu na outra vida. Será costume herdado dos judeus?
6-ANTT, inq. Coimbra, pº 9119, de Luís Álvares Nunes.
7-IDEM, pº 3241, de Clara Nunes; pº 6379, de Maria Nunes, casada com João Lopes Pimentel.
 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - João Lopes Dias (n. Sambade, 1631)

Nascido em Sambade, concelho de Alfândega da Fé, por 1631, João Lopes Dias tinha uns 10 anos quando a inquisição lançou na terra uma eficiente operação de “limpeza do sangue da infecta nação”. Uma das pessoas que então foram levadas presas para Coimbra foi sua mãe, Brites de Leão, (1) em setembro de 1640, juntamente com sua irmã Filipa Vaz. A “manada” foi ainda composta com outras 6 mulheres, conduzida até Coimbra pelo familiar Francisco de Gouveia Pinto, homem da nobreza de Torre de Moncorvo.
Não sabemos se foi por essa causa mas o facto é que o pequeno João foi então levado para Madrid por seu tio materno, Francisco Vaz de Leão, casado com Isabel Rodrigues, igualmente fugidos de Sambade, acusados de ter “sinagoga” em sua casa. Isabel era irmã do grande mercador e argentário António Rodrigues Mogadouro. (2) E aqueles tios o introduziram então no ensino da lei judaica.
Aliás, em Madrid estavam ainda estabelecidos dois tios paternos de João: Luís Dias e Francisco Dias, nascidos em Vinhais. Esta era também a terra natal de seu pai, André Lopes Dias, nascido por 1607, também ele aprisionado pela inquisição de Coimbra em 1647, quando viviam junto a Melgaço. Saiu condenado em cárcere e hábito no auto da fé de 10.7.1650, posto o que transferiu a sua morada para a cidade de Braga onde negociava em panos de linho e seda. Posteriormente rumou a Madrid onde, em 1646 o encontramos negociando em panos de linho. (3)    
Para além de Madrid, João Lopes Dias morou em Valhadolid e na igreja maior desta cidade foi crismado. E se a ida de João para Castela coincidiu com a prisão da mãe, também o seu regresso a Portugal, 10 anos depois, aconteceu quando o pai saiu das masmorras da inquisição. Não regressou foi à antiga morada de sua família, em Sambade. Aliás, esta era já uma terra “queimada”, para os hebreus, que dali fugiram todos.
Possivelmente voltou para casar com Helena Correia, natural de Vila Flor, filha de um médico de Lebução, chamado Pedro Dias da Mesquita e sua mulher Violante Henriques, de Vila Flor. Uma das irmãs de Helena Correia chamou-se Isabel Henriques, (4) a qual casou com Rodrigo Vaz de Leão, primo de João Lopes Dias, filho de seu tio materno António Vaz de Leão.
João e Helena viveram algum tempo em Braga mas breve estabeleceram morada em Lebução. Profissionalmente, João afirmava-se como mercador mas… a partir do ano de 1659, quando a inquisição intensificou a repressão em Trás-os-Montes, a sua principal fonte de rendimentos seria outra: a de passador de judeus para Castela. Obviamente que isso inquietava os inquisidores de Coimbra que, em setembro de 1660, escreviam para o comissário estabelecido na sede do concelho, dizendo:
- Fazemos saber ao senhor inquisidor Francisco Miranda Henriques, abade de Monforte de Rio Livre e comissário do santo ofício, que nesta mesa há informação que um João Lopes Dias e Manuel da Fonseca, ambos moradores no lugar de Lebução, passaram e ajudaram a passar para o reino de Castela muitas a pessoas da nação dos cristãos-novos que deste reino iam fugindo no mesmo tampo que nas terras onde moravam se faziam prisões por parte do santo ofício. E porque convém ao serviço de Deus e do santo ofício saber-se averiguadamente nesta inquisição a verdade do acima dito, cometemos a vossa mercê… (5)
Como ordenado, o comissário abriu um processo sumário, deslocando-se por várias aldeias do concelho, acompanhado pelo padre Apolinário Luís, reitor da freguesia da Castanheira, no papel de escrivão, ouvindo as mais diversas testemunhas. Uma delas foi Baltasar de Barros, morador em Águas Frias, capitão da companhia de milícias dos lugares da raia, a quem competia exatamente fiscalizar a fronteira. Veja-se um pouco do seu testemunho:
- Hoje, 14 de janeiro de 1661 (…) se encontrou com João Lopes Dias, morador em Lebução, homem da nação (…) e vindo pelo mesmo caminho de João Lopes Dias, lhe cometeu a ele testemunha que quisesse ajudar a passar para Castela algumas pessoas e que elas haviam de dar algum dinheiro e que seria bom ganhássemos 40 ou 50 mil réis por passar algumas pessoas para o reino de Castela (…) Por dizer que dali a 4 ou 5 dias tinha já determinado passar a dita gente, ele testemunha lhe disse que antes de 4 ou 5 dias lhe daria a resposta…
Não sabemos que resposta lhe deu, mas sabemos que o mesmo capitão de milícias contou outras cenas acontecidas com pessoas fugidas que passaram a fronteira com a ajuda do passador João Lopes Dias. Vejamos mais um pouco do seu depoimento:
- Falando na passagem deles com o dito João Lopes Dias, este lhe disse que também fora ajudá-los a passar. E que tinha notícias várias e muitas do dito João Lopes Dias e Manuel da Fonseca (…) tinham passado para os ditos reinos de Castela e Galiza muita gente da nação desde o ano de 1659 a esta parte…
Uma história que foi contada por várias testemunhas é verdadeiramente exemplar, no que respeita à intervenção de pessoas estranhas e comportamentos oportunistas. Contaram que três cristãos-velhos da aldeia de S. Vicente terão contratado a passagem de um cristão-novo e sua mulher por 16 patacas. Porém, chegada a noite e no ato da passagem, sentindo-lhe mais dinheiro, lhe tomaram 90 patacas e a espada que levava. Tempos depois, indo João Lopes Dias a Castela e encontrando o dito cristão-novo no lugar de Terraso, junto à fronteira, este lhe contou o sucedido. E terão combinado a recompensa pela recuperação do que foi roubado. De regresso a Portugal, na sede do concelho, João Lopes Dias mexeu os cordelinhos e conseguiu que os meliantes fossem metidos na cadeia e restituíssem as 90 patacas e a espada.
Do sumário dos passadores de Lebução não nada de concreto resultaria. De contrário, continuaram as prisões de cristãos-novos de Lebução acusados de judaísmo. E antes que fossem também prendê-lo, João Lopes Dias pegou na mulher e ambos foram apresentar-se na inquisição de Coimbra, ao início do mês de Julho de 1662. Ambos confessaram as suas culpas, mostrando-se arrependidos e pedindo perdão. Foram sentenciados em penitências espirituais, tendo comparecido vestidos de sambenito no auto da fé celebrado em 9.7.1662. (6)
O casal tinha 1 filho e 3 filhas, uma das quais se chamou Violante Henriques e tinha 5 anos quando o pai se apresentou na inquisição de Coimbra. Vamos encontrá-la, pelo ano de 1691, casada com Manuel de Santiago, ou de Almeida que, em julho de 1662, passou também pelo mesmo tribunal, contando então 16 anos. Ignoramos, porém, se ali se cruzou com o nosso biografado. Mas cruzaram-se, de certeza, por 1691, Em Agrochão, Bragança, conforme testemunho de seu filho, Francisco de Almeida: (7)
- Disse que, haverá 20 anos, em uma horta das casas de seus pais, Manuel de Almeida, já defunto, casado segunda vez com Violante Henriques, já defunta, ele de Agrochão e ela de Lebução, com ele e com João Lopes Dias, tratante, casado com Helena Correia, pais de Violante Henriques, natural de Lebução e agora ausente em Castela…
Notas
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 2218, de Brites de Leão.
2-ANDRADE e GUIMARÃES, A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, ed. Vega, 2007. Francisca Lopes era outra irmã de Isabel, também moradora em Sambade e então levada prisioneira para a inquisição de Coimbra. Depois de libertada foi igualmente a morar para Madrid e, sendo já viúva, foi para Bordéus. 
3-SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600 – 1670, p. 94, Franz Steiner Verlag Stuttgart.
4-Rodrigo Vaz de Leão nasceu em Vila Real e ali morou, casado com Isabel Henriques. O casal transferiu a residência para Lisboa, abrindo uma loja comercial na Rua Nova. Prosperavam os negócios quando, em 1663, a inquisição os prendeu. Isabel acabou queimada na fogueira do auto da fé de 4.4.1666. Rodrigo, foi penitenciado com cárcere e hábito perpétuo, e mais tarde emigrou para a França. Maria Henriques, uma filha do casal, viria a casar com Gaspar Mendes Cespedes, de Carrazedo de Montenegro e ambos conheceriam também as cadeias da inquisição.
5-ANTT, inq. Coimbra, processo 9935, sumário dos passadores de Lebução.
6-IDEM, pº 9346, de João Lopes Dias; pº 8573, de Helena Correia.
7-IDEM, pº 2846, de Manuel de Santiago ou de Almeida; pº 7118, de Francisco de Almeida.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Manuel da Fonseca (n. Lebução, 1614)

Ao início da segunda metade do século de 600, assistiu-se a uma das mais temerosas ofensivas da inquisição em Trás-os-Montes, ofensiva que atingiu a generalidade das comunidades hebreias. (1) Em consequência, verificou-se uma vaga de fugas para Castela até então nunca vista. E como a Espanha e Portugal andavam então em guerra, a fronteira encontrava-se muito patrulhada e os caminhos da fuga tornavam-se muito perigosos.
Acresce que, por esse tempo, em Portugal se registou ainda um aumento extraordinário no número de comissários e familiares da inquisição, o que significa, por si só, uma vigilância muito mais apertada. (2)
Neste ambiente, ganharam importância os “passadores de judeus” e criaram-se verdadeiras “redes”, algumas apoiadas mesmo em homens da nobreza e clérigos, como aconteceu em Vimioso. (3) Porém, terá sido o corredor de Lebução a mais concorrida entre as rotas de fugas em Trás-os-Montes. E Manuel da Fonseca seria o mais famoso “passador de judeus”, atuando nessa rota, acompanhado principalmente por João Lopes Dias.
Por outro lado, neste ambiente de permanente espionagem, formavam-se autênticas “quadrilhas” de cristãos-velhos que, vigiando as fugas, saíam ao caminho dos fugitivos e, em troca do silêncio, os chantageavam extorquindo-lhe grossas maquias de dinheiro, como aconteceu com Helena Rodrigues, de Mirandela que foi “barrada” na fuga, por um grupo de 30 homens a quem ela deu 30 000 réis, conforme relatou o capitão de milícias daquela região de fronteira, Baltasar de Barros, no sumário conduzido pelo comissário da inquisição, abade de Monforte de Rio Livre, o licenciado Francisco de Miranda Henriques. (4)
O capitão não soube dizer qual foi o passador de Helena Rodrigues e menos ainda o nome dos 30 “assaltantes”, até porque as viagens se faziam sempre de noite. Mas soube dizer que em setembro p. p. Manuel da Fonseca passara um grupo de 5 rapazes do Porto ou de Lisboa. E confessou que ele próprio foi convidado a ajudar a passar um grupo de fugitivos, com promessa de ganhar 40 ou 50 mil réis. Para se fazer uma ideia deste valor, refira-se que a jeira normal de um homem era então de 100 réis.
E contou que dias atrás, Manuel da Fonseca esteve passando uma mulher para a Galiza. E estando perto da fronteira amanheceu, pelo que não puderam “dar o salto”. Foram esconder-se e passar o dia em casa do ferreiro da aldeia de Dadim, esperando a noite seguinte para atravessar a raia. O caso foi confirmado por Sebastião de Miranda, do lugar de Sanfins da Castanheira, nos seguintes termos:
- No mês de novembro fora Manuel da Fonseca de noite perdido na neve dar a um lugar da raia que se chama Dadim e que viu levava 3 cristãos-novos de Lamego, com os quais se recolheu em casa de António Fernandes, ferreiro do dito lugar, ao qual deram 12 mil réis, pelos recolher e ocultar em casa um dia e uma noite, enquanto se desfazia a neve.
Das muitas denúncias contra o nosso passador, registemos apenas mais uma, feita pelo padre Gonçalo Lopes:
- Manuel da Fonseca, de Lebução, passava muitos cristãos-novos para a Galiza e os ia buscar à cidade do Porto e os trazia a sua casa, de onde os levava para Castela e de um ano a esta parte deixou o trato de mercador para tratar de passar os ditos cristãos-novos para Castela.
Obviamente que Manuel da Fonseca foi mandado prender, sendo entregue na inquisição de Coimbra em 3.6.1662. (5) Tinha 48 anos de idade, bastante fazenda e uma vida repartida por muitos lugares de Portugal e Castela. Mas vejamos alguns dados da sua biografia.
Nascido em Lebução por 1614, foram seus pais António Salgado, mercador e Isabel de Alvarenga, ambos naturais e moradores na mesma aldeia. Fez-se mercador e, por mais de 2 anos, andou por Espanha comprando e vendendo o que lhe aparecia e esteve em Madrid, Sevilha, Jaén, Granada, Córdova… mas seriam as terras da Galiza as mais percorridas em constantes viagens de negócio.
Teria já uns 39 anos quando casou, com Leonor Nunes, filha de um famoso médico estabelecido em Chaves, o Dr. Manuel Mendes. (6) O casal não teria filhos, mas o Manuel fora nomeado curador de um cunhado que endoideceu, viúvo de sua irmã Catarina e tutor dos dois sobrinhos filhos daqueles. Haveria, pois, bastante agitação em sua casa e trabalho para uma criada de servir a quem pagava a soldada de 2 500 réis por ano.
A morada de Manuel da Fonseca situava-se junto ao Cruzeiro e, além da residência de 2 pisos, tinha anexas casas térreas que serviam de lagar e um forno. Atrás das casas tinha metade de uma cortinha e nela um pedaço de vinha e lameiro. Ao lado era a casa de sua irmã Branca da Fonseca, com outra metade da cortinha. Como a irmã morava em Lamego, onde casara, ele é que tomava conta de tudo.
Dissemos atrás que o biografado era mercador. Devemos acrescentar que ele negociava sobretudo linhos e sedas, mas também produtos tão diversos como cera, linhas de Guimarães, sedas de cavalo ou “caixas de confeitos do Porto”. E para as viagens e negócios tinha dois machos, uma mula e um jumento.
No entanto a sua casa agrícola era bem forte, com muitos lameiros, terras de centeio e vinhas que produziam uns 180 almudes. E, além dos bois e vacas que tinha em seus lameiros e utilizava na lavoura, ele tina uma dezena de bois que trazia arrendados a vários lavradores e lhe pagavam em alqueires de centeio. Esta é uma nota interessante para o estudo dos costumes e ainda hoje se diz: “andas aí a trabalhar como um boi de renda”.
Como dizia o padre Gonçalo, Manuel da Fonseca deixou de ser mercador para se tornar passador de judeus. E sendo esta uma atividade muito arriscada, facilmente se explica o verdadeiro arsenal de armas que lhe sequestraram quando o prenderam: 2 escopetas, 1 bacamarte, 2 pistolas, 2 espadas e “mais um corpo de armas, a saber: peito, espaldar e morrião”.
Contudo, não seria preso como “passador de judeus” mas por culpas de judaísmo, heresia e apostasia. E logo que se viu preso, ele começou a confessar as suas culpas e delas pedir misericórdia e perdão. Disse que foi instruído na lei de Moisés por sua mãe e denunciou quantidade de parentes e amigos. Nota de interesse: o inquisidor de Coimbra que conduziu o seu processo foi o licenciado Manuel Pimentel de Sousa, natural de Vimioso.
Terminou com uma pena relativamente leve: cárcere e hábito a arbítrio. E do seu regresso a casa, em novembro de 1664, ficou a seguinte certidão:
- Martinho Rodrigues Freitas, confirmado neste lugar de Lebução, certifico que Manuel da Fonseca e sua mulher Leonor Nunes; Lopo Nunes e sua mulher Isabel Cardosa; Branca Gomes; Antónia Henriques; Beatriz Lopes e Josefa da Costa, todos moradores em Lebução e se me apresentaram com as cartas dos senhores inquisidores de Coimbra (…) Assim mais se me apresentou uma carta que trazia Baltasar da Costa e me constou que morreu no caminho e outra que trazia Emerência da Costa, que morreu já neste lugar.
Notas:
1-Só de uma vez, em 22 de fevereiro de 1651, foram mandadas prender cerca de 120 pessoas de Mogadouro – ANTT, inq. Coimbra, Decretos de prisão, liv. 71.
2-A título de exemplo, veja-se o documento seguinte:- Certidão de presunção de fuga. Manuel do Canto, notário do santo ofício desta inquisição de Coimbra, certifico e dou fé que (…) vi o caderno das denunciações e mais papéis pertencentes aos cristãos-novos da cidade de Bragança e vila de Vinhais e seus arredores e nele (…) estão algumas cartas de Luís Figueira Bandeira, familiar do santo ofício (…) que corre com as prisões e diligências do santo oficio e delas consta que avisara a mesa desta inquisição que muitas pessoas da gente da nação das ditas terras de Lebução tinham fugido para Castela depois que nas ditas partes se começaram a fazer as prisões do santo ofício, e outras muitas andavam abaladas e vendendo apressadamente suas fazendas e se entende ser para também fugirem, com medo e receio de serem presas pelo santo ofício… - ANTT, inq. Coimbra, pº429, de Antónia Cardoso. 
3-ANDRADE e GUIMARÃES - Nas Rotas dos Marranos de Trás-os-Montes, pp. 79-165, Âncora Editora, Lisboa, 214.
4-ANTT, inq. Coimbra, pº 9935: - Disse que tivera notícia que haveria 20 dias que uma mulher da nação do lugar de Mirandela, que lhe parece se chamava Helena Rodrigues, se passara para a Galiza por esta raia, e indo na passagem de Lebução, deram com ela alguns 30 homens e que para que a deixassem passar lhe dera 30 mil réis…
5-Na mesma ocasião, foram presos uns 15 cristãos-novos de Lebução, acusados de judaísmo, constituindo esta a maior operação de limpeza da heresia judaica registada naquela aldeia.
6-O Dr. Manuel Mendes seria natural de Lebução e assim aparece registado nos livros de matrícula da universidade de Salamanca, frequentando Gramática, Artes e Medicina, entre 1618 e 1629. Foi casado com Brites Nunes, de Vinhais em primeiras núpcias e depois com Isabel Pereira.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - José Nunes (n. Freixo Espada à Cinta, 1696)

Nasceu em Freixo de Espada à Cinta pelo ano de 1696, no seio de uma família cristã-nova com largo historial na inquisição que, poucos anos antes, tinha queimado uma sua tia materna, chamada Marquesa da Fonseca. (1) Francisco Nunes era o nome do seu pai, que tinha a profissão de torcedor de sedas. Faleceu antes que o filho completasse 14 anos, altura em que este seria iniciado na lei de Moisés por sua mãe, Filipa da Fonseca, a qual era originária de Trancoso e tinha 16 anos quando, em 1667, se apresentou na inquisição de Coimbra, onde confessou suas culpas, posto o que foi mandada de regresso a casa. Passados 17 anos, em 1684, morando em Freixo e sendo já casada, foi presa pelo mesmo tribunal, saindo penitenciada em cárcere e hábito perpétuo, no ano seguinte. (2) Em Abril de 1735 os inquisidores de Coimbra decretaram que fosse novamente presa. Tal não aconteceu porque Filipa era já falecida.
Chegado à idade adulta, certamente por viver em permanente constrangimento, apontado como judeu e filho de judeus, José Nunes abandonou Freixo de Espada à Cinta e, depois de estar cerca de um ano em Murça de Panoias, dirigiu-se para a cidade do Porto e dali embarcou para o Brasil. Foi ter ao Ribeirão do Carmo, região da Baía, onde as minas de ouro, recentemente descobertas, exerciam forte atração. Não foi nas minas que ele começou a trabalhar, mas como caixeiro de seu parente Francisco Ferreira Isidro. (3)
Com a prisão de F. Isidro, em 1726, o caixeiro mudaria de ofício, metendo-se também na aventura da exploração mineira. E Talvez por chegar a notícia da descoberta de diamantes nas minas de Cerro Frio, para lá se dirigiu o nosso Freixenista que, no “arraial” mineiro, adquiriu uma casa bastante boa, a julgar pelo preço de compra – 166 400 réis. Comprou também dois escravos (um macho e uma fêmea), por 480 000 réis. Não sabemos quem lhe vendeu os escravos mas ele dá-nos notícia de um homem, originário de Vila Nova de Foz Côa, com familiares em Freixo de Espada à Cinta que, naquela região do Brasil era “tratante de negros” – Francisco Fernandes Camacho. (4)
E estes, casa e escravos, eram os bens que ele tinha quando o prenderam e arrolaram suas pertenças. (5) Curioso que não tinha ouro nem diamantes mas tinha uma razoável dívida para com Rodrigo Nunes – 500 oitavas de ouro! E perguntado sobre a sua profissão, dizia-se “vendeiro”.
José Nunes foi preso em outubro de 1733, ficando no Rio de Janeiro a aguardar embarcação para Lisboa, onde chegou ao findar do mês de agosto do ano seguinte.
Metido na cadeia, logo entrou de confessar que fora doutrinado por sua mãe e que, embora se apresentasse publicamente como cristão, ele seguia os preceitos da lei de Moisés sempre que podia. E logo acertou nas pessoas que o tinham denunciado e que foram: Francisco Gabriel Ferreira e Leonor de Campos Currales. (6) Não acertou em sua tia, Filipa Mendes, o que foi desculpado pelos inquisidores do modo seguinte:
- A diminuição de sua tia Filipa Mendes (é compreensível) porque, conferidas e examinadas as genealogias, consta não ser sua tia direita, se pode presumir esquecimento, e principalmente no réu que não ocultou os parentes mais chegados.
Na verdade, no processo de José foi também incluída a genealogia da mesma tia. E se foram compreensivos nesta “diminuição”, a verdade é que ele denunciou muitas pessoas que com ele se tinham declarado judeus e feito cerimónias judaicas, “pessoas conjuntas e não conjuntas e com muitas das quais não estava indiciado”- como os inquisidores também anotaram.
Na lista dos denunciados por José Nunes contou-se a sua irmã, Ana Nunes e o marido desta, Manuel Soares, Baeta, de alcunha. Estes haviam sido presos pelo santo ofício de Coimbra em Junho de 1725. Manuel faleceu mesmo nos cárceres da inquisição, em 30.5.1726 e Ana saiu penitenciada no auto público da fé celebrado um mês depois. (7)
À data da prisão, o casal tinha dois filhos, chamados, respetivamente, Francisco e José Soares, que ficariam “ao Deus dará” pois que, com a prisão dos pais e o sequestro dos bens, a casa de morada foi cerrada e selada. Não sabemos que idade tinha então o Francisco, que seria o filho varão mais velho. E dele nada mais sabemos, a não ser que, em 1734, era já falecido e que falecera em Amesterdão, onde viveu como judeu e com o nome hebreu de David. O José, por seu turno, contaria uns 6 anos e podemos seguir o seu percurso de vida até aos 20 anos.
Por agora acompanhemos Ana Nunes no regresso a Freixo de Espada à Cinta, depois que saiu da prisão de Coimbra. Vendo-se viúva e sem eira nem beira, pegou no(s) filho(s) e abandonou o país, refugiando-se em Londres. Ali, ela aderiu abertamente ao judaísmo, tomando o nome de hebreu de Sara. E tratou de dar uma educação judaica ao(s) filho(s). Assim, sabemos que o José foi circuncidado, com o nome judeu de Daniel, e passou a frequentar a sinagoga e a aprender a lei de Moisés.
Na Inglaterra permaneceram por 5 anos. Dirigiram-se depois para França, instalando-se na cidade de Bordéus. Ali viveram 3 anos e Sara casou segunda vez com um judeu público chamado David. Nessa ocasião, Daniel Soares decidiu-se a procurar vida noutras paragens, dirigindo-se para a cidade Amesterdão.
Da vida de José Soares na grande metrópole holandesa, durante 3 anos e meio pouco sabemos. Porventura não conseguiria integrar-se plenamente na “nação hebreia” e encontrou inesperado apoio em uma mulher católica e no frade agostiniano que ali conheceu, chamado frei Joaquim Sarmento. Este o terá convencido a regressar à religião católica em que foi batizado. E os dois resolveram abandonar a Holanda e meter-se a caminho de Lisboa, onde chegaram dias antes do Natal de 1739.
Nessa mesma noite José Soares foi apresentar-se no tribunal da inquisição onde contou a sua vida de judeu, que fora batizado em Freixo de Espada à Cinta e cresceu e foi educado como cristão até à idade de 6 anos; que depois fora instruído pelos mestres judeus e como judeu frequentava as sinagogas, em Londres, Bordéus e Amesterdão. Dizia-se inspirado pelo Espírito Santo, pedia perdão de suas culpas e prometia ser bom cristão. (8)

Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 7885, de Marquesa da Fonseca. Anos antes haviam sido processadas a mãe e a irmã desta, chamadas respetivamente Beatriz da Fonseca e Maria da Fonseca.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 4511, de Filipa Fonseca.
3-ANDRADE e GUIMARÂES, jornal Nordeste nº 1087, de 12.9.2017.
4-Francisco Fernandes Camacho era natural de Fozcôa, casado com Luísa Maria Pereira, de Mogadouro. O casal morou muitos anos no Brasil, onde lhe nasceram 4 filhas e um filho. Começando a inquisição a prender pessoas das suas relações, mandou a mulher e os filhos regressar ao reino e a Vila Nova de Fozcôa, onde sua mulher foi presa, acabando queimada pela inquisição de Coimbra. Sabendo-se denunciado e pressentindo que seria também preso, embarcou para o reino. Chegado aos Açores, foi apresentar-se ao bispo de Angra, dizendo que vinha do Brasil apresentar-se na inquisição de Lisboa mas que se encontrava doente e ficaria nos Açores até se curar. Trazia, inclusivamente, um papel escrito onde contava tudo isso, pedindo ao Bispo que o enviasse para o tribunal de Lisboa. Ele, porém, em vez de rumar a Lisboa, tomaria um barco, fugindo para a Inglaterra. Tempos depois mandou ordem para que os filhos fossem ter com ele. Com esse objetivo, apanharam um batel na Ribeira de Lisboa e dirigiam-se para um barco fundeado ao largo do Tejo. Não embarcaram porque se levantou uma tempestade e o batel voltou para terra. A história foi contada por Francisca Lopes, uma das filhas de Francisco Fernandes Camacho, que foi depois apresentar-se na inquisição de Lisboa. – ANTT, inq. Lisboa, pº 3784, de Francisca Lopes.
5-ANTT, inq. Lisboa, pº 430, José Nunes.
6-Leonor Campos Currales foi presa juntamente com 3 irmãs: Maria, Mariana e Violante. Processada também na mesma altura foi sua cunhada, Ana Henriques, natural de Ventozelo, mulher de seu irmão Diogo Campos Currales. Eram filhos de Diogo Currales, cirurgião, originário de Castela e de Maria de Campos, natural de Foz Côa. O sobrenome “Currales” tê-lo-ão tomado da terra da naturalidade do seu pai.
7-IDEM, pº 6131, de Ana Nunes; pº 9671, de Manuel Soares, o Baeta.
8-IDEM, inq. Lisboa, pº 8020, de José (Daniel) Soares.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Manuel António Monteiro (n. Freixo E. Cinta, 1647)

Historicamente, a família Monteiro Carvalho é uma das mais nobres de Freixo de Espada à Cinta. Remontando ao século de 500, ali vivia o casal constituído por Diogo Garcia de S. Miguel e Isabel Monteiro Carvalho, que foram os pais de António Monteiro Carvalho, que vivia de sua fazenda e tinha o emprego de guarda a cavalo das alfândegas e portos secos. Era um emprego de importância estratégica pois o porto e alfândega de Freixo registavam então um extraordinário movimento de pessoas e mercadorias, até porque nesses anos os dois países ibéricos estavam unidos debaixo do mesmo trono, sendo as feiras de uma e outra banda da fronteira frequentadas por mercadores de ambos os países. E foi por causa de facilitar a fuga de “judeus” para Castela que o guarda António Monteiro Carvalho foi preso pela inquisição, em 1629.
António era casado com Catarina Pereira Varejão e estes foram os pais de outro António Monteiro Carvalho (1) que, criando-se em Freixo, foi fazer vida em Madrid e Lisboa, na casa do “fidalgo D. Álvaro de Sousa”. (2) Quando regressou à terra natal, depois da revolução de 1640, vinha já casado com Maria Saraiva Cardoso, de Marialva. E estes foram os pais de Manuel Monteiro Carvalho que terá nascido em Freixo de Espada à Cinta pelo ano de 1647 e foi batizado em Marialva, onde seus pais viveram algum tempo.
Manuel casou com Maria Coelho Zuzarte, de outra nobre família freixenista, recebendo de seu sogro, em dote, um olival no sítio de Riba Boa, uma vinha às Fontainhas “que leva de cava 10 homens” e 2 tapadas e 2 courelas ao Santoquixo. Para além disso, o sogro, Pedro Lopes da Fonseca, passou para ele o emprego de meirinho do judicial.
Seria com muito espanto que, em Julho de 1669, as gentes de Freixo assistiram à prisão de Manuel M. Carvalho, (3) juntamente com sua mulher e 2 cunhadas, pela inquisição de Coimbra, denunciado como sendo cristão-novo e acusado de se ter declarado por judeu.
Levado para Coimbra e dizendo ser cristão-velho, houve primeiro que apurar a qualidade do seu sangue. Foram para isso interrogadas 40 testemunhas, de avançada idade e reconhecida idoneidade, para além de outras que os comissários ouviram extrajudicialmente, fazendo-se diligências em Freixo de Espada à Cinta, “Maria Alva” (4) e Celorico da Beira, terra de sua avó materna, Guiomar Saraiva Cardoso, (5) que “uns parentes levaram ainda pequena para Marialva, onde a casaram”. Todas as testemunharam e o parecer dos comissários foram unânimes sobre a qualidade do sangue e o Conselho Geral proferiu o seguinte despacho:
- Assentou-se que ele é cristão-velho legítimo, limpo de toda a raça de cristão-novo…
Prosseguiu então o processo destinado a averiguar a veracidade das denúncias, provando ele que os denunciantes terão agido por ódio e vingança. E aqui reside o maior interesse do processo de Manuel Monteiro Cardoso. É que as suas contraditas constituem um verdadeiro tratado do viver quotidiano da vila de Freixo de Espada à Cinta naquela época.
Vamos então para a casa do sogro de Manuel Monteiro, que era vizinha da casa de Isabel Madeira, filha única, cujo pai falecera e que vivia de sua fazenda. Havia entre eles uma grande familiaridade, tratando-se até por parentes. Isabel seria um bom partido e o sogro de Manuel tratou de a casar com o seu filho João Coelho da Fonseca, então ocupando o cargo de meirinho delegado pelo pai. Mas o João é que não estava pelos ajustes do casamento.
Pelo meio meter-se-ia então um grande amigo de Isabel, chamado António Rodrigues Pereira (6) que, por seu turno, tinha entrada na casa do marquês de Távora, que então era o governador de armas de Trás-os-Montes. E António Pereira foi falar com Luís Álvares de Távora que chamou a Chaves o João Coelho Zuzarte e o colocou perante o dilema: ou casava com a Isabel ou ele o obrigaria a sair de Freixo recrutando-o para soldado. João terá respondido que não casaria com ela e antes iria para soldado. Efetivamente João foi feito soldado e o cargo de meirinho foi então delegado em Manuel Monteiro, seu cunhado.
Enraivecido por não conseguir o casamento da amiga (e não “ganhar a fanega” (7) - dizemos nós), o mesmo António Pereira foi depois a Freixo e, encontrando o pai de João, puxou de uma faca… e só não o espetou porque aquele fugiu. E sempre foi comentando que Pedro Fonseca fazia bem melhor casar o filho com a Isabel  do que a filha com o “judeuzinho de Marialva”… e dizendo-lhe as pessoas que o ouviam que Monteiro Carvalho não era da família de judeus… “ele mudou de cor e se foi da conversação em que estavam”.
Francisco de Almeida era, de certo modo, o líder da comunidade hebreia de Freixo e grande inimigo de Manuel Carvalho. Porquê? Aquele trazia arrendada uma fazenda de um parente seu. E falecendo este, Manuel, na qualidade de tutor de uma filha órfã, tentou tirar-lhe a fazenda, antes do tempo contratado, metendo uma ação no juízo de Freixo, a qual perdeu. E recorrendo para o juízo da correição, perdeu também. Mas conseguiu tirar-lhe uma casa que trazia também arrendada, com o argumento de que não pedira autorização ao juiz dos órfãos. E daí nasceu a inimizade.
Mas a inimizade do Almeida com a família de sua mulher tinha ainda outras razões, uma delas motivada porque, estando os Almeida a passar a fronteira, vindos de Castela, em uma noite, com fazenda contrabandeada, foram vistos pelos guardas da alfândega que os perseguiram. Não os apanhando, foram, com o escrivão da alfândega “dar varejo em casa do dito Francisco Almeida para descobrirem a dita fazenda”. O escrivão era… Pedro Lopes da Fonseca… Claro está que…
As lutas entre os cristãos-novos de Freixo, quase todos ligados por laços familiares a Francisco de Almeida e a Francisco de Matos, este originário de Foz Côa e aquele de Almeida, ganharam mesmo contornos políticos. De modo que, sendo juiz de fora interino e, consequentemente, presidente da câmara de Freixo, Domingos Lopes da Fonseca, irmão do sogro de Manuel Carvalho, foi aprovada em reunião de câmara uma deliberação no sentido de expulsar da terra todos os que dela não eram naturais.
A deliberação não foi cumprida… imagine-se: porque os “carmijuteiros” (assim chamavam aos de fora) conseguiram um despacho do tribunal da inquisição de Coimbra “para os não despejarem da terra”. Estranha esta imiscuição dos inquisidores na vida política de um recôndito vilarejo trasmontano! Possivelmente receavam perder o proveito dos bens sequestrados aos Freixenistas que tinham presos.
Dissemos atrás que, com o recrutamento do cunhado para a tropa, Manuel Monteiro tomou posse do lugar de meirinho. Pois, no exercício de tal cargo, sabendo que um Duarte Nunes e uma Ana Nunes, cristãos-novos, primos entre si, andavam amancebados, fez participação do facto no tribunal de Freixo, processo que subiu à relação do Porto e cujo desfecho não conhecemos.
Muitas mais histórias do viver coletivo quotidiano dos Freixenistas se contam no processo de Manuel Carvalho Monteiro que, naturalmente, foi declarado inocente. 

Notas:
1-O casal teve outro filho chamado Manuel Monteiro Carvalho que foi sacerdote e uma filha, Joana Monteiro Carvalho que casou com João de Gamboa, de igual nobreza e fidalguia.
2-Trata-se, certamente,  de Álvaro de Sousa, que vivia em Madrid à data da Restauração e fugiu para Inglaterra e para Lisboa, não obstante a concessão do título de conde de Ansiães pelo rei Filipe IV, com o objetivo de o aliciar contra o novo regime entretanto instaurado em Portugal.
3-ANTT, inq. Coimbra, pº 8969, de Manuel Monteiro Carvalho.
4- Maria Alva – assim aparece escrito. Ao final da diligência, o inquiridor escreveu: - Não faça aos senhores inquisidores reparo eu tirar tantas mulheres, porque homens antigos não os há nesta vila…
5-Os pais de Guiomar Cardoso eram donos da Quinta de Espinheiro, que tinha uma capela particular onde eles foram sepultados.
6-Embora cristão-novo, António Rodrigues Pereira era feitor da alfândega de Mogadouro.
7-Pelo menos em algumas terras da região do Douro Superior, perdurou até meados do século XX, o hábito de dar uma fanega (4 alqueires) de cereal à pessoa (inculcador) que proporcionava condições de casamento com alguém que se pretendia.
8-António Rodrigues Pereira foi preso pela inquisição de Coimbra e, enquanto esteve preso, faleceu Isabel Madeira. Na mesma ocasião foi também presa uma Francisca Soares, amiga do mesmo Rodrigues Pereira, moradora em Freixo e antes de ser presa, entregou valores em casa de Isabel Madeira, para escapar ao seu confisco pela inquisição. Aconteceu que, quando foi solta e regressou à terra, foi a casa de Isabel reaver o seu “fato”. Não o conseguiu porque Catarina Ribeira, meia-irmã de Isabel e sua herdeira universal, disse que não sabia de nada e nada tinha para lhe dar, ameaçando-a aquela “que não quisesse vir para onde o réu (Manuel Monteiro Carvalho) vinha e a sua gente”.
 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Antónia Coelho Zuzarte (n. Freixo E. Cinta, 1648)

Uma das moradias históricas mais interessantes da vila de Freixo de Espada à Cinta é a chamada casa dos Zuzarte. Interessante, sobretudo pela heráldica judaica que apresenta na fachada principal. Com efeito, o arco de granito da porta comercial do r/chão é decorado com três ramos de árvore (carrasco), cada um deles com 4 rebentos, simbolizando as 12 tribos de Israel. Uma janela do piso superior é decorada por uma rosácea com o hexagrama judaico insculpido e, ao lado, a data de 1557. Em uma outra pedra está escrita a palavra Zuzarte, certamente indicando a família dos construtores.
Não sabemos se foi naquela casa que, em 2.12.1648, nasceu Antónia Coelho Zuzarte, filha de Pedro Lopes da Fonseca e sua mulher Maria Coelha Zuzarte, bem como os seus 2 irmãos e 3 irmãs. Trata-se de uma família da nobreza e governança da terra, já que Pedro Lopes era o proprietário do lugar de meirinho do juiz de fora, ou seja o homem que tinha a seu cargo a manutenção da ordem pública e superintendia na cobrança das taxas e impostos municipais, acumulando com o cargo de escrivão da alfândega. E o seu irmão Domingos da Fonseca costumava andar na vereação da câmara, chegando mesmo a ocupar, por inerência, o lugar de juiz de fora, a autoridade civil mais importante da terra. E sendo família nobre, obviamente que se ligou a outras famílias igualmente nobres, como a dos Madureira, dos Varejão, Gamboa, Gama, Rego, Monteiro de Carvalho…
Situemo-nos então na vila de Freixo E. Cinta no ano de 1667. Antónia contava 19 anos e estava solteira, tal como sua irmã Joana e os irmãos Manuel Matela e João Coelho, este com 25 anos e servindo o ofício de meirinho, nele delegado por seu pai. A irmã Cacilda, a mais velha, era casada com seu primo direito António Varejão e a irmã Maria Coelho Zuzarte traria no ventre o primeiro filho de seu marido, Manuel Monteiro de Carvalho.
Em Março daquele ano, por ordem da inquisição, foram ali presas 3 pessoas ligadas entre si por laços familiares. Duas eram mulheres e, encarceradas que foram em Coimbra, ambas confessaram que, anos atrás se tinham encontrado em casa de Pedro Lopes da Fonseca com 3 de suas filhas (Antónia, Maria e Joana) e o seu genro Manuel Monteiro de Carvalho, que todos tinham parte de cristãos-novos e com elas se tinham declarado seguidores da lei de Moisés.
Com base nestas denúncias, em 6 de agosto de 1669, foram presas aquelas 3 filhas e o genro de Pedro Lopes e Maria Zuzarte, (1) numa operação, certamente “militarizada” conduzida por Diogo Monteiro de Melo, familiar do santo ofício e capitão-mor de Torre de Moncorvo.
Causaria enorme espanto a prisão de gente de tão alta nobreza, numa terra onde a presença da inquisição nunca foi muito sentida. Ainda mais porque nesta família, tanto pelo costado paterno como pelo materno, havia padres que, para se ordenarem, tiveram de fazer prova de pureza do seu sangue.
Como todos afirmavam ser cristãos-velhos, haveria de ter em conta dois aspetos. Por um lado, averiguar se eram cristãos-velhos ou tinham alguma parte de cristãos-novos, como as denunciantes disseram. Por outro, haveria de saber se realmente se tinham declarado judeus com as mesmas denunciantes.
O processo de averiguação da pureza de sangue foi conduzido pelo comissário da inquisição Gonçalo Caldeira de Vasconcelos, (2) morador em Torre de Moncorvo que sobre o assunto ouviu dezenas de testemunhas, naturalmente as pessoas mais velhas da vila e que conheceram ou ouviram falar dos seus ascendentes. O processo concluiu-se com um despacho do Conselho Geral declarando que as irmãs Coelho Zuzarte tinham ¼ de cristãs-novas por parte de sua avó materna, Feliciana Lopes.
Das testemunhas inquiridas, há duas cujo testemunho é deveras interessante para o estudo da questão da “lavagem de sangue”. Uma delas foi o padre Jorge Francisco Gil, de 60 anos. Começou por dizer que “a ré tem parentes clérigos e frades, pela parte paterna e materna”. Um deles chamou-se Francisco Jorge Coelho e para se ordenar, foi feita a análise da pureza do seu sangue, inquirindo-se umas 80 testemunhas! O inquérito não terá sido muito conclusivo pois que, antes de proceder à sua ordenação veio o arcebispo D. Afonso Furtado (3) a Freixo de Espada à Cinta e do púlpito da igreja anunciou que, do lado materno, estava apurada a limpeza do seu sangue e do lado paterno, se alguém soubesse de algum impedimento, que o dissesse.
Depois de contar o episódio e perante uma tal afirmação do arcebispo, a testemunha concluiu o seu depoimento dizendo:
- E ouvindo as pessoas que da primeira vez impediram, disseram então: se o arcebispo o aprova pela parte mãe, pela parte do pai não temos que dizer!
Terá sido este um processo de lavagem de sangue conduzido pelo próprio arcebispo de Braga?
Outro depoimento interessante foi o de Gaspar Pinto de Meireles, escrivão da câmara, 79 anos. Depois de afirmar que a Zuzarte “tem fama de parte de cristã-nova pelo lado da avó paterna, Antónia Francisca, que diziam ser neta de uma Fulana Gomes, de Chacim (…) e outrossim pela parte da sua avó materna, chamada Feliciana Lopes, havia a mesma murmuração”, contou a história do impedimento da ordenação de outro padre da mesma família, primo do pai de Antónia Zuzarte, chamado Baltasar Lopes.
No entanto, este acabou o mesmo por se ordenar padre, depois que o provisor do arcebispado, D. Gaspar do Rego da Fonseca (4) mandou a S. Felices de Gallegos, com autorização do bispo de Cidade Rodrigo fazer investigação genealógica do candidato. Mais curioso ainda: para fazer as averiguações em S, Felices de Gallegos foram dois cavaleiros da Ordem de Cristo!
Obviamente que todas estas diligências levaram tempo e, entretanto, as Zuzarte penaram nas celas da inquisição, por mais de 3 anos e meio. Cristãs-novas ou não, importava depois averiguar da verdade das denúncias feitas.
Foi com facilidade que elas se defenderam da acusação de declaração e prática de judaísmo, logo acertando nas denunciantes: Isabel de Matos e Francisca Soares, cunhadas entre si e que foram presas em Março de 1667 e juntas fizeram a viagem para Coimbra.
As Zuzarte provaram que as denunciantes eram falsárias e por vingança inventaram as denúncias. Foi para se vingarem de seu pai, Pedro Lopes da Fonseca, o chefe da família. Com efeito, quando Isabel e Francisca foram presas, sequestraram-lhe os bens e leiloaram na praça pública os necessários para fazer dinheiro líquido para custear a viagem para a cadeia de Coimbra e a alimentação no cárcere. E para isso foram leiloados uns couros que Pedro Lopes arrematou. E na própria casa de Francisco Lopes Garcês onde esteve “presa”, Francisca Soares pediu àquele que lhe arrematasse os couros para seu marido. (5) E quando soube que o meirinho os arrematara, disse:
- Se ele lançou nos meus couros, eu lançarei em coisa que mais lhe doa (…) ele ou coisa sua me pagarão.
E provou-se também que, estando 9 dias “presa” na casa de Domingos Gonçalves, em Torre de Moncorvo, enquanto se organizava a viagem para Coimbra, ela renovou as ameaças dizendo, nomeadamente:
- Não havia nenhum atrevido senão o meirinho que lançasse nos meus couros!
E assim se concluiu o processo de Antónia Coelho Zuzarte, como, aliás, o de suas irmãs, sendo absolvida das acusações. E foi-lhe dado a escolher se queria que a sua sentença fosse lida em auto público da fé, ou em cerimónia particular, na Mesa da inquisição. Esta foi a escolha de Antónia Zuzarte, sendo a sentença lida em 7.2.1673. Foi declarada inocente e mandados restituir os bens sequestrados. Porém… teve de pagar as custas do processo, incluindo as despesas da viagem, gratificação a quem a levou presa e aos comissário e escrivães que fizeram as diligências.
Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 4572, de Antónia Coelho Zuzarte.
2- O comissário Gonçalo Caldeira de Vasconcelos faleceu antes da conclusão do processo das Zuzarte, sendo substituído nas diligências que depois se fizeram pelo reitor da matriz de Freixo João Fernandes Lopo.
5-Pº 4572: - Francisco Lopes Garcês, homem nobre, dos principais desta vila (…) disse que estando Francisca Soares em sua casa dele testemunha presa pelo santo ofício, dissera a ele testemunha que pedisse a Pedro Lopes da Fonseca, pai da ré, lhe não lançasse nos couros, e se lançasse, os desse ao marido dela contraditada, e que dissera que ele ou coisa sua me pagarão.
3-D. Afonso Furtado de Mendonça foi arcebispo de Braga entre 1618 e 1626.
4-D. Gaspar do Rego da Fonseca, provisor do arcebispado de Braga, seria depois nomeado bispo do Porto, cargo que exerceu entre 1632 e 1639. Era natural de Vila Maior, terra de Ribacôa, filho de Daniel do Rego e Leonor da Fonseca.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Ferreira Sanches Isidro (n. Saucelhe, Castela, 1713)

Nascida em Freixo de Espada à Cinta, por 1680, Francisca de Alvim casou em Castela com o boticário Francisco Sanches Maioral. Residiram em Saucelhe, uma localidade fronteiriça, no Douro internacional, onde lhe nasceram 3 filhos, um dos quais se chamou Francisco Ferreira Sanches, ou Isidro, sobrenome do lado materno.
Falecendo o marido, Francisca regressou com os filhos para Freixo, onde casou de novo, com António Nunes Cardoso, que, por sua vez, tinha uma filha bastarda chamada Isabel Luís, a Bacalhoa, de alcunha.
Por 1725, o agregado familiar encontrava-se distribuído do seguinte modo:
António Nunes Cardoso vivia em Portalegre, onde arrematara o contrato do tabaco. Trabalhando com ele, no estanco de Arronches, estava José Miranda Castro, marido da sua enteada Francisca Henriques de Oliveira, que também assistia em Arronches.
Luís Vaz Oliveira, outro filho de Francisca Alvim e Sanches Maioral, encontrava-se nas Minas Gerais, do Brasil, empregando-se como caixeiro de seu tio Francisco Ferreira Isidro. (1)
Em Freixo de Espada à Cinta, com Francisca, vivia Isabel, criança ainda, sua filha e de António Nunes, e o filho Francisco Ferreira Sanches, então de 12 anos. Isabel Luís, a filha natural de seu marido também morou com ela mas fugiu de casa havia 3 anos para Torre de Moncorvo, onde servia de criada.
No verão de 1725, no meio de mais uma vaga de prisões que arrasou as terras do Douro Superior, Francisca Alvim foi levada para a inquisição de Coimbra. E o filho, Francisco Sanches, meteu-se a caminho de Portalegre, ao encontro do padrasto e da irmã.
Em Portalegre, permaneceu duas semanas, sendo enviado para a vila de Arronches, a trabalhar com o cunhado, José de Miranda. Ali esteve uns 6 meses, posto o que todos eles deixaram o Alentejo e se foram para Lisboa. Ali, Francisco Sanches ficou trabalhando com seu tio materno, Henrique Vaz de Oliveira, que tinha estanco de tabaco no “Rossio, debaixo das casas de D. Luís da Silveira” e também era tratante de sedas.
Entretanto, o tio Henrique foi chamado à inquisição, saindo sentenciado no auto da fé de 13 de outubro de 1726. O mesmo acontecera, aliás, ao seu padrasto, à sua irmã e ao seu cunhado José de Miranda.
Certamente que tudo isso mexia com o nosso jovem, que viveria em permanente sobressalto, por estranhas terras e envolto em medos. De Lisboa abalou então para Valença, no Alto Minho, levado por Luís Miranda Castro, irmão de seu cunhado que, naquelas partes, era contratador do tabaco.
Seria o mais longo “estágio profissional” de F. Sanches que, tempos depois, se foi para o Porto, disposto a estabelecer-se por conta própria. Contudo, não encontrou quem o quisesse financiar, cedendo-lhe mercadorias a crédito, para ele vender. Encontrou sim um parente chamado Francisco Gabriel Ferreira (2) que em Julho de 1525 saíra sambenitado em Coimbra e que o aconselhou, nos seguintes termos:
- Que de nenhuma sorte se metesse com seus parentes maternos e pessoas da nação, e supusesse que não tinha pais; que fosse procurar vida em qualquer parte, sem ser conhecido, porque o haviam de prender e nunca havia de conseguir coisa alguma de cabedal; e se o conseguisse o haviam de perder.
Terá então decidido fugir para Inglaterra, falando sobre isso com um caixeiro inglês que trabalhava no Porto, que o incentivou dizendo-lhe que, como sabia ler e escrever, fácil seria lá conseguir emprego. 
Falou então com o piloto de um navio inglês e embarcou para Londres. Perto da costa o navio terá batido nas rochas, partindo-se, com o nosso jovem a agarrar-se a uma tábua e sobre ela nadar para terra.
Em Londres foi ter a casa do líder da “nação sefardita trasmontana” José da Costa Vila Real, que lhe não prestou qualquer atenção. Apenas o seu pai falou a Francisco e lhe indicou a casa de um parente chamado Julião Henriques, que ele procurava e a quem pediria ajuda.
Foi no dia 7 de janeiro de 1728 que o jovem Freixenista encontrou o seu parente que se prestou a ajudá-lo, sim senhor. Mas para isso, haveria ele de aprender a lei de Moisés e tornar-se judeu. Certamente que o jovem anuiu e passou a frequentar a sinagoga, levado por Julião, em cuja casa ficou vivendo. Ia de manhã e de tarde à instrução na sinagoga, onde encontrou um Miguel Nunes Fernandes, que estivera no Brasil e conhecera em Lisboa. E conheceu um homem que fora guarda da inquisição em Coimbra e fugira para Londres onde os judeus lhe davam “muitas e copiosas esmolas”.
Mas se a pressão sobre o jovem para se fazer judeu era grande, não seria menor a dos cristãos que em Londres também havia, protegidos e apoiados pela embaixada de Portugal. E terá sido assim que Francisco Sanches conheceu “o embaixador” António Galvão “que o recolheu e procurou embarcação e pagou o frete” e o mandou de volta a Portugal, aconselhando-o a acolher-se em casa de seu próprio parente Gaspar Galvão que o haveria de dirigir.
Embarcou no dia 15 de janeiro e em 24 de fevereiro seguinte desembarcou em Lisboa. Ao anoitecer desse mesmo dia, levado por Gaspar Galvão, dirigiu-se a casa do inquisidor João Álvares Soares que o mandou ir aos Estaus na manhã seguinte, apresentar-se na Mesa do santo ofício, onde contaria tudo o que passara. (3)
Tinha o jovem 15 anos, muitos caminhos percorridos, uma larga experiência de vida entre o judaísmo e o cristianismo, entre a igreja e a sinagoga, entre as cadeias da inquisição e o desejo de liberdade e afirmação pessoal.
Voltemos ao início, a Freixo de Espada à Cinta, ao encontro de Isabel Luís, filha de António Nunes Cardoso e de Maria Luís, então solteira e que depois casou com Bartolomeu Gomes, peneireiro de profissão. Façamos um parêntesis para dizer que o fabrico de peneiras era uma atividade característica de Freixo de Espada à Cinta que abastecia os fornos da região. Para além de Bartolomeu, vários outros membros da família tinham a profissão de peneireiro.
Isabel vivia em casa do pai e da avó, Isabel Cardosa, que a acarinhavam e lhe davam boa educação, conforme ela própria confessou:
- Assistindo na companhia do dito seu pai, antes de casar com a dita Francisca Vaz, lhe dava bom tratamento, como filha, sustentando-a de todo o necessário e a trazia bem vestida, pondo cuidado na sua educação, e tendo-lhe mestra que a ensinasse. E assim o mesmo pai como Isabel Cardosa, sua mãe, avó da ré e a sua irmã Mariana de Alvim Cardosa, tratavam a ré com muita estimação, sem a ocuparem nos empregos servis, mas só em serviços condicentes para a sua boa educação.
Depois que o pai casou com Francisca Vaz, as coisas mudaram, queixando-se ela:
- Francisca Vaz logo principiou a tratar mal a ré, pondo-a no estado de criada de todo o serviço, assim de casa como de fora dela, de rio e fonte, trazendo-a mal vestida e com sapatos de couro de vaca que lhe faziam chagas nos pés, tratando-a com muita aspereza e rigor (…) e do mesmo modo uma filha da dita Francisca que (…) por lhe fazer mal, formava queixas e acusações falsas e muitas vezes lhe deitava cabelos e fios de seda dos teares na panela de comer dos criados, que a ré cozinhava separadamente, só para que lhe imputassem estas culpas e fosse por elas castigada…
Perante os maus tratos da madrasta e o desleixo do pai, Isabel abandonou a casa paterna e foi-se para Torre de Moncorvo onde esteve 2 anos servindo em casa José Carneiro de Magalhães, um homem da nobreza da terra, morador na rua das Barreiras. Este, quando a madrasta de Isabel foi presa, não mais quis a moça em sua casa e despediu-a. Felizmente teve quem a admitisse: um homem de maior nobreza ainda e familiar da inquisição: Manuel Borges de Castro, em cuja casa serviu 3 anos e meio.
O pior estava ainda para vir. É que, estando já condenada à fogueira e de mãos atadas, a sua madrasta, confessou que se tinha declarado crente na lei de Moisés com seus filhos e com a sua enteada. E por quase dois anos, Isabel sofreu as agruras da cadeia da inquisição de Coimbra. E embora fosse declarada inocente, a verdade é que teve de pagar as custas do processo. (4)
Notas E Bibliografia:
1-Luís Vaz de Oliveira tinha uns 13 anos quando embarcou para o Brasil. Vivia nas minas do Ribeirão do Carmo, trabalhando com seu tio Francisco Ferreira Isidro. Em 1730, receando ser preso, tomou a iniciativa de se apresentar na inquisição de Lisboa, saindo no auto da fé de 17.6.1731. Depois foi viver para a cidade de Faro, na companhia de Gabriel Ferreira Henriques, seu parente – ANTT, inq. Lisboa, pº 9969.
2-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… jornal Nordeste nº 1104 de 9.1.2018.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 4727, de Francisco Ferreira Sanches.
4-IDEM, pº 2286, de Isabel Luís.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Gabriel Ferreira (n. Madrid, 1678)

Dias depois do auto da fé de 13.2.1667, onde seu pai saiu sambenitado e certamente com receio que o prendessem, Gabriel Ferreira Henriques apresentou-se na inquisição de Coimbra, onde o ouviram e mandaram em paz. (1) 
Dois anos depois, foi preso pelo mesmo tribunal, saindo apenas em fevereiro de 1673. (2) Posto em liberdade, rumaria a Espanha onde, por 1678, teve um filho de uma mulher cuja identidade se ignora. Enjeitado pela mãe e contando uns 4 anos, Francisco Gabriel Ferreira foi trazido pelo pai para Freixo de Numão, onde se criou, em casa de seu avô, Francisco Ferreira Isidro.
Da mãe, não saberia o nome e ao pai nunca mais o veria, pois logo se abalou para o Brasil, de onde não mais vieram novas. Em Freixo, seria o tio António Henriques Alvim que mais perto estaria e o introduziu na lei de Moisés.
Seria curta a permanência de Francisco em Numão, antes parecendo viver em deslocações constantes por este Portugal afora, conforme se depreende de suas declarações. Não se estranhará, assim, que fosse casar a Portalegre onde um primo paterno trazia arrendado o contrato da distribuição do tabaco, empregando vários parentes nos estancos.
Clara Fonseca se chamou a sua mulher, também nascida fora do casamento, uns 9 anos mais velha que ele, e que apresentava um estatuto empresarial digno de registo: negociante de sedas e chocolateira. Apresentada embora como filha de pai incógnito, este chamar-se-ia Domingos Fernandes Corcho, originário de Pinhel e assistente em Portalegre, também contratador do tabaco e de uma família extremamente rica e importante.
O casamento aconteceria antes de 1698, altura em que o casal se encontrava já com residência estabelecida no Porto, onde lhe nasceram duas filhas: Violante Maria, que casou com Manuel Pinheiro Nogueira, fabricante de meias de seda, natural de Freixo de Espada à Cinta e Mariana de Alvim, ou Fonseca, que casou com Luís Miranda de Castro, contratador de tabaco em terras do Alto Minho.
Seria uma família abastada, que tinha ao serviço de casa pelo menos duas criadas. Uma delas chamava-se Isabel Francisca, natural de Barcelos que os serviu por 2 anos e depois foi servir para Miragaia. A outra chamava-se Joana e havia 7 anos que saíra e fora servir para casa de um padre “mestre de capela da Sé”.
Em 24.7.1724, aconselhada pelo padre a quem fora confessar-se, Francisca dirigiu-se a casa de Francisco de Melo, familiar da inquisição, denunciando os antigos patrões, num extenso rol de práticas judaicas, acrescentando que Joana podia confirmar tudo.
Chegada uma carta de F. Melo a Coimbra, os inquisidores mandaram o comissário Carlos da Rocha Pereira ouvir judicialmente as duas criadas. A primeira repetiu e acrescentou as denúncias. A segunda “perguntada miudamente, respondeu muito pouco e ao mais respondia que não sabia, ou o contrário do que vinha articulado” – conforme escreveu o próprio comissário, acrescentando:
- Lhe dissera que, acabando o contrato em casa do mestre da capela, fazia conta de tornar para casa dos denunciados.
Embora houvesse apenas uma denúncia e algo suspeita, os inquisidores mandaram prender Francisco, Clara e a filha Mariana, que na casa paterna vivia enquanto o marido andava por Viana no trato do tabaco. (3)
No próprio dia em que foi entregue em Coimbra, Francisco começou a confessar as suas culpas e denunciar correligionários, tornando-se o seu processo num impressionante estendal de informações sobre famílias de judaizantes, não apenas do Porto, mas de meio Portugal, nomeadamente de Trás-os-Montes e Beiras. Ao ler este processo, fica-se com a impressão que Francisco conhecia todo o mundo, que andava bem informado - uma verdadeira central de informações de judaísmo. Perante os inquisidores, Francisco desdobrou a vidinha de muita gente, em especial rendeiros e contratadores, gente de trato grosso e muitos cabedais.
O caudal de informações despejado foi tão grande que parece ter entupido os canais na mesa da inquisição. Imagine-se: no decurso do seu depoimento, Francisco contou que fizera duas viagens à Inglaterra e à Holanda. Normalmente uma tal confissão provocava um nunca mais acabar de perguntas. Pois, nem sequer uma pergunta lhe foi feita acerca do assunto! Dir-se-ia que a curiosidade dos inquisidores estava completamente satisfeita.
Homem de muitos contactos, em sua casa, no Porto, Francisco acolhia gente da maior importância e proporcionava a realização de eventos, os mais estranhos, como este:
- Há 7 anos (…) Brites Pinheira casou em casa dele confitente, por intervenção de sua mulher Clara da Fonseca, foi dotada com quatrocentos mil réis por Gabriel Lopes Pinheiro (…) e tem por certo que como observante da mesma lei, se lhe procurou o dote, o qual dote lhe veio entregar no dia do seu recebimento o médico Gaspar Dias Fernandes, (…) o qual é tio do mesmo Gabriel Lopes Pinheiro… Francisca Alvim, que era a dotada…
Gaspar Dias Fernandes é personagem central da narrativa de Francisco que o acusou de vários “crimes” como o de violar os segredos da inquisição trocando cartas com um irmão que estava preso na cadeia de Coimbra. E também o acusou de exportar clandestina e ilegalmente capitais pertencentes a gente fugida da inquisição. Veja-se um caso concreto:
- Neste inverno passado, Fernando Lopes da Costa, advogado de Trancoso, vendeu uma quinta que tinha na Anobra, termo de Coimbra (…) não sabe por quanto, mas sabe que todo o dinheiro da dita venda se entregou ao médico do partido, Gaspar Dias Fernandes (…) para o fim de o dito médico lho pôr seguro no Norte.
Gaspar Dias pertencia ao círculo de pessoas de relações mais estreitas com Francisco Gabriel, círculo onde se incluía João Lopes da Silva, natural de Trancoso e Salvador Mendes Furtado, de Bragança, contratador do tabaco. Aliás, na sua denúncia, Isabel Francisca disse que eles se juntavam frequentemente nas casas de uns e outros, deixando entender que faziam reuniões em sinagoga.
Uma família cuja vida aparece no estendal de Francisco é a dos Lotas, de Bragança. E entre as várias denúncias feitas contra eles, há uma em que o denunciante parece mais empenhado no sequestro de bens de António Mendes Álvares, Lotas, que os próprios inquisidores. Com efeito, tendo o Lotas fugido para Inglaterra e tendo a receber perto de 5 contos de réis, de rendas na comarca de Lamego, procurou que alguém lhos cobrasse, nomeadamente o nosso biografado que “lhe tratou dele em algum tempo”. Pois, não querem saber que ele foi contar aos inquisidores a existência de tais dinheiros, justificando que Maria Josefa, a mulher do Lotas, entretanto presa na inquisição “não daria tal dívida ao inventário”, com o que a inquisição perderia uma boa receita.   
Os medos da inquisição assombravam o Porto e, naturalmente, havia muitos que fugiam. Também nesse particular as denúncias de Francisco são significativas. Uma respeita a Brites Pereira, mulher de José Rodrigues Gabriel, originários de Bragança e moradores no Porto, a qual pediu “a ele confitente lhe quisesse pôr a dita moça, Maria, em Braga, em casa de Duarte Pereira D´Eça, estanqueiro, porque se temia das prisões do santo ofício, pois o pai da dita moça tinha notícia estava de presente preso…”
Outro caso sucedeu com uma filha de Francisco Rodrigues Brandão: dormiu uma noite em sua casa e “por razão de não ser presa” foi levada para Valença, por seu genro, Luís de Miranda Castro.
Como “judeu” e “passador de judeus” denunciou particularmente um primo seu, que então foi preso. Vejam:
- Seu primo, Henrique Vaz de Oliveira, em vários tempos, tem dado ajuda e favor a cristãos-novos para passarem para Castela e França fugindo às prisões do santo ofício, como foi há 14 anos a família de Fernando Lopes que fugiu do Porto, e também presume que o dito seu primo Henrique Vaz de Oliveira é circuncidado, não por que tenha ouvido falar nisto, mas pela grande assistência que o mesmo tem feito em Bayonne de França. Aonde tem uma irmã e um tio profitente da lei de Moisés e aonde ia muitas vezes.
Impossível focar os múltiplos aspetos do processo de Francisco Gabriel. Chocante que, para além dos factos e das provas que apontava, ele até “presumia” culpas, como se fora um inquisidor. Mas há uma declaração deveras interessante. Depois de dizer que como judeu, não acreditava na Santíssima Trindade, “contudo sempre em seu coração teve grande amor à pessoa de Cristo Nosso Senhor como homem justíssimo (…) e continuadamente entre os seus erros tinha muitos despertadores que a sua consciência lhe punha”. Aqui está o drama dos marranos: viver em permanência com os despertadores da consciência. Muitos encontraram a saída desse drama no ateísmo e no livre pensamento. Tê-la-ia encontrado Francisco Gabriel Ferreira? Atente-se nesta última declaração que parece antecipar a tese da lei natural e do bom selvagem, proclamada pelos Enciclopedistas e pela Revolução Francesa:
- Teve sempre consigo o bem de que lhe parece vivia muito conforme a lei natural, ao menos fazia quanto podia.

Notas e Bibliografia:
1-ANDRADE e GUIMARÃES – Os Isidros, a epopeia de uma família de cristãos-novos de Torre de Moncorvo, pp. 89-98, ed. Lema d´Origem, Porto, 20012.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 9191, de Gabriel Ferreira Henriques.
3-IDEM, pº 9669, de Francisco Gabriel Ferreira; pº 3139, de Clara da Fonseca; pº 6475, de Mariana de Alvim (da Fonseca).
 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Gabriel Ferreira Henriques (n. Porto, 1693)

Todos os 6 filhos de Manuel Henriques Lopes e Mariana de Alvim que chegaram à maioridade foram presos pela inquisição de Lisboa.
O mais velho, Vasco Fernandes Lopes, foi o primeiro a ser conduzido às suas masmorras, ao início do mês de maio de 1725. E depois de reconciliado voltou a ser preso, por não ter feito inteira confissão. No entanto ele vivia afastado dos outros irmãos e do pai, que não lhe perdoaram o facto de se ter juntado com uma “concubina” chamada Francisca Rosa (1) e, enquanto solteiro, desbaratar ao jogo os dinheiros do pai.
O processo de outro filho, António Lopes Henriques, é confrangedor, por se tratar de uma pessoa nitidamente falha de juízo e quase cego. Veja-se a resposta que deu aos inquisidores quando lhe perguntaram se sabia porque estava preso:
- Disse que está preso por ser cristão-novo, para o fazerem cristão-velho. (2)
E agora o retrato que dele nos deixou o escrivão do santo ofício:
- Vinha com gesto mudado e como louco, chorando, e posto que de novo não tenha queixa de doido o parece, por não acertar com respostas nem perceber as perguntas, e ser tartamudo, e algum tanto surdo e vê pouco, e que para fazer o seu nome chega muito o rosto ao papel que quer assinar e está sempre fazendo visagens com os olhos e sobrancelhas trémulas…
Falho de juízo e deficiente físico, António vivia em casa e na dependência do irmão Gabriel Ferreira Henriques, como também as 3 irmãs: Branca Rosa, Francisca Rosa Alvim e Mécia Josefa. Por isso mesmo seriam os 5 presos em simultâneo, dando entrada nos Estaus no mesmo dia: 1.8.1725. (3) Eram todos solteiros, exceto a Mécia Josefa, que era viúva de Francisco Ferreira Isidro, seu primo, natural de Freixo de Espada à Cinta, formado em medicina pela universidade de Coimbra. Aliás, nem chegariam a casar, estando apenas “desposados”. No entanto, tiveram uma filha que, de pouca idade faleceu também.
Seria em 1714, quando o seu pai foi preso e a mãe falecida, que Gabriel Henriques se tornou o “chefe da família” com o irmão deficiente e as irmãs solteiras seu cargo. Moravam em Cascais, tendo ido do Porto dois anos antes. Viviam fundamentalmente da venda de tabaco, tendo ali tomado um estanco. E nesse mesmo ano Gabriel conseguiu arrematar o monopólio da distribuição do mesmo produto no termo de Torres Novas, significando isso uma ascensão à classe dos contratadores. E terá sido também contratador do tabaco na comarca de Portalegre.
O negócio não terá corrido muito bem, já que, dois anos depois o vemos em Lisboa à procura de um emprego na administração do contrato do tabaco. Conseguiu esse emprego de administrador (funcionário da junta do tabaco), primeiro em Leiria e depois em Setúbal. Também aqui as coisas não correriam da melhor forma, pois que o vemos a reclamar 5 mil réis de dívida do ordenado e pagamento de mais de 200 mil réis de “serviços extraordinários” aos contratadores.
De contrário, os contratadores tê-lo-ão executado judicialmente e feito prender por dívidas, recorrendo ele a Gaspar Dias de Almeida, grande mercador, de quem o seu pai (Manuel Henriques Lopes) era amigo e colaborador. Ele lhe emprestou os “duzentos e tantos mil réis” exigidos.
Façamos aqui uma pausa para dizer que Gabriel Ferreira Henriques nasceu pelo ano de 1693, na cidade do Porto. Foram seus pais Manuel Henriques Lopes, de Vila Flor e Mariana de Alvim, da família Isidro, originária de Torre de Moncorvo.
A doutrinação de Gabriel na lei mosaica terá sido feita por Diogo Vaz Faro, homem de negócio do Porto originário de Vila Flor, casado com Isabel Henriques, tia paterna do nosso biografado. Este foi preso pela inquisição de Lisboa, em 1.8.1725, como atrás se disse.
Chamado a fazer o inventário de seus bens, disse que não tinha bens “por estar debaixo do poder pátrio”. Mas há uma nota interessante nesse inventário. É que, quando esteve em Setúbal, emprestou dinheiro a duas freiras do convento de S. João que, em penhor lhe entregaram objetos de ouro, prata, diamantes… (4) E esses mesmos objetos deu-os ele depois a Gaspar Dias de Almeida em penhor do empréstimo acima referido. Acontece que, entretanto, aquele fugiu para Inglaterra, levando as joias penhoradas, pelo que as não poderia devolver. (5)
Contudo, a nota mais importante do seu processo respeita à comunicação entre os prisioneiros e destes com o exterior. Vejam o colorido da cena, acontecida dois meses depois que entrou na prisão, contada pelo próprio:
- Estando no seu cárcere, depois de ter jantado, foi ao dito cárcere buscar a louça um guarda gordo (…) José Moreira e este, vendo a ele declarante aflito, lhe disse que lá estava presa a sua gente. E perguntando-lhe ele declarante que gente, lhe disse que eram suas irmãs, e lhe pôs a mão no nariz ficando este entre dois dedos, a modo de quem põe óculos, do que entendeu que também estava preso seu irmão António Henriques que, por ser falto de vista, usava óculos (…) e passados alguns dias, depois que o dito guarda lhe deu os ditos avisos, lhe deu ele declarante dois quartinhos de ouro que tinha escondidos… (6)
Obviamente que os inquisidores quiseram saber como ele conseguiu entrar na cela com os “quartinhos de ouro” e todos os mais contactos do guarda com os presos… nomeadamente com o prisioneiro João Paz de Almeida, de Freixo de espada à Cinta, a quem, do exterior, chegou uma bolsa com 2 400 réis. E como ele próprio soubera disso. Então ele falou de vários companheiros de prisão seus conhecidos e que falavam entre si muito abertamente, apenas escondendo os nomes. Assim, a ele chamavam o Pombo, o dito Paz de Almeida era o Rouxinol, o companheiro de cela deste, que era estrangeiro, dava pelo nome de Canário, outro era o Pavão… o Papagaio… o Pintarroxo… e “se davam os bons dias e as boas tardes e falavam nas suas causas, de que entendeu que todos eram confessos”. Apenas um deles, um António Dias, não falava e, por isso, entendeu Gabriel que ele “estava negativo e em livramento”.
A bolsa com o dinheiro de que atrás se falou, ter-lhe-á sido enviada por Manuel Álvares da Costa, tecelão de sedas, natural de Bragança, morador em Lisboa (7) o qual, já antes, lhe fizera chegar outras coisas, nomeadamente uma cama, conforme depoimento de Ferreira Henriques:
- Disse que só ouvira dizer ao dito Manuel Álvares da Costa que mandara uma cama de sua casa para o dito paz, e que passado algum tempo se lhe tornou a restituir a dita cama, E ainda que o dito Manuel Álvares lhe não declarou, entende que seria para o dito Paz dormir nela nas Escolas e que lha tornaria a mandar quando o recolheram para os cárceres decretos.
Resta dizer que Gabriel Ferreira Henriques desde o início se mostrou confitente, saindo condenado em confisco de bens e penas espirituais no auto da fé de 13.10.1726, juntamente com seus irmãos.
Notas:
1-o de seu pai
ANTT, inq. Lisboa, pº 10560, de Vasco Fernandes Lopes; pº 10157, de Francisca Rosa. A propósito, veja-se o depoimento de Gabriel, irmão de vasco: - Com ele nunca falou coisa alguma, porque tinha pouco trato, era extravagante, e mal procedido, e por andar amigado com uma mulher desonesta, com quem depois casou.
2-IDEM, pº 9638, de António Henriques.
3-IDEM, pº 9632, de Gabriel Ferreira Henriques; pº 1882, de Branca Rosa; pº 9628, de Francisca Rosa Alvim: pº 9936, de Mécia Josefa.
4-Pº 9632: - A dita religiosa lhe deu em penhor duas flores de prata com diamantes e uns brincos de ouro com umas pérolas verdes e uma caixa de prata sobre o dourado e um ou dois anéis e umas cestinhas de filigranas de ouro, uma Senhora da Conceição, de ouro com algumas lasquinhas de diamantes…
5-IDEM: - Vendo-se ele declarante executado e preso a requerimento dos contratadores de tabaco, recorreu ele a Gaspar dias de Almeida, homem de negócio, morador nesta cidade, que lhe emprestasse duzentos e tantos mil réis, como lhe emprestou, e então se valeu de todos os sobreditos penhores e outras peças de sua casa do uso de suas irmãs, para segurança do dito dinheiro, os quais se achavam todos na mão do dito Gaspar Dias ao tempo que se ausentou do reino, e depois da sua ausência, falando com um seu filho chamado José Dias, sobre a matéria dos ditos penhores, este lhe disse que seu pai tinha levado todas as peças de ouro e prata.
6-IDEM: - Tinha o dito dinheiro escondido nos cós dos calções, onde o meteu depois de estar preso, no tempo em que se dilataram a busca-lo, que seria meia hora.
7-IDEM, pº 4446, de Manuel Álvares da Costa.

 

Manuel Henriques Lopes (Vila Flor, 1648 - d. 1727)

Homem de negócio, natural de Vila Flor, morador em Cascais e assistente em Lisboa e Coimbra, de presente na Figueira da Foz onde embarcava azeites – assim se apresentou Manuel Henriques Lopes – o que bem retrata a sua vida movimentada, típica dos homens da nação. Na verdade o ambiente de medo em que viviam obrigava-os a estar em trânsito constante.
Mas se este processo é exemplar a tal respeito, não menos interessante na caracterização do ambiente de permanente suspeita e constante espionagem que sobre os homens da nação era exercida pelos comissários e familiares do santo ofício.
Situemo-nos então na Figueira da Foz em cujo porto atracou um barco proveniente da Inglaterra. Coisa normalíssima, até porque a grande maioria dos barcos estrangeiros que frequentavam os portos nacionais eram ingleses. O barco vinha à responsabilidade de Gaspar Dias de Almeida,(1) um grande mercador de Lisboa e dele eram as mercadorias que trazia, nomeadamente “duzentos quintais de ferro e vinte barras de aço” importadas para um mercador do Norte e “seis milheiros de aduelas”. O barco deveria depois ser carregado de azeite e regressar a Inglaterra.
O homem contratado por Gaspar Dias de Almeida para dirigir as operações de descarga do barco, venda de algumas mercadorias importadas e compra dos azeites para exportação foi Manuel Henriques Lopes que, para o ajudar, conseguiu os serviços de um Manuel João, contratador, morador na Rua dos Sapateiros, na Figueira da Foz. Este trabalhava em comissão, recebendo cinco tostões por cada pipa de azeite embarcada. Também o Manuel Henriques trabalharia em comissão? Ele disse que não, que Gaspar Dias de Almeida “pediu a ele declarante para fazer tal diligência e que ele aceitou sem estipêndio algum pela dita comissão, deixando no arbítrio do mesmo a satisfação do seu trabalho”.
Tudo correria em ordem e a carga foi desalfandegada, tudo se registando nos respetivos livros. O ferro e o aço foram metidos em um armazém alugado, defronte da casa do contratador Manuel João. Dos 6 milheiros de aduelas Manuel Henriques mandou fazer “pipas e quartos e as mais vendeu aos estrangeiros”.
A operação estava correndo e no barco estavam já “quarenta e tantas pipas e trinta e tantos quartos de azeite” quando as justiças levaram Manuel Henriques Lopes para Coimbra e o meteram na “cadeia da portagem”.
Porquê? – Disseram que estava carregando trigo para fora do reino, sem a devida autorização. Na verdade a “cadeia da portagem” era a cadeia civil, já que em Coimbra havia outras para presos específicos, como eram: a da inquisição, a dos estudantes e a dos clérigos. 
Voltemos ao início, à ida de Manuel Henriques para a Figueira da Foz e à chegada do barco de Inglaterra. Como estabelecido, à chegada e à partida, todos os barcos eram vistoriados e ninguém podia viajar sem o visto da inquisição. No caso concreto o “olheiro da inquisição” era o familiar Manuel da Mesquita Loureiro que logo escreveu para Coimbra, dizendo:
— Ilustríssimos Senhores. Lembro-me que antes de ser preso nestes cárceres Gaspar Mendes Furtado, dei conta a Vs. Ss. de que esta pessoa se achava neste lugar carregando dois navios de azeite para Holanda, e entendendo poderia haver causa para algum procedimento. Neste lugar assiste há dias um Manuel Henriques Lopes, da mesma nação, que há algum tempo mora na cidade do Porto e de presente assiste em Lisboa, fazendo as normais carregações de azeite, também para Holanda. Pareceu-me dar a Vs. Ss. esta conta, de que serve esta. Figueira da Foz do Mondego, aos 5 de maio de 1714…
Recebida a carta, ordenaram os inquisidores de Coimbra que informasse “com todo o segredo e cautela de quem este seja filho, de onde é natural e morador, se é casado, com quem, se tem alguns irmãos ou parentes, como se chamam”…
Não vamos acompanhar a “missão de espionagem” do familiar do santo ofício. Diremos tão só que a prisão de Henriques Lopes na “cadeia da portagem” se destinaria a dar tempo ao promotor do tribunal da inquisição para recolher testemunhos ou indícios de judaísmo contra ele. Efetivamente, no dia 24 do dito mês de maio, transitou o prisioneiro para a cadeia da inquisição, a mesma onde, meio século antes, sofreram o seu pai Vasco, a sua mãe Mécia e o seu irmão António.(2)
Tinha 66 anos quando foi preso e era viúvo de Mariana de Alvim,(3) filha de Francisco Ferreira Isidro, capitão de milícias de Freixo de Numão e sua mulher Francisca Vaz, da Torre de Moncorvo.
O seu processo nada tem de especial, dado que logo na primeira sessão ele declarou que “não quer defesa e só quer confessar as culpas”. Por dois anos permaneceu na cadeia, saindo reconciliado com cárcere e hábito perpétuo no auto da fé de 4.6.1716.
O mais interessante do seu processo é uma carta que António Nunes Cardoso(4) seu sobrinho, natural de Freixo de Espada à Cinta, estanqueiro do tabaco em Portalegre, lhe escreveu quando foi preso. Gostaríamos de transcrevê-la, porém o espaço disponível não o permite. Vejam apenas um curto excerto:
— Quando de vossa mercê esperava a notícia de se haver recolhido a sua casa saboreando-se com o gosto de ver a seus irmãos e primos meus juntamente, dando satisfação ao senhorio do pataxo (barco) para que viesse no reconhecimento da exacta diligência e desvelo que tem tido na compra dos azeites com que o carregou, vejo e me fiz sabedor de que está na cadeia da portagem por lhe imputarem fazer a tal carga com trigo (…) E nesta consideração, sendo o Dr. Corregedor tão grande ministro, como considero, breve estará v. mercê fora da prisão (…) Esta remeto ao Dr. José Correia de Carvalho, amigo de meu irmão e meu, que é bom homem, e o há-de ir logo procurar (…) Deus nos livre dos inimigos e guarde a v. mercê. 4 de Junho de 1714.
Acerca deste e outros sobrinhos de Manuel Henriques, diremos que, também eles, uma década depois, foram parar às masmorras do santo ofício. Como, aliás, aconteceu com 6 filhos seus, que todos foram presos em 1725.
Terminamos com uma breve informação sobre os irmãos de Manuel Henriques Lopes:
Lopo Rodrigues, foi morador em Faro, casado com Brites Francisca e dali se foram para os Barbados.
António Lopes Henriques, faleceu solteiro em Vila Flor, tendo sido preso pela inquisição de Coimbra em 1665.
Gaspar Fernandes, casou com Isabel Rodrigues e o casal morou no Porto. Em maio de 1697, na visitação que ali fez D. Tomás de Almeida, deputado do santo ofício apareceu uma Leonor de Paiva a denunciar Gaspar Fernandes, o seu cunhado Marrcos Ferro e outros cristãos-novos que em sua casa “faziam sinagoga”. Tempos depois a denunciante foi morta com um tiro, sendo voz pública que a matou Gaspar Fernandes. Não sabemos se foi por causa do crime ou por medo da inquisição que o casal fugiu depois para a Holanda.
Maria Henriques vivia no Porto, casada com o advogado Francisco Marcos Ferro, de Torre de Moncorvo. Este foi preso pela inquisição na sequência da visitação atrás referida. Aquela, deixou o Porto e dirigiu-se para Faro e dali para Lisboa, abalando-se, em Abril de 1699, para a Itália, no barco “N.ª Sr.ª la Coronada” juntamente com 47 outros cristãos-novos Trasmontanos, quase todos ligados por laços familiares, entre eles os pais de Jacob Rodrigues Pereira, o inventor do alfabeto para surdos-mudos. Todos foram presos em Cádiz, pela inquisição espanhola.(5)
Branca Gomes foi casada e moradora em Vilar de Maçada, Alijó, onde faleceu.
Isabel Henriques casou com Diogo Vaz Faro e o casal viveu no Porto, não deixando descendência. Também ela foi presa pelo santo ofício, em 1725, sendo já viúva. Terá falecido na cidade de Faro, nesse mesmo ano, de acordo com a informação de Francisco Gabriel Ferreira, seu parente.(6)
 
 
 
Notas:
 
1 - Gaspar Dias de Almeida era natural de Gogim, Lamego. Viveu em Faro e depois em Lisboa, administrando a Quinta do Lumiar e negociando com o Brasil e a Inglaterra. Em 1723, pressentindo que a inquisição o queria prender, fugiu no seu barco para Londres onde viveu como judeu assumido e faleceu em 1741. Vários de seus filhos foram para a ilha de Barbados. - ANDRADE e GUIMARÃES, Na Rota dos Judeus Celorico da Beira, p. 70 e seguintes, ed. Câmara Municipal de Celorico da Beira, 2015.
2 - ANTT, inq. Coimbra, pº 8521, de Manuel Henriques Lopes; pº 9984, de Vasco Fernandes Lopes; pº 2439, de Mécia Fernandes; pº 3802, de António Lopes Henriques. Este faleceu solteiro em Vila Flor. 
3 - Mariana de Alvim faleceu no Porto, na rua da Ferraria de Baixo, em 19.5.1704, sendo sepultada em S. João Novo, conforme certidão inserta no processo de sua nora (n.º 10157-L), Francisca Rosa, casada com Vasco Fernandes Lopes.  
4 - IDEM, inq. Évora, pº 9125, de António Nunes Cardoso.
5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do Mundo, Sefardita e Trasmontano, ed. Lema d´Origem, Porto, 2014.
6 - IDEM, inq. Coimbra, pº 10572, de Isabel Henriques; pº 9669, de Francisco Gabriel Ferreira.